Resumo: Este artigo discute o conceito de integridade do Direito como um valor moral. Ele questiona se a integridade e coerência em um sistema jurídico são essenciais para que este sistema seja considerado justo. Ele discute particularmente as teorias de Dworkin e de Kant sobre a integridade do Direito. Apresenta, ainda, um debate sobre o conflito entre a necessidade de se manter o Direito íntegro e coerente e a obrigação do julgador de decidir de forma justa. Aborda, ainda, a tensão existente entre a mutação do Direito e a necessidade de manutenção da coerência do sistema. Estabelece, ainda, um diálogo entre as teorias de Kant e de Dworkin acerca da questão.
Palavras-Chave: Integridade do Direito. Dworkin. Kant.
Abstract: This article discusses the concept of integrity of the law as a moral value. It questions if integrity and consistency in a legal system are essential for this system to be considered fair. It discusses in particular the theories of Dworkin and Kant on the law as integrity. It also presents a debate on the conflict between the need to maintain the integrity of the law and the obligation of the judge to decide fairly. It also discusses the tension between the mutation of the law and the necessity of maintaining the consistency of the system. Also establishes a dialogue between the theories of Kant and Dworkin about the issue.
Keywords: Law as integrity. Dworkin. Kant.
Sumário: Introdução. 1. Integridade do Direito e as Diversas Concepções de Justiça. 2. Integridade do Direito em Dworkin. 3. A Influência do Pensamento Kantiano. 4. A Justiça como uma Exigência de Tratamento Semelhante. 5. Dos Diversos Tipos de Integridade. 6. Sobre a Igualdade de Tratamento. 7. Diálogo entre Ausentes: Kant e Dworkin. 8. Da Prioridade da Integridade sobre a Concepção Individual da Justiça. 9. Da Diferença entre Integridade e Coerência em Sentido Estrito. Conclusão.
Introdução
Ronald Dworkin formulou a teoria da Integridade no Direito, apontando haver um valor moral no respeito à integridade e à coerência em um sistema jurídico. Aponta Dworkin a necessidade do Direito manter uma concepção coerente que reflita os valores da comunidade política. Trata-se da noção de fidelidade a um sistema de princípios, segundo a qual cada cidadão tem a responsabilidade de identificar e se manter fiel ao sistema de princípios e valores da comunidade a qual pertence (DWORKIN, 1997, p. 231 e 271-272).
No presente artigo, estamos preocupados, particularmente, com o exame da integridade nas decisões judiciais. Assim, pretendemos discutir as razões que nos levam a concluir que as decisões judiciais devem ser íntegras e coerentes. Há uma bom motivo, moral ou pragmático, para que o Juiz, ao decidir, tenha como preocupação a manutenção da coerência do sistema, ainda que o resultado da sua decisão lhe pareça injusto ou imoral?
1. Integridade do Direito e as Diversas Concepções de Justiça
Parece-nos só há sentido em se falar no dever de manutenção da integridade do Direito nos casos em que a decisão pareça injusta ou imoral ao julgador. Pensar o contrário, ou seja, admitir que a integridade somente deva ser aplicada nos casos em que parecesse justa ou moral, não seria, na verdade, tornar inócua a teoria da integridade? Neste caso, não bastaria dizer ao julgador que o mesmo deveria julgar conforme a sua consciência, atendendo aos seus valores morais e à sua concepção de justiça? Se a observância à integridade possui algum valor prático, parece-nos então devemos supor que ela deva ser considerada mesmo nos casos em que esteja em desacordo com as convicções pessoais do julgador e com a sua noção do que é justo e certo. Claro, portanto, que devemos apresentar uma razão de peso que justifique a aplicação de uma decisão, mesmo quando esta possa parecer injusta ou equivocada.
Seguindo nessa linha de raciocínio, chegamos à questão que realmente vale à pena ser respondida: deve o Juiz desconsiderar as suas concepções sobre o que é o justo ou o correto para preservar a coerência e a integridade do sistema judicial?
Para responder a esta pergunta, precisamos, primeiramente, tentar estabelecer os fundamentos pelos quais é importante que as decisões judiciais se mantenham íntegras. Analisaremos, pois, a teoria de Dworkin. Para isso, faremos uma leitura de Dworkin a partir do pensamento kantiano.
