Valéria Vaz de Lima – Procuradora do Município de Campinas, especializanda em Direito Administrativo pela Universidade de São Paulo(USP-FDRP); especialista em Direito Público e em Processo Civil pela Escola Paulista da Magistratura. E-mail: valeriaregina50@terra.com.br
Resumo: Este artigo tem como enfoque a análise da aplicação no Brasil do instituto jurídico da requisição administrativa, suas características e suas consequências se presentes seus pressupostos. Leva-se em consideração a postura do Estado brasileiro perante a iniciativa privada, ao se deparar com a necessidade de rápida obtenção de produtos e serviços direcionados à saúde, na condução da pandemia decorrente do Sars Cov-2 em seu território. Outrossim, é utilizado o método bibliográfico, somado à aplicação das regras de hermenêutica, e acrescidas da opinião da autora. Nesse panorama, verifica-se que o Estado brasileiro mesmo tendo a seu dispor o instituto da requisição elevado à posição de Direito Constitucional quase não lhe utiliza, ao contrário, demonstra-se muito receoso e constrangido em requisitar bens ou serviços da iniciativa privada. Sendo assim, verifica-se a importância desse trabalho ao demonstrar a falta de habilidade estatal no manejo do instituto, ao preferir o Estado brasileiro manter-se na posição de pedinte de uma solidariedade privada, até mesmo internacional, ignorando o fundamento da solidariedade social interna, do que fazer uso de seu direito de coerção. Além disso, por várias vezes o Estado brasileiro, quando tem a coragem de utilizar dessa coerção, a faz de forma desordenada e tímida, tentando requisitar de outras pessoas políticas como ele, o que não é permitido, na verdade, o intuito é poupar a iniciativa privada.
Palavra-chave: Direito Administrativo. Situação de Calamidade. Coercibilidade. Requisição Administrativa.
Abstract: This article focuses on the analysis of the application in Brazil of the legal institute of administrative requisition, its characteristics and its consequences if present its assumptions. It takes into account the posture of the Brazilian State towards the private initiative, when faced with the need to quickly obtain products and services directed to health, in the management of the pandemic resulting from Sars Cov-2. Furthermore, the bibliographic method is used, added to the application of the rules of hermeneutics, plus the opinion of the author. In this scenario, it appears that the Brazilian State, despite having at its disposal the institute elevated to the position of Constitutional Law, hardly uses it, on the contrary, it is very afraid and constrained in ordering goods or services from the private sector. Therefore, the importance of this work is verified when demonstrating the lack of state skill in the management of the institute when preferring the Brazilian State to remain in the position of begging for private solidarity, even international, ignoring the foundation of internal social solidarity, than making use of their right of coercion. In addition, the Brazilian state, when it has the courage to use this coercion, does it in a disorderly and timid way, trying to solicit from other political people like him, which is not allowed, in fact, the intention is to spare the private initiative.
Keywords: Administrative Law. Disaster Situation. Coercibility. Administrative Requisition.
Sumário: Introdução. 1.Fundamento legal para a requisição administrativa. 2.Características da Requisição Administrativa. 3. A Falta de Coragem do Estado e a Péssima Escolha em Requisitar de Outras Pessoas Públicas. 4. Alguns Casos de Requisição na Pandemia de 2020 do Sars Cov-2 para Ilustrar. Conclusão. Referências.
Introdução
A requisição administrativa caracteriza-se por ser uma das espécies possíveis de intervenção do Estado na propriedade privada, fundamentada na condição do atendimento da função social da propriedade, a requisição é medida excepcional, porém possível no ordenamento jurídico brasileiro. Se o Estado brasileiro optou pelos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa como um de seus princípios fundamentais, e consequentemente o modelo econômico capitalista, nem por isso o regime jurídico administrativo deixou de ter como pilares a supremacia do interesse público e a legalidade.
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;(grifos nossos)
V – o pluralismo político.
Com a mesma envergadura constitucional a propriedade privada foi protegida como um dos direitos fundamentais, no artigo 5º da CF, mas sem ser dispensada do cumprimento de sua função social
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
Requisição é a modalidade de intervenção estatal através da qual o Estado utiliza bens móveis, imóveis e serviços particulares em situação de perigo público iminente. Anteriormente, a requisição era instituto que só tinha aplicação em situação de guerra ou de movimentos graves de origem política.
