Resumo: Considerando que nosso país é marcado por um território de dimensões continentais, a utilização de método pela média nacional de expectativa de vida não considera as vertiginosas diferenças entre as regiões mais ricas em face daquelas de baixo índice de desenvolvimento humano. Este trabalho consiste em demonstrar, através de dados oficiais, que a realidade demonstra uma injustiça na inovação de criar requisitos de idade para a concessão da aposentadoria por tempo de contribuição, que desaguará por uma análise sobre os próprios aspectos legais do fator previdenciário. O propósito é trazer à reflexão o debate sobre a [in] justiça de nosso atual modelo previdenciário, que deixa em segundo plano a garantia do segurado do regime geral de previdência.
Palavras chave: Fator Previdenciário. Expectativa de Vida. Proteção ao Segurado. Tabela de Mortalidade do IBGE.
Abstract: Since our country is marked by a territory of continental dimensions, the method of using the national average life expectancy does not consider the vertiginous differences between the richest regions in the face of those low human development index. This work is to demonstrate, by official data, the reality is an injustice in innovation to create age requirements for granting the retirement contribution, which desaguará by an analysis of the proper legal aspects of the social security factor. The purpose is to bring to reflection the debate on [in] righteousness of our current pension model that background makes the guarantee of the insured the general pension scheme.
Keywords: Security Factor. Life Expectancy. The Insured Protection. IBGE Mortality Table.
1. INTRODUÇÃO
Considerando que a nova ordem constitucional foi inaugurada com o propósito de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, tendo como objetivo da própria República a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF) é necessária uma profunda análise sistemática dos princípios básicos de nosso sistema previdenciário para, a partir daí, estudar nossa atual forma de concessão da aposentadoria por tempo de serviço.
Partindo da ordem constitucional de direitos e garantias fundamentais até a as normas editadas pelos órgãos responsáveis pela administração e concessão do benefício, o propósito é demonstrar a importância de se preservar a hierarquia das normas, pois não raramente são lançados regulamentos e outras normas infralegais que desatendem a própria estrutura positivista adotada por nossos legisladores.
E assim como a lei não pode tratar iguais como desiguais, é certo também afirmar que os desiguais devem ser tratados como desiguais, dentro de um contexto organizado em um país de dimensões continentais, em simples equação matemática que trata brasileiros, de diversas regiões do país, em único sistema matemático de apuração da longevidade do cidadão.
Talvez isso ocorra pela tradição brasileira de tratar de assuntos regionais como trata de questões relacionadas à União, não se afigurando o sistema republicano formado por unidades independentes, tal como acontece com a realidade do pacto federativo ocorrido nos Estados Unidos da América.
Mas enquanto tal realidade não se altera, posto que nossa divisão normativa depende de alteração no texto constitucional, nos resta analisar se, nos termos da legislação vigente, é correta a forma de cálculo das aposentadorias por tempo de serviço, notadamente em relação à expectativa de vida em fórmula elaborada pelo IBGE.
2. O FATOR PREVIDENCIÁRIO
Criado através da Lei nº 9.876, de 26 de novembro de 1999, em seu anexo traz a seguinte fórmula matemática:
Onde:
f = Fator previdenciário
Tc = Tempo de contribuição
a = Alíquota de contribuição
Es = Expectativa de sobrevida
Id = Idade do trabalhador na data de sua aposentadoria
Neste contexto, fica a cargo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE a publicação anual da Fundação, com fundamento no Decreto 3.266 de 29 de novembro de 1999, que regulamenta o § 7º do art. 29 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, que tem por base os seguintes parâmetros.
