Autora: Roberta Barros Correia Brandão – Advogada, pós-graduada em Direito Público
RESUMO
O presente trabalho aborda o fenômeno da hipercriminalização no direito penal, que é considerado uma tendência legislativa de ampliação do âmbito da intervenção penal, refletindo, por vezes, a teoria do Direito Penal Simbólico. Tal estudo merece destaque quando se consideram a teoria do garantismo penal e a observância dos princípios da lesividade, da fragmentariedade e da intervenção mínima, conforme disposto no art. 5º CRFB. Dessa forma, objetiva-se discutir a real função do direito penal em contraponto a sua função aparente, analisando, ainda, as consequências advindas de um sistema penal hipercriminalizante. Para tanto, será usada metodologia de estudo bibliográfico de fontes primárias e secundárias, abordando entendimento doutrinário, em conjunto com os dispositivos normativos do sistema penal e da Constituição Federal, sejam eles explícitos ou implícitos. Concluindo pela necessidade de uma adequação real do sistema penal aos princípios da teoria minimalista e garantista, para recuperação da funcionalidade do direito penal, com seu emprego efetivo e eficaz apenas em ultima ratio.
Palavras-chave: Hipercriminalização. Direito Penal Simbólico. Intervenção Mínima. Lesividade. Medidas Alternativas.
ABSTRACT
This paper deals with the phenomenon of hypercriminalization in criminal law, which is considered a legislative tendency to broaden the scope of criminal intervention, sometimes reflecting the theory of symbolic criminal law. Such study deserves attention when considering the theory of penal guarantee and the observance of the principles of harmfulness, fragmentation and minimal intervention, as provided in art. 5th CRFB. Thus, the objective is to discuss the real function of criminal law as opposed to its apparent function, also analyzing the consequences of a hypercriminalizing criminal system. To this end, a methodology of bibliographic study of primary and secondary sources will be used, addressing doctrinal understanding, together with the normative provisions of the penal system and the Federal Constitution, whether explicit or implicit. In conclusion, there is a need for a real adaptation of the penal system to the principles of the minimalist and guarantee theory, for the recovery of the functionality of criminal law, with its effective and effective use only in ultima ratio.
Keywords: Hypercriminalization. Symbolic Criminal Law. Minimal Intervention. Lesion. Alternative Measures.
Sumário: Introdução. 1. Princípios Penais. 1.1. Princípio da Intervenção Mínima. 1.2. Princípio da Fragmentariedade. 1.3. Princípio da Lesividade. 2. Direito Penal na atualidade. 2.1. Contexto brasileiro. 2.1.1. Hipercriminalização de condutas. 3. Função Simbólica do Direito Penal. 4. Descriminalização/penas alternativas. 5. Conclusão. Referências.
Introdução
A Constituição Federal Brasileira em seu artigo 1º, inciso III, estabelece como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana. Além disso, também dispõe, em seu artigo 5º, serem invioláveis os direitos à liberdade, à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade, os quais detêm status de bens jurídico-penais. Em face desses preceitos, é possível refletir que a limitação a esses direitos ou garantias constitucionais somente se justifica quando houver ofensa ou ameaça de tal ordem que a intervenção do Direito Penal e a aplicação da sua consequência jurídica – a pena criminal – sejam estritamente necessárias.
Assim, por força do princípio da Intervenção Mínima adotado pelo Estado Liberal e Democrático de Direito, a criminalização de comportamentos só deve ocorrer quando se constituir meio necessário à proteção de bens jurídicos ou à defesa de interesses juridicamente indispensáveis à existência e à manutenção pacífica da sociedade.
Levando-se em conta o princípio da fragmentariedade, o Direito Criminal não visa proteger todo e qualquer bem jurídico, mas somente aqueles que considera ser fundamentais para a organização social, colocando sob sua proteção os bens jurídicos considerados essenciais, tais como a vida e a liberdade. Não pode, assim, o Direito Penal servir de único instrumento para o controle social, sob pena de banalizar a sua atuação, que deve ser subsidiária.
O desenvolvimento do direito penal na atualidade com o rápido surgimento de novos tipos penais caracteriza o chamado fenômeno da hipercriminalização. Esta tendência legislativa de aumento da esfera da intervenção penal decorre da criminalização de novas condutas, ou seja, novos tipos penais e recrudescimento dos já existentes, culminando na produção desenfreada das leis penais incriminadoras.
Inicialmente, cabe destacar que o Estado não vem administrado corretamente o seu papel de redutor dos riscos sociais, então, diante da situação de insegurança, o Direito Penal acaba sendo transformado no meio para supostamente evitar crimes.
A ideia de que a previsão de uma pena conduz a uma maior segurança do cidadão é, de fato, atraente, contudo, não é o que basta para assegurar o controle social, nem é a mais eficiente forma de incrementar a segurança pública. Conforme se verá, existe a previsão de condutas, seja no Código Penal ou nas legislações esparsas, que, em clara desobediência ao princípio da intervenção mínima, tipificam situações que já estão regulamentadas por outra esfera jurídica ou estão suscetíveis de tutela extrapenal. Assim como, por exemplo, os regramentos contidos nas conhecidas leis: Lei da Palmada, Lei Seca ou Lei Carolina Dieckmann.Diante do clamor social, a criminalização é utilizada pelos detentores do poder como forma de demonstrar a atuação Estatal, ou seja, uma ferramenta de aparente solução dos conflitos sociais, a fim de resolver os medos dos cidadãos, que são vistos como eleitores em potencial. Dessa forma, a criminalização, muitas vezes, passa a ser o único ato do governo de que dispõe o Estado para administrar o temor social e acalmar os ânimos sociais.Partindo da constatação acima, analisar-se-ão as consequências decorrentes de um processo legislativo descomedido, verificando, ainda, a atual distorção do Direito Penal brasileiro, o qual se encontra carregado pela função simbólica, não se apresentando, por isso, legítimo para efetiva proteção de uma convivência pacífica.
O ordenamento jurídico brasileiro é um sistema de normas compostas por regras e princípios. As regras são consideradas mandamentos determinantes, enquanto os princípios são considerados mandamentos de otimização, cuja meta é assegurar a adequação na aplicação das diversas regras de Direito.
Considerando o conjunto de regras e princípios, é relevante destacar a existência de direitos e garantias humanas fundamentais, que, previstos no ordenamento jurídico, também são consideradas normas. Tais normas, conforme assinala Nucci (2012, p. 87), “são criações do Estado Democrático de Direito para fazer valer os direitos humanos fundamentais”.
A respeito destas normas de direitos e garantias fundamentais, Nucci (2012) afirma que os princípios não os afrontam, pelo contrário, com eles sintonizam-se na essência. Evidencia, ainda, que, como regra, os princípios além de proteger os direitos fundamentais, também servem de estrutura para as garantias fundamentais.
Seguindo a linha dos direitos e garantias humanas fundamentais, encontram-se os princípios garantistas, os quais também integram o ordenamento jurídico brasileiro, pois estão carregados por valores de proteção à dignidade humana, servindo de orientação às matérias de penal e processo penal. Partindo desse pressuposto, Nucci (2012, p. 43) afirma que: “A ideia de valorização e supremacia dos princípios constitucionais penais e processuais penais deve ser enaltecida e lançada como meta para a composição com as demais normas do sistema. Nesse entrelaçamento, o império a ser construído depende da fiel observância dos comandos mais importantes, encarnados pelos princípios”.
