Ana Cristina Teixeira Barreto [1]
Resumo: O presente artigo versa sobre a filiação socioafetiva e sua repercussão no direito de família brasileiro, à luz da Constituição Federal, analisando como se dá a formação, o reconhecimento e tutela dessa nova instituição familiar, bem como dos direitos e deveres morais, patrimoniais e jurídicos dos filhos afetivos, dentre eles, o da convivência familiar, o da proteção, o da guarda e o de prestar alimentos, analisando a atuação do Estado-juiz, da família e da sociedade em relação à necessidade de se pôr em prática esses direitos.
Palavras-chave: Filiação. Socioafetividade. Paternidade.
Abstract: This article speaks about socio-affective affiliation and its repercussion on the brazilian Family Rights, in light of the Federal Constitution, analyzing how takes place, how is recognized and how is guarded by law this new family institution, as such as the morals, patrimonials and legal rights and duties of the affective sons, which includes the right of family acquaintanceship, protection, custody and alimony, analyzing the acting of the Judge State, of the family and of the society in regarding of putting into practice these rights.
Keywords: Affiliation. Socioaffectiveness. Paternity.
Sumário: Introdução. 1. Família: origem, evolução histórica. 2. A família no ordenamento jurídico brasileiro. 3. Elementos caracterizadores da filiação socioafetiva. 4. Direitos e deveres dos filhos socioafetivos. Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
A filiação socioafetiva, indubitavelmente, é uma realidade fática, um status social e se caracterizada pelo autorreconhecimento do vínculo de parentesco entre pais e filhos, pela família extensa, parentes, amigos, comunidade e pela sociedade em que vivem.
Essas novas possibilidades, ao mesmo tempo em que importam na quebra de paradigmas históricos sobre a paternidade e o sistema de presunção da maternidade certa, podem suscitar dúvidas e conflitos, como por exemplo, sobre a responsabilidade paterna e materna ou filial em relação ao parente socioafetivo.
A partir do reconhecimento formal desse tipo de filiação formada sem vínculo biológico, com base em laços sentimentais de amor e afeto, existente na prática, mas ainda não reconhecida expressamente pela legislação e pelo sistema de garantia de direitos do Direito brasileiro, surge a necessidade urgente de tutela jurídica sobre os direitos e deveres aplicáveis a essa relação interpessoal.
A rapidez na evolução da formação e constituição das famílias nem sempre é acompanhada com a mesma velocidade pela atualização e modernização normativa, fazendo surgir muitos questionamentos e inquietações, ainda sem resposta no ordenamento jurídico brasileiro, por falta de disciplinamento legislativo específico e positivação sobre essas relações.
De fato, ante a ausência de legislação que verse sobre o assunto, os julgamentos se fundamentam na doutrina e jurisprudência, fazendo ressaltar a importância de estudos acadêmicos e científicos que possam contribuir para a consolidação de um entendimento mais consubstanciado sobre a afetividade no direito de família brasileiro.
Diante disso, buscaremos responder às seguintes indagações: como se dá o reconhecimento da filiação socioafetiva? Existe prevalência da filiação biológica sobre a socioafetiva, ou vice-versa? Qual a repercussão do reconhecimento da filiação socioafetiva no Direito de Família? Que direitos e obrigações decorrem do reconhecimento desse tipo de filiação?
Por fim, em razão de toda a complexidade inerente ao tema, não se pretende esgotar todos argumentos existentes sobre o assunto, configurando-se, na verdade, como mais uma contribuição no sentido de compreender melhor alguns aspectos relativos à filiação socioafetiva.
A família é um fenômeno cultural, seu conceito e sua estruturação evoluem de acordo com a evolução da própria sociedade. A organização atual das famílias está bastante diversificada. O casamento e as relações de parentesco, firmadas com base em laços de consanguinidade, não mais representam, com exclusividade, os lares e famílias brasileiras.
