Resumo: O direito à saúde, aí compreendida a assistência farmacêutica, tem status de direito fundamental em nosso ordenamento e como tal merece e exige plena eficácia. A omissão e/ou ineficácia do Estado na prestação dessa assistência médico-farmacêutica deu azo ao fenômeno que vem sendo denominado judicialização da saúde, compreendido como a provocação e a atuação do Poder Judiciário em prol da efetivação dessa assistência. Quando o Judiciário determina ao Estado que forneça determinado medicamento, atendimento médico ou insumo terapêutico deve fazê-lo com cautela, a fim de não ofender a Constituição e a lei, bem como não inviabilizar o funcionamento da máquina estatal. Daí a necessária análise realizada neste trabalho acerca do cipoal de normas e entes relativos à prestação de assistência médico-farmacêutica, bem como a sugestão de critérios a serem observados nas demandas que envolvam o tema. Essa análise, associada ao relato de exitosa experiência na comarca de Ribeirão Preto-SP, demonstra que é possível, de forma objetiva e racional, conferir efetividade ao direito fundamental à saúde por meio do sistema processual vigente.
Palavras-chave: saúde; assistência; judicialização; critérios; experiências
Sumário: 1. Introdução. 2. O direito à saúde e à assistência farmacêutica na Constituição Federal. 2.1. A impossibilidade de atuação do juiz como legislador positivo. 2.2. A necessidade de previsão orçamentária. 3. O princípio do mínimo existencial versus o princípio da reserva do possível. 4. O direito à saúde e à assistência farmacêutica na legislação infraconstitucional: a Lei do SUS e o Estatuto do Idoso. 4.1. A distribuição de competências entre os entes federativos. 5. A efetivação do direito à saúde e à assistência farmacêutica mediante intervenção do Poder Judiciário: critérios. 6. Instrumentos processuais disponíveis. 7. Experiências inovadoras. 8. Conclusão. 9. Referências bibliográficas.
“Não hei de pedir pedindo, senão protestando e argumentando, porque essa é a arma daqueles que não pedem favor, mas Justiça”. Eduardo Couture
1. Introdução
“A saúde é um direito de todos e um dever do Estado”. Com essas palavras a Constituição Federal de 1988 abre seu art. 196 para expressar o compromisso do Estado de garantir a todos os cidadãos o pleno direito à saúde. Essa garantia, conforme a literalidade do artigo mencionado, será efetivada “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
De forma inédita no constitucionalismo brasileiro, a Constituição Federal de 1988, trouxe a dignidade da pessoa humana como o valor maior do Estado, o núcleo constitucional supremo em torno do qual gravitam os demais direitos. Os direitos fundamentais, incluindo aí os direitos sociais, seriam, pois, os guardiões da dignidade humana. A saúde é, portanto, verdadeiro direito fundamental social, cujo conceito se relaciona com um “completo estado de bem-estar físico, mental e social”[1] do homem, sem o qual não se imagina possível uma vida digna. É preciso, no entanto, ir além.
O direito à saúde deve ser encarado como direito fundamental social subjetivo, passível de ser tutelado judicialmente caso o Estado não promova as prestações materiais necessárias à sua completa realização. A intenção de se atribuir a determinados direitos a qualificação de fundamentais não pode se restringir à satisfação de objetivos meramente acadêmicos, despreocupada de qualquer consequência prática. Ao revés, todo direito fundamental é acima de tudo uma norma de caráter principiológico, dotada de força normativa, e cuja aplicação não se restringe a casos pontuais e específicos, estando apta para promover a máxima eficácia dos valores garantidos pela Constituição Federal.
A esse respeito, ensina-nos Luís Roberto Barroso[2] que “qualificar um dado direito como fundamental não significa apenas atribuir-lhe uma importância meramente retórica, destituída de qualquer conseqüência jurídica. Pelo contrário, conforme se verá ao longo deste estudo, a constitucionalização do direito à saúde acarretou um aumento formal e material de sua força normativa, com inúmeras conseqüências práticas daí advindas, sobretudo no que se refere à sua efetividade, aqui considerada como a materialização da norma no mundo dos fatos, a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social”.
Para cumprimento desse dever que a Constituição lhe impõe, o Estado instituiu entidades públicas, ora pertencentes à Administração direta, ora à Administração indireta, bem como criou mecanismos de cooperação entre essas entidades e entre entidades do setor privado, de modo que a execução das políticas públicas de saúde se efetive de modo universal e igualitário, observando as peculiaridades regionais e sociais da população que atende.
A razão de ser dessa complexa estrutura de atuação não poderia ser outra senão a ditada pela própria Constituição Federal: garantir a todos o direito à saúde.
No entanto, de forma paradoxal, pela sua própria extensão e complexidade, essa estrutura vem se mostrando ineficaz. Seu funcionamento demanda alto custo, há falta de investimentos, a pluralidade de normas não raro gera controvérsias que dificultam a atuação, enfim, há uma série de elementos que podem ser apontados como causas da “falência” dessa estrutura.
A prestação de assistência farmacêutica, ou, melhor dizendo, a falta ou a falha na prestação da assistência farmacêutica é um fator que evidencia a ineficiência da estrutura do SUS – Sistema Público de Saúde e caracteriza patente afronta ao direito fundamental à saúde.
No momento, o assunto é candente na comunidade jurídica, na comunidade médico-farmacêutica, na Administração e na imprensa. Isso porque a população tem se valido do Poder Judiciário para executar essa prestação, ou seja, o Judiciário tem sido provocado a coagir a Administração a cumprir o dever que a Constituição lhe impõe, garantindo, assim, o exercício do direito à Saúde.
É tão exprressiva a quantidade de ações judiciais com esse intuito, que o fato já vem sendo chamado de “Judicialização da Assistência Farmacêutica”, “Judicialização da Saúde” ou “Fenômeno da Judicialização dos medicamentos”.
O direito de se valer do Poder Judiciário para executar essa obrigação é tão certo quanto o dever do Estado à prestação de atendimento médico e assistência farmacêutica, tanto que a própria Constituição Federal o assegura (artigo 5º, inciso XXXV).
No entanto, quando a Administração é constrangida, nas vias jurisdicionais, a prestar, indiscriminadamente, atendimento médico e assistência farmacêutica, os cofres públicos sofrem grande prejuízo, comprometendo o funcionamento do Estado como um todo e não apenas da estrutura do SUS.
O presente trabalho tem por fim analisar as peculiaridades dessa “judicialização da prestação de assistência médico-farmacêutica”, indicando os principais aspectos a serem observados por aqueles que a pleiteiam e a concedem, de modo a racionalizar e equilibrar os direitos que dela são objeto.
Num primeiro momento, discorremos brevemente sobre o direito à saúde e sua regulamentação, constitucional e infraconstitucional, bem como sobre os princípios que informam sua interpretação e a atuação jurisdicional na efetivação de políticas públicas.
Posteriormente, tratamos de alguns aspectos que, a despeito das discussões teóricas, possuem relevância prática no manejo das ações judiciais, como a questão da competência do ente público – que interfere na legitimidade passiva processual – e a questão da escolha do procedimento a ser utilizado.
Por fim, trouxemos à baila notícia de experiência prática da comarca de Ribeirão Preto-SP, que tem se mostrado eficaz e afim com os critérios que devem nortear a “judicialização da assistência farmacêutica.”
2. O Direito à saúde e à assistência farmacêutica na Constituição Federal
Não se pode afirmar que as Constituições passadas foram totalmente omissas quanto à questão da saúde, já que todas elas apresentavam normas tratando dessa temática, geralmente com o intuito de fixar competências legislativas e administrativas.
O tema da saúde, segundo José Afonso da Silva, “não era de todo estranho ao nosso Direito Constitucional anterior, que dava competência à União para legislar sobre defesa e proteção da saúde, mas isso tinha sentido de organização administrativa de combate às endemias e epidemias. Agora é diferente, trata-se de direito do homem[3].”
Entretanto, a Constituição de 1988 foi a primeira a conferir a devida importância à saúde, tratando-a, como vimos, como direito fundamental, o que permitiu uma maior aproximação entre as inúmeras declarações internacionais de direitos humanos e o próprio texto constitucional.