“A presente Tábua é proveniente de uma projeção dos níveis de mortalidade a partir da Tábua de Mortalidade construída para o ano de 2010, na qual foram incorporados dados populacionais do Censo Demográfico 2010, estimativas da mortalidade infantil com base no mesmo levantamento censitário e informações sobre notificações e registros oficiais de óbitos por sexo e idade. Trata-se de um procedimento necessário de atualização, quando se trabalha com indicadores e/ou modelos demográficos prospectivos. Além disso, o desenvolvimento desta atividade cumpre, também, o propósito de gerar parâmetros atualizados da mortalidade do Brasil que foram incorporados à Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade para o Período 2000-2060 – Revisão 2013”.[1]
Seu fundamento principal, como se pode notar do próprio conteúdo do sítio eletrônico do IBGE, é o senso demográfico ocorrido em 2010, somando-se a esse as estimativas de mortalidade infantil e os registros civis de óbito, considerando a média anual e sem distinção de sexo, embora neste último caso tenham dados oficiais para embasar tal distinção.
E aí surge o objeto de estudo deste trabalho, que é o tratamento igual dado aos desiguais, sem a pretensão da análise política e de comparação com o direito alienígena.
Para isso, como foi rascunhado supra, serve um melhor entendimento sobre a igualdade esculpida no artigo 5º, caput, da Constituição Federal e o sentido objetivado pelo constituinte originário; vejamos…
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”
Em esclarecedora explanação, o grande Mestre José Afonso da Silva discorre magistralmente sobre o princípio de igualdade consagrado em nossa Carta Política, lecionado que:
“Mas, como já vimos, o princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos. Quando se diz que o legislador não pode distinguir, isso não significa que a lei deva tratar todos abstratamente iguais, pois o tratamento igual não se dirige à pessoas integralmente iguais entre si, mas àquelas que são iguais sob os aspectos tomados em consideração pela norma, o que implica que “iguais” podem diferir totalmente sob outros aspectos ignorados ou considerados como irrelevantes pelo legislador”.[2]
Nestes termos, podemos observar que a constituição valoriza a igualdade material, mesmo porque, muito embora tenha se previsto no inciso I, do artigo 5º a igualdade de homens e mulheres, traz o próprio texto constitucional distinções de proteção ao mercado de trabalho (art. 7º, XX), a idade para aposentadoria compulsória (art. 40, III, a), isenção de prestação de serviço militar (art. 143, § 2º), entre outros previstos nas leis infraconstitucionais.
Surge aí a primeira demonstração de injustiça do fator previdenciário em relação à expectativa de vida, seguindo os critérios do IBGE, pois não há distinção material entre homens e mulheres para a apuração da expectativa de vida, o que não se mostra justo.
Conforme dados do próprio IBGE no senso de 2010 foi apurada a expectativa de vida para homens em 69,7 de anos de vida, enquanto para as mulheres a expectativa foi de 77,3 aos nascidos naquele ano, ou seja, das pessoas nascidas em 2010, a expectativa de vida era maior para as mulheres em 7,6 anos.
Forçoso é reconhecer que a expectativa de vida dos homens é menor do que das mulheres e tal diferença entre ambos os sexos não tem norteado o preconizado pelo princípio da igualdade, ou seja, os desiguais estão sendo tratados como iguais.
Mas não para por aí, pois a desigualdade entre sexos, em um país com nossas dimensões, não pode ser considerada a única injustiça do sistema vigente.
De acordo ainda com os próprios índices, divulgados pelo IGBE, entre das cinco regiões do Brasil, o Estado de Santa Catarina tem a maior expectativa de vida para ambos os sexos em 2016 (77,29), enquanto o Estado do Piauí tem a menor (71,11), também para ambos os sexos.
A maior diferença entre sexos e Estados da Federação, contudo, estaria em comparar uma mulher do Distrito Federal, com expectativa de vida de 80,95 para 2016, com um homem do Estado do Maranhão, com expectativa de vida de 67,31 anos, uma diferença de 13,64 de expectativa de vida, o que merece melhor reflexão sobre o regime adotado.
2.1 Base legal do fator previdenciário
Com o advento da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998, houve substancial alteração da redação do artigo 201, da Constituição Federal, com a alteração do texto original para contar que o regime de previdência deverá observar “critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial”, permitindo que lei ordinária estabelecesse tais critérios.