Deveras, novas formas de família, como as famílias recompostas, formada pela união de pessoas advindas de lares desfeitos, as famílias socioafetivas, formadas por pessoas sem laços de parentesco biológicos que se unem pelos sentimentos de afeto e de amor fazem parte da nossa sociedade.
Por consequência, essa nova realidade social exigiu mudanças de paradigmas para superar o modelo de família patriarcal e de sociedade patrimonialista, afastando a marca eminentemente patrimonialista e liberal das codificações, revelando a importância da desbiologização e da afetividade nas relações de parentesco.
Família hoje é compreendida para além dos laços de consanguinidade, prevalecendo os laços de sentimento, afinidade sobre os vínculos biológicos, sem qualquer relação ou aparência de relação familiar, além da herança genética. Família é aquela que se constrói com afeto, cuidado, amor e atenção. A família é a que se constrói e não um mero destino biológico.
Ocorre que a matéria não se encontra positivada de forma expressa no ordenamento jurídico de forma a dar prontas respostas a todas essas demandas, gerando posicionamentos ainda não unânimes e que podem gerar insegurança jurídica, na medida em que a solução depende do entendimento e subjetividade dos órgãos julgadores, ainda tendenciosos pela prevalência das relações biológicas sobre as afetivas.
É inegável a repercussão da filiação afetiva na instituição da família moderna e no direito brasileiro, notadamente, no que se refere ao poder/dever de guarda, zelo, cuidado, educação e alimentação dos filhos.
Embora inexista previsão legal explicita, essa ausência normativa não impede que da filiação socioafetiva decorram efeitos personalíssimos, morais, patrimoniais e jurídicos, notadamente, no que que se refere à guarda, à obrigação alimentar e aos direitos sucessórios, razão pela qual esse instituto merece a tutela estatal e o reconhecimento formal pelo estado-legislador, pelo estado-Juiz, bem como pela própria sociedade.
A família, base da sociedade, recebeu proteção jurídica no ordenamento jurídico interno, por meio da Constituição Federal e da legislação infraconstitucional, como o Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente, de modo a garantir aos seus membros que os laços familiares se estabeleçam de forma saudável, capaz de garantir sustento, educação, alimentação, segurança, carinho e afeto aos seus integrantes.
Historicamente, o conceito de parentesco no direito civil brasileiro passou por diversas fases. A primeira fundava-se na verdade jurídica (art. 1597, CC). Os avanços na medicina nos levaram para a segunda fase, a da verdade biológica. Atualmente, estamos na terceira fase, a da verdade socioafetiva, que relativiza o aspecto biológico aduzindo que parente é aquele que possui vínculos de afetividade e de afinidade.
O conceito de família não se restringe mais a um grupo de pessoas unidas em razão de possuírem a mesma herança genética. Trata-se agora de instituto afetivo que ratifica o conteúdo do seguinte brocardo popular: “pai e mãe é quem cuida, é quem cria e não quem apenas cede o material genético”.
A Constituição Federal, em seu art. 226, § 4º, reconhece e protege as novas formas de constituição de família, como a união estável entre o homem e a mulher, pessoas de diferentes sexos, a família monoparental, formada por qualquer dos pais e seus descendentes: “entende-se como entidade familiar a comunidade formada por qualquer um dos pais e seus descendentes”.
Ainda, no campo constitucional, em seu capítulo VII, o art. 227, da Constituição Federal, dispõe que a paternidade vai além dos alimentos e da herança.
Por sua vez, o art.1.593 do Código Civil assim dispõe: “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”.
De fato a expressão “outra origem” é o fundamento legal do parentesco socioafetivo, fundado, essencialmente, na chamada tese de desbiologização da paternidade.
Alyrio Cavalieri, em apud de João Batista Villela menciona que a tese desbiologização da paternidade visa diminuir o mito da consanguinidade, deixando de lado a suprema importância da origem biológica do filho, para dar o devido valor a parentalidade afetiva. (Revista da EMERJ, nº 10, volume 03, 2000, páginas 10 e seguintes).