2. Integridade do Direito em Dworkin
Primeiro, devemos estabelecer no que consiste a teoria da Integridade no Direito, ainda que de forma bastante sintética. Para ilustrar a sua concepção, Dworkin faz uso da figura elucidativa do “romance em cadeia” (DWORKIN, 1997, p. 275-279). Por esta analogia, o Juiz seria como um autor de um romance, acrescentando capítulos a um livro que já vem sendo escrito por outros escritores que lhe antecederam. Para ser bem sucedido nesta tarefa, deve o juiz, primeiramente, ler os capítulos anteriores, tentando entender a trama central que norteia o romance. Ao escrever um novo capítulo, deve tentar manter a coerência ao enredo já desenvolvido por seus antecessores.
Pela noção do “romance em cadeia”, o Juiz, ao decidir, deveria considerar os princípios e valores adotados pelos precedentes judiciais já estabelecidos nos julgamentos que lhe antecederam, buscando decidir de uma forma harmônica com o sistema jurídico vigente e com a sua história.
Para esta árdua e difícil tarefa, Dworkin faz uso de um tipo ideal, a pitoresca figura do Juiz Hércules. O Juiz Hércules é um arquétipo imaginário de um juiz de capacidades sobre-humanas, que adota a integridade como um princípio. Hércules deve examinar os precedentes anteriores e encontrar a teoria jurídica capaz de explicar a maioria das soluções adotadas por seus antecessores. De posse desta teoria, ele poderá solucionar o caso que lhe for apresentado, mantendo-se íntegro ao ordenamento jurídico.
Para justificar a integridade do sistema jurídico, Dworkin parte da noção de integridade política, a qual ele divide em princípio da integridade legislativa e princípio da integridade jurisdicional (adjudication) (DWORKIN, 1997, p. 211). Para demonstrar a importância da integridade na prestação jurisdicional, Dworkin primeiro analisa a integridade como um princípio legislativo. Nesta tarefa, Dworkin observa ser aceito como um valor político que as leis devam ser coerentes, e que devem se manter íntegras às opções morais adotadas.
Dworkin justifica seu ponto de vista a partir de um método de redução ao absurdo (reductio ad absurdum). Ele parte da premissa contrária, ou seja, de que as leis não precisam se manter coerentes e íntegras às escolhas morais, constatando o resultado absurdo de tal consequência[1]. Neste raciocínio, Dworkin concebe legislações fictícias, as quais possuem comandos morais distintos para os cidadãos, baseados em critérios aleatórios. Por exemplo, uma legislação que permitisse o aborto para mulheres que nascessem em anos pares, mas proibisse o aborto para as que nascessem em anos ímpares. Parece a Dworkin que uma legislação criada nestas bases geraria uma repulsa tanto nos grupos que defendem o aborto como nos que são contra. Ele explica tal fato partindo da hipótese de que a integridade é um princípio moral, um valor arraigado na atividade política. Em outras palavras, as pessoas esperam que a legislação faça opções morais e que se mantenha coerente às opções morais adotadas, as quais, para o bem ou para o mal, devem ser aplicadas a todos os membros da comunidade política (DWORKIN, 1997, P. 216).
Esse tipo de pensamento identificado por Dworkin, ou seja, de que a Lei, para ser justa, deve impor deveres de forma igual a todos os membros da comunidade, tem origem numa tradição filosófica mais antiga, estando presente já no pensamento kantiano. O próprio Ronald Dworkin observa a influência de Kant e Rousseau em seu pensamento (DWORKIN, 1997, p. 229).
3. A Influência do Pensamento Kantiano
Para Kant, o princípio supremo da moral seria agir “segundo uma máxima que possa ter valor como lei geral” (KANT, 1993, p. 40). A máxima, no pensamento kantiano, é o “princípio subjetivo que o sujeito se impõe como regra de ação” (KANT, 1993, p. 40), ou seja, é como cada pessoa entende que deva agir. Podemos, portanto, entender que, para Kant, o indivíduo deveria agir segundo uma regra moral que pudesse ser imposta a todos como uma regra geral. Por assim dizer, uma regra moral seria boa se todos pudessem agir conforme esta regra que o indivíduo adotou para si.
Acolhendo-se este raciocínio para o nosso problema, se uma decisão judicial cria uma regra para um caso concreto que não pode ser aplicada como uma regra geral, ela é injusta, por violar um princípio moral elementar, que é o de que cada pessoa deve viver conforme uma regra que possa ser aplicada a todos. Assim, uma boa decisão deveria poder ser repetida a todos os casos semelhantes. Se não pode, é porque ela é uma decisão injusta.