Tendo em vista que na esfera penal a interferência na vida dos indivíduos se dá de forma mais agressiva, suprimindo por vezes a sua liberdade individual, é relevante considerar que nestes casos os princípios, principalmente aqueles ligados a dignidade humana devem ser respeitados.
Dentre os princípios norteadores de toda ciência penal, em seu sentido punitivo justificam maior detalhamento os três princípios básicos: Princípio da Intervenção Mínima, Princípio da Fragmentariedade e Princípio da Lesividade.
1.1. Princípio da Intervenção Mínima
Conforme pontua Batista (2007), o princípio da intervenção mínima foi criado tendo em vista o grande movimento social de ascensão da burguesia, o qual, buscando proteção, reagia contra o sistema penal do absolutismo, pautado no rigoroso espírito das legislações medievais.
A partir de então, o referido princípio foi sendo aprimorado, e, atualmente, considera-se que a intervenção do Estado somente é desejável na medida em que se reconhece a dignidade da pessoa humana como valor fundamental do Estado Democrático de Direito, respeitando a liberdade individual como bem supremo.
Diante de uma sociedade democrática, é imperioso reconhecer que as liberdades individuais podem ser encontradas sob várias formas, sendo cada vez maior o seu âmbito se incidência. Por outro lado, reconhece-se também a necessidade de estar a sociedade regrada por leis, inibindo ações que possam por em risco a conjuntura social democrática, por isso, impõe-se que as infrações às normas postas merecem sempre ser coibidas, inicialmente, através de instrumentos jurídicos extrapenais, e, no caso, de insucesso desse mecanismo, adotar-se-á medidas criminalizantes e penalizadoras.
Embora o princípio da intervenção mínima não esteja expressamente inserido no texto constitucional, nem no código penal, impõe-se ele ao legislador e ao interprete da lei, como um daqueles princípios essenciais, devido a sua compatibilidade com outros princípios jurídicos-penais, principalmente com os princípios protetivos da dignidade humana, assim como com os fundamentos do estado democrático de direito.
Partindo deste raciocínio, é possível observar o caráter subsidiário do direito penal em relação aos demais ramos do ordenamento jurídico. De forma que, ocorrida a violação a uma norma legal, busca-se inicialmente o amparo dos demais ramos do Direito, seja, por exemplo, do Direito Administrativo, a partir da imposição de multa ou do Direito Civil, buscando-se à reparação dos danos.
Então, quando esgotadas as medidas punitivas extrapenais, estas se mostrarem insuficientes para reprimir o ato lesivo, o qual poderá gerar danos indesejáveis na conjuntura social, passa a utilização e aplicação do tipo penal incriminador, viabilizando-se a intervenção estatal penal.
Ilustrando o tema, Nilo Batista (2007, p. 85) cita: “Tobias Barreto prepondera que a pena é o meio extremo, como tal é também a guerra. E, de fato, por constituir ela, como diz Roxin, a ‘intervenção mais radical na liberdade do individuo que o ordenamento jurídico permite ao Estado’, entende-se que o Estado não deva ‘recorrer ao direito penal e sua gravíssima sanção se extrair a possibilidade de garantir uma proteção suficiente com outros instrumentos jurídicos não-penais’, como leciona Quiteiros Olivares. O conhecimento de que a pena é, nas palavras desse ultimo autor, uma ‘solução imperfeita’ – conhecimento que Howard até a mais recente pesquisa empírica, a instituição penitenciária só logrou fortalecer – firmou a concepção da pena como ultima ratio: o direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica são objeto de outros ramos do direito.”
Quando se utiliza a expressão ultima ratio, busca-se dizer que a intervenção do Direito Penal deve ser mínima, limitando e orientando a atuação estatal, principalmente, no que diz respeito ao seu poder incriminador, de forma que a criminalização de uma conduta apenas se justifica quando constituir o único meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico.
Sendo assim, o Direito Penal somente deve atuar quando os demais ramos do Direito forem insuficientes para proteger os bens jurídicos em conflito. Caso contrário, se o Direito Penal fosse sempre escolhido pelo legislador como a única alternativa para a solução dos conflitos sociais, se constataria a adoção de atitude arbitrária e desnecessariamente rígida por parte do estado, de forma que a todos seriam impostas repressões severas, em clara discordância com os critérios da proporcionalidade e a razoabilidade, para quantificação da demanda punitiva. Em casos tais, a sociedade seria a primeira a sofrer as consequências.
Nesse sentindo, propõe-se que se reconheça o equilíbrio entre liberdade e poder de punir, entre razoabilidade e proporcionalidade da sanção a ser aplicada, nos parâmetros do art. 1º, inciso III da Constituição Federal, em clara correspondência ao Estado Democrático de Direito.
Por outro viés, Souza; Japiassú (2012) considera o princípio da intervenção mínima e sua relação com o bem jurídico a ser tutelado, estabelecendo que o Direito Penal não deve proteger qualquer bem jurídico, mas, apenas aqueles eleitos como um bem jurídico penal, os quais detém os valores mais caros da sociedade. Assim, pontua que o Direito Penal só deve ser utilizado contra determinadas formas de ataque ou ameaça para aqueles bens, levando em conta ainda, estar condicionado ao fracasso dos demais ramos do Direito.
“Nesse sentido, o princípio da intervenção mínima diferencia um bem jurídico penal do bem jurídico em sentido geral. O bem jurídico lato sensu é todo e qualquer valor importante para a sociedade, cuja proteção venha a ser determinada por força de lei, ou por força de ato administrativo. Já os bens jurídicos penais são os valores essenciais, que devem constituir o núcleo central do estado democrático de direito. Desse, por exemplo, fazem parte a vida, o patrimônio, a identidade corporal e a liberdade psíquica ou individual”. (SOUZA; JAPIASSÚ, 2012, 64/65)
Partindo da análise dos bens jurídicos penalmente tutelados, Nilo Batista (2007, p. 86) faz uma crítica ao Código Penal: “De fato, se o fim da pena é fazer justiça, toda e qualquer ofensa ao bem jurídico deve ser castigada; se o fim da pena é evitar o crime, cabe indagar da necessidade, da eficiência e da oportunidade de cominá-la para tal ou qual ofensa. Constitui-se assim o Direito Penal como um sistema descontínuo de ilicitudes, bastando folhear a parte especial do Código Penal para percebê-lo”.
Como dito anteriormente, no momento em que outras formas de sanção ou controle social forem eficazes e suficientes para a tutela dos bens jurídicos, a sua criminalização não é recomendável.
Constatando-se a atual realidade vivida pelo Direito Penal do Brasil, cabe fazer referência a uma passagem de Montesquieu (apud BATISTA, 2007, p.84), que, em tempos da história do direito romano, assentou: “quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas”, ainda, de acordo com Beccaria (apud BATISTA, 2007, p.84) “proibir uma enorme quantidade de ações indiferentes não é prevenir crimes que delas possam resultar, mas criar outros novos”.
Em vista do exposto, cabe reconhecer que o Brasil, atualmente, vive um período de desrespeito ao princípio da intervenção mínima, no momento em que foca sua atenção a função simbólica do Direito Penal, criminalizando condutas que já estão completamente tuteladas por outros ramos jurídicos.
