Sumário: Introdução. 1- Limitação da Responsabilidade. 2- Responsabilização. 3- Desconsideração da Personalidade Jurídica. 4- Desconsideração após o Novo Código Civil. Conclusão.
Introdução
É sabido que a complexidade da sociedade contemporânea exige especialização no tratamento dos mais variados assuntos. Isso ocorre em todas as áreas do saber. No Direito, não haveria de ser diferente.
Assim, o direito de empresa, disciplina jurídica plenamente autônoma – embora com alguns aspectos regulados pelo Código Civil – também requer esse olhar especializado. Não porque se trate de disciplina mais importante que as demais, mas porque a natureza de sua matéria é determinada e especial, bem como o são as do direito penal, do trabalho, civil etc., como já tivemos oportunidade de observar alhures[1].
O direito de empresa tem natureza dinâmica, porque assim são as relações a que se propõe regular[2]. Carvalho de Mendonça já alertava para a “força naturalmente expansiva, como produto histórico, imposto pela realidade econômica”[3] do direito comercial.
E é esta mesma realidade econômica que acaba por determinar rumos à vida de milhões de pessoa em todo o mundo.
A exploração econômica se dá, em regra, pelo particular e, só excepcionalmente, pelo Estado (CF, art. 173).
Os grupamentos sociais, ao longo do tempo e ao redor do mundo todo, vêm reconhecendo a possibilidade da limitação dos riscos da atividade empresarial, como forma de incentivo a tal atividade, que agrega a si diversos valores sociais: o emprego, o recolhimento de tributos, o avanço tecnológico, o desenvolvimento para o lugar e o entorno onde se instalam iniciativas empresariais e a facilitação do acesso da população a bens e serviços, com o que a empresa cumpre sua função social, quando regular.
Como aperfeiçoamento da limitação da responsabilidade, desenvolveu-se a desconsideração da personalidade jurídica, objetivando coibir o seu mau uso.
No Brasil, parece haver certa confusão quando se trata do assunto. Confusão que se inicia, às vezes, no próprio texto legal.
Com o artigo 50 do Código Civil, a desconsideração deixa de ser uma elaboração teórica para passar a uma realidade legal[4].
Este é, pois, o momento adequado de se confrontar, novamente, os temas da limitação da responsabilidade e da desconsideração da personalidade jurídica, numa postura reflexiva.
1- Limitação da Responsabilidade
A limitação da responsabilidade surge como uma necessidade econômica na sociedade[5], sendo um meio de divisão eqüitativa dos riscos[6]. No final do século XIX, muitas inovações tecnológicas descortinavam um horizonte promissor para a indústria e o comércio[7], que exigiam investimentos.
Esse reconhecimento social e legislativo dos riscos aos quais o empresário se submete se justifica, porque a par dos fatores que o empresário pode controlar no exercício de sua atividade, há outros fora de sua esfera de influência e controle, como as questões concernentes à macroeconomia. Tais fatores ficam a cargo do planejamento estratégico dos governos, sendo, facilmente, influenciado por decisões políticas. Muitas das decisões da macroeconomia podem afetar, negativamente, determinadas atividades ou setores da economia. E, ante tal fato, mesmo que o empresário seja prudente e diligente na condução de seus negócios, há acontecimentos que se precipitam e que nem toda a cautela poderia evitar. É justo, portanto, que se lhe reconheça uma proteção. Especialmente, num país como o nosso, em que os governos mudam regras o tempo todo – sempre implicando custos para a iniciativa privada – e as ações sofrem solução de continuidade. Reformas ministeriais inteiras são feitas, muitas vezes, apenas para atender interesses político-partidários…
A responsabilidade ilimitada constitui a regra: quem se obriga, obriga o que é seu. Este princípio, como se sabe, não é absoluto, já que a própria lei tratou de excepcioná-lo. As exceções a essa regra, portanto, só são possíveis quando, expressamente, admitidas em lei. Nesses casos, o devedor se libera da obrigação quando entrega – por livre vontade ou mediante coação judicial ou legal – a seus credores, todos os seus bens destinados à satisfação de tais créditos, mesmo que não, integralmente, realizados[8].
A limitação da responsabilidade nasceu como um instrumento opcional que o direito comercial pôs à disposição dos que se arriscam a empreender, por necessidade social. Isso tem se dado através da constituição de pessoas jurídicas: sociedades empresárias, nos tipos sociedade anônima e sociedade de responsabilidade limitada (entre nós, apenas, sociedade limitada).