A justiça, em Kant, está em cada um exercer livremente o seu arbítrio respeitando a liberdade dos demais, conforme leis universais. Esta ideia está expressa no conceito da sua lei universal de direito: “age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa se conciliar com a liberdade[2] de todos, segundo uma lei universal” (KANT, 1993, p. 46). Sendo assim, uma limitação à liberdade individual, para ser justa, deveria ser universal, ou seja, deveria limitar a liberdade de todos de forma igual.
Se, por outro lado, a liberdade de uma pessoa ou grupo de pessoas é limitada de formas diferentes, impondo a uns um ônus que não é imposto a todos, o julgador está, na verdade, obrigando-lhes a atender ao seu arbítrio individual, ou seja, está impondo-lhes injustamente a sua concepção individual sobre a boa vida.
Na ótica do pensamento kantiano, uma decisão judicial, para ser justa, deve impor uma obrigação, uma restrição à liberdade, que seja e possa ser observada por todos. Ao contrário, se o julgador impõe um dever-ser que somente esteja de acordo com o seu arbítrio, sem considerar qual é a regra geral efetivamente observada por todos, ele está agindo de forma injusta, pois limita a liberdade não conforme uma lei universal, mas, sim, conforme a sua visão particular sobre como se deveria agir num determinado caso.
Mostra-se ainda mais grave e injusta tal decisão, quando verificamos que o próprio julgador não está obrigado a se submeter a este comando, que não é universal. Como a sua decisão somente cerceará a liberdade de quem foi condenado, e o julgador, por sua vez, somente será coagido a obedecer à lei geral, que é diversa, não estará, pois, obrigado a obedecer ao próprio arbítrio que impôs.
Pois bem, para Kant a liberdade é a independência do arbítrio de outro (KANT, 1993, p. 55), entendendo-se por arbítrio como a concepção individual de como se deve agir. Quando uma decisão judicial impõe uma obrigação gerada tão somente na concepção individual do julgador sobre o que é justo ou correto, ela é arbitrária. Ao deixar de observar qual é a lei geral, ela implicitamente afirma que os homens não são livres e que, portanto, podem ser submetidos ao arbítrio de outro, no caso, do julgador.
No pensamento kantiano, há somente um único direito natural, inato, independente do direito positivo: a liberdade, na medida em que possa subsistir com a liberdade de todos, segundo uma lei universal. A isto, Kant designa como igualdade natural, que é “a impossibilidade moral de ser obrigado pelos demais a mais coisas do que aquelas a que estão obrigadas com respeito a nós” (KANT, 1993, p. 55).
Poderia se objetar que o que Kant defende nada mais é do que o legalismo, ou seja, que o Juiz estaria obrigado a cumprir literalmente o texto legal, entendendo-se que somente a Lei em sentido estrito representa a vontade coletiva do povo. De fato, Kant afirma que “o poder legislativo somente pode pertencer à vontade coletiva do povo” (KANT, 1993, p. 55). Mas ele não afirma que somente a Lei em sentido estrito poderia gerar um dever-ser.
O que Kant afirma é que o poder legislativo, o poder de criar leis, somente pode pertencer ao povo, ou seja, que não poderia ficar ao arbítrio de um único homem. E isto se harmoniza com a ideia de Kant de que “se alguém ordena algo contra o outro, é sempre possível que lhe faça injustiça; porém nunca no que decreta para si mesmo.” (KANT, 1993, p. 152).
Se considerarmos que a decisão judicial também é capaz de criar um dever-ser, e efetivamente o é, então fica claro que a criação deste dever-ser deve se dar por uma lei universal, ou seja, de forma igual para todos. Assim, não estamos dizendo, e nem Kant o diz, que o Juiz deve se ater somente ao legalismo ou ao formalismo. O que afirmamos, dentro da lógica kantiana aqui expressa, é que as decisões judiciais criam regras, e estas regras, para serem justas, devem limitar de forma igual a liberdade de todos.
E isto é coerente com a afirmação de Kant sobre o que é ser um cidadão. A qualidade de cidadão, para Kant, possui três atributos inseparáveis: a liberdade legal de não obedecer a nenhuma outra lei além daquelas a que tenha aquiescido; a igualdade civil, que implica não haver superiores entre o povo, não havendo ninguém capaz de obrigar juridicamente além da maneira em que pode ser obrigado; e a independência civil, que consiste em não ser submetido aos arbítrios de outro do povo, mas sim aos seus próprios direitos e faculdades (KANT, 1993, p. 153).