É oportuno ressaltar que declarações internacionais foram fundamentais para o reconhecimento dos direitos sociais, entre os quais o direito à saúde. Isso porque, após a Segunda Guerra Mundial, quando o mundo todo restou abalado com as atrocidades sofridas e a sociedade internacional passou a questionar as condições humanas, surgiu a necessidade de garantir de modo efetivo os direitos humanos. Os Estados viram-se, pois, obrigados a atribuir sentido concreto aos direitos sociais.
Esse movimento iniciou-se em 1948 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, “fonte mais importante das modernas constituições[4]”, estabelecendo um vasto campo de dispositivos referentes aos direitos sociais, em especial à saúde. Vejamos:
“Art. XXV – Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.”
A partir desses documentos declaratórios de direitos humanos, os ordenamentos jurídicos de cada país tendem a garantir internamente os direitos fundamentais (sem perder de vista a necessidade conjunta de internacionalização), sob uma perspectiva de generalização (extensão da titularidade desses direitos a todos os indivíduos).
No Brasil, a influência proporcionada por essas declarações de direitos atingiu seu ponto máximo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, cujo texto contempla inúmeros dispositivos que tratam expressamente da saúde.
De forma direta, é possível afirmar que o tema da saúde, em seu tratamento constitucional, está calcado sob duas características principais: a sua inclusão como direito fundamental e o estabelecimento das regras gerais e dos princípios que devem conduzir as políticas públicas nessa área.
No que se refere à primeira dessas características, é o art. 6º, caput, da Constituição Federal o responsável por reconhecer a saúde como um direito fundamental social, ao lado da educação, da moradia, do lazer, dentre outros.
Os direitos fundamentais (individuais, coletivos e sociais), como se sabe, gozam de aplicabilidade direita e imediata, conforme disposto no §2º do art. 5º da Constituição; logo, não são – e jamais poderiam ser – meras promessas do constituinte originário, destituídas de qualquer efetividade. Conforme se verá mais adiante, o Estado precisa encontrar uma forma de harmonizar o caráter prestacional dos direitos sociais com os investimentos em políticas públicas que esses direitos demandam para serem implementados.
Nesse contexto, podemos destacar a segunda característica norteadora do direito à saúde na Constituição Federal, qual seja, o estabelecimento de todo um arcabouço principiológico que deve reger as políticas públicas na área da saúde. Os princípios aqui referidos foram colhidos de uma leitura sistematizada dos arts. 194, 196 e 198 da Constituição, são eles:
– Universalidade da cobertura e do atendimento (art. 194, I c/c art. 196, caput): a saúde é direito de todos, logo, não requer nenhum requisito para sua fruição, devendo o Estado garantir o acesso universal aos diversos serviços de saúde;
– Caráter democrático e descentralizado da administração, com participação quadripartite, composta por trabalhadores, por empregadores, por aposentados e pelo Governo nos órgãos colegiados (art. 194, VII c/c art. 198, I e III).
– Regionalização e hierarquização (art. 198, caput ): este princípio exprime a idéia de que as ações e serviços públicos de saúde devem integrar uma rede regionalizada e hierarquizada, o que permite um maior controle dos serviços do sistema e favorece para que a população seja melhor atendida.
– Atendimento integral, priorizando as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (art. 198, II): a expressão “atendimento integral” reforça a necessidade de que o sistema de saúde deve garantir acesso a ações de promoção, que buscam eliminar ou controlar as causas das doenças e agravos, envolvendo também as ações em outras áreas, como habitação, meio ambiente, educação, dentre outras.
O art. 199 e seus parágrafos disciplinam a atuação complementar da iniciativa privada em relação à assistência prestada pelo sistema único de saúde. Frise-se que as empresas privadas deverão respeitar as diretrizes estabelecidas pelo Poder Público, cuja parceria se dará mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos (§1º). Ademais, é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos (§2º ), além de não de admitir a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei (§3º).
Na sequência, fechando os rol de artigos que tratam da saúde de forma direta no contexto da seguridade social, temos o art. 200, responsável por enumerar algumas das competências do sistema único de saúde, quais sejam: a) controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; b) executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador; c) ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde; d) participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico; e) incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico; f) fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano; g) participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos; h) colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
Feita a análise dos principais dispositivos constitucionais que tratam da saúde, é possível, pois, concluir que, embora o tratamento dado pelo legislador constituinte não seja perfeito – e, portanto, passível de críticas –, o fato é que a quantidade e o detalhamento de artigos constitucionais sobre o tema sinalizam para uma preocupação nunca antes demonstrada.
Mas aí surge o paradoxo enfrentado por milhares de juízes em todo Brasil: todo esse cipoal de normas é o bastante para obrigar o Estado a fornecer tratamentos/medicamentos – muitas vezes caríssimos – a quem deles precisar, efetivando a Constituição? Embora seja a saúde direito fundamental, é possível – e justo – garantir o tratamento de apenas uma única pessoa que, por ser muito oneroso, prejudicará o acesso à saúde de uma gama infinitamente maior de pessoas?
Pois bem. A solução para este problema não é fácil. Aliás, pode-se dizer que está longe de ser equacionada. Isso porque o Estado tem se mostrado pouco eficaz na efetivação do direito à saúde – especialmente no que se refere à prestação dessa assistência médico-farmacêutica – e isso é o que acabou gerando o fenômeno chamado de judicialização do direito à saúde. Mas tenhamos em mente que este não é um fenômeno relacionado apenas com o direito à saúde, ao revés, o que se verifica atualmente é uma verdadeira judicialização dos direitos sociais de modo geral[5]. Busca-se o Poder Judiciário para que este estabeleça a realização de determinadas políticas públicas e, com isso, concretize direitos sociais constitucionalmente previstos.
A implementação de direitos sociais por determinação do Poder Judiciário encontra limites de toda ordem, especialmente de ordem orçamentária. Daí porque tão em voga as discussões envolvendo o chamado “mínimo existencial” versus a “reserva do possível”. Não obstante tais limites, o poder público tem se utilizado de outros argumentos para ver indeferidos os pedidos ligados à concretização desses direitos via Poder Judiciário. Vejamos quais são esses argumentos.
2.1. A impossibilidade de atuação do juiz como legislador positivo.
A impossibilidade de atuação do juiz como legislador positivo é um dos argumento de que se valem os tribunais, especialmente os tribunais superiores, para barrar o fenômeno da judicialização dos direitos sociais, notadamente o direito à saúde. Na verdade, não é dado a ninguém ignorar que existe reserva de lei sempre que a Constituição prescreve que o regime jurídico de determinada matéria deva ser regulado por lei e apenas por lei, com exclusão de outras fontes normativas. A par disso, não caberia ao Poder Judiciário ampliar o alcance da norma, permitindo que pessoas excluídas de sua aplicação sejam por ela beneficiadas.
Nesse sentido, temos a lição do ilustre Ministro do STF Celso de Mello:
“O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei analisada sob tal perspectiva constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes”[6].
É preciso, pois, registrar que não concordamos com este argumento. Ou seja, a idéia de que uma atuação mais pró-ativa do Poder Judiciário, no sentido de promover a efetivação de direitos que dependem diretamente de políticas públicas bem implementadas pelo Poder Executivo, estaria a macular o princípio da separação de poderes, definitivamente, não convence. Aliás, a esse respeito já tivemos a oportunidade de nos manifestar, e assim o fizemos:
“Um dos argumentos relacionados com a implementação de políticas públicas por determinação do Poder Judiciário é a de que tal medida fere de morte o princípio da separação dos poderes, argumento este com o qual, diga-se de passagem, não concordamos. Explica-se.
A implementação de políticas públicas por determinação judicial não representa invasão de poderes nem ofensa à Constituição Federal, pois realizada dentro das peculiaridades do caso concreto e lastreada na dignidade da pessoa humana, ou seja, pela necessidade de preservação do núcleo essencial dos direitos fundamentais, em que se inserem os chamados direitos de subsistência, quais sejam, saúde, moradia, educação e alimentação. Além disso, é preciso reconhecer que a atividade implementadora do Poder Judiciário não lhe autoriza criar políticas públicas, mas apenas implementar as já existentes.
Essa atuação do Poder Judiciário, aliás, por mais paradoxal que isso possa parecer, permite uma correta leitura – e até mesmo uma confirmação – da regra da separação dos poderes, pois no sistema de “freios e contrapesos” que essa regra encerra, é cabível ao judiciário controlar os abusos (seja por ação ou por omissão) dos demais poderes no exercício de suas competências[7].”
