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A ideologia burguesa, o ideal de família e as discriminações de gênero

Resumo: O objetivo deste trabalho é abordar a temática ideologia, sob um viés marxiano, partindo de reflexões já construídas pela autora Marilena Chauí em sua obra “O que é ideologia?”. Com isso, analisar-se-á como o conceito de família na ideologia burguesa influencia no modelo heteronormativo construído atualmente. Ao final, conclui-se que as discriminações de gênero são produtos dessa ideologia, onde a “família tradicional” é colocada como parâmetro ideal, sendo que todos modelos divergentes não são aceitos pela sociedade e são vítimas de preconceitos.

Palavras-chave: Conceito de família. Discriminações de gênero. Ideologia. Heteronormatividade. Diversidade.

Abstract: The objective of this paper is to approach the ideology theme, under a Marxian bias, starting from reflections already constructed by the author Marilena Chauí in his book "What is ideology?". It will be analyzed how the concept of family in the bourgeois ideology influences the heteronormative model constructed now a days. In the end, it is concluded that gender discriminations are products of this ideology, where the "traditional family" is placed as an ideal parameter, and all divergent models are not accepted by society and are victims of prejudice.

Keywords: Family concept. Gender Discrimination. Ideology. Heteronormativity. Diversity.

Sumário: Introdução. 1. A ideologia sob o viés marxiano. 2. O conceito de família segundo a ideologia burguesa. 3. A necessária superação do padrão heteronormativo. Conclusão

Introdução

Nas discussões atuais muito se fala em ideologia, no entanto, o termo é por vezes colocado sem se saber exatamente do que se trata.

O objetivo deste artigo é abordar o conceito de ideologia e explorá-lo dentro da perspectiva de Karl Marx, baseando-se na obra “O que é ideologia?”, da autora Marilena Chauí (1980). Ao cabo, será construída uma reflexão crítica sobre como a ideologia burguesa influenciou (e ainda influencia) na maneira como gays, lésbicas, transexuais e travestis são vistos(as) na sociedade.

1. A ideologia sob o viés marxiano

No dicionário Houaiss (2001) tem-se a seguinte definição de ideologia: sistema de ideias (crenças, tradições, princípios e mitos) interdependentes, sustentadas por um grupo social de qualquer natureza ou dimensão, as quais refletem, racionalizam e defendem os próprios interesses e compromissos institucionais, sejam estes morais, religiosos, políticos ou econômicos”.

Nessa simples definição trazida pelo dicionário são deixadas de lado algumas considerações importantes sobre o que é e qual o papel da ideologia na sociedade, e por isso serão objeto do nosso estudo.

O termo ideologia foi empregado pela primeira vez em 1801 no livro de Destutt de Tracy, intitulado Eléments d´Idéologie (Elementos da Ideologia). O objetivo de então era pensar uma ciência da gênese das ideias, tratando-as como fenômenos naturais que exprimem a relação do corpo humano com o meio ambiente.

Todavia, nos estudos marxianos a expressão virá assumir outra feição. De uma forma simples, pode-se afirmar que Marx apresenta a ideologia como instrumento de manutenção do status quo. Não se pretende aqui aprofundar sobre toda a teoria de Marx e Engels, entretanto é necessária uma breve explanação para contextualizar o(a) leitor(a).

No sistema capitalista, observa-se uma sociedade dividida em classes, havendo aqueles que são os detentores dos meios de produção e aqueles que compõem o proletário, que trabalham para os primeiros.

Elemento essencial dentro desse sistema é o trabalhador, uma vez que ele vende no mercado sua força-de-trabalho para que sejam produzidas mercadorias. O trabalhador se torna ele mesmo uma mercadoria, por ter colocado à venda sua força-de-trabalho.

Em sua obra, Marx pontua a questão do trabalho alienado, que nada mais é do que o não reconhecimento do sujeito produtor naquele produto que é resultado de seu trabalho.

A mercadoria, por sua vez, é definida como trabalho humano não concentrado e não pago. E aqui é necessário chamar a atenção para algumas observações de Marx sobre a mercadoria.