O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 26, dispõe que os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação, até porque é vedada, constitucionalmente, qualquer distinção entre os filhos.
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Com a previsão pela Constituição de 1988 dos princípios da dignidade da pessoa humana (1º, III), da solidariedade social e da igualdade substancial, insculpidos nos art. 3º e 5º, a família ganhou uma feição igualitária, democrática e plural.
A família, formada essencialmente pelo casamento, cedeu lugar à família instrumento de desenvolvimento da personalidade de seus membros. A preocupação não é mais somente o casamento, os laços formais, mas sim os laços afetivos que unem seus membros, que não estão ligados apenas por laços de consanguinidade, mas, sobretudo, de afeto e de amor.
Não é mais, portanto, o sangue ou o casamento que definem a família e que regem os efeitos patrimoniais das relações familiares, mas, sobretudo, o afeto, o amor, a solidariedade, a assistência mútua entre seus integrantes, caracterizando assim a desbiologização do novo direito de família.
Afirmado o afeto como base fundamental do Direito de Família atual, vislumbra-se que, composta a família por seres humanos, decorre, por conseguinte, uma mutabilidade inexorável, apresentando-se sob tantas e diversas formas, quantas sejam as possibilidades de se relacionar e expressar amor.
A socioafetividade é, portanto, a relação familiar que nasce do afeto entre as pessoas. Assim, a posse do estado de filho caracteriza a verdade real que prepondera sobre a verdade biológica.
A paternidade não é, pois, um fato da natureza, mas um fato cultural. Entrementes, não se pode concluir que a paternidade depende unicamente da vontade, pois aí se estaria a premiar o genitor irresponsável que sob a alegação de não querer ser pai desprezaria o filho, deixando-o a sorte de encontrar ou não um pai socioafetivo no transcorrer da vida.
Assim, o laço biológico não deve ser esquecido, mas sim transcendido para melhor atender aos interesses da criança e do adolescente, priorizando-se o afeto, independentemente do aspecto biológico.
Os caracteres patrimoniais, no âmbito da família, devem ser secundários diante da afetividade. O conteúdo patrimonialista provoca verdadeira inversão de valores, de modo que se privilegia o acessório – ou seja, o eventual patrimônio existente na relação familiar – em detrimento do principal, vale dizer: o elemento afetivo. Nesse sentido, segue a lição de Paulo Luiz Netto Lôbo (2010, on line):
A família tradicional aparecia através do direito patrimonial e, após as codificações liberais, pela multiplicidade de laços individuais, como sujeitos atomizados. Agora, é fundada na solidariedade, cooperação, no respeito à dignidade de cada um de seus membros, que se obrigam mutuamente em uma comunidade de vida. A família atual é apenas compreensível como espaço de realização pessoal afetiva, no qual os interesses patrimoniais perderam seu papel de principal protagonista. A repersonalização de suas relações revitaliza as entidades familiares, em seus variados tipos ou arranjos.
A afetividade entre pai e filho, assim compreendido como o elo constituído pela assunção de papéis de filho e de pai, por seu turno, pressupõe a convivência familiar entre ambos para se estabelecer e fortalecer. E muito embora não se possa obrigar o surgimento ou fortalecimento de afeto, amor e carinho entre pai e filho, pode o direito obrigar ao pai a conviver com seu filho, a não abandoná-lo, desprezá-lo ou ignorá-lo.
O afeto foi reconhecido como valor jurídico, tendo em vista a consagração de princípios como o da igualdade de homens e mulheres, o estatuto unitário da filiação e o reconhecimento dos diversos modos de formação da família.
Todavia, o entendimento que hoje nos parece lógico, encontrava resistência em nossos doutrinadores e aplicadores do Direito. Paulo Luiz Netto Lobo (2004. p. 507/508) destaca que, em havendo conflitos entre a filiação biológica e a filiação socioafetiva, a solução se dava sempre em favor da primeira.