Hoje, a requisição administrativa está presente no Direito Administrativo brasileiro, servindo para fins militares e também civis. Há, portanto, dois tipos de requisição atualmente: a requisição civil e a requisição militar. O administrador público não é livre para requisitar bens e serviços a seu bel prazer e quando quiser, para que possa fazê-lo, é necessário que esteja presente uma ou várias situações de perigo público iminente, vale dizer, aquele ou aqueles perigos que não somente coloquem em risco a coletividade, como também que estejam prestes a se consumar ou a expandirem-se de forma irremediável se alguma medida pública não for adotada. Em várias situações de risco iminente em países capitalistas as classes mais abastadas detém maiores possibilidades de sua proteção por possuírem condições econômicas suficientes para o consumo dos materiais necessários à segurança própria, quando esses são existentes no mercado, outrossim os vendedores de tais proteções poder-se-iam aproveitar-se do momento de necessidade e elevar os preços dos materiais ou produtos necessários ou até mesmo preferir a venda de tais produtos a essas classes mais favorecidas.
As situações de risco são causadas não apenas pelas ações humanas, mas de igual maneira aos fatos da natureza, como inundações, epidemias, catástrofes e outros fatos do mesmo gênero. Não poderia o administrador público ficar sem munição jurídica e restar-lhe a empáfia frente a uma necessidade de bens ou serviços existentes e úteis para a coletividade, numa situação de iminente perigo público, ao saber da existência desses bens e serviços existentes em massa na iniciativa privada à disposição do mercado.
Causam estranheza as notícias de atrasos nos resultados dos exames para a detecção do Sars Cov-2, popularmente conhecido como Covid 19, por exemplo no Brasil, consubstanciado no fato de que os laboratórios públicos estariam com grande demanda para a realização dos exames, ou mesmo haveria um mal acondicionamento das amostras que teriam que perfazer uma viagem desse material, se proveniente do interior, para o laboratório público da capital; estranheza essa é causada pela possibilidade jurídica da requisição administrativa no Brasil, sendo esses exames de laboratório um excelente objeto justificado temporariamente da utilização do instituto em estudo. Se a requisição administrativa compreende a utilização temporária de serviços privados, e presentes os requisitos para a utilização da mesma, e o instituto jurídico é previsto na legislação pátria, até mesmo em nível constitucional, qual o motivo de haver no Brasil a chamada subnotificação?
A realidade fática no Brasil, a partir da data de 19 de março de 2020 foi a de inúmeros laboratórios particulares de análises clínicas renomados fechados, ou em significativa diminuição de atendimento e análises de material, face à quarentena determinada pelos vários estados e municípios, e porque não dizer também pela união, essa última embora não demonstre uma plena concordância com as medidas de isolamento na figura do Presidente da República, também não expressa oficialmente, por meio do Ministério da Saúde, a desnecessidade da mesma, ao contrário, se for levada em consideração as determinações do Ministério da Saúde essas são no sentido da manutenção do isolamento.
O fato é que o debatido ou festejado isolamento, não é esse o objeto do artigo, fez com que os laboratórios privados começassem a trabalhar em passos vagarosos, coexistindo uma imensa gama de equipamentos aptos à análise clínica e de última geração em produção baixa na iniciativa privada, com uma imensa demanda de exames convergidas para os poucos laboratórios públicos existentes. Coexiste também nessa situação, de um lado funcionários dos laboratórios privados com serviço reduzido e até risco de demissão e de outro lado um aumento extraordinário de serviços públicos nessa seara laboratorial inclusive, que agora, sem entrar em questões como as de concursos públicos e contratação emergencial, encontraria no ordenamento a alternativa da requisição desse serviços laboratoriais prestados pela iniciativa privada.
Mas parece que não foi essa a decisão, mais uma vez o administrador público se mostra tímido e reticente ao instituto, talvez por questões políticas, de fato a medida não é nada simpática! Quando muito, a princípio, houve algumas requisições de máscaras, mas com o passar do tempo e as notícias da mídia somadas às várias interpretações populares desencorajaram os administradores públicos, e mesmo em tempo de pandemia mundial voltou o velho instituto da requisição administrativa ao seu lugar de tema clássico da doutrina administrativista e nada mais.
