Muitos poderão pensar que uma cláusula compromissória com o condão de instituir a arbitragem só surtiria efeito quando inserida num contrato específico, o que, a princípio, estaria absolutamente correto.[1] Todavia, esta conclusão não necessariamente prosperará diante de determinadas situações, tais como aquelas em que as partes encontram-se vinculadas por diversas transações comerciais, em especial as oriundas do comércio internacional, em que milhões de negócios são entabulados, cumpridos rigorosamente e considerados firmes por ordens de compras, faturas pró-formas, contratos-tipos, etc enviados por correio eletrônico, fax e outros meios céleres de comunicação.
Estas transações são operadas em âmbito global e paulatinamente vêm alterando o rigor das formas contratuais, de modo consuetudinário ou por meio de iniciativas reguladoras do comércio eletrônico ou convenções internacionais específicas, entre elas, a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias firmada em Viena, em 1980 (não vigora no Brasil).
Há situações em que uma simples transação de compra e venda internacional desencadeia diversos atos interligados e vinculantes, geralmente com a interferência de terceiros, como as transações em bolsas de mercadorias, serviços intermediários consubstanciados em contratos bancários (crédito documentário), corretagem, agência, distribuição, seguros, etc. Apesar das especificidades desses contratos, contudo, não há como negar que essas transações são coligadas e interdependentes ao objetivo final: operacionalização eficaz do contrato de compra e venda mercantil.
Com efeito, alguns destes tipos de contratos podem gerar interessantes conseqüências quanto à abrangência da eleição da arbitragem como forma de solução de controvérsias referente ao negócio. Neste sentido indaga-se: pode a cláusula compromissória prevista em algum desses contratos ser estendida ao contrato de compra e venda, em que não há tal previsão expressa ?
Para responder esta questão avocamos interessante precedente jurisprudencial originário do Tribunal Supremo Espanhol, que decidiu sobre a possibilidade de reconhecimento e execução, na Espanha, de sentença arbitral ditada na França, tendo como partes uma empresa francesa e outra espanhola, contra a qual se solicitava a execução da sentença arbitral. Note-se, que um dos argumentos da defesa para afastar e negar o pedido foi invocar o art. V, 1, “a” da Convenção sobre Reconhecimento e Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras firmada em Nova Iorque em 1958 (CNI), em vigor na França e Espanha. O mencionado art. V, 1, “a” da CNI, refere-se à ausência de cláusula compromissória, como motivo denegatório do reconhecimento da sentença arbitral estrangeira. A defesa alegava que dentre as cláusulas do contrato de compra e venda não havia cláusula compromissória e, portanto, a sentença arbitral ditada na França seria considerada nula ou inexistente.
Porém, o referido Tribunal, ao exarar sua decisão e efetuar a análise dos fatos e do direito que instruíam a ação levou em consideração que as partes ao entabularem o negócio o fizeram por meio de um contrato de corretagem, com uma terceira empresa, no qual figuraram como compradora, a empresa espanhola e, como vendedora, a empresa francesa. Nas regras referentes às condições gerais de venda havia indicação que todas as controvérsias decorrentes do contrato seriam solucionadas por arbitragem pela Câmara Arbitral de Paris (entidade geralmente nomeada para solução de conflitos referentes às transações de produtos originários do solo, como frutas, cereais, etc e, muitas vezes, indicada em negócios entabulados por entidades profissionais), que haveria de resolver em última instância e de acordo com o seu Regulamento. As partes declararam conhecer e aceitar referida disposição. A empresa francesa confirmou a venda para a empresa espanhola reportando-se às condições do negócio exaradas no documento emitido pela empresa corretora. A empresa espanhola encaminha correspondência por fax indicando normas complementares que desejava incluir na confirmação de venda recebida da empresa francesa, reiterando, ainda, que aceitava todas as demais especificações.
O Judiciário espanhol, ao analisar esses documentos e as demais correspondências trocadas entre as partes, concluiu que se permitia “sem nenhuma espécie de dúvida considerar satisfeito o requisito imposto pelo art. IV, “b” da CNI [ter anexado o documento em que consta a cláusula compromissória], pois ficou suficientemente assegurada a vontade das partes em incorporar ao conteúdo do contrato, como uma cláusula a mais, a referente à arbitragem, sem que, ao contrário, seja justificado alegar o desconhecimento da existência de referida cláusula afirmada pela oponente, por mais que esta esteja incluída em um contrato-tipo, que se remete em bloco ao particular celebrado entre as partes, pois a recepção por esta da confirmação expedida pela vendedora de n. B-93190, que não nega, unida à resposta que a compradora encaminhou à vendedora, permite afirmar, sem circunlóquios, que teve conhecimento de que a claúsula compromissória estava incluída no contrato como parte dele e nada objetou sobre este particular; mas, ao contrário, manifestou expressamente sua conformidade com as cláusulas que não alterou ou modificou.”