Na verdade, a designação sociedade de responsabilidade limitada não encontra a precisão vernacular necessária para não gerar enganos, posto que, aqueles que se beneficiam da restrição dos riscos, são os sócios e não a sociedade, cuja responsabilidade é sempre ilimitada.
Nesse sentido já é possível perceber, claramente, que esse princípio, excepcionando a regra, foi elaborado para dar proteção às pessoas singularmente consideradas: os membros da sociedade e não a ela.
A responsabilidade limitada se manifesta com a demarcação de um conjunto circunscrito de bens, destinado a arcar com as obrigações assumidas, sobre o qual os credores podem agir.
Portanto, a ação dos credores fica restrita a determinados bens, mesmo que os valores devidos superem o valor daquele complexo patrimonial. A limitação da responsabilidade decorre da separação patrimonial, pois os bens que respondem por determinadas dívidas são retirados de um patrimônio para a formação de outro, como explica Sylvio Marcondes Machado, citando Francesco Messineo[9]:
“Nas (…) figuras de responsabilidade limitada, existe sempre, como fato concomitante, a formação de um patrimônio separado, pois os bens, aos quais fica circunscrita a responsabilidade por determinadas dívidas, são subtraídos à responsabilidade pelas outras e, como tais, formam, no patrimônio do devedor, grupo subsistente por si, destinado de maneira exclusiva (reservado) a satisfazer certos credores, até a concorrência de seus créditos.”
Isso leva o autor a concluir, na seqüência: “patrimônio separado e responsabilidade limitada, como irmãos siameses, se conjugam numa unidade permanente e indissolúvel.”[10]
Por isso, se considera que:
“Um dos grandes progressos dos sistemas jurídicos internacionais se dá no final do século XIX, quando, na Alemanha, num projeto de simplificação dos tipos societários, a distinção entre o risco da empresa e o risco dos sócios é levada às últimas conseqüências, separando-se não apenas a pessoa jurídica das pessoas físicas que a compõem, mas também o risco econômico dela e o de seus sócios. Surgiu a sociedade empresarial de responsabilidade limitada, em cuja constituição os sócios limitam seu risco, enquanto pessoas físicas, ao capital comprometido e integralizado na constituição da empresa. Motivação para tanto foi o fato de que muitos detentores de capital preferiam não investi-lo, mas guardá-lo, (…) não desejando que o risco da empresa penetrasse seu patrimônio pessoal. Esta modalidade de empresa deu origem ao maior boom desenvolvimentista conhecido naquele país. O Brasil importou essa idéia em 1919, quando legislou sobre as sociedades por quotas de responsabilidade limitada, as quais passaram imediatamente a ser preferidas pelo sistema econômico.”[11]
Para Antônio Martins Filho, o processo evolutivo do princípio da limitação da responsabilidade “encontra a sua explicação em imperativos de ordem sociológica, que nada mais significam do que a revolta dos fatos contra a lei.”[12]
Pode-se considerar, num certo sentido, que a limitação da responsabilidade, embrionariamente, já estava presente quando a execução de dívida deixou de recair sobre a pessoa do devedor e seu corpo (manus injectio – lex duodecin tabularum) para circunscrever-se a uma ordem, unicamente, patrimonial (missio in bona – lex poetilia papiria). A responsabilidade passou a limitar-se, apenas, aos bens de propriedade do devedor. Parece que o germe para a posterior aceitação da limitação da responsabilidade a certo acervo de bens foi inserido na civilização, justamente, através dessa desvinculação física da pessoa de sua dívida.
Um breve apanhado da evolução da limitação da responsabilidade como a conhecemos hoje, revela que ela foi se transformando, gradual e, progressivamente, desde a societas do direito romano, contrato entre duas ou mais pessoas que ajuntavam bens e serviços com objetivo de uma utilidade comum[13].
Muito depois, na época da expansão comercial da Idade Média, ganham força as sociedades mercantis. Primeiro, a sociedade em nome coletivo, de responsabilidade ilimitada e solidária para todos os participantes. O contrato de pacotilha, arranjo que atendia aos interesses dos empreendedores marítimos e dos nobres, abriu campo para o surgimento da sociedade em comandita[14], sendo aquela que previa responsabilidade ilimitada para o sócio comanditado e a limitação para o comanditário, capitalista que prestava os recursos financeiros e que não participava, pessoalmente, do desenvolvimento da atividade. Estava, aí, introduzida a idéia da limitação dos riscos daquele que não atuasse diretamente no negócio.