Verificamos que Kant nos dá o derradeiro argumento para que as decisões judiciais sejam íntegras e coerentes: o fato de sermos livres e iguais. Se somos livres e iguais, não podemos admitir que uns sofram um cerceamento de sua liberdade que não seja a todos imposto. A decisão justa, portanto, é a que somente impõe ao indivíduo uma obrigação que deva ser observada por todos, e que somente assegure um direito que possa ser a todos garantido.
4. A Justiça Como uma Exigência de Tratamento Semelhante
Dworkin segue na tradição de Kant, ao afirmar que a justiça exige que casos semelhantes sejam tratados da mesma maneira e que é injusto que se trate as pessoas diferentemente, quando nenhum princípio pode justificar a distinção. Assim, a integridade exige que os direitos expressem uma série coerente de diferentes princípios de justiça, equidade ou devido processo legal. Aqui, temos que advertir que Dworkin usa o termo “equidade” com um significado muito específico. A equidade, para Dworkin, significa uma distribuição equitativa de poder político (DWORKIN, 1997, p. 218-224).
Na teoria de Dworkin, a integridade é examinada, primeiramente, pelos olhos da política e da legislação. Neste ponto, Dworkin faz seu exame não por uma conjectura moral e sim, pela observação. Analisa que as leis que adotam soluções conciliatórias, ou seja, que não se mostram coerentes a uma opção moral, geram aversão, sendo instintivamente rejeitadas, como no exemplo da permissão do aborto às mulheres nascidas em anos pares, acima referido, ou no exemplo de uma lei que proibisse a discriminação racial num ônibus, mas a permitisse em restaurantes. Ele conclui que, de certo modo, esperamos que a legislação adote soluções que sejam coerentes a um conjunto de princípios e valores. A partir desta observação, Dworkin formula a sua hipótese, de que a integridade é uma virtude política (DWORKIN, 1997, p. 216-224).
Defende Dworkin que a comunidade que adote a integridade como uma virtude política possui vantagens morais e pragmáticas. No campo moral, esta comunidade, ao eleger princípios e valores e manter-se coerente a eles, adquire uma autoridade moral capaz de justificar o monopólio da força coercitiva (DWORKIN, 1997, p. 228).
Do ponto de vista pragmático, a integridade evita a parcialidade, a fraude, a corrupção, o favoritismo e o revanchismo. A integridade também torna o Direito mais eficiente, pois ao se manter a fidelidade a um conjunto de princípios e valores, os deveres se tornam mais evidentes, sem que a legislação e a jurisprudência tenham que detalhar cada hipótese de possível conflito entre os membros da comunidade. Um sistema judicial íntegro terá uma quantidade menor de recursos, menor nível de litigância, menor necessidade de acesso à justiça e maior segurança jurídica (DWORKIN, 1997, p. 228-229).
Dworkin define a comunidade que aceita a integridade como uma virtude como sendo uma comunidade de princípios. Esta comunidade teria um melhor argumento moral para a defesa da sua legitimidade política, pois:
“[U]m compromisso geral com a integridade expressa o interesse de cada um por tudo que é suficientemente especial, pessoal, abrangente e igualitário para fundamentar as obrigações comunitárias segundo as normas de obrigação comunitária que aceitamos em outros contextos. (DWORKIN, 1997, p. 260)”
Ressalvamos, todavia, que dizer que a teoria da integridade determina que situações iguais devam ser decididas da mesma forma é dizer muito pouco. A teoria é mais ampla e mais complexa. A integridade implica na concepção de que há um conjunto de valores e de princípios que são aceitos e interpretados de uma determinada forma pela comunidade política. As decisões judiciais devem considerar estes princípios e valores, tornando o Direito um conjunto coerente de direitos e deveres, os quais devem obedecer aos valores e princípios aceitos pela comunidade, da forma como são comumente interpretados.
5. Dos Diversos Tipos de Integridade
Apesar da teoria da integridade estar muito preocupada com a coerência com o passado, o “romance em cadeia”, este não é o único aspecto da integridade que deve ser observado. Chamaremos a este aspecto específico de “integridade histórica”, ou seja, a coerência da decisão judicial com os princípios e valores expressos nos precedentes judiciais que lhe antecedem e com a história da comunidade política.