Note-se que este tipo de extensão da eficácia da cláusula compromissória recebe na doutrina a denominação de “cláusula arbitral por referência”, comum nas relações comerciais entabuladas por meio de contratos-tipos das associações profissionais especializadas, como as que atuam nas áreas de algodão, café e cereais em geral.
O Tribunal Supremo Espanhol, em decorrência do acima relatado e de outras questões de fato e de direito aduzidas no processo, reconheceu e determinou a execução da sentença arbitral ditada na Câmara Arbitral de Paris, que condenou a empresa espanhola por inadimplemento contratual.
Destarte, deste precedente exarado em cortes estrangeiras podemos aferir que, se fosse transladado para o ambiente nacional, poderia ter idêntica solução, pois ambas as legislações (espanhola e brasileira) dispensam efeito vinculante à cláusula compromissória, bem como possuem a CNI como lei incorporada ao ordenamento interno.
Na linha do acima abordado, note-se que o Superior Tribunal de Justiça – STJ, em maio de 2005, no reconhecimento e homologação de Sentença Arbitral Estrangeira em que pela primeira vez se aplicou a CNI, na SEC 856, reconheceu a eficácia de cláusula arbitral inserida em contrato internacional de venda e compra de algodão classificando-a como uma cláusula arbitral tácita, pois apesar da alegação da parte brasileira de não ter assinado o contrato no qual a citada cláusula estava inserida, participou da arbitragem que transcorreu na Câmara de Arbitragem da Liverpool Cotton Association.
Também, digno de nota foi a extensão da cláusula compromissória para grupos societários no interessante precedente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, conhecido como caso Trelleborg (Apelação Cível n. 267.450.4/6-00). Refere-se a uma arbitragem processada à luz do art. 7º da LA (instituição judicial da arbitragem) em que por determinação na sentença judicial no pólo passivo foi incluída a empresa-mãe de origem sueca, que alegou não ter firmado a cláusula compromissória. Todavia, ficou demonstrado e provado nos autos que a empresa-mãe teve ativa participação no contrato que transferia à empresa brasileira do grupo o controle de empresa que atuava no ramo de borracha. Na Apelação julgada pela 7º Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 24 de maio de 2006, foi mantida a decisão de primeira instância. Foi lavrada a seguinte ementa: “Sentença que instituiu Tribunal Arbitral para dirimir conflito entre as partes – Ilegitimidade de parte passiva afastada – Argumento reiteradamente desenvolvido que cai por terra, face às provas dos autos que demonstram à toda evidência o envolvimento nas negociações de que decorreu o litígio instaurado – Inexigibilidade de haver prévio contrato – Art. 1º da Lei 9.307/96 que tem como exigência a capacidade das partes para contratar, o que deve ser entendido como capacidade civil para manter relação jurídica que envolva direitos patrimoniais disponíveis.”
Por fim importa notar que a Comissão das Nações Unidas para o Desenvolvimento do Direito Mercantil Internacional, conhecida pela sigla em inglês UNCITRAL, vem de recomendar no 39º Período de Sessões, em 07 de julho de 2006 e foi aprovado pela Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas (Assembléia Geral da ONU), na 61º Sessão (2006), que a interpretação do Art. II, inciso 2 da CNI: “ Entende-se-á por acordo escrito uma cláusula arbitral inserida em contrato ou acordo de arbitragem, firmado pelas partes ou contido em troca de cartas ou telegramas,” seja aplicada reconhecendo que as circunstâncias que descreve não são exaustivas.[2]
Em decorrência do acima relatado forçoso é de concluir que, dependendo da situação presente em cada caso, a interpretação extensiva da cláusula arbitral seria perfeitamente possível, haja vista que os negócios jurídicos devem ser analisados à luz da boa-fé e seus consectários, a confiança, a lealdade contratual, etc; que, aliás, representam a pedra de toque de todas as relações jurídicas.
Advogada, mestre e doutora pela Universidade de São Paulo –USP. Coordenadora e professora do curso de arbitragem do Programa de Educação Continuada da Fundação Getúlio Vargas – PEC/FGV em SP. Autora dos livros “Árbitro, Princípios da Independência e da Imparcialidade” (São Paulo, LTr, 2001) e do recém lançado “Arbitragem na Administração Pública. Fundamentos Jurídicos e Eficiência Econômica” (São Paulo, Quartier Latin, 2007).
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