Sumário: 1) Introdução, 2) Considerações históricas sobre a origem da fiança, 3) Aspectos conceituais da fiança, 4) Natureza da fiança, 5) Requisitos, legitimidade e outorga conjugal, 6) Exoneração da fiança no Código Civil de 2002, 7) Conseqüências da exoneração da fiança.
A fiança é uma garantia fidejussória acessória a um contrato principal, pela qual um terceiro (o fiador) assume o compromisso do devedor em casos de inadimplemento. Antes do advento do novo Código Civil o fiador só poderia despojar-se desse compromisso por acordo amigável com os sujeitos do contrato principal ou através de ação própria. A alteração legal introduzida no ordenamento jurídico trouxe ao fiador a possibilidade eximir-se da fiança prestada em contrato vigente por prazo indeterminado através de notificação ao credor. Com isso, o legislador pretende desonerar o judiciário e gerar facilidades para a solução de conflitos nesse âmbito de relações jurídicas.
1 Introdução
O presente artigo tem por escopo apresentar as modificações no instituto da fiança introduzidas pelo Novo Código Civil. Para tanto parte-se de uma análise histórica do instituto, apresentando suas características e natureza jurídica, avançando até a regulamentação vigente que trouxe nova disciplina para a questão da exoneração da fiança, introduzindo a possibilidade de o fiador liberar-se da obrigação acessória através de notificação ao credor, dispensando-se a ação judicial de exoneração de fiança para os contratos por prazo indeterminado.
2 Considerações históricas sobre a origem da fiança.
A fiança foi referida pela primeira vez no Direito Babilônico, onde era utilizada a expressão “sustentar a cabeça do devedor”, o fiador era quem a sustentava. No Direito Assírio a fiança, era representada simbolicamente pelas mãos, assim o fiador era o “senhor da mão”, ou seja, o garantidor da dívida.
No Direito Grego a fiança era parte integrante do contrato principal, que tinha por sujeitos o credor, o devedor e o fiador.
No Direito Germânico existiam duas formas de fiança a “dação de refém” e a “fiança de presença”. A primeira consistia em assumir a responsabilidade pela dívida de outrem, assim o homem livre era entregue ao poder do credor enquanto persistisse a dívida. Quitado o débito, o homem era libertado, em casos de mora ele passava a ser propriedade do credor. Pela assunção de dívida o fiador ficava com o devedor sob sua custódia.
As normas regulamentadoras do instituto da fiança nos dias atuais, basearam-se no Direito Romano, que condicionava a constituição da fiança à existência de uma obrigação principal. Assim, havia necessidade de cobrar-se primeiro o devedor principal e posteriormente o fiador.
No Direito Romano, por longo período o fiador foi considerado como devedor solidário e, só na época de Justiniano se reconheceu a sua qualidade de responsável subsidiário, qualidade reconhecida pela nossa legislação até os dias de hoje, salvo se restar estipulada a solidariedade entre devedor e fiador (828, II CC).
3 Aspectos conceituais da fiança.
Para o ordenamento civil brasileiro, a fiança é um contrato acessório em relação a um contrato principal, no qual o fiador se responsabiliza, com seu patrimônio, pelo cumprimento da obrigação do afiançado. Assim, a fiança é um compromisso que um sujeito assume por outro, perante terceiro. O contrato de fiança é um contrato acessório de garantia ao cumprimento de uma obrigação principal.
Portanto, pelo contrato de fiança , um sujeito, o fiador, obriga-se a pagar a outro, o credor, o que lhe deve um terceiro, o devedor.
Assim segundo preconiza o art. 818 do Código Civil vigente, “Pelo contrato de fiança uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra”.
A fiança é a conhecida garantia fidejussória ou pessoal, que está baseada na confiança. O terceiro deposita na mão do garante/fiador a certeza do cumprimento da obrigação assumida pelo afiançado.
4 Natureza da fiança.
A fiança é um contrato unilateral, uma vez que o fiador se obriga perante o credor, mas, em contrapartida, o credor não assume nenhum compromisso para com aquele. No entanto, alguns doutrinadores sustentam que a fiança é um contrato bilateral imperfeito, porque uma vez paga a dívida pelo fiador, este se sub-roga nos direitos do credor.
É, também, gratuita, pois é prestada de forma desinteressada, sem determinar vantagem para o fiador. Existem entendimentos doutrinários afirmando que a fiança pode ser onerosa, considerando-se o risco assumido pelo fiador.
O contrato de fiança deve ter interpretação restritiva, mas se não houver limitação expressa no contrato, o fiador responderá pelos acessórios da obrigação assumida, inclusive despesas judiciais, desde a sua citação.
A fiança é também um contrato intuito personae, pois está baseado na confiança entre os contratantes. É também um contrato acessório garantidor do contrato principal.
