Embora a lei complementar tenha adquirido no Brasil uma feição singular, o instituto remonta às leis orgânicas, preconizadas na Constituição de 1891 (art. 34, nº 34) e de 1934 (art. 39, nº 1), que visavam à complementação da Constituição, ainda que sem quorum qualificado ou âmbito de validade constitucionalmente definido.
Tais leis orgânicas buscavam inspiração nas lois organiques francesas, previstas desde 1875 com o objetivo de organizar os poderes públicos, sem, contudo, apresentar uma posição superior às demais leis, que podiam alterá-las.[1] Porém a Constituição Francesa de 1958, em seu artigo 46, [2] conferiu um procedimento de maior formalidade, ainda que com o mesmo quorum, à lei orgânica, que disporá sobre matérias elencadas na própria Constituição.[3] É essa a inspiração que o Congresso Nacional buscou para a previsão, no artigo 22 da Emenda Constitucional nº 04/61, de “leis votadas, nas duas casas do Congresso Nacional, pela maioria absoluta de seus membros”, para “complementar a organização do sistema parlamentar de Governo”.[4]
Por sua vez, a Emenda Constitucional nº 18/65 previu a figura da lei complementar, reservando a ela matérias específicas.[5] No entanto, não previa a Constituição um quorum qualificado para a norma, uma vez que a EC nº 4/61 foi revogada pela EC nº 6/63, que restaurou o regime presidencialista, vitorioso em plebiscito.
Somente com a Constituição de 1967, no auge da preocupação centralizadora da União em restringir, em nome da segurança nacional, a autonomia de Estados e Municípios, a sua disciplina é institucionalizada com a exigência do quorum de maioria absoluta (art. 53) e a previsão das matérias que seriam reservadas à lei complementar. Assim, com a idéia de lei nacional, [6] que interagiria com as três esferas da Federação, preservava-se um arremedo desta, atendendo aos anseios de poder total da elite militar.
Como se vê, a exigência da lei complementar, no contexto em que foi introduzida no nosso ordenamento constitucional, longe de ter como escopo a garantia dos direitos fundamentais, serviu de instrumento para satisfazer a ideologia da segurança nacional e transformar a nossa Federação num modelo orgânico, com a predominância da figura da União sobre os Estados e Municípios.[7]
Porém, com a promulgação da Constituição de 1988, a lei complementar ganha um novo fundamento, que a reconcilia com sua inspiração francesa, no sentido de estabelecer normas que são dotadas de importância suficiente para não ficarem subordinadas aos caprichos das apertadas maiorias parlamentares, mas não possuem a dignidade, nem tampouco a aspiração a definitividade, do texto constitucional.[8] No entanto, o campo material reservado à lei complementar acabou, ao menos em parte, sendo herdado do regime constitucional autoritário.
Deste modo, o constituinte de 1988, a exemplo dos anteriores, não estabeleceu uma categoria de normas a serem, a priori, reservadas à lei complementar, mas adotou um critério casuístico. Deste modo, somente são reservadas à lei complementar as matérias expressamente indicadas no texto constitucional, podendo as demais ser tratadas por lei ordinária. No entanto, se o Congresso Nacional estabelecer uma lei complementar para regular uma matéria que a ela não foi reservada, este diploma legal só será complementar do ponto de vista formal, tendo eficácia passiva de lei ordinária, o que permite a sua alteração por esse diploma.[9] É que não cabe ao legislador infraconstitucional estabelecer as matérias que receberão a proteção especial do quorum de maioria absoluta (proteção esta que se dirige contra o próprio legislador ordinário). Tal decisão só cabe mesmo à Constituição Federal.
Por outro lado, existem leis que foram editadas como ordinárias, pois na época da sua edição a matéria não estava reservada à lei complementar (ou por terem sido editadas antes da aprovação da Constituição de 1967, quando o instituto foi consagrado), mas, por tratarem de temas reservados por constituição superveniente à lei complementar, são recepcionadas com eficácia passiva desta espécie normativa, só podendo ser alteradas por este tipo de diploma legislativo. É o caso do Código Tributário Nacional,[10] pois o seu objeto, as normas gerais de Direito Tributário, foi reservado à lei complementar pelas Constituições de 1967 (art. 19,§ 1º), de 1969 (art. 18,§ 1º) e de 1988 (art. 146, III).
Cumpre registrar que a disciplina sobre normas gerais nem sempre é reservada pela Constituição em vigor à lei complementar. Se assim se estabelece para o Direito Tributário e para o Direito Financeiro (art. 163, I) é por expressa fixação constitucional. No entanto, o mesmo tratamento constitucional não é deferido pelo art. 22, XXVII, por exemplo, às normas gerais de licitações e contratos administrativos, matéria regulada por lei ordinária da União (Lei nº 8.666/93).
Essas observações levam à conclusão de que não há qualquer relação hierárquica que possa se estabelecer de per si, entre a lei complementar e a lei ordinária,[11] mas uma reserva de competência[12] a favor das matérias que, segundo o entendimento constitucional, merecem a proteção do consenso de vontades da maioria absoluta.