Se existe ou existiu subnotificação de exames de constatação da presença do Sars cov-2 no Brasil, a ponto de atravancar os resultados numéricos necessários à elaboração de políticas públicas eficazes nessa seara, um dos motivos para isso foi porque não se fez uso da requisição dos serviços laboratoriais particulares no momento certo, já no início. A falta de notificação, quase que precisa, traz uma ignorância da realidade, levando o administrador a andar em ponto cego, a ser capaz de mascarar situações, de falsear a paz onde de fato há perigo, colocando em risco toda uma população.
É prevista no inciso XXV do artigo 5° da Constituição, in verbis: “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano”; o artigo 22 da carta magna também reforça sua existência ao estabelecer a competência privativa da União para legislar sobre o assunto:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho;
II – desapropriação;
III – requisições civis e militares, em caso de iminente perigo e em tempo de guerra;
…
No artigo 22 da CF fica claro a existência da requisição civil e não somente a militar, desde que o caso seja de iminente perigo, segundo Di Pietro (2017, p.213):
“ Em suas origens no direito brasileiro, só se admitiam as requisições em tempo de guerra ou de comoção intestina grave (art. 80 da Constituição de 1891 e art. 591 do Código Civil de 1916). As Constituições de 1934, 1946 e a de 1967 previam a competência da União para legislar sobre requisições civis e militares em tempo de guerra”.
Segundo José dos Santos Carvalho Filho (2018 p. 934), no âmbito infraconstitucional tem-se o Decreto-Lei nº 4.812, de 08.10.42, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei 5.451, de 30.04.43, que continua em vigor, já que adequado ao art. 5º, XXV, da CF e disciplina o poder de requisição civil e militar. Acresce a Lei Delegada nº 4, de 26.09.62 (regulamentada pelo Decreto Federal nº 51.644-A, de 26.11.62) e Decreto-Lei nº 2, de 14.1.66, voltados para a intervenção no domínio econômico e para os bens e serviços necessários ao abastecimento da população.
Ainda no âmbito infraconstitucional, como a Constituição Federal vigente (1988) estabeleceu que a competência privativa para legislar sobre o assunto requisição administrativa é da União, assim foi feito especificamente com relação à área da saúde, onde por meio da lei federal 8080/1990 dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Nesta lei é estabelecida no artigo 15 inciso III expressamente a possibilidade de requisição pela autoridade competente da esfera administrativa correspondente de bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de pessoas jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização. O caput do artigo 15 diz que a atribuição para a requisição é tanto da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios se a necessidade estiver presente em seu âmbito administrativo.
A necessidade que autoriza a possível decisão pela requisição é a de, conforme os ditames da lei 8080/1990, atendimento das necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias. Vejamos:
Art. 1º Esta lei regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado. (grifos nossos)
Das Atribuições Comuns
Art. 15. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios exercerão, em seu âmbito administrativo, as seguintes atribuições:
XIII – para atendimento de necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidade pública ou de irrupção de epidemias, a autoridade competente da esfera administrativa correspondente poderá requisitar bens e serviços, tanto de pessoas naturais como de jurídicas, sendo-lhes assegurada justa indenização; (grifos nossos)
…
Veja-se portanto que, no plano da saúde, a autorização legislativa de competência privativa da União já foi feita há quase trinta anos atrás. Por si só os entes federados já estariam habilitados legalmente às requisições para os exames laboratoriais por exemplo.
Mas o legislador federal, face às atualidades da pandemia mundial, foi além e ainda promulgou a lei 13.979/2020, em 06 de fevereiro do ano corrente, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, sendo permitido por essa lei a adoção no âmbito de suas competências, dentre outras, medidas como determinação de realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais, coletas de amostras clínicas entre outras medidas, conforme a redação dada pela Medida Provisória nº 926 de 2020, vejamos:
Art. 1º Esta Lei dispõe sobre as medidas que poderão ser adotadas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019.
Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (Redação dada pela Medida Provisória nº 926, de 2020)
I – isolamento;
II – quarentena;
III – determinação de realização compulsória de:
…
VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e (grifos nossos)
…
Somente pela análise da legislação federal antes apresentada, denota-se a presença de um arcabouço legislativo amplo e suficiente para as requisições de exames e testes laboratoriais, no entanto apesar de inúmeros decretos de calamidade pública editados pelos chefes dos executivos dos entes federados, e até algumas requisições de EPIs, de nenhuma repercussão foi se é que houve alguma requisição de testes laboratoriais, coletas de amostras clínicas da iniciativa privada.