Neste cenário foi editada a Lei 9.876, de 26 de novembro de 1999, que deu nova redação ao caput do artigo 29, bem como a seus incisos e parágrafos, inaugurando entre nós o fator previdenciário, alteração que foi atacada com a propositura da ADI 2111-DF, que pelo entendimento do STF, atende os requisitos do artigo 201, parágrafos 1º e 7º da Constituição Federal, com a redação já alterada pela mencionada Emenda 20/1998.
Em outras palavras, o tema que antes da alteração era de índole constitucional passou a ser tratado por lei ordinária, permitindo ao Poder Executivo provocar a alteração da matéria mediante projeto de lei.
A consequência lógica de tal alteração é que a proteção dada pelo constituinte originário ao segurado passou a ficar em segundo plano, revelando que os novos conceitos passaram a preservar o interesse da autarquia, notadamente em relação ao seu equilíbrio financeiro e atuarial, o que a nosso ver desnatura o próprio princípio da dignidade humana e o direito adquirido (artigos 1º, III e 5º XXXVI, da CF).
Isso porque a reforma constitucional e a alteração legislativa não obedeceram os direitos adquiridos pelos segurados que ingressaram no regime primitivo de previdência, que passaram a ser regidos pela nova sistemática do fator previdenciário, preservando somente os direitos daqueles que já haviam cumprido os prazos para a aposentadoria por tempo de serviço antes de sua vigência.
Tal manobra foi um duro impacto àqueles que, embora não tenham concluído o tempo de aposentadoria por tempo de serviço do regime anterior, tiveram de se submeter às novas regras, faltando poucos meses para se aposentarem com proventos integrais, tratamento mui diferente do assegurado pela Lei nº 9.506, de 30 de outubro de 1997, que tratou da extinção do Instituto de Previdência dos Congressistas e criou critérios para a transição do regime.
Assim, se pelo aspecto legal a aposentadoria dos parlamentares foi preservada mesmo aos que ainda não haviam completado o tempo para a aposentadoria, pelo aspecto moral a alteração aos “comuns” deveria obedecer os mesmos critérios. A propósito, a aposentadoria dos parlamentares submetidos ao regime geral de previdência, não é submetida ao fator previdenciário, criado após a edição da Lei nº 9.506/1997.
E muito embora se possa qualificar a aposentadoria dos parlamentares como especial, posto que se aposentam com 35 anos de contribuição ou 60 anos de idade (alínea “b”, do inciso I, do artigo 2º da Lei nº 9.506/1997) a garantia estendida aos que ainda não haviam completado o tempo de aposentadoria, mas já participavam do antigo regime, deveria ter sido estendida a todos os trabalhadores.
Fazendo de forma diversa as situações iguais foram tratadas de forma desigual, o que fere também o princípio da isonomia garantida pelo artigo 5º, caput, da Constituição da República, mesmo porque o fator previdenciário, como ficou evidenciado, não se aplica aos parlamentares, aumentando ainda mais a diferença de tratamento em situações idênticas.
2.2 A visão doutrinária do fator previdenciário
A doutrina, em geral, faz distinção entre aposentadoria por tempo de serviço e aposentadoria por tempo de contribuição, com base na antiga legislação da década de 1920 para os ferroviários, cassada em 1940, reintroduzida em 1948, já com denominação de aposentadoria por tempo de serviço, termo alterado em 1962.[3]
Miguel Horvath Júnior em seu Direito Previdenciário defende que não há inconstitucionalidade na aplicação do fator previdenciário[4], vez que a garantia constitucional prevista no artigo 201, da Constituição Federal, refere-se à irredutibilidade do benefício, o que não afeta de inconstitucionalidade o direito adquirido, teoria da qual não pactuamos, pois outras garantias e princípios se sobrepõem ao tema.