Esse é apenas um dos aspectos pelo qual a integridade pode ser entendida. Além da integridade histórica, acima definida, podemos falar de integridade vertical, integridade horizontal, integridade autorreferente e integridade interdisciplinar.
A integridade vertical é a harmonia da decisão judicial com os precedentes das cortes hierarquicamente superiores ao julgador. Em outras palavras, é a obediência e a disciplina vertical, o respeito aos entendimentos e precedentes já firmados pelos tribunais superiores.
A integridade horizontal é a coerência estabelecida através da uniformização da jurisprudência, tornando íntegras as decisões proferidas pelos diversos juízos de um mesmo grau, mesmo que com distintas competências.
A integridade autorreferente diz respeito à coerência de tratamento entre casos julgados por um mesmo julgador. Assim, os princípios e valores que nortearam uma decisão devem ser considerados para outros casos, somente sendo admitida a diferenciação se o tratamento desigual for coerente com os princípios e valores anteriormente adotados.
A integridade interdisciplinar implica dizer que os diversos ramos do Direito devem ser interpretados de uma forma coerente, aplicando-se a todos os ramos os mesmos princípios e valores. Princípios e valores gerais somente devem ser excepcionados por uma justificativa relacionada à especialidade do ramo em questão. Qualquer desigualdade, todavia, deve ser coerente com o restante do sistema jurídico, devendo poder ser justificada à luz dos valores e princípios gerais.
Desta forma, uma decisão, para ser íntegra, deve adotar soluções iguais aos casos semelhantes, e soluções desiguais aos casos que se desigualem, considerado os princípios e valores adotados e verificados a partir dos cinco aspectos acima referidos.
6. Sobre a Igualdade de Tratamento
Um dos grandes problemas de se falar de igualdade das decisões judiciais é determinar sobre qual concepção de igualdade estamos falando. Dworkin faz referência à igualdade na forma de “igual proteção” (DWORKIN, 1997, p. 225). Sabemos das reservas que se faz à igualdade formal, pois ela não observa as desigualdades que existem entre os seres humanos. Temos que ressalvar que Dworkin, ao falar da igual proteção, não está falando de uma simples igualdade perante as regras, mas, sim, de igualdade perante as teorias de equidade e justiça que as regras pressupõem como forma de justificativa.
Não estamos, portanto, negando a igualdade material ou o tratamento desigual para os desiguais, mas sim, afirmando que os princípios que eventualmente regem tal igualdade, ou desigualdade, devem ser interpretados de forma coerente, sob uma noção de igual proteção.
Assim, por exemplo, se admitimos que uma ação afirmativa é importante para restabelecer a igualdade, ela deve ser aplicada a todas as pessoas que compuserem o grupo ao qual a ação afirmativa foi dirigida, conforme o mesmo conjunto de princípios e valores.
Todavia, a aplicação uniforme de um princípio ou valor pode conduzir a um tratamento desigual daquele que se desiguale. Trata-se, neste caso, de uma interpretação de um princípio de igualdade que deve ser uniforme, ou seja, que deve ser aplicado sob uma mesma concepção coerente. A concepção deve ser interpretada de forma idêntica a todos que estejam na mesma situação de hipossuficiência. Mas a solução aplicada em concreto pode dar origem a um tratamento individual desigual aos desiguais. O que se exige não é um tratamento formalmente igualitário, mas, sim, que seja mantida a coerência em relação à concepção de igualdade eventualmente adotada.
Portanto, quando dizemos que as decisões judiciais devem dar soluções iguais aos diversos casos, não estamos dizendo que todos os cidadãos devem ser tratados de forma idêntica, esquecendo-se a desigualdade inerente que existe entre as pessoas. Estamos afirmando que todas as pessoas devem ser julgadas segundo o mesmo conjunto de princípios e valores. É perfeitamente possível, portanto, que pessoas em situações distintas tenham tratamento desigual, não havendo qualquer violação à integridade, neste ponto. O que deve se observar é que: primeiro, as pessoas em circunstâncias semelhantes devem ter tratamento igual; segundo, que a concepção de igualdade que seja adotada, entre as tantas possíveis, deve ser aplicada de forma coerente e homogênea a todos os casos.