2.2 A necessidade de previsão orçamentária
A necessidade de previsão orçamentária é outro argumento nebuloso que precisa ser enfrentado. Aliás, esta é sem dúvida a principal justificativa evocada pelo Estado – mais particularmente pelos Municípios – para evitar condenações ou mesmo suspender liminares já deferidas em ações que veiculam pedidos de fornecimento de medicamentos ou tratamentos médicos em geral. Esse argumento de que é necessária previsão orçamentária e disponibilidade material de recursos para concretização de políticas públicas de caráter social não parece mais sensibilizar os tribunais, para quem as normas de caráter programático “não podem converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado[8].”
Diante desse contexto, incide, sobre o Poder Público, a obrigação de efetivar as prestações de saúde, incumbido-lhe promover em favor da população medidas preventivas e de recuperação, que, garantidas por políticas públicas bem intencionadas, tenham como objetivo precípuo concretizar o que dispõe o art. 196 da nossa Carta Política.
É evidente que estamos diante de normas em colisão, cujos textos – cada qual – envolvem aspectos constitucionais que interferem diretamente na utilização dos recursos pelo Estado e, claro, na melhoria da qualidade de vida das pessoas. A aplicação dos recursos orçamentários pelo Poder Público é, na verdade, uma verdadeira ciência a ser estudada por diversos ramos do conhecimento como a economia, a sociologia, a matemática e o próprio Direito. Este, aliás, tratou do tema, em âmbito constitucional, nos arts. 165 a 169, prevendo, inclusive, situações de realização de despesas que excedam os créditos orçamentários (art. 167, inc. II), além da possibilidade de transposição, o remanejamento ou a transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro, sem prévia autorização legislativa (art. 167, inc. VI).
Vê-se, portanto, que o problema não é de ausência de normas a disciplinarem a forma de gastar do Poder Público. O problema talvez seja mais de gestão administrativa do que propriamente jurídico-constitucional. A verdade é que o Poder Público arrecada muito, porém, também gasta muito, e muito mal, por sinal.
Portanto, a limitação orçamentária não pode ser óbice a impedir a concretização do direito fundamental à saúde pelo Poder Judiciário que, na bela lição do Min. Celso de Mello, quando se vir dividido “entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde, que se qualifica como direito subjetivo inalienável assegurado a todos pela própria Constituição da República (art. 5º, caput e art. 196), ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, (…) impõem ao julgador uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humana[9].”
3. O princípio do mínimo existencial versus o princípio da reserva do possível
O dilema da implementação do direito à saúde no Brasil por meio do cumprimento de decisões judiciais tem suscitado discussões das mais diversas, dentre as quais se destaca o confronto direto de dois princípios: de um lado aquele que afirma ser dever do Estado garantir aos indivíduos um núcleo mínimo de direitos, sem os quais não há falar-se em vida digna; de outro, o princípio que estabelece que a atuação do Estado é limitada diante da indisponibilidade de recursos financeiros para atender e efetivar todos os direitos fundamentais sociais. Este é, pois, o famoso embate entre o mínimo existencial e a reserva do possível ou “reserva de consistência”, como prefere Peter Häberle[10].
Como se pode perceber, o conceito de mínimo existencial passa obrigatoriamente pela necessária compreensão do próprio conceito de dignidade humana.
O ilustre professor Ingo Wolfgang Sarlet, ao estudar a eficácia dos direitos fundamentais, nos propõe o seguinte conceito para a dignidade da pessoa humana:
“Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos”[11].
A dignidade da pessoa humana, insculpida no art. 1º, III, da Constituição Federal representa o valor constitucional supremo[12], o epicentro de todo o ordenamento jurídico em torno do qual gravitam as demais normas. Este valor é guarnecido por determinados direitos, como os direitos da personalidade, os direitos fundamentais e os próprios direitos sociais.
Diferentemente dos direitos da personalidade (arts. 11 a 21 do CC) e dos direitos fundamentais (art. 5º da CF), que impõem especialmente uma obrigação de não fazer ao Estado, os direitos sociais (6º da CF) impõem ao Estado a realização de prestações materiais positivas. Ocorre que a doutrina e a jurisprudência majoritárias destacam que não seriam todos os direitos sociais elencados no art. 6º da Constituição que estariam abarcados pelo conceito de direitos mínimos que permitem uma vida digna.
Ricardo Lobo Torres[13] ensina que o direito à saúde, à educação e à alimentação seriam os três pilares que sustentam o conceito de mínimo existencial. Deixar de concretizar algum desses direitos significa aportar duro golpe ao princípio da dignidade da pessoa humana. De acordo com a teoria do mínimo existencial, apenas alguns direitos sociais – uma espécie de conteúdo essencial desses direitos – apresentaria um grau de fundamentalidade apto a gerar direitos subjetivos aos respectivos titulares. O direito à saúde seria um desses direitos.
Curiosamente, porém, essa dimensão positiva dos direitos sociais tem sido usada como argumento contrário ao fenômeno da judicialização. Isso porque parte da doutrina tem entendido estar aí a característica de norma programática que envolve o art. 6º da Carta Magna. Logo, por serem normas programáticas, possuiriam alta densidade semântica e baixíssima efetividade social e jurídica. Seriam, portanto, normas pró-futuro, que se limitam a estabelecer planos e diretrizes a serem implementados por políticas governamentais.
“A dependência de recursos econômicos para a efetivação dos direitos de caráter social leva parte da doutrina a defender que as normas que consagram tais direitos assumem a feição de normas programáticas, dependentes, portanto, da formulação de políticas públicas para se tornarem exigíveis. Nesse sentido, também se defende que a intervenção do Poder Judiciário, ante a omissão estatal quanto à construção satisfatória dessas políticas, violaria o princípio da separação dos Poderes e o princípio da reserva do financeiramente possível”[14].
Em contraposição a essa intenção do Poder Judiciário de tornar efetivo o direito à saúde, surge o problema da limitação orçamentária do Estado, que é o principal argumento lastreador do princípio da reserva do possível. A idéia é simples: só se pode exigir do Estado a execução de uma prestação ou o atendimento de um interesse em benefício de alguém, desde que essa medida não onere os cofres públicos ao ponto de inviabilizar o atendimento de outras pessoas ou comprometer a implementação de políticas públicas em outras áreas sociais.
Há, porém, aqueles que divergem frontalmente do princípio da reserva do possível, pois afirmam tratar-se de teoria criada pelo Direito alemão e que em nada atende à realidade brasileira.
Nesse sentido, Andréas Krell ensina que:
“(…) o princípio da reserva do possível consiste em uma falácia, decorrente de um Direito Constitucional comparado equivocado, na medida em que a situação social brasileira não pode ser comparada àquela dos países membros da União Européia”[15].
Ainda segundo esse autor, no que tange ao direito à saúde:
“Se os recursos não são suficientes, deve-se retirá-los de outras áreas (transportes, fomento econômico, serviço da dívida) onde sua aplicação não está tão intimamente ligada aos direitos mais essenciais do homem: sua vida, integridade e saúde. Um relativismo nessa área poderia levar a ponderações perigosas e anti-humanistas do tipo ‘por que gastar dinheiro com doentes incuráveis ou terminais?[16]”
A solução para essa colisão de princípios (mínimo existencial x reserva do possível) parece mesmo sinalizar para o critério da ponderação, que deverá ser feito nos contornos de cada caso concreto. A tônica desse método está, sem dúvida, na utilização do princípio da proporcionalidade.
O eminente Min. Gilmar Mendes, ao manifestar-se sobre o assunto, assim consignou:
“(…) ante a impreterível necessidade de ponderações, são as circunstâncias específicas de cada caso que serão decisivas para a solução da controvérsia. Há que se partir, de toda forma, do texto constitucional e de como ele consagra o direito fundamental à saúde”[17].
Sobre o tema, é importante também destacar a manifestação de Ingo Wolfgang Sarlet:
“Embora tenhamos que reconhecer a existência destes limites fáticos (reserva do possível) e jurídicos (reserva parlamentar em matéria orçamentária) implicam certa relativização no âmbito da eficácia e efetividade dos direitos sociais prestacionais, que, de resto, acabam conflitando entre si, quando se considera que os recursos públicos deverão ser distribuídos para atendimento de todos os direitos fundamentais sociais básicos (…) em se tendo em conta que a nossa ordem constitucional (acertadamente, diga-se de passagem) veda expressamente a pena de morte, a tortura e a imposição de penas desumanas e degradantes mesmo aos condenados por crime hediondo, razão pela qual não se poderá sustentar – pena de ofensa aos mais elementares requisitos da razoabilidade e do próprio senso de justiça – que, com base numa alegada (e mesmo comprovada) insuficiência de recursos – se acabe virtualmente condenando à morte a pessoa cujo único crime foi o de ser vítima de um dano à saúde e não ter condições de arcar com o custo do tratamento”[18].