A fiança é, ainda, um contrato formal, porque a vontade do fiador deverá ser manifestada por escrito, de forma expressa e inequívoca conforme estabelece o art. 819 do CC.[i]
5 Requisitos, legitimidade e outorga conjugal.
Para prestar fiança, basta que o fiador seja pessoa dotada de capacidade civil, enquadrando-se nas regras propostas pelo ordenamento jurídico.
No entanto, existem determinadas regras que limitam o exercício da fiança como é o caso do leiloeiro e do corretor (arts. 61 e 68 do C. Comercial), bem como, o caso das pessoas jurídicas, cuja capacidade para figurar como fiador em negócio jurídico dependerá do estatuto que as regulamenta.
Os analfabetos, deficientes visuais e surdos-mudos, que possuem discernimento, não estão impedidos de prestar fiança, apenas necessitam de escritura pública ou procuração por instrumento público para fazê-lo.
O pródigo apesar de não perder plenamente a sua capacidade, está impedido de prestar a fiança, pois poderia colocar seus bens em risco.
O tutor e o curador também não podem assumir fiança em nome de seus pupilos, pois nesse ato não se vislumbra vantagem para os representados.
O mandatário apenas pode assumir a fiança se a procuração contiver poderes expressos, não bastando cláusulas genéricas de administração.
Aspecto controvertido entre os requisitos para fiança é sobre a necessidade de outorga conjugal, pois existe ampla discussão para saber se o ato praticado sem a anuência do cônjuge é nulo ou anulável.
O CC de 1916 dizia que o fiador, se casado fosse, independente do regime de casamento, necessitava do consentimento do outro para prestar fiança. A mesma restrição é mantida pelo novo Código Civil, mas com ressalva. No caso de o casamento seguir o regime da separação absoluta, cada cônjuge possui ampla e livre administração de seus bens e, a princípio poderá prestar a fiança sem a outorga conjugal.
De acordo com o Novo Código Civil a falta de outorga conjugal, na prestação da fiança, constitui um ato anulável, vez que eivado de nulidade relativa, levando-se em conta que um dos cônjuges anuiu pela fiança. Fortalecendo este entendimento, o artigo 1649 do CC diz que a falta de autorização não suprida pelo juiz, torna o ato anulável, podendo o cônjuge pleitear a sua anulação em até dois anos, estipulando um prazo decadencial.
6 Exoneração da fiança no Código Civil de 2002.
Para o doutrinador Silvio de Salvo Venosa, a exoneração da fiança consiste no despojamento do fiador da condição de garante, ou seja, é a liberação do fiador da garantia prestada ao contrato principal.[ii]
Pelo Código Civil anterior isso só era possível pela aquiescência do afiançado e do credor, ou através de ação própria de exoneração de fiança, conforme previa o art. 1500.
Com a alteração do código houve sensível mudança a respeito da matéria, conforme se pode visualizar no art. 835 que diz: “O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que convier, ficando obrigado por todos os efeitos da fiança durante sessenta dias, após a notificação ao credor”.
O que se buscou com a mudança apresentada no novo código é a possibilidade de exoneração da fiança, prestada através de contrato escrito vigente por prazo indeterminado, através de simples notificação.
O legislador facilitou ao fiador o exercício da faculdade de exonerar-se da fiança prestada, isso porque o art. 835 prevê a permanência da obrigação assumida até 60 dias após a notificação do credor, não exigindo que a obrigação permaneça até o ato amigável ou a decisão judicial de exoneração.
Assim, a exoneração de fiança pode ser comunicada ao credor através de notificação e, mesmo no silêncio deste, a obrigação se mantém por apenas 60 dias.
Se, pela notificação, o fiador manifesta formalmente a intenção de exonerar-se da fiança, cabe ao credor que com ela não anui, contranotificar justificadamente, já que a sua inércia suscita no fiador a crença de sua aceitação.
No âmbito das relações locatícias o locador pode evitar eventual prejuízo em caso de exoneração do fiador uma vez que tem a seu favor a previsão legal do art. 40, da lei das Locações, que lhe assegura o direito de exigir do locatário a substituição do fiador sob pena de rescisão do contrato de locação.
Com a possibilidade de exoneração da fiança por notificação autorizada pelo código, os fiadores devem ficar atentos às alterações contratuais ou modificações fáticas que por qualquer razão causem a perda da confiança no afiançado e não precisam aguardar a propositura de ação judicial para então se defenderem.
Por outro lado, o locador deve comunicar toda e qualquer modificação contratual ao fiador e ficar atento às manifestações de vontade do mesmo, para prontamente tomar as providências que a lei lhe assegura, podendo exigir novo fiador sob pena de rescisão do contrato de locação e despejo.