1.2. Princípio da Fragmentariedade
Em uma análise conceitual do princípio da fragmentariedade, Rogério Greco (2009, p. 61), dispõe: “O ordenamento jurídico se preocupa com uma infinidade de bens e interesses particulares e coletivos. Como ramos deste ordenamento jurídico temos o Direito Penal, o Direito Civil, o Direito Administrativo, o Direito Tributário, etc. Contudo, nesse ordenamento jurídico, ao Direito Penal cabe a menor parcela do que diz respeito à proteção desses bens. Ressalte-se, portanto, sua natureza fragmentária, isto é, nem tudo lhe interessa, mas tão somente uma pequena parte, uma limitada parcela de bens que estão sob a sua proteção, mas que, sem dúvida, pelo menos em tese, são os mais importantes e necessários ao convívio em sociedade”.
Neste mesmo sentido, pode-se considerar o princípio da fragmentariedade como corolário natural de intervenção mínima, ou seja, o Direito Penal deve ser considerado apenas como uma parte do ordenamento jurídico, que atuará apenas nas situações mais relevantes, podendo, nesses casos, interferir na liberdade individual.
Juarez Cirino (2008, p. 5/6) pontua que: “Contudo, a proteção de bens jurídicos realizada pelo Direito Penal é de natureza subsidiária e fragmentária – e, por isso, se diz que o Direito Penal protege bens jurídicos apenas em utima ratio: por um lado, proteção subsidiária porque supõe a atuação principal de meios de proteção mais efetivos do instrumental sócio-político e jurídico do Estado; por outro lado, proteção fragmentária porque não protege todos os bens jurídicos definidos pela Constituição da República e protege apenas parcialmente os bens jurídicos selecionados para proteção penal”.
Considerando que a finalidade do Direito Penal é proteger bens essenciais a sociedade, aquelas condutas infratoras consideradas mais graves serão de atribuição da legislação penal, em clara correspondência ao princípio da fragmentariedade. Por outro lado, quando a tutela penal não se fizer necessária, deve afastar-se e permitir que os demais ramos do Direito assumam o encargo de protegê-los.
No entendimento, do doutrinador Rogério Greco (2009, p. 62), a fragmentariedade é uma consequência direta dos princípios da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social, os quais devem guiar o legislador no processo de criação dos tipos penais incriminadores. Desse modo, o autor afirma que depois da escolha dos bens mais importantes e necessários à vida em sociedade, o legislador, a fim de protegê-los, realizará a criação do tipo penal, o qual “passará a fazer parte do pequeno mundo do Direito Penal”.
Conforme pontua Greco (2009, p. 62), “A fragmenteriedade, portanto, é a concretização da adoção dos mencionados princípios, analisados no plano abstrato anteriormente à criação da figura típica”.
Souza; Japiassú (2012), por sua vez, afirmam que para a aplicação do Direito Penal deve haver subsidiariedade, pois somente deve ser utilizado para a proteção de bens jurídicos quando os demais ramos do direito não tenham se mostrado suficientes para protegê-los de forma eficaz.
Diretamente ligado ao princípio da subsidiariedade, o princípio da fragmentariedade estabelece que o Direito Penal apenas atue em relação àquelas condutas que violem determinados bens jurídicos e não todos, fazendo da intervenção penal seletiva no contexto de todo o ordenamento jurídico.
Então, este caráter fragmentário do direito pressupõe que o Direito Penal deverá tipificar somente uma parte do que o ordenamento jurídico estabelece como antijurídico, além de buscar defender o bem jurídico escolhido somente contra ataques de relevante gravidade.
Ainda, pode-se considerar que, no momento em que há desrespeito aos preceitos do princípio da intervenção mínima, se fomenta o descrédito no Direito Penal, já que, de fato, não há efetiva aplicação das medidas punitivas criminais contra lesões de pequena monta, chamadas bagatelas, mesmo quando previstas no ordenamento como infrações penais.
Conforme anota Rogério Greco (2009), o princípio da lesividade tem sua origem atribuída ao período iluminista, que, através do movimento de secularização, procurou aproximar direito e a moral.
O referido autor, baseado nos ensinamentos de Nilo Batista, estabelece quatro principais funções para o princípio da lesividade, quais sejam: proibir a incriminação de uma atitude interna; proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio agente; proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais; proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.
O raciocínio proposto pelo princípio da lesividade segue o previsto para o princípio da intervenção mínima, podendo-se assim dizer que aquele é corolário natural deste. Nesse sentido, é de se considerar que o Direito Penal deve interferir em conflitos sociais apenas em última hipótese, reservando para a sua atuação as agressões mais relevantes aos bens jurídicos tutelados.
Sendo assim, mesmo na ocorrência de lesão a importante bem jurídico, sua ineficácia, ou melhor, mínima lesividade, corresponde à situação irrelevante para o Direito Penais. Em outros termos, somente pode verificar a aplicação da lei penal, nos casos em que a conduta infratora se volte, com eficiência, contra o bem jurídico tutelado. Por isso, lesões insignificantes não são aptas a promover a atuação penal.
Pode-se, então, admitir duas principais funções do princípio da lesividade: primeiro, proibir a incriminação de uma conduta interna, ou seja, as ideias e desejos dos homens, que quando não externadas, não podem construir o fundamento de um tipo penal, nem mesmo quando se orientem para a prática de um crime; segundo, não se devem incriminar condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.
Ilustrando o tema, Nilo Batista (2007, p. 91) cita: “Como ensina Roxin, ‘só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral’”.
De acordo com Souza; Japiassú (2012) o Direito Penal deve necessariamente proteger um interesse jurídico fundamental contra lesões ou risco de lesões. Dessa maneira, veda-se a criminalização de condutas que sejam meras infrações evitando excessiva intervenção estatal. Neste sentido, há de considerar que a própria sociedade rechaça a aplicação de sanções exageradas contra infração considerada de menor potencial ofensivo, no momento em que adere a praticas despenalizadoras, visando ao combate de penas desproporcionais e abusivas.
Partindo desta constatação, podemos citar como exemplo de condutas desviadas, que, no entanto, não geram lesão direta a bem jurídico, a prática adultério. De acordo com a Lei nº 11.106/05, o adultério deixou de ser capitulado como delito, tendo em vista que o bem jurídico objeto de tutela (a fidelidade matrimonial recíproca) deixou de possuir ofensividade penal, devendo eventual infração do dever conjugal ser resolvido na esfera cível.
Rogério Greco (2009, p. 54), ainda exemplifica: “O Direito Penal também não poderá punir aquelas condutas que não sejam lesivas a bem de terceiros, pois que não excedem ao âmbito do próprio autor […]. No Brasil, discutia-se a validade do art. 16 da lei nº 6.368/76, que proibia o uso de substância entorpecente. Nilo Batista posicionava-se no sentido de que o art. 16 da mencionada legislação ‘incrimina o uso de drogas, em franca oposição ao princípio da lesividade e às mais atuais recomendações político-criminais.’ A discussão ainda persiste, isso porque no atual art. 28 da Lei 11.343 ainda há a incriminação da conduta de consumir drogas, o que houve na verdade foi uma despenalização, na medida em que o novo tipo penal não prevê qualquer pena que importe em privação de liberdade do usuário […] impedir que o agente seja punido por aquilo que ele é e não pelo que fez. Busca-se, assim, impedir que seja erigido um autêntico Direito Penal do autor”.