Não há dúvida de que a ponderação de interesses, feita nas particularidades de cada caso concreto, é a melhor forma de se aferir o grau de imprescindibilidade da concessão da tutela pelo Poder Judiciário. Nos casos em que ficar constatada a urgência da medida jurisdicional, o argumento da reserva do possível deverá ceder para que a saúde e a integridade do paciente sejam preservadas.
4. O direito à saúde e à assistência farmacêutica na legislação infraconstitucional: a Lei do SUS, o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e do Adolescente.
A Lei Orgânica da Saúde, Lei n. 8.080/90, regulamenta os artigos 196 e seguintes da Constituição Federal e dispõe nos artigos 6º, inciso I, alínea “d” e 7º, incisos I e II:
“Art. 6º. Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS):
I – a execução de ações:
d) de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica;
CAPÍTULO II
Dos Princípios e Diretrizes
Art. 7º. As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no artigo 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
I – universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II – integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema;”
Pouco tempo antes da edição da Lei n. 8.080/90, o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente já previa no §2º do seu art. 11:
“Art. 11. É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde.
§ 2º Incumbe ao poder público fornecer gratuitamente àqueles que necessitarem os medicamentos, próteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.”
Em 1º de outubro de 2003 foi editada a Lei n. 11.741, Estatuto do Idoso, que dispõe:
“15. É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso universal e igualitário, em conjunto articulado e contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incluindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.
§ 2o Incumbe ao Poder Público fornecer aos idosos, gratuitamente, medicamentos, especialmente os de uso continuado, assim como próteses, órteses e outros recursos relativos ao tratamento, habilitação ou reabilitação.”
Vê-se, portanto, que a legislação infraconstitucional garante expressamente não só a assistência farmacêutica, como também o fornecimento de “insumos terapêuticos” (tais como órteses, próteses, cadeiras de rodas, marcapassos, etc.). Neste último caso, a previsão legal destina-se tão só às crianças, adolescentes e idosos, que por explícita previsão constitucional possuem tratamento prioritário em nossa sociedade.
Com vistas a promover a assistência farmacêutica no âmbito do SUS – Sistema Único de Saúde, o Ministério da Saúde, com arrimo nessa legislação infraconstitucional, formula uma listagem de medicamentos que devem estar disponíveis em toda rede, à qual atribui a designação “Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – Rename”.
A formulação dessa listagem, bem como sua atualização periódica – que é ditada expressamente pela política nacional de medicamentos, instituída pela Portaria MS 3916/98, observa as patologias e agravos à saúde mais relevantes e prevalentes, respeitadas as diferenças regionais do país, e leva em consideração diversos critérios, tais como: a demonstração da eficácia e segurança do medicamento; a vantagem com relação à opção terapêutica já disponibilizada (maior eficácia ou segurança ou menor custo); e o oferecimento de concorrência dentro do mesmo subgrupo, como estratégia de mercado.
A Portaria n. 698/GM, de 30 de maio de 2006, que “Define que o custeio das ações de saúde é de responsabilidade das três esferas de gestão do SUS, observado o disposto na Constituição Federal e na Lei Orgânica do SUS”, dispõe:
“Art. 1º Definir que o custeio das ações de saúde é de responsabilidade das três esferas de gestão do SUS, observado o disposto na Constituição Federal e na Lei Orgânica do SUS.
Art. 2º Os recursos federais destinados ao custeio de ações e serviços de saúde passam a ser organizados e transferidos na forma de blocos de financiamento.
Parágrafo único. Os blocos de financiamento são constituídos por componentes, conforme as especificidades de suas ações e os serviços de saúde pactuados.
Art. 3º Ficam criados os seguintes blocos de financiamento:
I – Atenção Básica;
II – Atenção de Média e Alta Complexidade Ambulatorial e Hospitalar;
III – Vigilância em Saúde;
IV – Assistência Farmacêutica; e
V – Gestão do SUS.
DO BLOCO DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA
Art. 16. O Bloco de Financiamento para a Assistência Farmacêutica é constituído por quatro componentes: Componente Básico da Assistência Farmacêutica; Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica; Componente Medicamentos de Dispensação Excepcional e Componente de Organização da Assistência Farmacêutica.”
Vê-se, diante disso, que afora essa relação de medicamentos básicos existem diversos programas de distribuição de medicamentos na rede pública, voltados para segmentos específicos.
Não existe disciplina parecida para os “insumos terapêuticos” de que tratam o ECA e o Estatuto do Idoso. Ou seja, não há critérios objetivos/jurídicos para definir quais são esses insumos e/ou os critérios de seu fornecimento.
4.1. A distribuição de competências entre os entes federativos
Conforme já mencionado alhures, a organização do Sistema Único de Saúde se dá mediante uma divisão administrativa regionalizada e hierarquizada com base no critério da complexidade das ações e serviços (inc. II do art. 7º da Lei n. 8.080/90).
Cabe aos Municípios, nesse contexto, a concretização de ações e serviços de menor complexidade, aos Estados os de média e alta complexidade e à União os de alta complexidade. É o que se depreende dos artigos 8º e seguintes da Lei n. 8.080/90, bem como da interpretação sistemática desse diploma legal e de todos os outros atos normativos que disciplinam a assistência à saúde.
Paralelamente existe um sistema de financiamento dessa atuação Estatal, pautado por critérios diversos dos que ditam a divisão de atribuições de ações e serviços. Ou seja, não é só a complexidade das ações e serviços que dita a aplicação e o repasse de verbas destinadas à saúde, mas também critérios como a densidade populacional e a arrecadação tributária.
Não raro essa divergência de critérios acarreta discrepâncias que tornam inviáveis ou ineficazes políticas públicas de saúde.
Isso ocorre, por exemplo, nos Municípios que se consubstanciam em pólos regionais de prestação de serviços, nos quais o Estado atua custeando ações e serviços de alta complexidade – subsidiando hospitais secundários e terciários, por exemplo – sem se desvincular das obrigações financeiras que tem para com os serviços de pequena complexidade prestados pela esfera municipal.
No tocante ao fornecimento de medicamentos, em princípio, o raciocínio aplicado é o mesmo: cabe aos municípios o fornecimento de medicamentos básicos e aos Estados e à União os de média e alta complexidade.
Fica a cargo dos Estados, por exemplo, a dispensação dos medicamentos denominados “excepcionais”.
Não obstante essa divisão administrativa, o Poder Judiciário brasileiro vem se posicionando no sentido de que a responsabilidade pelo fornecimento de medicamentos é solidária entre as três esferas de poder, independentemente das atribuições/divisões administrativas ditadas pela legislação infraconstitucional.
Recentemente a Presidência do Supremo Tribunal Federal proferiu diversas decisões nesse sentido, a exemplo do consignado na Suspensão de Segurança nº 3158, formulada pelo Estado do Rio Grande do Norte em face de acórdão proferido pelo TJRN nos autos do Mandado de Segurança nº 2006.005996-0 (fls. 121-136):
“Finalmente, ressalte-se que a discussão em relação à competência para a execução de programas de saúde e de distribuição de medicamentos não pode se sobrepor ao direito à saúde, assegurado pelo art. 196 da Constituição da República, que obriga todas as esferas de Governo a atuarem de forma solidária”[19].
Tal posicionamento traduz a idéia de que a repartição de atribuições havida entre as três esferas de poder não pode ser imposta em detrimento do direito à saúde titularizado pelo cidadão.
Embora essa solidariedade seja defendida, predominantemente, sob o argumento de que o direito à saúde, enquanto direito fundamental, deve prevalecer sobre os demais, também é possível sustentá-la com base na hierarquização de fixação de atribuições.
Ou seja, cabe aos entes políticos, sobretudo à União e aos Estados, definir as ações e serviços sociais de alta complexidade.
Embora a lei permita a participação de todos os entes e da própria sociedade na formulação das políticas públicas, é fato que as diretrizes principais são ditadas pela União e, no caso da assistência farmacêutica, não é diferente.