No entanto, não há como se negar a subordinação da lei de incidência tributária às leis de normas gerais, estas sim verdadeiras leis nacionais, que não se circunscrevem ao âmbito da União, mas que transcendem a esfera dos três entes federativos. Por isso, devem ser atendidas pelas leis da União, dos Estados e dos Municípios.[13]
No Direito Tributário, a função da lei complementar é definida pelo art. 146.[14] No seu inciso I, o referido dispositivo constitucional estabelece caber à lei complementar a resolução de potenciais conflitos de competência entre os estes federativos. A previsão se justifica pelas várias zonas de interseção entre as materialidades econômicas previstas constitucionalmente como regras de competência. Em geral esta função é exercida pela lei complementar definidora do fato gerador de cada tributo, como ocorre com o conceito de imóvel rural e urbano, que é o delimitador da competência federal do ITR e da municipal no IPTU. Assim, o CTN adotou o critério da localização do imóvel em relação à zona urbana, conceito a ser fixado em lei municipal, a partir do atendimento de critérios mínimos definidos pelo § 1º do art. 32 do CTN.[15] Em outros casos a realidade econômica estabelece situações em que é quase impossível identificar com clareza qual a materialidade tributária se faz presente, exigindo do legislador complementar a criação de uma ficção jurídica para dirimir o conflito. É o caso da venda de mercadorias em conjunto com a prestação de serviços, como ocorre no fornecimento de alimentos e bebidas em bares, restaurantes e similares. Para esses casos, a Constituição, por meio do art. 155, § 2º, IX, b, autorizou a cobrança do ICMS sobre o valor total da operação, desde que o serviço não esteja inserido na competência municipal definida em lei complementar. Como a lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/03 não define tal fornecimento como tributável pelo ISS, o Estado pode exigir ICMS sobre o valor total da operação como, aliás, já disciplinara a LC nº 87/96. Do contrário, se o serviço estiver na Lista de Serviços, exige-se ISS sobre o valor total da operação, salvo nas hipóteses em que a própria lista ressalva a cobrança de ICMS sobre as mercadorias, casos em que o prestador terá que discriminar o valor dos serviços, que serão tributados pelo tributo municipal, e das mercadorias, oneradas pelo imposto estadual.
Em seu inciso II, o art. 146 atribui à lei complementar a regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar. Nota-se que não se trata de limitar por lei complementar o poder de tributar, o que num regime federativo só pode ser realizado pela Constituição Federal, mas de estabelecer a regulação das limitações constitucionais. Assim, o papel da lei complementar aqui é o de dar uma maior concretude à abstratividade dos princípios constitucionais, expressos ou implícitos, vinculados aos direitos fundamentais do contribuinte, seja promovendo o seu detalhamento, ou a sua valoração. No que extrapolar esse desenho constitucional, o dispositivo se traduzirá em autolimitação do poder de tributar, só tendo validade na esfera federal, sob pena da lei complementar restringir as autonomias legislativas e financeiras de Estados e Municípios, sem a devida autorização constitucional para tanto. É nesse contexto que deve ser discutido o Estatuto do Contribuinte.[16]
Porém, entre as funções que a Constituição Brasileira reservou à lei complementar, merece maior destaque, no que tange à legalidade na imposição tributária, a fixação das Normas Gerais de Direito Tributário (inciso III), que, segundo Ricardo Lobo Torres, “são aquelas que estampam os princípios jurídicos de dimensão nacional, constituindo-se objeto de codificação tributária”.[17]
Se as Constituições de 1967 e 1969 limitavam-se a atribuir as normas gerais ao legislador complementar, sem, contudo, especificar quais as matérias que estavam inseridas nesse contexto, a Constituição de 1988, diante do alto grau de indeterminação do conceito de normas gerais, as exemplifica como sendo: a definição de tributos e suas espécies, obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários. Porém, cumpre lembrar que toda essa disciplina já era reservada à lei complementar desde 1967, por estar inserida entre as normas gerais de Direito Tributário.[18] A inserção dessas matérias no rol das normas gerais de Direito Tributário, juntamente com legislação e administração tributárias, disciplinas também englobadas no Livro Segundo do Código, intitulado “Normas Gerais de Direito Tributário”, já era reconhecida expressamente pelo CTN. Em conseqüência, todas essas matérias, independentemente da previsão explícita nas alíneas a e b do inciso III do art. 146, CF, possuem caráter nacional a vincular os legisladores federal, estaduais e municipais.
Todavia, a regra constitucional do art. 146, III contém ainda um dispositivo na parte final da alínea a, que estabelece a necessidade de definição em lei complementar do fato gerador, da base de cálculo e dos contribuintes dos impostos.[19] Essa norma tem como objetivo a uniformização da legislação tributária em todo o território nacional,[20] constituindo óbice a um regramento fiscal que, por demais discrepante entre os vários Estados e Municípios da Federação, acabe por promover um festival de pluritributações espaciais, de guerras fiscais através de benefícios fiscais embutidos nas definições dos elementos centrais das obrigações tributárias. Assim, a lei complementar atuará como limite à lei de incidência, no que se refere a esses três elementos da obrigação tributária. Não se exige que a lei ordinária reproduza literalmente a definição da lei complementar, mas se impede que os limites nacionais sejam extrapolados. Melhor exemplo é o artigo 43 do CTN, que define o fato gerador do imposto de renda como a disponibilidade econômica ou jurídica da renda ou de proventos de qualquer natureza, fenômeno que se traduz em acréscimo patrimonial. A partir desta definição, o legislador ordinário estabelece centenas de normas dispondo sobre a hipótese de incidência do IR, todas elas devendo guardar conformação com a lei complementar.