7. Diálogo entre Ausentes: Kant e Dworkin
Expostos os pensamentos dos dois autores, devemos indagar se há uma grande diferença entre a teoria de Kant e a de Dworkin. Quanto ao ponto central, em essência, Kant e Dworkin estão dizendo a mesma coisa: o dever-ser deve ser uniforme para todos os membros da comunidade. Claro que a teoria da integridade de Dworkin expõe o problema com muito mais complexidade e profundidade do que Kant. Neste ponto, podemos até mesmo dizer que Dworkin permitiu que se fizesse uma nova leitura de Kant, trazendo-o à contemporaneidade.
Ressaltamos não há em Kant uma preocupação específica com a integridade da decisão judicial, questão esta que possivelmente ainda não se colocava no século XVIII. Trazer o pensamento kantiano para a análise da decisão judicial é, portanto, um mérito específico de Dworkin.
Por outro lado, as justificativas apresentadas por Kant e por Dworkin são significativamente diferentes. Kant é um contratualista e, portanto, seu argumento pode ser construído de forma mais simples, apontando a necessidade do homem sair do estado natural e ingressar no estado jurídico, através de um contrato de igual limitação à liberdade de todos. Dworkin, por outro lado, afasta-se do pensamento contratualista, questão esta que o diferencia, por exemplo, da teoria de John Rawls.
Dworkin tem o mérito de aliar o argumento de Kant de defesa da igualdade e da liberdade a argumentos de ordem prática. Kant parte de uma concepção específica sobre o que seja liberdade[3] e igualdade[4], a qual, apesar de convincente, não é a única concepção possível. Assim, poderíamos rejeitá-las por uma petição de princípio, se acaso não partilhássemos na mesma noção de liberdade e igualdade que as propostas por Kant. Ademais, trata-se de um discurso moral. Como expõe Habermas, apesar da ordem jurídica precisar de princípios morais para se legitimar, essa relação é de complementaridade, sendo questionável, num mundo pós-tradicional, a subordinação do direito à moral (HABERMAS, 1997, p. 140-141).
Dworkin fortalece tal argumento, a ele agregando bons motivos pragmáticos para que adotemos a integridade como um valor. Assim, aponta Dworkin, como já acima descrito, que a integridade dificulta o abuso e o desvio de poder, evita a parcialidade, a fraude, a corrupção, o favoritismo e o revanchismo, além de tornar o sistema judicial mais eficiente e diminuir a necessidade de detalhamento por parte da legislação e da jurisprudência.
Uma grande diferença entre Dworkin e Kant é a distinção que Dworkin faz entre integridade e coerência. Dworkin chama por coerência em sentido estrito repetir as decisões anteriores da forma mais fiel e precisa possível. A integridade, para Dworkin, não é simplesmente a coerência em sentido estrito. A integridade exige que as normas sejam vistas como um conjunto único e coerente de justiça e equidade na correta proporção. Para isto, algumas vezes deverá o juiz se afastar das decisões anteriores em busca da fidelidade aos princípios adotados pelo sistema jurídico (DWORKIN, 1997, P. 262-264). Sendo assim, em alguns casos, a integridade deve prevalecer sobre a coerência estrita. Tal questão não se coloca no pensamento kantiano.
Pois bem, com estas considerações em mente, devemos agora voltar à questão que norteia o presente artigo: deve o juiz se manter fiel à integridade, ainda que o resultado a que chegue lhe pareça injusto ou equivocado?
Dworkin é claro: o princípio da integridade “não tem necessariamente a última palavra sobre de que modo usar o poder de coerção do Estado. Mas tem a primeira palavra, e normalmente não há nada a acrescentar àquilo que diz” (DWORKIN, 1997, P. 263). Todavia, em alguns casos, para Dworkin, pode ser necessário escolher a justiça em detrimento da integridade.
Podemos supor, num diálogo imaginário, qual seria a resposta de Kant à Dworkin. Possivelmente, Kant perguntaria: mas afinal, o que é a justiça? É o simples arbítrio? E completaria: justa é toda ação que “não constitui um obstáculo à conformidade do arbítrio de todos com a liberdade de cada um segundo leis universais” (KANT, 1993, P. 46).
Assim, no pensamento kantiano, não se poderia pretender que a justiça prevalecesse sobre a integridade, pois uma decisão que impusesse um obstáculo que não estivesse de acordo com leis gerais seria, de origem, injusta (KANT, 1993, P. 47). Fora de uma lei universal e geral, não haveria que se falar em justiça e, sim, em arbítrio. E, para Kant, não haveria como se pretender impor um arbítrio a uma outra pessoa, se a consideramos livre e igual. Sem uma lei geral, não haveria a faculdade de obrigar e, portanto, não haveria direito. Por este motivo, seria impossível haver um conflito entre a justiça e a integridade, pois no momento em que uma solução jurídica não estivesse de acordo com a lei geral, ou seja, que violasse a integridade, ela se tornaria por definição injusta, sequer gerando um direito.