Não parece coerente afastar a União e o Estado da responsabilidade de prestar a assistência farmacêutica – em especial na hipótese de medicamentos excepcionais – quando são eles que estabelecem quais medicamentos devem ser fornecidos.
Da mesma forma, não parece correta a interpretação que afasta a responsabilidade dos Municípios com base na hierarquia inerente ao sistema. Primeiro, porque essa hierarquia não exclui a solidariedade havida entre os entes estatais, ditada pela própria Constituição Federal; segundo porque não nos parece coerente afastar, de forma prematura e peremptória, a responsabilidade do Município quando há situações em que esses entes são flagrantemente beneficiados pela atuação do Estado e da União em grandes centros populacionais e/ou quando se evidencia a negligente aplicação de recursos.
5. A efetivação do direito à saúde e à assistência farmacêutica mediante intervenção do Poder Judiciário: critérios.
Nem sempre a assistência farmacêutica implementada pelo Poder Público atende às necessidades do paciente, ora porque as peculiaridades da moléstia exigem medicamentos especiais e/ou tornaram ineficazes os medicamentos constantes da listagem, ora porque houve falha na atualização da Rename. Não raro, a assistência farmacêutica também falha por questões administrativas, tal como entraves no procedimento de aquisição ou distribuição do medicamento.
O inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
A falta ou deficiência dos serviços de saúde prestados pelo Estado – incluídos nessa prestação a assistência farmacêutica e o fornecimento de insumos terapêuticos, conforme visto alhures – sem dúvida nenhuma ameaça o direito à vida e, em muitos casos, é capaz de produzir lesão irreparável a esse direito.
Dentro desse contexto, é legítima a intervenção jurisdicional que visa a afastar lesão ou ameaça a esse direito, conforme já demonstrado acima.
Inúmeras são as ações ajuizadas com o fim de coagir o Estado a prestar atendimento farmacêutico e, na maioria delas, nota-se um desvirtuamento na utilização dos instrumentos processuais postos pela lei à disposição da sociedade.
Esse desvirtuamento muitas vezes decorre da falta de informação dos operadores do direito, no que diz respeito às políticas públicas de saúde e aos aspectos técnicos que envolvem a prescrição medicamentosa, outras vezes decorre da má-fé de profissionais médicos e da indústria farmacêutica.
O secretário da saúde do Estado de São Paulo, Dr. Luiz Roberto Barradas Barata, revela a preocupação com esse desvirtuamento:
“Nos últimos anos, o avanço da indústria farmacêutica tem sido notório. Entretanto, muitos produtos recém-lançados possuem, em maior ou menor grau, eficácia similar à de remédios já conhecidos, disponíveis no mercado e inclusos na lista de distribuição da rede pública de saúde. No entanto, os novos remédios custam muito mais que os atualmente padronizados pelo SUS. Outros produtos, comercializados fora do Brasil ou ainda em fase de testes, não possuem registro no país e não devem ser distribuídos pelo SUS, pois podem pôr em risco a saúde de quem os consumir. São justamente esses medicamentos que o Estado mais vem sendo obrigado a fornecer por pedidos na Justiça. É importante ressaltar que a entrega de medicamentos por decisão da Justiça compromete a dispensação gratuita regular, já que os governos precisam remanejar recursos vultosos para atender situações isoladas. Em São Paulo, a Secretaria da Saúde gasta cerca de R$ 300 milhões por ano para cumprir ações judiciais para distribuição de remédios não padronizados de eficácia e necessidade duvidosas. Com esse valor é possível construir seis hospitais de médio porte por ano, com 200 leitos cada. Além de medicamentos, o Estado vê-se obrigado a entregar produtos como iogurtes, requeijão cremoso, queijo fresco, biscoitos, adoçante, leite desnatado, remédio para disfunção erétil, mel e xampu, dentre outros itens. Em 2004, por exemplo, chegou a ter de custear, por força de decisão judicial, a feira semanal para morador da capital”[20].
Dentro desse contexto, algumas cautelas ou critérios devem ser observados no manejo dos mecanismos processuais que viabilizam a intervenção jurisdicional na efetivação da assistência farmacêutica pelo Poder Público, a fim de se evitar prejuízos ao Sistema Único de Saúde e, conseqüentemente, à própria população. Sugerimos alguns deles, a saber:
a) Observância do princípio ativo prescrito
Tradicionalmente os médicos brasileiros prescrevem medicamentos mediante a indicação do respectivo nome comercial.
Esse hábito passou a ser insistentemente combatido pelo Poder Público, sobretudo após a edição da Lei nº 9.787/99, que, ao estabelecer o medicamento genérico e dispor sobre a utilização de nomes genéricos em produtos farmacêuticos, proibiu a prescrição pelo nome comercial, na forma do seu art. 3º, que prevê: “As aquisições de medicamentos, sob qualquer modalidade de compra, e as prescrições médicas e odontológicas de medicamentos, no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS, adotarão obrigatoriamente a Denominação Comum Brasileira (DCB) ou, na sua falta, a Denominação Comum Internacional (DCI)”.
Ainda assim, não raro algumas receitas veiculam o nome comercial e o paciente que ajuíza ação, pleiteando a condenação do Poder Público a fornecer-lhe o medicamento, formula seu pedido com base no nome comercial, tal como foi prescrito na receita.
A condenação do Estado no fornecimento de medicamento prescrito pelo nome comercial pode acarretar grandes prejuízos, pois é possível que o Poder Público disponibilize regularmente o mesmo remédio, porém ele não detém a designação prescrita pelo fato de ter sido fabricado por laboratório diverso.
Nesse contexto, é de bom alvitre que a formulação do pedido seja feita com base no princípio ativo do medicamento e, na hipótese de não o ser, é imprescindível que o magistrado atente para a possibilidade do medicamento estar previsto na listagem do Ministério da Saúde.
b) Observância da existência de registro do medicamento pleiteado
Em atendimento à política nacional de medicamentos, instituída pela Portaria MS 3916/98, a prescrição de medicamentos no âmbito do SUS deve observar o “Formulário Terapêutico Nacional”, que tem por fim orientar os profissionais de saúde quanto ao manuseio de produtos farmacêuticos disponíveis no mercado.
Sem prejuízo dessa imposição do Poder Público, temos que, de uma maneira geral, tanto os profissionais vinculados à rede pública de saúde quanto os que atuam exclusivamente no setor privado devem observar a legislação brasileira pertinente aos produtos farmacêuticos.
A comercialização de um composto medicamentoso no território brasileiro pressupõe sua aprovação e registro no Ministério da Saúde, conforme dispõe o art. 12 da Lei 6.360/76, pois a natureza e a finalidade dessa espécie de substância exigem o monitoramento de sua segurança, eficácia e qualidade terapêutica.
Esse registro é definido pelo inciso XXI do art. 3º do Decreto nº 79.094/77, na redação que lhe foi atribuída pelo Decreto nº 3.961/01, a saber:
“XXI – Registro de Medicamento – Instrumento por meio do qual o Ministério da Saúde, no uso de sua atribuição específica, determina a inscrição prévia no órgão ou na entidade competente, pela avaliação do cumprimento de caráter jurídico-administrativo e técnico-científico relacionada com a eficácia, segurança e qualidade destes produtos, para sua introdução no mercado e sua comercialização ou consumo;”
Atualmente, a entidade competente para proceder a essa inscrição – bem como a sua alteração, suspensão e cancelamento – é a Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, na forma das disposições da Lei nº 9.782/99 e da Lei nº 6.360/76.
Assim, tanto o profissional médico, quando da prescrição, quanto o magistrado, quando da apreciação do pedido de fornecimento formulado em sede de ação judicial, devem atentar para a existência de registro do medicamento na Anvisa/MS.
Não obstante, em algumas hipóteses, a inexistência de registro não impede a prescrição e, conseqüentemente, não impede a condenação judicial do Poder Público no fornecimento da substância.
Existem substâncias modernas e eficazes no tratamento de determinadas doenças – em especial no tratamento de doenças raras e/ou graves – que são utilizadas há anos em diversos países (após terem sido aprovadas pelos respectivos órgãos de vigilância, a exemplo da FDA – Food and Drug Administration, nos Estados Unidos da América), mas não são vendidas ou produzidas no Brasil porque não tiveram concluído seu processo de registro na Anvisa/MS, cuja tramitação é demasiadamente morosa.