Da análise dos fatores criminalizantes, Souza; Japiassú (2012) considera que se trata de um “importante critério político criminal sobre aquilo que se pode criminalizar e o que se deve deixar impune”. Narra ainda que: “Conforme exposto por Claus Roxin, este princípio deriva do compromisso do Direito Penal de ser vocacionado à proteção subsidiária de bens jurídicos. O autor ilustra sua assertiva com as reformas penais que, na década de 1970, excluíram os delitos de homossexualidade e sodomia entre adultos (§§ 175 e 175B) do Código Penal Alemão. Segundo Roxin, embora possam ser ações que muitos podem reputar ‘imorais’, mas quando realizadas entre pessoas adultas, de forma plenamente consciente e sem molestar outros, não menoscabam nem ‘direitos individuais’ nem ‘bens’ no sentido de interesses protegíveis ou valiosos. Em suma, falta-lhes lesividade social”.
Nesse sentido, pode-se dizer que a proteção jurídica deverá ocorrer sempre tendo em vista um bem jurídico que seja específico, concreto, lesado ou ameaçado de lesão. Sendo a ofensividade da conduta um pressuposto jurídico para a intervenção penal.
Nas palavras de Queiroz (1998, p. 109): “Daí afirmar enfaticamente Zaffaroni que a irracionalidade da ação repressiva do sistema penal não pode chegar ao limite de que se pretenda impor uma pena sem que ela pressuponha um conflito em que resulte afetado um bem jurídico. Esse princípio (princípio da lesividade) deve ter valor absoluto nas decisões da agência judicial, porque sua violação implica a porta de entrada a todas as tentativas de ‘moralização’ subjetivada e arbitrária do exercício de poder do sistema penal. A pena, como resposta a uma ação que não afeta o direito de ninguém, é uma aberração absoluta que, como tal, não se pode admitir, porque sua lesão ao princípio da racionalidade republicana é enorme. Pode-se pretender, portanto, e é razoável que se pretenda prevenir tais comportamentos com uma ampla política social para esse fim criteriosamente concebida”.
Significa, então, que para criminalizar certo comportamento, deverá existir efetiva transgressão a um interesse alheio juridicamente tutelado, devendo ser esse interesse definido concretamente, além de ser considerado incompatível com os pressupostos de uma vida em comum pacífica. Sem a observância desses pressupostos qualquer intervenção penal pode ser considerada arbitrária, desse modo o princípio da lesividade busca, também, proteger os indivíduos, contra os arbítrios estatais, os quais poderiam resultar na redução das liberdades constitucionais.
O centro do programa de política penal do Estado para controle da criminalidade é o Código Penal, onde são previstas as condutas delitivas e as respectivas penas sancionatórias. Dessa forma, a política penal objetiva desestimular as pessoas de cometerem crimes através da intimidação penal, que nas palavras de Juarez Cirino (2008, p. 467): “A forma tradicional de intimidação penal […], representa a dimensão negativa da prevenção geral”.
Em detida análise do Código Penal Brasileiro (In: VADE MECUM, 2014, p. 324) encontra-se na Exposição de Motivos: “Apesar desses inegáveis aperfeiçoamentos, a legislação penal continua inadequada às exigências da sociedade brasileira. A pressão dos índices de criminalidade e suas novas espécies, com constância da medida repressiva como resposta básica ao delito […] são fatores que exigem o aprimoramento dos instrumentos jurídicos de contenção do crime, ainda os mesmo concebidos pelos juristas na primeira metade do século”.
Ao analisar o principal instrumento da política penal do Estado (Código Penal) em confronto com o contexto social vivido, percebe-se o reconhecimento da necessidade de aprimoramento do instrumento jurídico de contenção ao crime, além da existência de objetivos fictos em contraponto aos objetivos reais da política penal adotada, o qual está imerso sobre interesses políticos.
Ocorre, porém, que através do conhecimento das demais fontes materiais do ordenamento jurídico, aliado a uma visão crítica mais apurada, percebe-se que o sistema penal além de usurpar competências de outros ramos do direito, como o cível, por exemplo, não se mostra eficaz na redução da criminalidade. Daí a reconhecer que o efeito intimidador da pena apresenta precário desempenho.
Ilustrando o tema, Juarez Cirino (2008, p. 467), destaca: “A crítica jurídica da prevenção geral negativa destaca a ineficácia inibidora de comportamentos anti-sociais de ameaça penal, como indica a inutilidade das cruéis penas corporais medievais e das nocivas penas privativas de liberdade do Direito Penal moderno”.
Geralmente, o contra-argumento adotado pelos detentores do poder, para afirmar a política de redução da criminalidade adotada, é que não seria a gravidade das sanções impostas, mas sim a certeza da punição que desestimularia a pratica de crimes, o que de fato, não se apresenta real.
Corroborando o entendimento acima, é imperioso destacar que uma análise superficial do contexto social facilmente demonstraria que o crime acontecido destoa da realidade do crime registrado, o qual se apresenta muito inferior à criminalidade real.
No mesmo sentido, pontua Queiroz (1998, p. 29): “De fato, o enorme descompasso entre criminalidade real e criminalidade registrada – as cifras negras – é intuitivo, isto é, a maior parte dos crimes ordinariamente praticados passa a largo do conhecimento ou da efetiva atuação do sistema penal. Pense-se, por exemplo, no quanto se seduz, se adultera e se aborta diariamente, imagine-se o quanto se produz, se comercializa e se consome de entorpecente; reflita-se sobre o cem número de fraudes, etc., que é diuturnamente levado a cabo, e confronte-se com os números oficiais; e, embora variem tais números segundo a natureza dos crimes ou conforme deixem mais ou menos vestígios ou mais ou menos evidências, pense-se também no quanto se furta, se rouba e se mata, sem que tal, pelas mais diversas razões, culmine numa sentença penal condenatória”.
No Brasil, segundo Rodolfo Lago (2007), no artigo público pela editora ISTOÉ[1], há, atualmente, cerca duzentas mil de leis em vigor que, de forma exclusiva ou ao lado de outras esferas legislativas, tratam de questões de âmbito penaDe fato, atualmente, existe uma tendência nos países ocidentais de ampliar o âmbito de intervenção penal, através de uma maior interferência do poder legislativo, ao criar de novos tipos penais e agravar os já existentes, culminando na produção assistemática de leis penais incriminadoras.
2.1.1. Hipercriminalização de condutas
Diante da constatação de uma tendência hipercriminalizante no contexto brasileiro, levando em conta o sistema penal, seja relação ao Código Penal ou às legislações esparsas, cabe tecer alguns exemplos:
Dá análise do artigo 161 do CP, vê que se trata da criminalização da conduta de alteração de limites, o qual está devidamente regulamentada no Código Civil, dentre as regras que limitam o direito de propriedade a fim de evitar conflitos entre proprietários. Nesse sentido, o art. 1.297 do Código Civil, estabelece o direito do proprietário de demarcar as áreas do seu território estabelecendo os limites de sua propriedade, garantindo para isso a Ação Demarcatória, como medida civil a ser adotada em caso de conduta infratora.