Na verdade, apenas recentemente a filiação socioafetiva passou a ser vista como uma categoria própria pelos juristas, merecedora de uma construção adequada.
O afeto é, portanto, condição para o desenvolvimento humano, para se relacionar e entender o outro e a si mesmo, respeitar a dignidade e desenvolver uma personalidade saudável. É condição sine qua non para a dignidade humana.
Nesse prisma, a filiação pode ser apresentada sob diferentes faces. A biológica, que deriva da identificação genética entre pais e filhos; a jurídica, que é imposta pela lei e a socioafetiva, que se revela naturalmente devido à convivência entre as pessoas.
A verdadeira paternidade ou maternidade só é alcançada a partir de um ato de vontade, de um desejo, independente de ser ela biológica ou não. O afeto é um elemento muito importante na real identificação da paternidade/maternidade quanto um sobrenome proveniente de uma relação biológica. Nos dizeres de Marcelo di Rezende Bernardes (2010, on line):
Acreditamos, por certo, que este instituto jurídico familiar identificado como paternidade socioafetiva, mesmo ainda não respaldado com solidez pela legislação civil em voga, mas que já vem sendo admitido pelos Tribunais do país, enquadrado como um fato e integrado ao sistema de direto, concretizará como a mais importante de todas as formas jurídicas de paternidade, onde seguirão como filhos legítimos os que descendem do amor e dos vínculos puros de espontânea afeição, tendo um significado mais profundo do que a verdade biológica.
A verdade socioafetiva é tão importante quanto a verdade biológica. A realidade jurídica da filiação não é, portanto, fincada apenas nos laços biológicos, mas na realidade de afeto que une pais e filhos, e se manifesta em sua subjetividade e, exatamente, perante o grupo social e à família.
Na visão de Sérgio Pereira (2004. p.429), a paternidade/maternidade é acima de tudo socioafetiva, formada por laços afetivos cujo significado é mais profundo do que a verdade biológica, onde a dedicação, a proteção, o amor paterno/materno para com o filho, no dia a dia, revelam uma verdadeira afetividade. Assim, a paternidade/maternidade vai sendo formada pelo livre desejo de atuar em integração e interação paterno-filial.
No mesmo sentido preconiza Luiz Edson Fachin (1996, p.33), como se percebe abaixo:
A verdadeira paternidade pode também não se explicar apenas na autoria genética da descendência. Pai também é aquele que se revela no comportamento cotidiano, de forma sólida e duradoura, capaz de estreitar os laços da paternidade numa relação da paternidade psicoafetiva; aquele, enfim, que, além de poder lhe emprestar seu nome de família, trata-o como sendo verdadeiramente seu filho perante o ambiente social.
Assim, na visão moderna o pai é considerado aquele que educa, que cuida, alimenta e acompanha o crescimento e a formação do filho, seja este filho biológico, adotivo ou simplesmente do coração.
Rolf Madaleno (2000, p.40) também entende que a filiação socioafetiva é construída pelo livre desejo de atuar em interação paterno-filial, formando laços de afeto que nem sempre estão presentes na filiação biológica, até porque a paternidade/maternidade real não é biológica, mas sim cultural, fruto da convivência, do carinho, do amor e do respeito existente entre o pretenso pai e o suposto filho.
José Bernardo Ramos Boeira (1999, p.20) salienta que cresce a cada dia a importância da noção de “posse de estado de filho”, que revela a constância social da relação paterno-filial, caracterizando uma paternidade/maternidade existente, não pelo fator biológico ou por força de presunção legal, mas em virtude de elementos que são frutos de uma convivência afetiva.
Distingue-se, portanto, a figura do genitor, que é aquele que apenas é parente pelo vínculo biológico, dos pais, que são aqueles que são parentes pelo vínculo socioafetivo.