Essa morosidade é, inclusive, reconhecida pelo Poder Público, e levou a Anvisa a editar a Resolução RDC nº 28/2007, publicada no Diário Oficial de 5/4/2007, que visa legitimar as priorizações de análise de petições no âmbito da área de medicamentos, de acordo com a relevância do interesse público representado nas petições, e dar transparência a esses procedimentos. Nos termos dessa resolução, haverá prioridade de análise das petições de registro de medicamentos que façam parte da lista de medicamentos excepcionais.
Na edição nº 231, de novembro/2006, do jornal do Cremesp – Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, em matéria publicada sob o título “Medicina e Justiça”, o Dr. Desiré Carlos Callegari, presidente daquele conselho, afirmou:
“Se por um lado é proibido prescrever medicamento não reconhecido pela Anvisa, a demora em conceder o registro acaba estimulando ações judiciais”. Parte dos medicamentos não são aprovados por falta de comprovação efetiva de segurança e eficácia, levantando dúvidas sobre a prescrição. Mas alguns já estão aprovados por agências reguladoras de outros países, por exemplo o FDA norte-americano. “Alguns medicamentos representam um real avanço na medicina, que mudam dramaticamente o curso de doenças graves”[21].
Não há sentido, portanto, para justificar a impossibilidade de fornecimento do medicamento prescrito apenas pelo fato de seu registro ainda não ter sido concluído.
Há hipóteses, ainda, em que a necessidade de registro é afastada pela própria lei. Com efeito, dispõe o artigo 24, da Lei 6.360/76: “Estão isentos de registro os medicamentos novos, destinados exclusivamente a uso experimental, sob controle médico, podendo, inclusive, ser importados mediante expressa autorização do Ministério da Saúde”.
Não é impossível imaginar que um paciente, acometido por uma doença rara e degenerativa cujos medicamentos existentes para seu tratamento sejam ineficazes, pleiteie em juízo a condenação do Poder Público a lhe fornecer medicamento novo existente no Brasil ou no exterior, em fase experimental, que traduza esperança de tratamento. Nesse caso, atendidas as demais regulamentações pertinentes a tratamento da espécie, a inexistência de registro na Anvisa – dispensada pela própria lei – não impediria essa condenação.
Dessa forma, a inexistência de registro do princípio ativo pleiteado em ação judicial não consubstancia causa de indeferimento do pedido, caso a existência de protocolo de registro na Anvisa e/ou as demais circunstâncias trazidas aos autos sejam suficientes para que o magistrado forme sua convicção. Tal dispensa de registro, assinale-se, deve ser exceção e não regra.
c) Observância da pertinência da prescrição no tratamento do paciente
O fornecimento de medicamento pelo Estado, seja administrativamente, por meio dos programas de assistência farmacêutica, seja como decorrência de determinação judicial, não pode perder de vista a preocupação com a racionalização no consumo, ditada pela política nacional de medicamentos e pelas demais normas pertinentes.
Além disso, infelizmente a utilização do processo judicial como instrumento de efetivação da assistência farmacêutica tornou-se alvo da “indústria da ação judicial”, na qual atuam profissionais médicos, advogados e laboratórios. De acordo com informação do Cremesp, recentemente a Secretaria Estadual da Saúde do Estado de São Paulo obteve autorização judicial para retirar da frente do Hospital das Clínicas de São Paulo uma faixa de publicidade que dizia “Medicamento gratuito é um direito seu. Procure um advogado. Ligue para o número tal”[22].
Assim, é imprescindível que o magistrado verifique se a prescrição médica é condizente com o diagnóstico da moléstia que acomete o paciente e com os tratamentos a que ele já se submeteu, bem como é necessário constatar se a emissão de receita foi efetuada por profissional habilitado e especialista no trato de problemas da espécie e se a dosagem prescrita atende as finalidades do tratamento.
Em alguns casos os medicamentos de alto custo são prescritos independentemente da existência – e disponibilidade no âmbito do SUS – de outros medicamentos que podem produzir os mesmos resultados no tratamento da doença. Isso não significa que a utilização de todo e qualquer medicamento disponível nos programas governamentais de assistência farmacêutica, antes do ajuizamento de ação para obtenção de medicamento de alto custo, constitua um critério objetivo a ser utilizado pelo magistrado, pois a variabilidade das condições do organismo e da saúde humanos impossibilita a aplicação desse tipo de critério.
No entanto, é prudente que o magistrado verifique, no caso concreto, as peculiaridades do tratamento, com a finalidade de impedir que o Poder Judiciário ratifique prescrições negligentes e tratamentos inócuos.
A verificação da habilitação do médico para prescrever o medicamento pleiteado é necessária não só para a constatação da pertinência do tratamento – presume-se que um médico especialista formule prescrições coerentes e racionais – mas também para coibir o uso desvirtuado do processo judicial. A verificação da dosagem prescrita também tem essa finalidade.
Os limites da má-fé do ser humano não são passíveis de conhecimento – se é que eles existem – e não é exagero imaginar que o processo judicial seja utilizado com fins escusos, a exemplo da tentativa de introduzir medicamentos novos no mercado em virtude de interesses econômicos, ou da tentativa de obter gratuitamente grande dosagem, que possa ser comercializada informal e irregularmente.
d) Observância dos programas de assistência farmacêutica do SUS – Sistema Único de Saúde
Pode ser que o medicamento prescrito, e solicitado perante o Poder Judiciário, não conste da Rename, mas figure na listagem de algum programa do Ministério da Saúde ou do Governo do Estado.
Exemplificativamente, consideremos o programa de medicamentos de dispensação excepcional, cuja listagem atende aos critérios da Portaria MS 2777, de 27 de outubro de 2006. Essa norma prevê a inclusão do denominado Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional (CMDE) na Política Nacional de Assistência Farmacêutica do Sistema Único de Saúde.
“PORTARIA Nº 2.577, DE 27 DE OUTUBRO DE 2006
Aprova o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional.
O MINISTRO DE ESTADO DA SAÚDE, no uso de suas atribuições, e
Considerando as diretrizes estabelecidas pela Política Nacional de Medicamentos, constante da Portaria nº 3.916/GM de 30 de novembro de 1998;
Considerando os princípios e eixos estratégicos definidos pela Política Nacional de Assistência Farmacêutica aprovada pela Resolução nº 338, de 2004, do Conselho Nacional de Saúde;
Considerando a necessidade de aprimorar os instrumentos e estratégias que asseguram e ampliam o acesso da população aos serviços de saúde, incluído o acesso aos medicamentos em estreita relação com os princípios da Constituição e da organização do Sistema Único de Saúde;
Considerando as Portarias nº 399/GM, de 22 de fevereiro de 2006, que Divulga o Pacto pela Saúde e nº 698/GM, de 30 de março de 2006, – Organização dos recursos federais de custeio em Blocos de Financiamento; e
Considerando a pactuação na reunião da Comissão Intergestores Tripartite do dia 5 de outubro de 2006,
R E S O L V E:
Art. 1º Aprovar o Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional, como parte da Política Nacional de Assistência Farmacêutica do Sistema Único de Saúde, conforme termos constantes do Anexo I a esta Portaria. (…)
ANEXO I
I – DA CONSTITUIÇÃO DO COMPONENTE DE MEDICAMENTOS DE DISPENSAÇÃO EXCEPCIONAL
1. O Componente de Medicamentos de Dispensação Excepcional (CMDE) caracteriza-se como uma estratégia da política de assistência farmacêutica, que tem por objetivo disponibilizar medicamentos no âmbito do Sistema Único de Saúde para tratamento de agravos inseridos nos seguintes critérios:
1.1. doença rara ou de baixa prevalência, com indicação de uso de medicamento de alto valor unitário ou que, em caso de uso crônico ou prolongado, seja um tratamento de custo elevado; e
1.2. doença prevalente, com uso de medicamento de alto custo unitário ou que, em caso de uso crônico ou prolongado, seja um tratamento de custo elevado desde que:
1.2.1. haja tratamento previsto para o agravo no nível da atenção básica, ao qual o paciente apresentou necessariamente intolerância, refratariedade ou evolução para quadro clínico de maior gravidade, ou
1.2.2. o diagnóstico ou estabelecimento de conduta terapêutica para o agravo estejam inseridos na atenção especializada.”
Dessa forma, não só os magistrados, mas também os advogados, defensores públicos e promotores de justiça devem estar atentos a todas as listagens de medicamentos dos programas de assistência farmacêutica do SUS.