Art. 161 CP – Suprimir ou deslocar tapume, marco, ou qualquer outro sinal indicativo de linha divisória, para apropriar-se, no todo ou em parte, de coisa imóvel alheia: Pena – detenção, de um a seis meses, e multa. § 1º – Na mesma pena incorre quem:
Usurpação de águas I – desvia ou represa, em proveito próprio ou de outrem, águas alheias; II – invade, com violência a pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim de esbulho possessório. § 2º – Se o agente usa de violência, incorre também na pena a esta cominada. § 3º – Se a propriedade é particular, e não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.
De igual modo, a conduta acima tipificada refere-se a caso de danos materiais, os quais atingem diretamente o patrimônio das pessoas físicas ou jurídicas, seja através de ação ou omissão indevida. O direito à reparação destes danos está expressamente previsto na Constituição Federal e em outros dispositivos legais, como o Código Civil, através das Ações de Indenizatórias.
Art. 164 CP – Introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte prejuízo: Pena – detenção, de quinze dias a seis meses, ou multa.
Também se observa a conduta de tomar refeição, alojar-se em hotel ou utilizar meio de transporte, situação essa que pode se enquadrar perfeitamente nos casos de inadimplemento de obrigações, passando, então a se tratado como um ilícito meramente civil, o qual pode ser cobra por vias comuns em ação de cobrança competente (Art. 176 do CP).
De outro modo, é analisada a conduta de induzir alguém a satisfazer lascívia de outrem (Art. 227 do CP), que em observância ao princípio da intervenção mínima, pode-se considerar a não existência de lesão direta ou ameaça de lesão ao bem jurídico a qual se busca tutelar, qual seja, a dignidade sexual. Neste sentido, Nucci (2012) destaca que cumpre verificar a falta de lesividade da conduta, já que incentivar um adulto a ter relação sexual com outro não significa prejuízo para qualquer das partes envolvidas, a não ser que houvesse emprego de violência, grave ameaça ou fraude, o que, nesses casos, já não seria mais mera mediação, passando-se à esfera do estupro.
Ainda, cumpre esclarecer que o art. 323 do CP, criminalizou conduta que já estava claramente regulamentada no inciso II, do art. 132, da Lei º 8.112/90, que dispõe o regime dos servidores públicos, momento em que contempla a conduta de abandono de cargo público, estabelecendo a demissão como penalidade administrativa.
Em relação às legislações esparsas, cita-se a Lei 13.010/14, que altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, conhecida como a Lei da Palmada; a Lei nº 11.705/08, que altera o código de trânsito, Lei Seca; e a lei 12.737/2012, que tipifica os delitos de informática, Lei Carolina Dieckmann.
A Lei 13.010/14 estabelece o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos corporais ou de tratamento cruel, assim prevê que os pais que agredirem fisicamente os filhos devem ser encaminhados a cursos de orientação e a tratamento psicológico ou psiquiátrico, além de receberem advertência. Contudo, não especifica que tipo de advertência pode ser aplicado aos responsáveis.
Ainda, a expressão castigar imoderadamente é um conceito jurídico vago, e por isso, indeterminado, de forma que não condiz com a doutrina da proteção integral, por ser uma expressão ampla, a nova regra se verifica subjetiva, abrindo espaço para interpretações radicais, daí verificar a atecnia legislativa presente no atual ordenamento jurídico brasileiro.
Vale lembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente já falava sobre agressão às crianças, bem como já estava previsto o encaminhamento dos responsáveis para tratamento psicológico ou psiquiátrico quando denunciados por agressão aos menores. Ainda, cabe ressaltar que os castigos que causam lesão já são criminalizados no código penal, como lesão corporal e maus tratos.
Em outra análise, tem-se que a partir da vigência da lei 11.705/08 (Lei Seca), foram operadas mudanças no Código de Trânsito Nacional, assim, ao condutor de veículo que houver ingerido bebida alcoólica, será aplicada multa. Além disso, quem for flagrado dirigindo alcoolizado pela segunda vez, no período de um ano, pagará o dobro do valor.
De acordo com a resolução 432 do CONTRAN, se o condutor realizar o teste do bafômetro e o resultado for de 0.05mg/l até 0.33mg/l, a autoridade aplicará a penalidade administrativa prevista no artigo 165 do CTB, qual seja: multa, recolhimento da carteira de habilitação e a retenção do veículo. Além disso, o condutor terá o seu direito de dirigir suspenso por um ano. Vem daí a expressão “tolerância zero” para o consumo de álcool. Caso o resultado do teste seja igual ou superior a 0.34 mg/l o condutor incorrerá em crime de trânsito, previsto no artigo 306 do CTB, cuja pena é detenção de 6 meses a 3 anos e multa, além também da aplicação das penalidades administrativas citadas anteriormente.
Verifica-se aqui que os crimes de trânsito, antes considerados de perigo concreto, quando há potencial dano a incolumidade de alguém, passou a ser tratado como de perigo abstrato, quando a lei prevê, abstratamente, o perigo. De acordo com Valente (2010)[2]: “de modo que acaba por se criminalizar simples atividades, ferindo de morte os princípios de direito penal.”
Contudo a moderna doutrina penal conclui pela inconstitucionalidade dos delitos de perigo abstrato em nossa legislação, nesse sentido é o posicionamento de Cezar Roberto Bitencourt (2004, p. 20): “São inconstitucionais todos os crimes de perigo abstrato, pois, no âmbito do direito penal de um estado democrático de direito, somente se admite a existência de infração penal quando há efetivo, real e concreto perigo de lesão a um bem jurídico determinado”.
Tem-se ainda, a Lei 12.737/2012 sobre crimes na internet, apelidada de “Lei Carolina Dieckmann”, que altera o Código Penal para tipificar como infrações uma série de condutas no ambiente digital, principalmente em relação à invasão de computadores, além de estabelecer punições específicas, algo inédito até então.
De acordo com Pedro Baretta (2014)[3]: “Digna de legislação ‘de última hora’, a Lei Dieckmann somente contemplou, ainda que de forma equivocada, apenas as figuras típicas, não disciplinando, como dito anteriormente, os meios processuais que garantam a eficácia da norma penal incriminadora. Ou seja, em que pese constar no Marco Civil da Internet a obrigatoriedade da guarda dos registros de conexão (data, horário e duração da conexão de acesso à internet) pelos provedores de conexão e conteúdo, o tempo ali exposto é, senão desproporcional, pelo menos pouco razoável, fazendo com que a eficácia do referido tipo penal reste prejudicada, uma vez a dificuldade em demonstrar a presença de indícios mínimos de autoria e materialidade delitiva”.
O tempo previsto pelo Marco Civil da Internet para a manutenção de registros de acessos varia entre seis meses a um ano, por isso dizer ser prejudicial à atividade persecutória. Ademais, considerando que a referida lei prevê apenas detenção de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa, repressão estatal para as condutas consideradas criminosas e cometidas por meios eletrônicos, pode vir a ser contemplada com concessão de benefícios atinentes aos crimes de menor potencial ofensivo, daí se vê que a sua capacidade intimidatória não foi atingida.
Diante da análise acima, percebe-se que o Direito Penal, em clara inobservância ao princípio da intervenção mínima, acaba por tutelar situações que, além de não portarem grau de lesividade justificável, usurpam a competência de outras esferas legislativas, sem falar que, o acelerado contexto hipercriminalizante acarreta atecnias legislativas, no momento em que tipifica situações de forma subjetiva e num contexto vago, impossibilitando a real persecução penal.