Neste ponto específico, entre Dworkin e Kant, ficamos com Kant.
8. Da Prioridade da Integridade sobre a Concepção Individual da Justiça
Ainda que Dworkin deixe bastante claro que somente em casos excepcionais a justiça pode prevalecer sobre a integridade, entendemos que esta posição enfraquece todo o seu argumento.
Para o julgador, Hércules ou não, uma decisão que lhe pareça injusta ou equivocada provavelmente lhe parecerá ter uma justificativa excepcional para afastar a integridade. Qual pessoa acharia naturalmente que um preceito da lei geral é mais justo e mais correto do que o seu próprio arbítrio? Lógico que se uma pessoa tem uma opinião individual sobre o dever-ser, a qual é diferente da lei geral, é porque ela entende que há bons argumentos em favor da sua concepção individual que a torna, na sua visão particular, melhores do que a regra a todos imposta. Somente uma pessoa perturbada adotaria para o seu viver, para a sua concepção sobre a boa vida, regras e princípios que ele mesmo considera ruins ou inferiores aos adotados pelos demais.
Assim, aquilo que em Dworkin é posto como uma raríssima exceção tornar-se-ia, na verdade, a regra. Mesmo aos olhos de um julgador honesto e imparcial, as suas convicções pessoais sobre o dever-ser provavelmente se apresentariam como um justo motivo para que se deixasse de observar a integridade.
Entendemos, portanto, que somente faz sentido se falar em respeito à integridade se ela servir como guia mesmo nas soluções que não pareçam justas ou corretas ao julgador. Se o conselho for para se usar a integridade somente quando esta parecer justa, não precisaríamos da teoria de Dworkin. Poderíamos afirmar ao juiz que este deveria decidir da forma que lhe parecesse justo, conforme o seu arbítrio.
9. Da Diferença entre Integridade e Coerência em Sentido Estrito
Uma objeção honesta que poderia se apresentar à nossa defesa da integridade seria que o respeito cego à integridade forçaria o Juiz a adotar decisões ruins. A integridade poderia gerar um excessivo e sacramental apreço ao passado, provocando um conservadorismo e arcaísmo na interpretação do Direito. Em última análise, este raciocínio impediria qualquer mutação do Direito e inviabilizaria a adaptação da lei e dos precedentes às mudanças sociais.
Estas impugnações estariam corretas se a teoria da integridade não comportasse uma válvula de escape.
Todavia, a forma de se dar dinamismo à aplicação da integridade já foi apresentada pelo próprio Dworkin, pela separação dos conceitos de integridade e de coerência em sentido estrito. Na integridade de Dworkin, o Juiz não está condenado a repetir mecanicamente as decisões tomadas no passado. O Direito pode ser alterado, desde que se mantenha íntegro. Como apontamos, algumas vezes o juiz irá se apartar das decisões anteriores, precisamente para se manter fiel aos princípios adotados pelo sistema jurídico.
O que repudiamos é que o Juiz possa, ao pretender alterar o Direito, adotar princípios ou valores que sejam incoerentes com o restante do sistema, ou que ignorem os precedentes anteriores, a história da comunidade política, a interpretação feita pelos tribunais superiores, o entendimento de seus pares, os entendimentos dos demais ramos do Direito e mesmo os preceitos que ele mesmo adota em outros casos. A decisão pode ser alterada, mas os princípios, os valores, devem se manter coerentes.
De fato, não vemos nenhum bom motivo para que, sob uma suposta defesa da justiça, o juiz pudesse ignorar os princípios e valores aceitos pela comunidade política. Uma alteração radical destes princípios somente poderia ser justificada por um evento revolucionário, de quebra das bases nas quais se assenta o Estado, ou seja, num cenário onde se permitiria criar um novo poder constituinte originário. Dentro de uma situação de normalidade democrática, não há uma boa justificativa para que o Juiz ignore a ordem de valores e princípios da sociedade da qual faz parte. Pensar-se o contrário é imaginar que pode haver, numa comunidade de iguais, alguém que seja moralmente superior.