Balizar o ensinamento do professor Rodrigo da Cunha Pereira quando o mesmo afirma que:
“ (…) papel social do pai e da mãe, desprendendo-se do fator meramente biológico (…) ou seja, o pai é muito mais importante como função social do que propriamente como genitor” (“Direito de Família, uma abordagem Psicanalítica”, Ed. Del Rey, 1997, página. 131-136).
O princípio da afetividade está presente, portanto, nas relações familiares através da igualdade da filiação, independentemente da existência ou não de laços biológicos, na maternidade e paternidade socioafetiva, na comunhão plena de vida, na solidariedade existente entre seus integrantes.
Diferentemente da filiação biológica, a filiação socioafetiva não pode ser comprovada com um simples exame ou com a presunção de paternidade em virtude do casamento.
A paternidade/maternidade socioafetiva é considerada como a verdadeira paternidade, se constrói, se forma e se fortalece no dia a dia, sendo evidenciada principalmente pela presença dos elementos denominados de “trato” e “fama”.
A filiação baseada nas relações afetivas reconhece a família formada por pais e filhos como aquela que é unida não apenas por um vínculo biológico, mas por laços de afeto. Assim, surgiu uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho.
Trata-se de modalidade de filiação construída no amor, gerando vínculo de parentesco por opção. A adoção consagra a paternidade socioafetiva, baseando-se não em fator biológico, mas em fator sociológico (Manual de Direito das Famílias, Maria Berenice Dias, 3ª edição, Editora dos Tribunais, 2006, página 385).
Nesse diapasão, a posse do estado de filho, apesar de ainda não estar formalmente reconhecida em nosso ordenamento jurídico, tendo em vista as constantes mudanças sociológicas, nem sempre acompanhadas com a mesma velocidade pelo sistema normativo, vem exigindo uma nova resposta dos julgadores para a solução dos conflitos dela decorrentes.
Para a caracterização da posse de estado de filho, segundo José Bernardo Ramos Boeira (1999, p.104) são utilizados pela doutrina três elementos: o nome, o trato e a fama, sem que, contudo, se estabeleça uma hierarquia entre esses elementos. Esses elementos corresponde a reputatio; nominatio e ao tractus:
“Reputatio”: A criança deve ter a reputação, a fama de filha, ou seja, deve ser encarada pela sociedade como tal.
“Nominatio”: O nome usado deve demonstrar a parentalidade, devendo a criança ser chamada de filha.
“Tractatus”: O tratamento dispensado ao infante deve ser o tratamento típico dispensado pelos pais aos filhos.
Contudo, ressalta o mesmo autor que a maior parte da doutrina admite que o fato do filho nunca ter usado o patronímico do pai não afasta a posse de estado de filho, se os elementos de trato e fama estiverem presentes. Nesse sentido, explica o autor:
No exame de seus elementos caracterizadores, é preciso distinguir que a intensidade com que irá revelar-se a “posse de estado de filho” pode variar de acordo com eventuais impedimentos que possa ter o pai em identificar, publicamente, esta situação. É evidente que, para os cônjuges, sem impedimentos de ordem legal ou ético-moral, é fácil demonstrar, ou, até mesmo invocar abertamente a posse de estado para justificar a filiação, ainda não regularizada ou cujo assento perdeu-se ou é insuficiente. Por outro lado, quando se tratar de filiação ilegítima e ainda, mais especificamente, de adulterina, é possível que a “posse de estado de filho.” Boeira (1999, p.104)
Os elementos caracterizadores da posse de estado de filho são analisados por Elisabeth Nass Anderle(2010, on line) da seguinte forma:
O “nome” é considerado o primeiro elemento e este se caracteriza pelo uso do nome da família, ou seja, o patronímico do suposto pai deve ser utilizado por seu pretenso filho. Entretanto, como já foi dito, a doutrina não dá maior importância a este elemento, dizendo não sê-lo essencial para a configuração da posse de estado de filho, uma vez que, muitas vezes, o filho não utiliza o nome de seu pai.