É notável, ao menos nesse momento, a timidez e constrangimento com que é encarado por parte do poder público a requisição administrativa, se uma pandemia mundial não foi suficiente para a utilização do instituto o que será então mote para sua utilização? Eis a pergunta que não quer calar.
Em estudo da Professora de Direito Administrativo Raquel Carvalho (2020), no artigo intitulado Coronavírus- Quando o Estado mata mais que a Pandemia, a mesma afirma:
“ Em alguns locais foram requisitadas pelo Estado estruturas hospitalares sem uso e vazias, como é o caso do “Hospital Espanhol” em Salvador, o mesmo ocorrendo em outros Estados com bens móveis e insumos essenciais. Assim procedeu-se em Minas Gerais, Estado que vem enfrentando a ausência de EPIs e álcool gel (que precisam ser distribuídos aos profissionais antes do pico de demandas nas unidades de saúde, provavelmente no início de abril) com o emprego de medidas legais que buscam equilibrar atendimento de necessidade social, estruturação de serviços indispensáveis, não comprometimento da atividade das empresas e preservação dos empregos.”
A requisição é um ato administrativo com todos os seus pressupostos jurídicos, é um ato administrativo unilateral independente de qualquer aquiescência do proprietário, é direito pessoal da Administração, seu pressuposto fático é o perigo público iminente; incide sobre bens imóveis, móveis e serviços; é um ato auto-executório, que não depende da autorização prévia do poder judiciário, depende sim da decretação da situação, em regra por meio de um decreto do executivo de situação de urgência, calamidade etc; caracteriza-se pela transitoriedade, uma vez utilizado o bem e cessadas as condições autorizativas da requisição previstas no decreto a manutenção da mesma perde o suporte do pressuposto fático; a indenização, se houver, é ulterior e o valor a ser indenizado pode ser discutido judicialmente e será diferente conforme o objeto requisitado, muitas vezes podendo ser impossível a sua devolução pelo consumo integral do mesmo, diferente se o objeto requisitado for imóvel, utilizado por pouco tempo e devolvido sem dano, no caso último pode ser discutida até a desnecessidade de indenização.
“É sempre um ato de império do Poder Público, discricionário quanto ao objeto e oportunidade da medida, mas condicionado à existência de perigo público iminente… e vinculado à lei quanto à competência da autoridade requisitante, à finalidade do ato e, quando for o caso, ao procedimento adequado, esses quatro últimos aspectos são passíveis de apreciação judicial, notadamente para a fixação do justo valor da indenização.” ( HELY LOPES MEIRELLES em Direito Administrativo Brasileiro, 37ª edição, 2011, Malheiros Editores, p.678).
Veja que conforme as lições acima do renomado autor, a finalidade do ato de requisição deve ser a finalidade pública, consubstanciada na situação de perigo da pandemia e fundamentada na supremacia do interesse público sobre o interesse particular, no caso a saúde pública, e o objeto requisitado deve ser suficiente e apto ao enfrentamento da situação; o que não pode haver é o chamado desvio de finalidade, ou seja não pode haver uma escolha pessoal fundada em sentimentos de ordem íntima de perseguições, vinganças, desavenças políticas em face desse ou daquele fornecedor. Não há óbices em requisitar várias pequenas quantidades do mesmo objeto de diferentes fornecedores, ao contrário isso demonstra a falta de pessoalidade no ato que não deve ser dirigido a essa ou aquela pessoa, mas sim focado na aquisição desse ou daquele serviço ou bem.
É como a jurisprudência bandeirante entende, perfilhada nos autos da Apelação Cível TJ/SP n. 149.172-1 -1991- São José dos Campos – Recorrente: Juízo Ex Officio – Apelante: Municipalidade – Apelados: Clínica São José S. C. Ltda. e outros:
MUNICÍPIO – Sistema médico-hospitalar – Requisição, mediante decreto, dos serviços no setor privado – Insuficiência de leitos nos hospitais públicos e nos contratados e conveniados com o Poder Público – Motivo que não configura perigo público iminente ou calamidade pública – Interpretação da Lei Federal n. 6.439, de 1977 – Deliberações requisitórias, ademais, revestidas de indisfarçável desvio de poder – Nulidade do decreto – Segurança concedida – Recurso não provido.(TJSP – Apelação Cível n. 149.172-1/1991 – Rel. Des. Antonio Marson)
MUNICÍPIO – Sistema médico-hospitalar – Requisição, mediante decreto, dos serviços no setor privado – Insuficiência de leitos nos hospitais públicos e nos contratados e conveniados com o Poder Público – Motivo que não configura perigo público iminente ou calamidade pública – Interpretação da Lei Federal n. 6.439, de 1977 – Deliberações requisitórias, ademais, revestidas de indisfarçável desvio de poder – Nulidade do decreto – Segurança concedida – Recurso não provido.