Entretanto, a exigência de definição do fato gerador, da base de cálculo e do contribuinte dos impostos em lei complementar, não tem, como já se defendeu em sede doutrinária,[21] o condão de legitimar uma maior determinação ou uma tipicidade fechada, uma vez que o dispositivo visa mais a salvaguarda do princípio da conduta amistosa dos entes federativos[22] e da livre circulação de pessoas, bens e serviços pelo território nacional, do que o reforço à segurança ao contribuinte, o que só se obtém de forma oblíqua, por meio do afastamento da norma tributária quando o ente federado legisla além dos limites definidos em lei complementar.
Cumpre esclarecer que, com a negação do Supremo Tribunal Federal à divisão tricotômica dos tributos, a definição dos fatos geradores, das bases de cálculo e dos contribuintes em lei complementar só é aplicável aos impostos, e não às contribuições parafiscais que possam a vir utilizar o fato gerador deste, como reconheceu o Tribunal, no julgamento da constitucionalidade da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL), instituída pela Lei nº 7.689/88. Na oportunidade, o STF considerou que a CSLL, como contribuição social destinada à seguridade social, não possui natureza jurídica de imposto, a despeito do seu fato gerador, e por isso, não se subordina à exigência da lei complementar referida na parte final do art. 146, III, a, da Constituição Federal.[23]
Registre-se que o art. 146, III, a, da Constituição, ao exigir a definição em lei complementar do fato gerador, base de cálculo e contribuintes dos impostos, utiliza a expressão fato gerador para designar somente o aspecto material deste, não se incluindo na sua regulação os elementos quantitativos e subjetivos, e muitas vezes nem os de natureza espacial e temporal. A expressão fato gerador, pela própria previsão no mesmo dispositivo da necessidade de fixação da base de cálculo e do contribuinte, automaticamente exclui a exigência quanto aos aspectos quantitativos e subjetivos. Mas muitas vezes, a definição do fato gerador em lei complementar não estabelece o momento e o local de incidência, deixando a sua eleição a cargo da lei ordinária, como acontece com a fixação do momento temporal da hipótese de incidência do imposto de importação, estabelecido pelo art. 23 do DL nº 37/66 como sendo a data de registro da declaração de importação na repartição competente, uma vez que a definição do art. 19 do CTN, ao escolher a entrada do bem no Brasil como fato gerador do II, é lacunosa a esse respeito, face aos inúmeros atos que compõem o procedimento de ingresso do produto em território nacional. Tal disciplina, não fere a exigência de lei complementar, conforme já entendeu o STF, dada a compatibilidade entre os dois dispositivos.[24] No entanto, em se tratando de tributos estaduais e municipais que incidam sobre a circulação de bens e serviços pelo território nacional, é indispensável que a definição em lei complementar do fato gerador, preveja o seu aspecto espacial, a fim de evitar a pluritributação. Deste modo, é essencial a definição pelo art. 11 da LC nº 87/96 e pelo art. 3º da LC nº 116/03, quanto aos elementos espaciais dos fatos geradores do ICMS e do ISS, respectivamente.
Em relação às alíneas c e d do inciso III do art. 146, que prescrevem, respectivamente “adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado por sociedades cooperativas” e “tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte”, cumpre destacar que não se tratam de normas gerais de Direito Tributário, mas de uma legitimação constitucional para um tratamento específico a cargo do legislador constitucional para essas empresas.[25]
Por fim, a EC nº 42/03, introduziu um art. 146-A, que estabelece que a lei complementar “poderá estabelecer critérios especiais de tributação, com o objetivo de prevenir desequilíbrios da concorrência, sem prejuízo da competência de a União, por lei, estabelecer normas de igual objetivo”. A norma aguarda uma regulamentação capaz de esclarecer o caráter hermético da proposta.[26]
No âmbito dos Estados e Municípios, nada impede que as Constituições Estaduais e Leis Orgânicas atribuam funções a leis complementares, dotadas de quorum mais elevado do que as leis ordinárias. Ao contrário, o princípio da simetria só recomenda. No entanto, é conveniente lembrar que o Sistema Tributário Nacional não prevê tais figuras, que para efeitos da Constituição Federal, serão tratadas como leis estaduais e municipais.
Doutor em Direito e Economia pela UGF, Mestre em Direito Tributário pela UCAM, Professor de Direito Tributário dos Cursos de Graduação e de Pós-Graduação lato Sensu da FGV/DIREITO-RIO e do CEJ 11 de Agosto. Advogado.
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