Os demais elementos, ao contrário do nome devem necessariamente se fazer presentes para a configuração do estado de filho.
Por “trato” entende-se o tratamento dispensado ao pretenso filho. É considerado elemento objetivo, pois se caracteriza pelo comportamento do pretenso pai em relação ao suposto filho. Sustenta-se pela assistência material e moral dada ao filho, como por exemplo, o carinho, os cuidados, o afeto, a educação, a saúde, comuns a todos os pais no tocante aos seus filhos.
Neste aspecto, podem subsistir as assistências, material e/ou moral. Para a caracterização do elemento “trato” deve-se levar em consideração a situação pessoal do suposto pai, quer dizer, pode ocorrer que o pai não tenha condições econômicas para prestar assistência ou então que o filho não necessite de assistência material.
O elemento “fama” é a exteriorização desse estado da pessoa para o público, isto é, é necessário que a sociedade conheça determinada pessoa como sendo filho daquela, mediante as atitudes do suposto pai em relação ao seu pretenso filho. Assim, a sociedade deve ter a convicção de que realmente se trata de pai e filho.
Estando presentes os elementos de “trato e fama” e quando possível o “nome” tem-se configurada a filiação socioafetiva. A posse do estado de filho assemelha-se ao princípio da aparência, tendo em vista a exteriorização do amor paterno/materno, traduzidos no trato e na fama.
A posse do estado de filho vale-se da aparência para mostrar à sociedade uma relação fática existente, que não pode ser reconhecida como legal pela norma jurídica ante a ausência de comprovação jurídica por documentos ou registros formais. A posse de estado de filho está atrelada à duração, vez que só pode existir com o tempo, por meio da repetição de indícios cotidianos da filiação.
Em relação à posse do estado de filho assevera, José Bernardo Ramos Boeira:
“é também explicada pela teoria da aparência, em que a publicidade faz reconhecer uma situação jurídica em favor de um individuo que, na realidade, ainda não a possui.” (Investigação de Paternidade. Posse do Estado de Filho. Paternidade Socioafetiva. P 81. 1999).
A Constituição Federal igualou os filhos biológicos e não biológicos, estabelecendo os mesmos direitos e obrigações para com os pais, apresentando-se a paternidade como uma “via de mão dupla”, caracterizando-se como um conjunto de direitos e obrigações através do poder familiar, do qual decorre o dever de sustento dos pais em relação aos filhos que ainda não atingiram a maioridade civil, independentemente da relação conjugal existentes entre os pais, vez que tal poder deriva da paternidade, seja ela biológica ou afetiva.
O art. 1694 do Código Civil de 2002 estabelece que:
“podem os parentes, cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”.
Os alimentos têm por finalidade assegurar o direito à vida, razão pela qual são irrenunciáveis e impenhoráveis, assim como imprescindíveis e intransmissíveis, apresentando-se como pressupostos para o surgimento de tal direito, nos termos do art. 1694, caput e § 1º do Código Civil, o vínculo de parentesco, a necessidade do alimentado e a possibilidade econômica do alimentando. De fato, os alimentos somente são devidos em função do vínculo de parentesco, sem o qual não haverá êxito em eventual reclamação.
Através da análise do citado dispositivo, combinado com o art. 1593 também do Código Civil, que determina que o parentesco seja natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem, entende-se que o filho socioafetivo tem direito à concessão de alimentos, até mesmo porque o art. 1694 do CC não determina explicitamente quais parentes fariam jus a alimentos, razão pela qual se deve interpretar pela inclusão a filiação socioafetiva.