É que a atual redação do § 1º, do artigo 201, da Constituição Federal, com a redação que lhe deu a Emenda Constitucional 47, de 5 de julho de 2005, que não difere em substância daquela dada pela Emenda 20/1998[5] diz textualmente:
“§ 1º É vedada a adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, ressalvados os casos de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência, nos termos definidos em lei complementar”.
Nestes termos, a diferenciação só pode ocorrer em casos “de atividades exercidas sob condições especiais que prejudiquem a saúde ou a integridade física e quando se tratar de segurados portadores de deficiência”, definidos em lei complementar, como defendem Marcus Orione Gonçalves Correia e Érica Paula Barcha Correia[6].
“Registre-se, no entanto, que entendemos que esse fator previdenciário antes mencionado é inconstitucional, visto que se introduzem, por meio de lei ordinária, elementos de cálculo não previstos constitucionalmente para obtenção do valor, em especial da aposentadoria por tempo de contribuição”.
Disso se deduz que a própria EC 20/1998 é contraditória, pois em dado momento proíbe qualquer critério diferenciador, prevendo taxativamente as exceções definidas em lei complementar e, noutro instante, cria critérios diferenciadores criados por lei ordinária, tal como defende Sergio Pinto Martins[7], senão vejamos…
“Violará o princípio constitucional da igualdade se o legislador ordinário determinar tratamentos desiguais para duas situações iguais, sob a ótica da seguridade social, como, por exemplo, quando se dá tratamento diferenciado para a concessão de aposentadorias, na ocasião em que duas pessoas com o mesmo tempo de serviço e que contribuíram com o mesmo salário vêm a ter aposentadorias com proventos diversos, por ocasião de determinação de lei nova. Aí, sim, poderíamos dizer que a referida lei seria inconstitucional, por desrespeitar o princípio da igualdade”.
Os professores Lafayette Pozzoli, e Otávio Augusto Custódio de Lima, em obra conjunta[8], defendem com maestria o princípio da igualdade, segundo o qual é
“… o conceito material de igualdade apresenta uma conceituação no campo social e observa regra semelhante ao conceito formal, pois a igualdade está em tratar desigualmente os desiguais. A presença do valor justiça é uma constante, assim, ao afrontar o princípio da igualdade, tratando igualmente os desiguais, estaria gerando uma visível situação de injustiça”.
Assim, quando a norma trata os desiguais como iguais, notadamente em razão da má administração dos fundos previdenciários, ofende-se não só o direito do cidadão, mas também a toda ordem constitucional.
3. CONCLUSÃO
Com base nessas informações, reúne-se condições para poder afirmar que a introdução de critérios diferenciadores para a obtenção da aposentadoria por tempo de contribuição, através do fator previdenciário é inconstitucional, injusta e imoral, além de ir de encontro à petrificada garantia de [des] igualdade prevista na Constituição.
Inconstitucional por dois motivos bem evidentes: primeiro por tratar os desiguais como iguais e depois por estabelecer critério para o reconhecimento do tempo de contribuição afetado pela idade, em afronta clara e evidente ao que prevê o parágrafo primeiro do artigo 201, da Constituição Republicana.
A imoralidade se revela pelo próprio fator previdenciário, a estabelecer um conceito genérico de expectativa de vida que não atende a diversidade de pessoas em um país de dimensão continental, onde aquele que se encontra em região com precária situação socioeconômica é colocado em igualdade com aqueles que residem em regiões mais abastadas.
Imoral porque a proteção ao segurado é colocada em segundo plano em sistema que eleva a garantia do equilíbrio financeiro e atuarial como principal objetivo estatal, em um país que ainda privilegia alguns grupos políticos dentro do próprio regime geral de previdência, criando aposentadorias especiais que oneram ainda mais o erário público.
Oras, se o regime previdenciário estabelece o critério de tempo de contribuição, não há razão lógica ou moral para que se estabeleça uma idade mínima para tal modalidade de benefício.
Advogada e pós graduanda em Direito da Seguridade Social pela Faculdade Legale.
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