Não há duvidas, portanto, de que os operadores do direito devem observar as questões técnicas afetas à área da saúde, sob pena de majoração das conseqüências negativas advindas da má-utilização do processo. Para tanto, o ideal é que sejam eles assessorados por profissionais da área da saúde.
Diz-se “operadores do direito” porque essa preocupação não deve ser somente dos magistrados, mas também daqueles que, dotados de capacidade postulatória, formulam as pretensões perante o Poder Judiciário.
Embora o foco da problemática seja a saúde do paciente litigante e a deficiência das políticas públicas de assistência farmacêutica, não é exagero lembrar que a atividade jurisdicional também prima pela efetividade e pela preservação do patrimônio público. Daí a afirmação de que a observância, já na propositura da ação, das cautelas necessárias mencionadas neste trabalho pode, em muitos casos, evitar a demanda judicial ou, no mínimo, evitar que ela se prolongue no tempo, causando prejuízos ao paciente e ao erário.
6. Instrumentos processuais disponíveis.
Diversos são os mecanismos processuais que podem ser manejados pelo paciente que pleiteia a assistência farmacêutica perante o Poder Judiciário.
Freqüentemente são utilizados: a ação civil pública, disciplinada pela Lei n. 7347/85; o mandado de segurança; e as ações condenatórias de obrigação de fazer ou de obrigação de dar.
A ação civil pública, cuja legitimação para propositura é ditada pelo art. 5º da Lei n. 7347/85[23], é destinada à tutela de interesses difusos, coletivos e/ou individuais homogêneos. Trata-se de instrumento de tutela coletiva de direitos e pressupõe, portanto, a representação de um grupo de pessoas – ora indeterminado, ora determinado ou determinável – por um legitimado extraordinário (figura que excepciona a regra do art. 6o do Código de Processo Civil).
Via de regra esse legitimado extraordinário, a despeito do rol de legitimados ditado pelo já mencionado art. 5º da Lei n. 7347/85, é o Ministério Público.
Entretanto, as ações civis públicas propostas pelo parquet não raro veiculam interesse de um único paciente, ou de um grupo determinado e restrito.
Não se questiona da legitimidade do Ministério Público para representar em juízo um único paciente que pleiteie assistência farmacêutica do Estado, uma vez que o caput do art. 127 da Constituição Federal lhe atribuiu legitimidade para defender direitos individuais indisponíveis: “O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”.
Por outro lado, quando manejada com observância da proporcionalidade, preservando o equilíbrio entre as regras e princípios que informam nosso ordenamento, a ação civil pública afigura-se como eficiente mecanismo de combate à ineficácia do Poder Público na implementação de políticas públicas, beneficiando segmentos sociais hipossuficientes e estimulando a atuação estatal.
Diversos são os exemplos nesse sentido, como demonstra a ementa abaixo transcrita, extraída de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
“AÇÃO CIVIL PÚBLICA – Obrigação de fazer – Implantação por parte do Município e do Estado de programa de atendimento à criança e ao adolescente portador de “diabetes mellitus” e ao fornecimento de medicamentos e materiais necessários ao controle da doença – Carência da ação – Ilegitimidade passiva “ad causam” – Inocorrência – Competência administrativa concorrente da União, do Estado e do Município para cuidar da saúde pública – Inteligência dos artigos 23, II, e 198, I, da Constituição Federal e 4º e 9º da Lei n. 8.080/90 – Preliminar rejeitada. (Apelação n. 513.556-5/0 – Bauru – 1ª Câmara de Direito Público – Relator: Renato Nalini – 19.12.06 – V.U. – Voto n. 12.482).”
O mandado de segurança, por sua vez, está previsto no inc. LXIX do art. 5º da Constituição Federal, que dispõe que “conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por “habeas-corpus” ou “habeas-data”, quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público”.
As Leis n. 1533/51 e 4348/64 disciplinam o processo de mandado de segurança.
Segundo o Prof. Hely Lopes Meirelles o mandado de segurança pode ser definido como “o meio constitucional posto à disposição de toda pessoa física ou jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça”.[24]
O mandado de segurança é uma ação constitucional de natureza civil, cujo objetivo é a proteção de direito líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão, por ato ou omissão de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
Para impetração do mandado de segurança é necessário que tenha havido violação ou grave ameaça a direito líquido e certo, como decorrência de ato ilegal ou abusivo de autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público.
Acerca do direito líquido e certo ensina Pedro Lenza:
“O direito líquido e certo é aquele que pode ser demonstrado de plano, através de prova pré-constituída, sem a necessidade de dilação probatória. Trata-se de direito “manifesto na sua existência, delimitado na sua extensão e apto a ser exercido no momento de sua impetração”.
Importante lembrar a correção feita pela doutrina em relação à terminologia empregada pela Constituição, na medida em que todo o direito, se existente, já é líquido e certo. Os fatos é que deverão ser líquidos e certos para cabimento do writ”[25].
O direito à saúde é direito social, qualificado na ordem internacional como direito de 2ª geração, caracterizando-se pela necessidade de uma atuação positiva e programática do Estado.
Não obstante, está intimamente ligado ao direito à vida, que consubstancia norma de aplicabilidade imediata.
Nesse contexto, vem se dispensando ao direito à assistência farmacêutica o caráter de direito líquido e certo ou de norma constitucional de aplicabilidade imediata.
Ocorre que não é possível atribuir à prescrição médica o caráter absoluto que se vem dispensando ao direito à assistência medicamentosa.
Isso porque a adequação e a lisura da prescrição, bem como sua observância às peculiaridades do caso concreto e à legislação pertinente, demandam vasta produção de prova.
Além disso, a negativa de fornecimento de medicamento normalmente está amparada por atos infralegais ou pela legislação infraconstitucional.
Exemplo disso é a negativa de fornecimento de medicamento a pacientes que não são atendidos pelo SUS, ou a recusa de medicamentos que não possuem registro na ANVISA.
Não obstante, essa via é amplamente utilizada, sobretudo em virtude da celeridade do procedimento. Não a recomendamos, no entanto, pois, na prática forense, tem trazido mais empeços do que vantagens.
As ações condenatórias de obrigação de fazer ou de obrigação de dar são ações comuns, disciplinadas pelo Código de Processo Civil, normalmente de rito ordinário. Considerando que na maioria dos casos o medicamento pleiteado judicialmente possui alto custo, raro que se veja uma ação tramitando pelo rito sumário. Não é difícil imaginar, entretanto, a tramitação de ação da espécie pelo rito sumário quando a pretensão deduzida diz respeito aos denominados “insumos terapêuticos”. O dia-a-dia do foro mostra, entretanto, que o rito sumário, que, de regra, exige a designação de audiência, desenvolve-se mais lentamente do que o ordinário; dai a preferência por este.
Como visto alhures, a legislação que prevê o fornecimento desses “insumos terapêuticos” contém cláusulas abertas, atribuindo ao intérprete o dever de identificar e estabelecer o conteúdo da prestação. Dentro desse contexto, são comuns as ações em que se pleiteia, por exemplo, fraldas[26]. Considerando a natureza do objeto, não é de se estranhar que o valor da causa determine a tramitação pelo rito sumário.
O ajuizamento desse tipo de ação pelo rito sumaríssimo, ditado pelas Leis n. 9099/95 e n. 10259/01, é impossível, já que as pessoas jurídicas de direito público não podem ser parte nas ações promovidas perante os Juizados Especiais.
A competência, seja qual for o mecanismo processual adotado, será da Justiça Estadual quando a ação for promovida em face da Fazenda Estadual e/ou da Fazenda Municipal, ou em face de ato de autoridade estadual e/ou municipal. Quando a União figurar no pólo passivo, quer isoladamente, quer solidariamente aos demais entes, a competência para apreciar o feito será da Justiça Federal.
Quando se tratar de mandado de segurança, não se pode olvidar das regras de foro por prerrogativa de função.
Nas comarcas onde há vara da fazenda pública a ação deve ser a ela dirigida; nas demais, a ação tramita perante vara cível comum. Desnecessário promover a demanda perante o foro da capital quando a ação for promovida em face do Estado, uma vez que, ante a sua desconcentração (inerente ao próprio sistema único de saúde), a competência de juízo diverso pode ser ditada tanto pelo lugar em que ocorreram os fatos que deram causa à ação (na hipótese, a prestação de atendimento médico, a prescrição medicamentosa), como em virtude de o Estado possuir domicílio no local.