Seguindo esse princípio, aparece, já no século XVIII, para atender as exigências dos empreendimentos de vulto que as grandes transformações sociais e o intenso desenvolvimento econômico reclamavam, um novo tipo societário: a sociedade anônima, cuja responsabilidade é limitada para todos os sócios, prevendo responsabilização das pessoas que ocupassem cargos de gestão.
A sociedade anônima foi instrumento de grande impulso econômico, e ainda o é, mas, é sabido, que embora não se trate de uma determinação legal, é um tipo de sociedade que melhor se amolda a empreendimentos de grande monta.
Os negócios de menor porte também reclamaram um instrumento societário que atendesse aos seus interesses e nasceu, no final do século XIX, a sociedade por quotas de responsabilidade limitada, que rompeu com o princípio da restrição de riscos apenas para os sócios que não participassem diretamente da condução da empresa: todos os membros poderiam pôr a salvo seus bens pessoais, a partir de então.
Nesse processo evolutivo, foi significativa a admissão do abandono liberatório[15], prática aceita desde a época das grandes navegações, que teve por efeito limitar a responsabilidade, no direito comercial marítimo, do armador, através da cessão da propriedade do navio aos credores para que se satisfizessem, na medida do valor do bem liberado – navio e seus acessórios, mais frete de passagens ou mercadorias – dos créditos referentes ao próprio navio, ao capital utilizado naquele empreendimento específico e à tripulação. O aperfeiçoamento desse instituto estabeleceu a distinção entre fortuna de terra e fortuna de mar. Desse modo, o patrimônio do armador passou a não responder em sua integridade pelas dívidas contraídas para operacionalizar determinado navio[16].
O artigo 494 do Código Comercial brasileiro[17] prevê essa forma de restrição dos riscos do armador.
Aos leigos, pode parecer injusto o credor suportar o prejuízo ante a cláusula de responsabilidade limitada, já que ela é instituída pelos próprios sócios, sem qualquer participação de potenciais credores.
Porém, é preciso lembrar, que para que haja limitação da responsabilidade – como ela se dá hoje – é obrigatório o registro do ato constitutivo na Junta Comercial, para que o mesmo surta seus efeitos. O registro tem, também, a função de dar publicidade aos atos dos sócios. Por esse motivo, ainda, é obrigatória a inserção da palavra limitada no nome empresarial escolhido pela sociedade limitada. Nas práticas negociais, é comezinho o conhecimento da restrição da responsabilidade, porque ela faz, por igual, parte dos riscos empresariais.
“Não lesa virtualmente os credores quem se anuncia antecipadamente como tendo sua responsabilidade determinada. Neste caso, o credor sabe de antemão que o crédito só é coberto limitadamente, (…) tem medida a responsabilidade do devedor e conhece as possibilidades com que vai contar para garantir-se.”[18]
Além disso, não somente os credores sofrem prejuízo: numa situação de insucesso da empresa, os próprios sócios já perderam tudo o que nela investiram: capital, tempo, esforços.
Se não se limitasse a responsabilidade dos sócios, poucas pessoas se disporiam a correr os riscos intensificados do exercício de empresas e a economia nacional sofreria com isso, como ilustra Fábio Ulhoa Coelho[19]:
“Justifica-se a sistemática de submeter as perdas dos sócios ao limite do investimento, transferindo o prejuízo para os credores da sociedade, na medida em que ao direito positivo cabe, por meio do controle dos riscos, motivar os empreendedores na busca de novos negócios. Se todo o patrimônio particular dos sócios pudesse ser comprometido, em razão do insucesso da sociedade empresária, naturalmente os empreendedores adotariam posturas de cautela, e o resultante poderia ser a redução de novas empresas, especialmente as mais arriscadas.”
Esta motivação parece óbvia, porque “ninguém deseja hoje correr o risco de investir parte de seu patrimônio numa empresa sabendo que, no mesmo ato, coloca sob risco a totalidade de seu patrimônio.”[20]
Cabe aos envolvidos em transações com as sociedades averiguar tal circunstância antes de contratar. E, para isso, basta verificar o nome empresarial do ente com quem se vai contratar: cuidado básico e mínimo que se pode exigir de qualquer pessoa.
Indo além, tem sido prática habitual a exigência de cópias do contrato social e suas alterações para início ou continuação de negociações empresariais, para composição de um cadastro. Dormientibus non succurrit jus.