De fato, embora o Código Civil de 2002 não tenha reconhecido, de forma expressa, a filiação socioafetiva como fato ensejador do direito a alimentos, esse tipo de filiação encontra amparo no já citado art. 1593 do CC. Além disso, outros dispositivos do Código Civil reconhecem o estado de filiação socioafetiva, como o art. 1596, que estabelece a igualdade entre os filhos, e os artigos 1603, que determina que a filiação seja provada pela certidão de nascimento, e 1605, II, que determina que a filiação possa ser provada por presunção.
Assim, do estado de filiação socioafetiva decorrem os efeitos jurídicos previstos nos artigos 39 e 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente, dentre eles a guarda e sustento dos filhos, bem como pagamento de alimentos. O estado de filho socioafetivo provoca efeitos morais e patrimoniais, sendo um deles o direito a prestação de alimentos, razão pela qual indevido o fundamento de inexistência de vínculo consanguíneo para isentar o pai afetivo do dever de prestação de alimentos àquele que fora criado como se filho fosse.
Não há como ignorar a realidade fática da filiação socioafetiva, bem como as repercussões que o estado de filiação deve provocar nas famílias.
No que se refere aos filhos menores de idade, apresenta-se como dever dos pais zelar pela criação e educação, bem como cabe aos filhos a obrigação de assistência aos pais durante a velhice, em atendimento ao princípio da colaboração, presente no seio familiar e normatizado através do art. 229 da Constituição Federal, que dispõe que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”.
Assim, o filho socioafetivo, caso se veja necessitado de alimentos, deve pleiteá-los junto aos parentes afetivos, e não requerê-los junto aos parentes biológicos, pois essa filiação, assim como no caso da adoção, impõe ruptura com os laços consanguíneos em valorização ao vínculo afetivo, sendo aqueles considerados somente para fins de manutenção de impedimentos matrimoniais e preservação da saúde dos parentes biológicos.
Por fim, uma vez reconhecida a filiação afetiva, devida a repercussão sucessória, nos termos da Constituição Federal de 1988, que não admite tratamento diferenciado entre os filhos.
A adoção é o ato pelo qual se cria um vínculo de filiação, até então inexistente. É o ato através do qual um indivíduo é colocado em uma família substitua, na condição de filho.
A adoção é medida excepcional, no caso em que a manutenção da criança ou adolescente na família natural se mostra inviável, fazendo-se necessária a sua inserção em família substituta, após entrega legal, extinção ou destituição do poder familiar.
Para adoção, além da maioridade civil e a plena capacidade para realizar atos na vida civil, a lei exige que os pretendentes estejam inseridos no Cadastro Nacional de Adoção, gozem de boa saúde física e mental, além de possuírem condições, inclusive financeiras, idoneidade moral, física e mental, além de não encontrarem impedimentos legais para sua efetivação (Art. 42, §1°, da Lei no 8.069/90), para criar a criança ou adolescente adotando para que possa lhe prestar toda a assistência material, moral e psicológica, atribuindo-lhes ainda, a condição de filho.
Segundo dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
Art. 42. (…)
Art. 43. A adoção será deferida quando apresentar reais vantagens para o adotando e fundar-se em motivos legítimos. (…)
Art. 45. (…)
Art. 47. O vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil mediante mandado do qual não se fornecerá certidão.
Coexistem duas formas de adoção legal: adoção pelo cadastro nacional de adoção em que os pretendentes se habilitam através de um procedimento no Juizado da Infância e a adoção intuitu personae que pode ser pedida unilateralmente pelo marido/mulher, companheiro/companheira em relação ao filho de um relacionamento anterior; pedida por quem detém guarda judicial por mais de três anos; pedida por parente com a qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afetividade.
Apesar de parecer burocrático ou moroso, é um procedimento necessário para a segurança jurídica da adoção e minimizar o risco de devolução ou arrependimento. Para que a adoção se concretize, existem requisitos previstos em lei: decisão judicial, consentimento dos pais biológicos ou a destituição ou perda do poder familiar, consentimento do adotando (se maior de 12 anos), estágio de convivência, entre outros.