Sabe-se que os fiadores assinam verdadeiros contratos de risco e adesão na qualidade de garantidores de obrigação locatícia sem que tenham a oportunidade de negociar as cláusulas nele contidas, assumindo obrigações que os vincula até a entrega das chaves do imóvel, e ainda, renunciam à faculdade legal prevista hoje no art. 835, que prevê a possibilidade de exoneração da fiança.
Muito se discutiu a respeito da validade da cláusula contratual de renúncia ao direito do fiador de exonerar-se da fiança prestada por tempo indeterminado, e hoje a jurisprudência de nossos tribunais vem se firmando no sentido de ignorar tal cláusula, nas hipóteses em que tenha ocorrido aditamento contratual ou prorrogação do prazo de locação por tempo indeterminado, sem anuência expressa do fiador, ainda que o contrato de locação contenha a previsão de que a responsabilidade do fiador permaneça até a entrega efetiva das chaves.
E isso porque, sendo a fiança um contrato gratuito (art. 819 do CC), não admite interpretação extensiva, devendo ser interpretado o contrato que a contém por essa razão restritivamente sempre em favor de quem a presta.
Não se pode admitir que o fiador, obrigado em contrato benéfico e estando de boa-fé, seja vinculado à obrigação que possa se tornar indeterminada quanto ao tempo.
É da essência do contrato de fiança ser intuito personae, ou seja, a garantia é dada em razão de um vínculo pessoal que justifica a confiança do fiador em relação ao afiançado. Esse vínculo pode desaparecer, por exemplo, em caso de separação de casal, retirada de sociedade, etc.
A discussão da matéria não está plenamente solucionada com a alteração do CC, pois é mais complexa, do que parece uma vez que a Lei. 8245/91 prevê em seu art. 39 que “Salvo disposição contratual em contrário qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel”.
Perante o contrato de locação de imóveis, com a interpretação restritiva do disposto no referido artigo, não há possibilidade para o fiador exonerar-se antes da entrega do imóvel. Entretanto, os Tribunais têm acolhido pretensões neste sentido, aplicando a regra geral do contrato de fiança ao invés da lei especial das locações.[iii]
Cabe lembrar que a possibilidade do pedido de exoneração através de uma simples notificação não era válida antes da vigência do novo código. Esta possibilidade de exoneração só se aplica aos contratos por prazo indeterminado, pois o fiador responde pela garantia durante todo o lapso temporal do contrato, a não ser que haja outra causa de extinção.
7 Conseqüências da exoneração da fiança.
A mudança inserida pelo CC/02 refletiu diretamente em outra esfera jurídica, ou seja, excluiu do Processo Civil a ação de exoneração de fiança, que pelo CC anterior constituía uma das possibilidades para exoneração, conforme expressava o art. 1500, quando dizia: “O fiador poderá exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando, porém, obrigado por todos os efeitos da fiança, anteriores ao ato amigável, ou á sentença que o exonerar”.
Sob esse aspecto a alteração implementada no ordenamento civil tem o intuito de descongestionar o judiciário, uma vez que não haverá necessidade de intervenção judicial para que ocorra a liberação do fiador da garantia prestada.
Assim, com a possibilidade gerada pelo novo código, haverá facilidade para o fiador se desobrigar a permanecer num contrato que já teve seu termo, mas que permanece existindo sem prazo determinado por interesse existente do credor e do devedor do contrato principal. É sabido que nos contratos de fiança, principalmente nos casos de locação, a não manifestação das partes no seu termo, implica sua prorrogação por prazo indeterminado.
A notificação que possibilita ao fiador a exoneração da fiança gera para o afiançado a incumbência de conseguir, dentro de 60 dias, um novo fiador, ou apresentar nova modalidade de garantia para o contrato.
Analisando pela ótica do credor, a exoneração da fiança tal como apresentada pelo código civil pode representar um foco de insegurança para as relações locatícias, no entanto vale ressaltar que existem mecanismos legais de proteção ao locador, tal como o previsto no art. 42 da Lei 8245/1991 que estabelece a possibilidade de o locador exigir do locatário o pagamento do aluguel e encargos até o sexto dia útil do mês vicendo, ou seja, antecipadamente. Além disso, conforme dispõe o art. 40 da referida Lei o locador também poderá exigir novo fiador ou a substituição da modalidade de garantia.
Assim, a reforma introduzida pelo CC determinou facilidades para o fiador, além de solucionar antigas controvérsias doutrinárias atinentes ao instituto da fiança, contribuindo com a redução da necessidade da intervenção do judiciário para dirimir controvérsias nesta modalidade de contrato uma vez que dispensa a necessidade de instauração de processo por parte do fiador para que possa eximir-se da fiança prestada.
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