Para que seja produzida a mercadoria são necessárias condições preexistentes, ou seja, forma de propriedade privada capitalista, que separa o trabalhador dos meios, instrumentos e condições da produção e, por isso, ela é trazida como uma realidade social. Ocorre que nem trabalhadores, nem os demais membros da sociedade capitalista percebem a mercadoria com um elemento que exprime relações sociais determinadas. A mercadoria é vista simplesmente como uma coisa, que tem um valor de uso (utilidade) e de troca (preço).

E assim são os papeis na sociedade capitalista: o trabalhador é uma “coisa”, denominada força de trabalho e recebe uma outra coisa como contraprestação, que é o salário (dinheiro). O produto do trabalho é uma mercadoria, a qual também é uma coisa, e esta coisa tem outra coisa, que é o preço. Isso caracteriza o fenômeno da reificação, termo que foi empregado por Georg Lukács.

Diante disso, é inevitável que se questione como as pessoas não se revoltam contra essa realidade. Como elas não percebem e continuam a coadunar com a existência desse sistema? Como elas acreditam que esse sistema é bom e que é possível ser melhor nessa realidade? Pois é aqui que vamos encontrar o que Marx entende por ideologia e esta percepção será importante para a discussão que se pretende provocar.

A ideologia em Marx é trazida então como um sistema ordenado de ideias ou representações e das normas e regras como algo independente das condições materiais. Independente das condições materiais, porque os ideólogos são pensadores distanciados da produção material. E as ideias não são produtos do pensamento de homens determinados, mas entidades autônomas que foram descobertas por tais homens. (CHAUÍ, 1980, p. 26).

Assim, são apresentadas ideias que estão em contradição com as relações sociais existentes no mundo material. Entretanto, há que se ter em mente que a contradição não está de fato neste plano (ideias versos mundo fático), mas sim no próprio plano fático, uma vez que o mundo social é contraditório. Acontece que a verdadeira contradição é encoberta pela ideologia. Mas como assim?

Ora, a ideologia burguesa traz a educação como direito de toda e qualquer pessoa. No plano fático, o que se vê são inúmeras crianças sem acesso à educação e muitas pessoas analfabetas. Em princípio, pode-se pensar estritamente na contradição existente entre o plano ideal e a realidade. Ocorre que a verdadeira contradição jaz no fato de que, aqueles que produzem riqueza material e cultural com o seu trabalho, são excluídos na hora de usufruir. Ou seja, os trabalhadores produzem bens voltados à garantia da educação, entretanto são excluídos do direito de utilizá-los.

Tem-se, portanto, que a ideologia é um dos instrumentos de dominação de classe e uma das formas de luta de classes, pois ela faz com que os dominados não percebam a sua condição na sociedade, camuflando aquilo que Marx chama de dominação real.

E mais. A ideologia transforma as ideias das classes dominantes em ideias dominantes para a sociedade como um todo, erigindo uma hegemonia incontestável. É possível concluir que a ideologia é, portanto, uma ilusão necessária à dominação de classe.

Feitas tais considerações preliminares, passar-se-á a analisar como o conceito de família na ideologia burguesa influencia no modelo heteronormativo construído atualmente.

2. O conceito de família segundo a ideologia burguesa

Na ideologia burguesa a família é apresentada como uma estrutura unívoca, independente do tempo ou de classe social, e é colocada como “[…] uma realidade natural (biológica), sagrada (desejada e abençoada por Deus), eterna (sempre existiu e sempre existirá), moral (a vida boa, pura, normal e respeitada) e pedagógica (nela se aprendem as regras da verdadeira convivência entre os homens, com o amor dos pais pelos filhos, com o respeito e temor dos filhos pelos pais, com o amor fraterno)”. (CHAUÍ, 1980, p. 34).  

Como já mencionado anteriormente, essa concepção de família é formulada distanciada da realidade e é colocada como um modelo ideal. Projeta-se o ideal de família da sociedade dominante para o ideal de família de toda a sociedade.

Isso é visível quando pensamos nas diversas modalidades de família que se verificam na atualidade. São famílias monoparentais, anaparentais e infinitos outros formatos de família.