Apelação Cível n. 149.172-1 – São José dos Campos – Recorrente: Juízo Ex Officio – Apelante: Municipalidade – Apelados: Clínica São José S. C. Ltda. e outros. ACÓRDÃO
ACORDAM, em Oitava Câmara Civil do Tribunal de Justiça, por votação unânime, negar provimento aos recursos de conformidade com o relatório e voto do Relator, que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
…
Com efeito, para se caracterizar “perigo público iminente”, a justificar requisição administrativa, na lição dos doutos, como assinalado no estudo transcrito na respeitável sentença (fls. 122/126), mister se verifiquem ocasiões de guerra, revolução, catástrofe provocada por acontecimentos da natureza, verbi gratia, epidemias, inundações, terremotos e acontecimentos semelhantes.
Por outro lado, para evidenciar “calamidade pública”, conforme lições trazidas à baila pelo ilustre Julgador e da lavra de JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, que também perfilho, importa que se sucedam aqueles fatores anormais e adversos afetando gravemente a comunidade, exemplificados pelo eminente administrativista com secas prolongadas e devastadoras, grandes incêndios e inundações, outros flagelos semelhantes, a invasão súbita do território de um Estado por moléstia contagiosa ou pestilencial, apta a expandir-se de forma epidêmica, de disseminação rápida e de alta letalidade, todas estas ocorrências bem diversas “…daquelas que só se desenvolvem ao favor da ausência de providências adequadas e do descuido no emprego dos meios conhecidos de profilaxia usual”. Pois bem. Todas estas situações anômalas não se deram em São José dos Campos, com relação aos serviços de saúde, nem a elas se adaptam os fatos indicados como motivação para o Alcaide baixar o ato requisitório malsinado.
…
Esse julgamento deixa claro que não basta apenas a vontade do Poder Público em utilizar um bem privado, alegando a necessidade, é preciso que todas as outras alternativas estejam, de fato, esgotadas e que esteja evidente o perigo iminente ou o caos público que justifique a requisição.
Já mencionado que o Estado brasileiro na democracia vem se mostrando reticente a utilizar a requisição administrativa perante a iniciativa privada, por razões que não se sabe ao certo, mas sem ignorar o instituto e ainda assim manter-se longe de aborrecimentos com a iniciativa privada apela o Estado para a pior decisão, qual seja, a de requisitar bens ou serviços de outras pessoas jurídicas, sim a União com toda sua força para angariar o que necessita da iniciativa privada ao invés disso prefere requisitar de outras pessoas jurídicas de direito público também, disputando assim o instituto com os outros entes políticos como ela o é, retirando de si mesma na generalidade, retirando do público pelo público, o que poderia ter outra raiz, pois autorizado a retirar do privado pelo público.
É inacreditável tal escolha, mas sim ela existe, o Estado prefere oprimir se para salvaguardar o capital privado, talvez por ser esse, o capital privado quem de fato detém o poder, o Estado como desenhado no Brasil tem o capital como um aliado importante.
A história nos mostra que a democracia – por mais ampla que seja –, é sempre colocada sob limites por parte da minoria que de fato controla o poder. A desconcentração do poder, que pode ser vista como um exercício pleno de democracia, e o é em parte, é uma forma bastante eficaz de o poder, entendido aqui como macropoder, estender suas ramificações, suas artérias, por todo o corpo social, de forma a controlá-lo com mais eficiência. A democracia, então, só pode ser entendida como tal se não houver concentração de poder, algo que podemos imaginar em uma sociedade, uma comunidade ou um grupo que seja regido sob a forma de colegiado no qual haja um consenso (em lugar de maioria vencendo minoria, como no contrato social rousseauniano) sobre o que fazer em diversas situações que sejam comuns a todos ou que pelo menos afetem a um de seus membros. (CONTEÚDO JURÍDICO, 2014 Macros e micropoderes: uma relação oponente ou complementar? Bandera, Vinicius).