Considerando ser o papel da criminologia a construção política do direito penal, que objetiva o controle social do crime e da criminalidade, devemos observar que, quando não se questionam os valores eleitos penalmente, assim como os critérios de aplicação da pena, estar-se-á cumprindo um papel político de legitimação da ordem estabelecida, seja ela apresentada a partir dos seus objetivos reais ou fictos.
Tratando dos objetivos da política penal, Juarez Cirino (2005), afirma que os sistemas jurídicos e políticos de controle social do Estado reproduzem as condições materiais da vida social, protegendo os interesses dos grupos sociais hegemônicos, com a correspondente exclusão social, exercendo também funções ilusórias de encobrimento da realidade posta nas relações sociais. Por isso, também o Direito Penal deve ser estudado do ponto de vista dos seus objetivos declarados e de seus objetivos reais, nos quais se manifestam as dimensões de ilusão e de realidade dos fenômenos da vida social nas sociedades contemporâneas.
Dessa forma, percebe-se que os objetivos declarados do Direito Penal visam a produzir uma aparente solução dos conflitos sociais, o qual legitima, em face da população, o sistema de justiça criminal adotado.
Oliveira (2012, p. 41), criticando a política criminal contemporânea diz: “Vale dizer, a (má) política criminal contemporânea revela-se erosiva aos princípios penais decorrentes do Estado Democrático de Direito, uma vez que tem, progressivamente, relegado a ‘postura apoiada em consideração ‘de valor’ (ou principiológicas), em privilégio de uma outra que revela apenas considerações de eficiência e utilidade social”.
De acordo com Oliveira, observa-se no atual contexto penal, o regresso a uma intervenção estatal irracional, caracterizada por um distanciamento do modelo proposto pelo Iluminismo, numa espécie de “Contra Iluminismo”, identificada na intensificação da intervenção do Estado em domínios penais, resultando numa incriminação hipertrófica, em clara expansão do âmbito de aplicação do Direito Penal.
É relevante notar que o fenômeno da hipercriminalização advém da velocidade em que ocorrem as transformações sociais, reflexo de um contexto social em constante evolução, o qual não vem sendo acompanhado pelo estudo jurídico para a adequada adoção de medidas.
Além das constantes e rápidas transformações sociais, podemos pontuar como outro fator para a hipercriminalização, os efeitos reais da imagem da criminalidade propagados pelos meios de comunicação, o qual reclama pela luta contra o crime, através de soluções legislativas. Conforme Juarez Cirino (2008, p. 715): “No Brasil, o exemplo de efeitos reais resultantes da ação do poder político sobre a imagem da criminalidade através dos meios de comunicação de massa sobre a opinião pública é a legislação penal de emergência”.
A referida situação demonstra que a população vive constantemente numa sensação de medo e insegurança, daí decorre a existência de uma notável demanda por segurança.
De acordo com Oliveira (2012, p. 55): “Por conseguinte, o ‘binômio risco-insegurança’ cria no Estado, ao revés, uma exigência de provisão das necessidades do presente, transformando-se o Direito Penal em destinatário dos imperativos de segurança por parte da opinião pública, vendo-se forçado a dar respostas práticas ao problema”.
Os meios de comunicação de massa trazem grande repercussão para as situações de criminalidade, pois são capazes de atingir, em curto espaço de tempo, grande contingente populacional, dessa forma se prolifera uma cultura da violência, insegurança e medo.
Sabiamente, Amaral (2003, p. 224) afirma: “Tal fato pode causar falsas idéias e representações da realidade nos receptores, inclusive podendo estar carregadas de implicações políticas, que somadas a hipersensibilidade, podem causar medos, fobias e fantasias na sociedade receptora. […] os políticos têm plena consciência de tal sistemática e a utilizam para imposições de ideologias que, magicamente, iriam resolver as ansiedades e os medos da população – eleitores em potencial”.
Em fervorosa crítica ao sistema penal adotado, Queiroz (1998, p. 29) ilustra: “Daí dizer Jeffery, com absoluta razão, que mais leis, mais penas, mais policiais, mais juízes, mais prisões significa mais presos, mas não necessariamente menos delitos”.
Argumenta-se aqui que no momento em que o direito penal atua sem medida, criminalizando uma série de condutas, acaba por sobrecarregar os demais órgãos incumbidos da persecução penal e repressão criminal, os quais não dispõem de estrutura física nem de suporte material e pessoal suficiente em face da dimensão da demanda. Conforme Queiroz (1998, p. 51): “O sistema penal está, assim, estruturado para que, de fato, não funcione”.
Nesse sentido, entende-se que os objetivos reais de uma política social adequada, se baseiam na adoção de políticas públicas precedentes da política criminal, os quais iriam dar eficácia aos direitos e garantias constitucionais. Ademais, entende-se que a adoção de legislação criminal, deve sempre preceder a adoção de medidas extrajudiciais e não penais, já que o endurecimento do sistema apenas garante a manutenção das desigualdades.
Diante do contexto social vivido, e tendo em vista a aversão humana aos riscos sociais e à violência, percebe-se na sociedade um movimento que reclama por segurança, exigindo, cada vez mais, a atuação do Estado para a prevenção e solução dos conflitos sociais.
Nesse sentindo, verifica-se que o Estado vem sendo influenciado pelo clamor social para a tomada de decisões político-criminais, sobre o tema, argumenta Oliveira (2012, p. 59): “Tal contexto acarreta uma profusão legislativa, ocasionado, pois, efeitos patológicos no sistema penal, uma vez que o Direito Penal e todo o seu instrumental repressor passam a ser utilizados para a consecução de fins políticos, que acabam se tornando um dos fins centrais do mesmo, justificando-se na opinião pública e na sua demanda por segurança, provocada pelos meios de comunicação”.
Constatando a realidade social do Brasil, Juarez Cirino (2008, p. 459/460) afirma: “No Brasil e, de modo geral, nos países periféricos, a política criminal do Estado exclui políticas públicas de emprego, salário digno, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais capazes de alterar ou de reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada no mercado de trabalho e dos direitos de cidadania […]; por isso, o que deveria ser a política criminal do Estado, existe, de fato, como simples política penal instituída pelo Código Penal e leis complementares – em ultima instância, a formulação legal do programa oficial de controle social do crime e da criminalidade: a definição de crimes, a aplicação de penas e a execução penal, como níveis sucessivos da política penal do Estado, representam a única resposta oficial para a questão criminal. Logo, se a política penal constitui o programa oficial para enfrentar o problema social do crime e da criminalidade, então o Direito Penal, como formulação legal desse programa oficial, realiza o programa de controle social do crime e da criminalidade”.
Em suma, conforme demonstra Juarez Cirino (2008), as formas ideológicas de controle social tem, de um lado, a função real de reprodução da realidade social, repleta de desigualdades e manutenção do poder, e, do outro, uma dimensão ilusória em que encobrem a natureza da realidade produzida, ao trazer uma aparente solução dos conflitos sociais.
Tais decisões político criminais, entretanto, não são tomadas visando modificar a realidade social, ou satisfazer as necessidades reais de segurança e repressão ao crime, pelo contrário, visão apenas inserir nos expectadores a aparente sensação de solução dos conflitos.
Nesse sentindo, se apresenta o chamado “direito penal simbólico”, que é considerado o conjunto de normas penais elaboradas no clamor da opinião pública, suscitadas diante de constantes e graves situações de violência, na maioria das vezes, com repercussão na mídia. Tal conjunto de normas, supostamente mais rigorosas, acaba por se apresentar como única resposta para a segurança da sociedade.