Sem dúvida, o juiz pode inovar e modificar o Direito. Mas, para tal, ele tem o ônus de compatibilizar essa sua nova decisão com o restante do ordenamento jurídico. Imaginar-se que uma decisão judicial possa, em nome de uma suposta defesa do que é justo e correto, ignorar os princípios e valores do ordenamento jurídico e romper abruptamente, e de forma isolada, com o sistema jurídico em vigor é permitir que a conduta dos homens seja pautada pelo arbítrio de um indivíduo.
Conclusão
Os direitos são fundamentais, e devem ser garantidos, justamente por permitirem que as pessoas planejem suas vidas para viverem de acordo com os seus próprios desígnios. A única forma das pessoas poderem delinear as suas vidas é se elas souberem, ou puderem razoavelmente prever, se suas metas de bem viver estão de acordo com os valores da comunidade a que pertencem. Se o direito é imprevisível, dependendo do arbítrio de cada julgador e da aleatoriedade das decisões judiciais, então ninguém possui nenhum tipo de direito que lhe permita planejar o seu próprio futuro.
Usando um argumento do próprio Dworkin,
“Assim, se os direitos têm sentido, a violação de um direito relativamente importante deve ser uma questão muito séria. Significa tratar um homem como menos que um homem ou como se fosse menos digno de consideração que outros homens. A instituição de direitos baseia-se na convicção de que isso é uma grave injustiça e que vale a pena arcar com o custo adicional, em política social ou eficiência, necessário para impedir sua ocorrência”. (DWORKIN, 2002, p. 304-305).
Se não há como se prever razoavelmente quais são os direitos que serão judicialmente aceitos, ou se os direitos pré-estabelecidos, que se supunha serem garantidos, puderem ser simplesmente desconsiderados pelo arbítrio individual de um julgador, então os direitos não têm sentido.
Ademais, ao se definir com certa precisão, de antemão, os direitos que serão validamente aceitos pela comunidade política, elimina-se o fardo dos conflitos morais, substituindo-os pela segurança jurídica.
Portanto, entendemos que a teoria da integridade de Dworkin não necessita de válvulas de escape adicionais. Entendemos, como Kant, que não há antagonismo entre a justiça e a integridade do Direito. Fixar para alguém uma obrigação que é imposta a todos, respeitadas as desigualdades e circunstâncias do caso, é, por essência, justo. Nessa ótica, impor ao indivíduo uma obrigação que não é geral, ou assegurar um direito que não seja garantido a todos, é, por si só, uma injustiça. Não há justificativa, portanto, para se ignorar a integridade sob o falacioso argumento de se fazer a “justiça” do caso concreto. Isto nada mais é do que arbitrariedade travestida de decisão judicial.
Claro que a aplicação da integridade deve levar em consideração as circunstâncias individuais e as desigualdades. Uma decisão pode ser ao mesmo tempo íntegra e considerar as diferenças e peculiaridades, desde que se mantenha fiel ao conjunto de princípios e valores da comunidade política, nos cinco aspectos da integridade já expostos. Em outras palavras, a decisão pode tratar desigualmente situações que não são iguais, desde que baseada numa concepção de igualdade que seja coerente e íntegra. Não se admite, todavia, que o julgador crie uma diferença que não se justifique dentro dos princípios válidos do sistema.
Entendendo-se a integridade da forma acima exposta, não há justificativa plausível para que, em algum caso, o Juiz prefira utilizar a sua concepção individual sobre o que é justo e correto no lugar dos princípios e valores da comunidade política. Sendo a integridade do direito o fundamento último da legitimidade política do Estado, e o grande fundamento moral do monopólio do uso da força, não podemos admitir qualquer relativismo com a integridade. Ignorados os princípios e valores da comunidade política, não há como se estabelecer objetivamente o que seria a “justiça” de uma decisão judicial, a qual não pode ser medida segundo o arbítrio de cada um. Assim, impossível separarmos uma decisão que não seja íntegra e coerente do simples exercício arbitrário da força. Num Estado de Direito, uma decisão judicial que não seja íntegra não pode ser admitida como um exercício legítimo do poder político, sendo, tão somente, uma indigna usurpação da liberdade de todos.
Procurador Federal. Pós Graduado em Direito Público. Professor de cursos de graduação e pós graduação nas cadeiras de Direito Administrativo e Direito Constitucional. Cursando atualmente o Mestrado, na área de políticas públicas
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