A jurisprudência nos mostra como o Estado brasileiro opta por requisitar bens e serviços dos estados-membros e municípios, MS 25.295-DF vejamos:
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. UNIÃO FEDERAL. DECRETAÇÃO DE ESTADO DE CALAMIDADE PÚBLICA NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE NO MUNICÍPIO DO RIO DE JANEIRO. REQUISIÇÃO DE BENS E SERVIÇOS MUNICIPAIS. DECRETO 5.392/2005 DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA. MANDADO DE SEGURANÇA DEFERIDO. Mandado de segurança, impetrado pelo município, em que se impugna o art. 2º, V e VI (requisição dos hospitais municipais Souza Aguiar e Miguel Couto) e § 1º e § 2º (delegação ao ministro de Estado da Saúde da competência para requisição de outros serviços de saúde e recursos financeiros afetos à gestão de serviços e ações relacionados aos hospitais requisitados) do Decreto 5.392/2005, do presidente da República. Ordem deferida, por unanimidade. Fundamentos predominantes: (i) a requisição de bens e serviços do município do Rio de Janeiro, já afetados à prestação de serviços de saúde, não tem amparo no inciso XIII do art. 15 da Lei 8.080/1990, a despeito da invocação desse dispositivo no ato atacado; (ii) nesse sentido, as determinações impugnadas do decreto presidencial configuram-se efetiva intervenção da União no município, vedada pela Constituição; (iii) inadmissibilidade da requisição de bens municipais pela União em situação de normalidade institucional, sem a decretação de Estado de Defesa ou Estado de Sítio. Suscitada também a ofensa à autonomia municipal e ao pacto federativo. Ressalva do ministro presidente e do relator quanto à admissibilidade, em tese, da requisição, pela União, de bens e serviços municipais para o atendimento a situações de comprovada calamidade e perigo públicos. Ressalvas do relator quanto ao fundamento do deferimento da ordem: (i) ato sem expressa motivação e fixação de prazo para as medidas adotadas pelo governo federal; (ii) reajuste, nesse último ponto, do voto do relator, que inicialmente indicava a possibilidade de saneamento excepcional do vício, em consideração à gravidade dos fatos demonstrados relativos ao estado da prestação de serviços de saúde no município do Rio de Janeiro e das controvérsias entre União e município sobre o cumprimento de convênios de municipalização de hospitais federais; (iii) nulidade do § 1º do art. 2º do decreto atacado, por inconstitucionalidade da delegação, pelo presidente da República ao ministro da Saúde, das atribuições ali fixadas; (iv) nulidade do § 2º do art. 2º do decreto impugnado, por ofensa à autonomia municipal e em virtude da impossibilidade de delegação. (STF – MS: 25295 DF, Relator: JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 20/04/2005, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-117 DIVULG 04-10-2007 PUBLIC 05-10-2007 DJ 05-10-2007 PP-00022 EMENT VOL-02292-01 PP-00172).
Por este acórdão, consequente do fato de em 2005 por meio do Decreto Federal n° 5.392/05 a União ter declarado estado de calamidade no setor hospitalar do SUS do Município Rio de Janeiro e requisitado bens, serviços e servidores de vários outros hospitais públicos, o STF reconheceu a nulidade do ato por falta de fundamentação. Ou seja, foi a não motivação que ensejou o restabelecimento da administração e gestão dos hospitais pelo Município do Rio de Janeiro (Mandado de Segurança n° 25.295-DF), não definindo neste acórdão porém, se há ou não possibilidade de requisição sobre bens e serviços públicos.
Não parece razoável, nem necessário usar os bens e serviços de outro ente federativo (Estado ou Município), mediante requisição administrativa, além de violar o pacto federativo, pois interfere gravemente a autonomia dos entes federativos (artigos 1°, 18, 25 e 30 da Constituição).
Face ao cenário mundial de pandemia do coronavírus e a situação brasileira em específico, que se mostra ensaísta na situação, tomando medidas acertadas e desacertadas ao mesmo tempo em que nem dados suficientes dispõe para a tomada de melhores decisões. e o inegável colapso do sistema de saúde, que já se inicia, essa questão pode ser ressuscitada e parece viável estabelecer se desde já a impossibilidade da requisição administrativa de outro ente federativo. Isso porque estará comprometendo gravemente o modelo federativo, que garante autonomia aos entes políticos, e que também é uma cláusula pétrea, adotado pela Carta Magna de 1988.