Na realidade brasileira, por exemplo, é possível afirmar que nas comunidades mais pobres existe até mesmo uma ampliação do rol daqueles que se entende por “parentes”, porque o senso comunitário e colaborativo leva as pessoas a construírem relações muito mais próximas, independentemente do vínculo biológico, o que com certeza se distancia daquele modelo paradigma pensado pela ideologia burguesa.

Mas, como dito anteriormente, na sociedade capitalista o trabalhador é uma mercadoria, pois o trabalhador é sua força-de-trabalho. Ou seja, para os donos dos meios de produção é interessante que haja multiplicação de força-de-trabalho, até mesmo porque isso geraria um menor custo de mão-de-obra.

O que a ideologia burguesa, ao generalizar as famílias deixa de mostrar é que, no modelo atual, a família proletária tem por função exclusiva reproduzir a força-de-trabalho, ou seja, a ela é destinado o papel de procriar filhos (CHAUÍ, 1980, p. 45). E daí surgem outras respostas: o aborto, por exemplo, é considerado proibido menos por razões religiosas e morais e, muito mais, por preocupação com a manutenção de um mercado de mão-de-obra farta e barata.

Da mesma forma, a construção de um modelo heteronormativo[1], onde só são possíveis e aceitáveis as relações entre pessoas de sexos diferentes, segue a lógica da ideologia burguesa, uma vez que casais do mesmo sexo não atenderiam à função elementar da família, que é a reprodução de mão-de-obra (barata).

Parece bastante pertinente afirmar que é dessa forma de conceber a “família tradicional” que surge, em grande medida, o padrão heteronormativo vigente e, ao lado dele, os principais preconceitos em relação aos gays, lésbicas, transexuais, travestis, etc.

Além disso, é pertinente afirmar que a repressão da sexualidade em suas mais diversas facetas está ligada a essas estruturas familiares: condenam-se práticas de adultério, idolatra-se a monogamia, condenam-se relacionamentos homoafetivos, o aborto, o uso de métodos contraceptivos. Ou seja, não é necessário existir o prazer sexual, é necessário apenas reproduzir-se.

Toda essa repressão da sexualidade e do prazer converge em muitos pontos com dogmas religiosos, o que torna ainda mais incontestável a “verdade” trazida por essas ideias para muitas pessoas.

E o poder dessa ideologia é tão forte, tão disseminado e já tão naturalizado, que as pessoas não questionam o modelo em que vivem e que reproduzem. Não se percebe o absurdo em que foram inseridos e buscam viver para alcançar aquele ideal de família.

A força desse modo de pensar é tamanha, que podemos usar como exemplo a proposta de criação do “Estatuto da Família” (Projeto de Lei nº 6.583/2013). Tal projeto, surgiu como reação à decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 4277/DF, que permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e à Resolução nº175 de 2013 do Conselho Nacional De Justiça (CNJ), que estabeleceu que cartórios não podem se recusar a proceder a habilitação para casamento de pessoas do mesmo sexo.

Por este estatuto, parlamentares visam delimitar o conceito de família, afastando-se do entendimento que foi ampliado na decisão da Corte Constitucional. A família é assim definida no projeto: “Art. 2º Para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.

Vê-se que o modelo proposto é a definição de família tradicional e não reflete em qualquer medida a realidade que nos circunda. O grande problema dessa normativa é que a proteção à família se estenderia somente às famílias que atendessem tal padrão. Ou seja, qualquer família que não se subsumisse naquele modelo não poderia ser objeto de proteção e respeito pelo Estado[2].

Ainda que seja evidente a inconstitucionalidade de tal restrição e que tão logo entrasse em vigência poderia ser questionada perante o Supremo Tribunal Federal por evidente afronta ao princípio da vedação à discriminação e da igualdade, é claro que uma iniciativa de projeto de lei com tal teor assusta. Seja porque é completamente desvinculado da realidade brasileira, seja porque escancara a pretensão de refletir no direito posto um padrão de família tradicional pregado pela ideologia burguesa (ainda que aqueles que a propõem ignorem que estão submetidos a tal ideologia).  

3. A necessária superação do padrão heteronormativo

Retomando-se o que se afirmou acerca da disseminação desse modo heteronormativo de se pensar, é certo que tal ideologia atinge até mesmo a forma como gays, lésbicas, transexuais e travestis se relacionam em seu ambiente familiar e consigo mesmos.