No Estado de São Paulo, quando do ajuizamento da ação em face da Fazenda Estadual, há que se atentar para o fato de que a citação deve ser requerida e efetivada na pessoa do procurador geral do Estado, como estabelecem os artigos 2º, I, e 5º, V, da Lei Orgânica da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, Lei Complementar n. 478/86.
Em qualquer dos procedimentos adotados, é possível a concessão de tutela de urgência, aí compreendidas as liminares, cautelares e antecipações de tutela.
Não se questiona mais do cabimento da antecipação de tutela em face da Fazenda Pública, como outrora. Os argumentos invocados para justificar a negativa de concessão de uma tutela de urgência foram superados pelo tempo e pela constitucionalização do processo civil.
Assim, observados os requisitos legais (no caso da antecipação de tutela, os artigos 273, 461 e 461-A do CPC), perfeitamente cabível a concessão de tutelas de urgência a casos da espécie – fato que ratifica a impropriedade da utilização do mandado de segurança para pleitear a assistência farmacêutica, conforme mencionamos acima.
Aplica-se, quanto ao sistema recursal, os mecanismos próprios a cada espécie de ação adotada. De se ressaltar o cabimento, inclusive, de Recurso Extraordinário, ratificado pelo Supremo Tribunal Federal quando do reconhecimento de repercussão geral da matéria[27].
7. Experiências inovadoras.
Grande parte dos critérios mencionados no capítulo 5 deste breve estudo está intrinsecamente relacionada com aspectos técnicos da política pública de fornecimento de medicamentos e do próprio exercício da medicina.
Diante disso, é necessário que os operadores do direito – sobretudo o magistrado – cerquem-se de profissionais habilitados a auxiliá-los na instrução do processo judicial.
Paulo César Salomão, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, propõe um modelo de atuação do Poder Judiciário, nos processos atinentes a saúde, consubstanciado na criação de um conselho composto por juristas e médicos renomados, que prestariam assessoria aos magistrados nas questões relativas à saúde em geral – e não só nas ações destinadas a compelir o Estado a fornecer medicamentos. O conselho funcionaria no âmbito do Tribunal de Justiça, em caráter permanente, ou seja, vinte quatro horas por dia.
No tocante ao fornecimento de medicamento, propõe ele também a criação de uma “Central de Medicamentos”, composta por representantes da União, do Estado e do Município, a quem será encaminhado todo e qualquer pedido de fornecimento de medicamento e a quem caberia direcionar os referidos pedidos às respectivas esferas de governo responsáveis.
Com efeito, aduz o eminente desembargador em entrevista concedida à jornalista Giselle Souza, do Jornal do Commercio/RJ:
“O que seria essa central de medicamentos?
A central seria composta por representantes da União, do Estado e do município. Tem medicamentos que podem ser importados apenas pela União, outros pelo Estado e outros pelo município. Então a central dirigiria o pedido a quem pode efetivamente atender. Aqui no Rio, iria integrar a central, os secretários municipal e estadual da saúde, bem como um representante do Ministério da Saúde. Todos já estão de acordo com a criação da central. Até porque para eles também é vantajoso. Eles alegam que uma decisão que determina o fornecimento de um medicamento, sob pena de prisão, acaba obrigando-os a comprar o produto sem licitação. Eles não querem isso. Querem algo mais programado. Eles querem saber quais remédios precisarão ser fornecidos para que possam comprá-los com antecedência, por meio da elaboração de uma previsão acerca de quanto seria necessário para adquiri-los. Assim o juiz, ao analisar o pleito do cidadão que esgotou todos os meios na esfera administrativa e, por essa razão, acabou indo para o Judiciário, saberá a quem recorrer para atender ao pedido. É que o magistrado terá uma relação do material em posse da central. Dessa forma, evitaríamos a ação judicial. A central funcionaria como um órgão de conciliação, princípio básico e moderno de solucionar os litígios.
Quem participará dessa central?
– A princípio o Estado e o município do Rio, bem como um representante da União. Queremos, no entanto, estender a central para as demais cidades do Estado”[28].
No Estado de São Paulo, especificamente na comarca de Ribeirão Preto, surgiu iniciativa – desenvolvida e aprimorada por representantes do Poder Judiciário, do Ministério Público e do Setor Público de Saúde[29] – que vem otimizando a prestação jurisdicional de assistência farmacêutica no município ao coibir abusos e racionalizar o atendimento das demandas.
A divisão administrativa da Secretaria de Estado da Saúde se faz pelos Departamentos Regionais de Saúde – DRS, atendendo ao Decreto nº 51.433, de 28 de dezembro de 2006. Por meio desse decreto o Estado de São Paulo foi dividido em dezessete Departamentos de Saúde, que são responsáveis por coordenar as atividades da Secretaria de Estado da Saúde no âmbito regional e promover a articulação intersetorial com os municípios e organismos da sociedade civil.
No âmbito do DRS XIII, no qual o município de Ribeirão Preto está compreendido, funciona uma comissão multidisciplinar, denominada “Comissão de Análise de Solicitações Especiais”, à qual o Poder Judiciário requisita informações para aferição das cautelas necessárias ao deferimento do pedido do paciente. Tal Comissão constitui-se de médicos, farmacêuticos e nutricionistas e alberga profissionais das secretarias estadual e municipal de saúde e do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), campus Ribeirão Preto.
Os dados a serem analisados pela aludida comissão são fornecidas pelo próprio paciente, ou por seu advogado, mediante o preenchimento de um formulário padrão, no qual existe, inclusive, um campo destinado ao esclarecimento da urgência do medicamento – constatada pelo diagnóstico e pelo estágio da moléstia – a fim fornecer subsídios para apreciação de pedidos de liminares, antecipações de tutela e provimentos cautelares.
O formulário, elaborado com vistas a observar os critérios de racionalização que indicamos no presente trabalho, são encaminhados à comissão por meio de e-mail ou fac-símile, a fim de agilizar o procedimento, e o magistrado concede um prazo, normalmente pequeno, para que a comissão se manifeste.
Conforme mencionado, o sistema vem racionalizando a utilização do processo como instrumento de efetivação da assistência farmacêutica que deve ser prestada pelo Estado, não só sob aspecto da celeridade e economia processuais – que consubstanciam direito fundamental, na forma do inciso LVIII da Constituição Federal – mas em especial no tocante à justiça das decisões.
8. Conclusão
A discussão sobre a concretização de direitos fundamentais sociais pelo Poder Judiciário não deve residir no fato de se saber se os juízes tem ou não legitimidade para proferir tais decisões contra o Poder Público. Aliás, antes fosse apenas essa a preocupação que envolvesse esse tema.
Na verdade, essa discussão revela que o Estado está doente. Terrivelmente doente, cujos sintomas acusam um estado de ineficiência generalizada. Seria muito melhor não ser necessária a intervenção do Poder Judiciário para a efetivação de direitos sociais como o direito à saúde nem tampouco ser preciso o estabelecimento de critérios e estratégias para se evitar erros e abusos quando do deferimento das tutelas. Mas infelizmente isso ainda é um sonho, apenas um sonho.
O fenômeno da judicialização do direito à saúde é um problema que dificilmente não será resolvido em curto espaço de tempo; porém, os abusos que envolvem esse fenômeno devem ser identificados e combatidos de forma rigorosa. Por outro lado, deve o Poder Público, por meio das diversas esferas governamentais, proporcionar à população meios eficazes para que tenha acesso a diagnósticos e prevenção de doenças, além de garantir assistência clínica e hospitalar de qualidade, sem falar, é claro, no fornecimento de medicamentos adequados aos pacientes.
É legítima a discussão em torno dos impactos orçamentários que esse fenômeno da judicialização provoca. Porém, não se pode admitir que esse argumento, por si só, impeça o Poder Judiciário de fazer valer as normas constitucionais, destacando a saúde, de maneira acertada, como um dos cânones do direito a vida e considerando-a como um dos conteúdos que compõem a dignidade da pessoa humana.
Juiz de Direito titular da 2ª Vara da Fazenda Pública da comarca de Ribeirão Preto-SP. Mestre em Direito pela UNESP. Coordenador e professor do curso de especialização lato sensu em direito processual civil da FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado, campus Ribeirão Preto-SP
Advogada, pós-graduanda em direito processual civil pela FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado – campus Ribeirão Preto-SP
Advogado, pós-graduando em direito processual civil pela FAAP – Fundação Armando Álvares Penteado, campus Ribeirão Preto-SP
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