Nesse diapasão, manifesta-se Amaral (2003, p. 228): “A idéia de que a previsão de uma pena (logo, a criação de um crime) conduz a uma maior seguridade do cidadão é atraente. Existe aí um argumento lógico e verdadeiro, o qual, se não contar com uma corrente contra-argumentação que lhe dê o peso real, facilmente cairá na aceitação popular, como de fato já ocorreu no inconsciente das massas. O meio eleito para evitar crimes (“intimidação pela previsão de uma pena”) realmente é real, mas não é o que basta para assegurar o controle social, nem é a mais eficiente forma de incrementar a segurança pública”.
Assim, percebe-se que o constante recurso ao instrumento da legislação penal, decorre do falso argumento de dar repressão adequada à criminalidade, ocorre que, em verdade, pretende-se, apenas, criar uma sensação de segurança e tranquilidade, produzindo a impressão de um legislador atento.
Desse modo, nota-se que a função instrumental preventiva do Direito Penal vem cedendo espaço à sua função ficta ou simbólica.
Por outro lado, não se pode deixar de observar que a finalidade preventiva e repressora do Direito Penal não pode ser alcançada através de uma legislação meramente simbólica, uma vez que seu discurso não respeita a proteção de bens jurídicos, mas apenas buscas fornecer a imagem de um legislador comprometido.
Em suma, o resultado do chamado Direito Penal simbólico é a satisfação da opinião pública, fornecendo a imagem de um legislador atento, de um estado forte, que objetiva, ainda, camuflar as causas históricas, sociais e políticas da criminalidade.
4 DESCRIMINALIZAÇÃO/PENAS ALTERNATIVAS
O sistema penal é o instrumento de repressão do Estado, o qual visa garantir as relações sociais desiguais, tanto na esfera material entre riqueza e pobreza, quanto na esfera de poder social e dirigente do Estado, estabelecida nas “mãos” dos governantes. Entende-se, então, que é a estrutura proposta pelo sistema penal severamente penalizador que serve como instrumento de garantia e reprodução do poder social, sendo, ainda, responsável pela manutenção da violência e marginalização social.
Constatando a realidade acima, apresenta-se o chamado Direito Penal mínimo, decorrente dos princípios impostos constitucionalmente, como uma proposta alternativa de política criminal, o qual tem o objetivo restringir o âmbito de atuação do Direito Penal. Nesse sentido, Cirino (2008, p. 718) escreve: “As distorções do sistema de justiça criminal em cada um dos níveis de sua existência institucional definem as linhas de um programa alternativo de reforma da legislação penal. É importante destacar o seguinte: o conhecimento de que o cárcere é incapaz de ressocializar – ao contrário, é capaz de inserção definitiva em carreiras criminosa”.
A respeito da tese de descriminalização, Oliveira (2012) afirma que esta proposta consiste em excluir o caráter criminoso de determinadas condutas, mediante abandono do poder de incriminar. Refere-se aqui a uma “redução formal da competência do sistema penal em relação a determinadas expressões do comportamento humano”, realizado através de uma redução do ordenamento jurídico penal.
Nas palavras de Queiroz (1998, p. 143): “Descriminalizar, como indica o étimo da palavra, significa retirar de certas condutas o caráter de criminosas. Não o caráter de ilicitude. Exclui-se tão somente a competência da Justiça Penal para decidir sobre tais comportamentos, que, por razões de política criminal, passam a ser penalmente indiferentes”.
Importante destacar que quando se fala em descriminalizar, quer dizer, tão apenas, reduzir o âmbito de aplicação do Direito Penal, em clara manutenção a este sistema jurídico, não devendo confundir descriminalização com o movimento abolicionista, de exclusão total do sistema penal.
Queiroz (1998, p. 144) salienta que: “E essa descriminalização pode dar-se por lei posterior (abolitio criminis) – não necessariamente lei penal – que expressa ou tacitamente revogue as prescrições anteriores (assim, disposições constitucionais ou de leis complementares ou mesmo ordinárias, que disponham contrariamente às normas penais vigentes), ou que simplesmente se dê ao tipo penal redação menos genérica ou menos abrangente, ou mesmo por interpretação judicial, tal como ocorre com a declaração de inconstitucionalidade de lei penal e, em geral, sempre que se interpretam as disposições penais restritivamente, de modo a afastar a incidência da norma penal incriminadora (princípio da insignificância, por exemplo)”.
Exemplificando o contexto da descriminalização, em obediência ao princípio da intervenção mínima, apresenta-se a Lei 9714/98 que inseriu no Código Penal Brasileiro o acréscimo das penas alternativas, possibilitando a substituição das penas privativas de liberdade pelas restritivas de direito ou pecuniárias.
Ainda, na legislação especial, cita-se como exemplo a Lei 11.343 (Lei de Drogas), que no art. 28, afasta completamente a aplicação de pena privativa de liberdade ao usuário de entorpecentes, atribuindo como sanções penais penas restritivas de direitos ou multa, apenas.
Ainda, como indicações ao sistema alternativo, cita-se a possibilidade de descriminalizar nas hipóteses do denominado direito penal simbólico, produzido em face do seu uso indiscriminado pelo poder público, utilizado para manutenção do sistema social desigual, além de instrumento de cumprimento das obrigações públicas, numa crescente administrativação do Direito Penal, substituindo as esferas administrativas e civis, mesmo quando dotadas de eficácia instrumental.
Por outro lado, tem-se ainda a posposta de despenalização, que contrário à ideia de descriminalização, pretende a substituição da pena privativa de liberdade, por outras sanções alternativas não detentivas, como, por exemplo, a prestação de serviços de utilidade pública.
Podendo-se utilizar também as sanções patrimoniais, que serão aplicadas mediante reparação do dano à vítima. De acordo com o entendimento de Oliveira (2012, p. 71), existe a proposta de diversificação: “A ‘diversão’ ou diversificação consiste na busca de soluções alternativas ao sistema penal tradicional, atribuindo a órgãos ou entidades não penais a solução do conflito, sem retirar o caráter ilícito do fato”.
Oliveira (2012, p. 72) pontua ainda que: “De acordo com Raúl Cervini (1995, p.73), a descriminalização manifesta-se de três formas, a saber: a descriminalização formal, legal ou em sentido estrito, descriminalização substitutiva e descriminalização de fato”.
Para ele, a descriminalização formal, assim como a legal, refere-se a não intervenção penal, por parte do Estado, em face de determinados comportamentos, seria o reconhecimento legal à descriminalização do comportamento. Cita-se como exemplo a descriminalização do crime de adultério – neste caso, a descriminalização decorreu da mudança dos paradigmas e valores morais postos socialmente, reconhecendo a impossibilidade de criminalização de condutas éticas ou morais[4].
Já a descriminalização substitutiva se daria nos casos em que as penas privativas de liberdade são substituídas por outras sanções, seja na esfera cível ou administrativa, passando a conduta a ser disciplinada fora do sistema penal.
Nesse sentido, percebe-se que a proposta da descriminalização parte da análise acerca da necessidade do controle penal por parte do Estado, dessa forma, se reanalisarão os bens jurídicos suscetíveis de proteção penal, assim como as penas impostas, evitando com isso, a repressão desmedida por parte do Estado.