Ora, é fato notório que os temas de identidade de gênero e orientação sexual ainda são tabus e muitas vezes essas pessoas, por se sentirem reprimidas pela ordem heteronormativa, acabam por não se assumirem como são perante a sociedade, o que lhes causa uma imensa degradação psicológica. Muitas vezes demoram até mesmo para se aceitarem e entenderem seus desejos divergentes do padrão cisgênero[3].

Quando se pensa que muito já caminhamos, que alguns preconceitos foram superados, que avançamos na promoção da igualdade e na vedação à discriminação, vê-se que há muito o que percorrer.

Do Legislativo esperam-se iniciativas que vão ao contrário daquela proposta de estatuto. Por exemplo, um projeto de lei regulamentando o uso do nome social[4] em âmbito federal, estadual e municipal.

No entanto, não se vê projetos de lei com tal escopo. Aliás, em relação ao uso de nome social em órgãos públicos, autarquias, faculdades, o que se vê é uma grande “colcha de retalhos”, pois não há uma normativa geral e, em muitos casos, o Poder Executivo e, até mesmo particulares, expedem decretos ou portarias internas para regulamentar o uso do nome social no universo em que incidem.

No entanto, diante da omissão no sistema jurídico, o que se vê são normativas variadas, que muitas vezes não servem ao fim que se propõem, porque acabam, por muitas vezes, expondo ainda mais a travesti ou o(a) transexual.

Conclusão

Com as reflexões acima, pretendeu-se demonstrar que a ideologia burguesa, em sua concepção de família, muito influenciou e influencia para a existência de uma visão heteronormativa do mundo e, por conseguinte, influencia no modo como gays, lésbicas, pessoas trans e as travetis, são percebidos(as) pela sociedade. Ou seja, há uma participação direta dessas ideias na construção de preconceitos e discriminações.

Assim, para desconstruir tais preconceitos, parece elementar demonstrar quais as origens e qual o verdadeiro papel dessa concepção tradicional e imutável de família na luta de classes. Uma vez eliminado o véu da ideologia, a contradição real resta evidenciada, e cabe a nós desconstruí-la.

Com esse trabalho, pretendeu-se estimular a reflexão sobre quão infundados são os preconceitos em relação às identidades de gênero e orientações sexuais que existem na atualidade e munir de argumentos aqueles que almejam se aprofundar na temática.

 

Referências
BRASIL. Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Decreto/D8727.htm>. Acesso em 12.nov.2016.
___. Projeto de Lei nº 6.583, de 2013 (da Câmara dos Deputados). Dispõe sobre o Estatuto da Família e dá outras providências. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=597005>. Acesso em 08.nov.2016
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia?. Disponível em: < http://lelivros.top/book/baixar-livro-o-que-e-ideologia-marilena-chaui-em-pdf-epub-e-mobi-ou-ler-online/ >. Acesso em 07.nov.2016.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 175, de 14 de maio de 2013. Dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil, ou de conversão de união estável em casamento, entre pessoas de mesmo sexo. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/resolu%C3%A7%C3%A3o_n_175.pdf > Acesso em 08.nov.2016.
HOUAISS, Antônio, VILLAR, Mauro de Salles, FRACO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Ed. Objetivo, 2001.
Notas
[1] Heteronormatividade (do grego hetero, "diferente", e norma, "esquadro" em latim) é um termo usado para descrever situações nas quais orientações sexuais diferentes da heterossexual são marginalizadas, ignoradas ou perseguidas por práticas sociais, crenças ou políticas.
[2] No mesmo projeto: Art. 3º É obrigação do Estado, da sociedade e do Poder Público em todos os níveis assegurar à entidade familiar a efetivação do direito à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania e à convivência comunitária.
[3] Cisgênero é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu sexo biológico.
[4] O conceito de nome social é trazido pelo Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016. O referido decreto dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional e traz em seu Art. 1º, parágrafo único, inciso I a seguinte definição: nome social – designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida […].

Informações Sobre o Autor

Aline do Couto Celestino

Mestranda em Direito Constitucional na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Bacharela em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) – UNESP – Campus de Franca. Defensora Pública do Estado de São Paulo


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