A adoção, via de regra decorre do cadastro nacional de adoção, hoje sistema nacional de adoção -SNA, segundo a qual, os adotantes recebem uma criança ou adolescente, de acordo como perfil selecionado e sua posição no sistema.
Existem ainda situações informais de filiação por laços de amor e afeto, isto é, socioafetivos, em que a criança é criada por terceiros com quem, pelo decurso do tempo, pode firmar laços de afinidade e afetividade como se filho fosse. Esse fato não configura adoção à brasileira, mas, filiação socioafetiva, que pode ser reconhecida pela adoção denominada direta ou intuitu personae.
Apesar de não existir previsão na lei, a adoção direta tem sido admitida pela doutrina e jurisprudência nos casos em que ha relação de confiança, afeto e afinidade já preexistente entre a genitora e os adotantes que legitimam a entrega da criança a alguém de confiança para que dela cuide como se filho seu fosse.
A adoção intuitu personae “é aquela em que os pais biológicos escolhem livremente a pessoa que ira adotar o seu filho, também denominada adoção pronta”. (Tadeu Valverde. Ed. Roca. Guia de Adoção. P. 637-645). Assim, se a criança ou adolescente forem criados por terceiros com quem firmou laços de afinidade e afetividade, a situação fática configura filiação socioafetiva possibilitando a adoção intuitu personae e a colocação formal em família substituta.
Ressalte-se que, desde a Constituição de 1988 muito tem se falado sobre a função social nas relações familiares, não sendo suficiente que as pessoas forneçam seu material genético para a reprodução, sendo imprescindível a prática de atos que caracterizem a paternidade e a maternidade.
Nessa linha de raciocínio, o art. 50, §13, II, da lei 8069/90 autoriza a inobservância da ordem cronológica de cadastro e dispensa o prévio cadastro dos autores para efeito da adoção, visando o superior interesse do adotando, in verbis:
Art. 197-E, l. 8.069/90 – (…)
Assim, uma vez configurados os vínculos de afeto e afinidade e preenchidos, satisfatoriamente, as exigências legais, de idoneidade moral, física e mental, bem como a função social da paternidade, com o seu efetivo exercício para o bem-estar da criança ou adolescente, nada obsta a adoção intuitu personae lícita, fora do Sistema Nacional de Adoção -SNA.
CONCLUSÃO
A filiação socioafetiva é uma realidade fática, um status social e se caracterizada pelo autorreconhecimento do vínculo de parentesco entre pais e filhos, pela família extensa, parentes, amigos, comunidade e pela sociedade em que vivem.
Os novos arranjos familiares, com base no afeto, importaram a quebra de paradigmas históricos sobre a paternidade e o sistema de presunção da maternidade certa.
A partir do reconhecimento formal desse tipo de filiação formada sem vínculo biológico, com base em laços sentimentais de amor e afeto existente na prática, surge a necessidade urgente de tutela jurídica sobre os direitos e deveres aplicáveis a essa relação interpessoal.
A Constituição Federal, marco teórico da filiação socioafetiva, igualou os filhos biológicos e não biológicos, estabelecendo os mesmos direitos e obrigações para com os pais, apresentando-se a paternidade como uma “via de mão dupla”, caracterizando-se como um conjunto de direitos e obrigações através do poder familiar, do qual decorre o dever de sustento dos pais em relação aos filhos que ainda não atingiram a maioridade civil, independentemente da relação conjugal existentes entre os pais, vez que tal poder deriva da paternidade, seja ela biológica ou afetiva.
O reconhecimento do vínculo de filiação socioafetiva gera o parentesco socioafetivo para todos os fins de direito e se legitima no interesse do filho. Se menor, com fundamento no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; se maior, por força do princípio da dignidade da pessoa humana, que não admite um parentesco restrito ou de “segunda classe”.
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[1] Defensora Pública do Núcleo de Atendimento à infância e juventude da Defensoria Pública do Ceará. annacbarreto@gmail.com
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