Oliveira (2012, p. 77) pontua que “Nesse passo, o bem jurídico dotado de dignidade penal é, tão somente, aquele cuja lesão se revela digna de pena, traduzindo as limitações impostas e próprias do Estado Democrático de Direito”.
Pode-se dizer, então, que a tese da descriminalização tem origem na constatação do atual contexto hipercriminalizante, ou seja, numa expansão desmedida do Direto Penal. Nesse sentido, nota-se a existência de comportamentos que ensejam por soluções de descriminalizantes.
Quando da elaboração do Código Penal Brasileiro, se reconheceu a necessidade de obediência ao princípio da intervenção mínima, além da busca por soluções alternativas para o sistema criminal.
Conforme se vê, Código Penal Brasileiro (In: VADE MECUM, 2014, p. 325):
“Uma política criminal orientada no sentido de proteger a sociedade terá de restringir a pena privativa de liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ação ciminógena cada vez maior do cárcere. Esta filosofia importa objetivamente na busca desanções outras para delinquentes sem periculosidade ou crimes menos graves. Não se trata de combater ou condenar a pena privativa de liberdade como resposta penal básica do delito. Tal como no Brasil, a pena de prisão se encontra no âmago dos sistemas penais de todo o mundo. O que por hora se discute é a sua limitação aos casos de reconhecida necessidade.
[…]
As críticas que em todos os países se tem feito à pena privativa de liberdade fundamenta-se em fatos de crescente importância social, tais como o tipo de tratamento penal frequentemente inadequado e quase sempre pernicioso, a inutilidade dos métodos até agora empregados no tratamento de delinquentes habituais e multirreincidentes.
[…]
Esse questionamento da privação de liberdade tem levado penalistas de numerosos países e a própria Organização das Nações Unidas a uma ‘procura mundial’ de soluções alternativas para os infratores que não ponham em risco a paz e a segurança da sociedade.
Conforme disposto acima, cumpre encontrar soluções alternativas de repressão à infração, a começar por aquelas condutas que possam ou já se achem suficientemente reprimidas pelas demais ordens jurídicas, a exemplo da esfera civil, administrativa.
Atendendo ao princípio da lesividade, devem-se restringir os tipos penais incriminadores, de modo a excluir da tipificação penal uma gama de comportamentos que, de fato, não chegam a lesionar interesses fundamentais, não merecendo relevância penal”.
Analisando a realidade penal brasileira, observa Queiroz (1998, p. 145): “a burocracia, a morosidade e os custos econômicos e sociais que ordinariamente marcam a desacreditada intervenção penal hão, assim, de dar lugar à presteza, à eficácia e ao informalismo administrativo”.
Em suma, é de se reconhecer que o sistema penal necessita de reformas, principalmente no que se referem às incriminações de condutas, entendendo-se aqui que a pena deve sempre decorrer do princípio da intervenção mínima, como ultima ratio.
O Direito Penal e o sistema criminal constituem o centro do controle social do Estado, sendo a pena criminal o mais rigoroso instrumento de repressão contra as condutas consideradas lesivas a existência e manutenção da ordem social preestabelecida.
Este sistema de justiça criminal tem como função declarada a garantia de uma ordem social, a proteção dos bens jurídicos selecionados e a promoção do bem comum, o qual se encontra legitimado pelo discurso oficial das funções de retribuição e prevenção atribuídas a pena criminal.
Nesse sentido, percebe-se que o sistema penal, constituído pelos aparelhos judicial, policial e prisional, pretende apresentar-se como um instrumento de manutenção da ordem social, na medida em que busca prevenir o delito. Porém, contata-se, na realidade, que seu desempenho contradiz essa pretensão, já que sua intervenção é repressiva, em decorrência da frustração de suas ações preventivas.
Daí se vê, entretanto, que a utilização do Direito Penal como instrumento repressivo, o qual deveria se dar apenas em ultima ratio, tem, cada vez mais, se tornado usual, a ponto de deflagrar uma hipertrofia legislativa, quando quaisquer problemas surgidos na sociedade, se atrelam a propostas de soluções que remetem ao Direito penal.
Ademais, não se pode deixar de mencionar que o sistema carcerário é caracterizado pela sua eficácia invertida, já que, de fato, não tem a capacidade de reduzir a criminalidade e promover a ressocialização os condenados, muito pelo contrário, insere-os, ainda mais, na delinquência, demonstrando o seu fracasso.
A ideia de que a atividade legislativa é o único meio de solução dos conflitos sociais, aparentemente atende as pretensões de parte da sociedade, porém, não corresponde, de fato, aos anseios de manutenção da paz social e redução da criminalidade. No momento em que se considera a Lei Penal como único instrumento do Estado e objeto principal do sistema jurídico, estar-se-á subestimando as suas possibilidades de ação diante de todo o ordenamento jurídico, além de estar contrariando os fundamentos proposto pelo Estado Liberal de Direitos, o que o torna ilegítimo.
Observa-se, pois, que o Estado não tem conduzido eficazmente o seu papel preventivo e redutor das criminalidades, de outro modo, tem deslocado sua atuação para a supressão das liberdades, ao recorrer ao Direto Penal como único instrumento segurança.
O contexto acima exposto apresenta a ideia de hipertrofia legislativa, já que os detentores do poder estatal, reconhecendo a repercussão social decorrente da atividade legislativa criminalizante, passam a recorrer ao Direito Penal e seu aparelho repressor como meio para a consecução de fins políticos, revelando, assim, a função obscura atribuída ao Direito Penal, como ferramenta para minimizar o clamor social, apresentando aparente solução para os conflitos.
Daí verifica-se clara violação aos princípios da intervenção mínima, lesividade e fragmentariedade, já que, por vezes, há a criminalização condutas e estabelecimento penas para situações alheias as competências do Direito Penal.
Filiando-se a corrente Minimalista, que defende a intervenção penal apenas naqueles casos suscetíveis de lesão ao convívio social, considera necessária a efetiva descriminalização de tipos penais que não afrontam bens jurídicos relevantes, de forma a recorrer, sempre que possível, as demais esferas legislativas, como a civil e administrativa, por exemplo. Assim se observará os princípios da intervenção mínima, lesividade e fragmentariedade, dando ao direito penal seu real sentido.
Por fim, ressalta que os objetivos declarados do Direito Penal, de prevenção e redução da criminalidade, somente podem ser alcançados através de políticas sociais voltadas ao cumprimento dos direitos e garantias constitucionais, e não através do recrudecimento de um sistema que, baseado numa estrutura social desigual, intervém seletivamente, reprimindo as liberdades individuais.
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[1]Disponível em: http://www.istoe.com.br, ano 2007. Acesso em: 30 de out. 2014.
[2]Disponível em: https://www.ambito-juridico.com.br. Acesso em: 01 nov. 2014
[3] Disponível em: www.conjur.com.br. Acesso em: 31 de out. 2014.
[4]Conforme disposto na exposição de motivos do Código Penal Brasileiro (In: VADE MECUM, 2014, 324): “Deliberamos remeter à fase posterior a reforma da Parte Especial do Código, quando serão debatidas questões polêmicas, algumas de natureza moral e religiosa. Muitas das concepções que modelaram o elenco de delitos modificaram-se ao longo do tempo, alterando os padrões de conduta, o que importará em possível descriminalização”.
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