Sendo assim, caso um ente (União ou Estado) entenda ser necessária a utilização de bens ou serviços de outro ente federativo (Estado ou Município), deverá fazê-la por meio da intervenção (art. 34 a 36 da CF), tendo em vista que se exigem pressupostos e trâmite específico, e o rigor é compatível com a gravidade das medidas, mas antes disso deve esgotar a possibilidade da requisição dos mesmos bens e ou serviços na iniciativa privada.
4.Alguns Casos de Requisição na Pandemia de 2020 do Sars Cov-2 para Ilustrar
Seria impossível colocar nesse artigo todos os atos de requisição administrativa realizadas pelas pessoas políticas em decorrência da famigerada pandemia, até porque na data de submissão do mesmo a referida encontra-se em continuidade não se tendo a exata noção de quando irá acabar e se o Estado irá sair dessa posição de constrangimento e se tornará proativo nas requisições ou se não será mais necessário caso haja a estabilização da contaminação.
Conforme o interessante artigo de Andréa Pitthan Françolin publicado no site Migalhas em 01 de abril de 2020, intitulado A requisição administrativa em tempos de Covid-19, foi feita uma tabela com as várias requisições administrativas realizadas face à atual pandemia tendo como observação o território do Brasil, nas palavras da autora:
“Nesse contexto, hoje, e em razão do Covid-19, vigoram ao menos os seguintes atos requisitórios, cujos objetos variam desde bens imóveis à serviços de pessoas físicas e jurídicas:”
Observa-se que se levadas em consideração as dimensões continentais do Brasil, as necessidades decorrentes da pandemia e as requisições até agora realizadas ou ao menos autorizadas por decreto, o número dessas é simbólico e insuficiente para impedir qualquer colapso no sistema de saúde. Não se sabe ao certo o motivo dos rareados casos de requisição no Brasil, talvez um receio e uma dúvida de como serão futuramente cumpridas as indenizações, pode se pensar que por esses valores de indenização serem discutidos judicialmente o Estado mantém-se receoso por não ter o poder de fixar o valor e esse valor ser imutável, indiscutível. Não o valor da indenização caso haja dano não é um ato de poder de império do Estado, ao contrário será plenamente discutido caso o particular entenda que o valor não lhe reembolsa plenamente as perdas e danos.
Conclusão
Do apresentado conclui-se que o instituto da concessão administrativa, a princípio utilizado somente nas situações de guerra, mas ora permitido na esfera civil e legitimado no Brasil pela lei ordinária e Constituição Federal nem por isso é utilizado em grande escala mesmo presentes as condições de calamidade pública, o que se vê é a elaboração de inúmeros decretos declaradores das situações de calamidade pública, pandemias, urgências e emergências, mas de fato a execução das intervenções de bens e serviços na iniciativa privada é mínima. Por vezes até o Estado brasileiro, na tentativa de furtar-se aos conflitos com a iniciativa privada, viu-se procurando bens e serviços para serem requisitados também de outras pessoas políticas, o que nem seria possível no ordenamento jurídico como demonstrado. Mostrando-se um Estado desalinhado das suas possibilidades, agindo como se fosse menor que seu verdadeiro tamanho, escondendo seu poder, ignorando a solidariedade social que fundamenta a requisição. Ao contrário, o Estado brasileiro mesmo frente a realidade fúnebre já aviltada em outros países, ignora seu poder de fogo jurídico na sua pandemia e prefere fazer uso da solidariedade moral, à quase mendicância face à iniciativa privada nacional e até mesmo internacional dos insumos necessários à preservação da vida dos brasileiros nos hospitais e a prevenção da infecção do Sars Cov-2. Na esfera pública a subnotificação dos casos é um fato, a falta de máscaras de prevenção é um fato, a falta de leitos e unidades de tratamento intensivo nos hospitais são fatos, e o país aparece no cenário mundial como o peticionador de ajuda interna e internacional, o amigo pobre da iniciativa privada que depende de seus favores. Não deixa de ser uma escolha, uma escolha arriscada, mas uma escolha legítima e que trará inúmeras consequências não desejadas e nem previstas tanto pela população como pelo próprio Estado.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Brasília-DF, 1988.
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Brasília, 20 de setembro de 1990.
BRASIL. Lei nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020. Brasília, 07 de fevereiro de 2020.
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