Além do prévio aviso da circunstância da limitação, para que esta se implemente, é preciso não olvidar que a justificativa desse benefício também se assenta no fato da distribuição eqüitativa dos prejuízos, como dito. E, na atualidade, a adoção do modelo que permite a limitação está amplamente difundido no mercado, de tal ordem que as sociedades ocupam ora a posição de credoras, quando o princípio lhes seria nocivo, mas bastante benéfico quando esta mesma sociedade possa ocupar a posição de devedora. E, desse modo, se equilibram tais relações. Mesmo no caso de relações entre sociedades e pessoas físicas, tal situação se mantém, tendo em vista que, mesmo a pessoa natural tem, reconhecidos em lei, bens que estão à margem de sua responsabilidade patrimonial[21]
Embora o alerta possa parecer, à primeira vista, em análise perfunctória, uma ameaça velada e chantagista por parte da classe empresarial – tida como capitalista, individualista e hipersuficiente -, um exame mais detido e aprofundado da questão, do ponto de vista fático e econômico, revela que abolir-se a limitação da responsabilidade – seja eliminando essa possibilidade do ordenamento jurídico ou aplicando-se sem critérios a desconsideração da personalidade jurídica – em curto prazo representará perdas significativas para o contexto social.
De fato, se a única preocupação do dono do capital fosse, egoisticamente, obter seus rendimentos, a aplicação financeira lhe seria muito mais conveniente: aplicar na produção envolve relações com fornecedores, consumidores, empregados, Poder Público, o que maximiza a complexidade do ato de investir. Os lucros menores resultantes da aplicação meramente financeira seriam compensados pela ausência de custos e problemas. E o investidor estaria, ainda assim, atingindo o seu objetivo.
Todavia, em larga escala – e com isso nos referimos não aos mega-investidores, mas à grande massa de titulares de micro e pequenas empresas – tal situação tem reflexos deletérios para a estrutura social, em vários aspectos. Tal fenômeno se dá como efeito do encolhimento do número de postos de trabalho, o que faz com que a quantidade de moeda em circulação seja enxugada de modo drástico, causando recessão e, até, depressão econômica, posto que a circulação de riquezas se reduz, já que a economia não tem como retroalimentar-se. Um país em que a economia está estagnada, não detém condições de avanço social digno.
Afinal, a limitação não é um princípio absoluto e que não comporta exceção. Em casos preestabelecidos, tal princípio cede a outros, que na situação concreta, lhe sejam, hierarquicamente, superiores, como no caso da fraude, do abuso, da má-fé, da infração à lei, p.e., até como forma de conferir maior grau de refinamento à limitação da responsabilidade.
Os administradores de empresa sabem que a responsabilidade limitada é importante para garantir o fomento e o sucesso de novos negócios, “caso contrário (…), provavelmente, seriam poucos os que se arriscariam a fazê-lo [investir em produção].”[22]
A limitação da responsabilidade do empresário individual[23] é o último grau da limitação da responsabilidade e é aceito em diversos países, em formatos variados, e deveria também ser aceito no Brasil, para se acabar, de vez, com a mentira da sociedade limitada aparente, conforme sugerimos em outra oportunidade[24].
A questão é simples:
“A resistência provém do conceito de que a responsabilidade limitada é um favor excepcional da lei, já que, em princípio, todos os bens do patrimônio de uma pessoa devem responder pelas obrigações por ela contraídas. Mas se o direito positivo dispõe que a pessoa pode limitar sua responsabilidade, organizando ou constituindo determinada espécie de sociedade, porque não lhe há de conferir, sem o auxílio desse meio, a faculdade de limitar essa responsabilidade mediante a separação de bens ou valores de seu patrimônio para a consecução de certo fim ou a declaração de que somente responderá, na organização, empresa ou estabelecimento, até certa soma? Convém, pois, que o direito positivo autorize, com as devidas cautelas, a pessoa natural ou jurídica, a criar estabelecimentos autônomos, separando, para este fim, de seu patrimônio bens ou valores, com a faculdade de limitar a sua responsabilidade até determinada soma. (…) Nenhum prejuízo advirá em se dotar o estabelecimento autônomo de personalidade jurídica, como, aliás, ocorre com as fundações.”[25]
Como bem lembra Antônio Martins Filho[26], à época do surgimento da sociedade de responsabilidade limitada, muitas críticas e resistências lhe fossem opostas, em razão da insegurança e imoralidade que a lei reconhecia. No entanto, a sociedade limitada está, na atualidade, extremamente difundida em âmbito mundial. Esse o fato, que constitui a maior prova do acerto da adoção de tal tipo societário.
2. Responsabilização
Se a sociedade empresária é um ente a quem a lei reconhece – ou outorga – personalidade, para que através dela, se possa agir, temos que é um benefício concedido pelo Estado. Não se pode admitir, portanto, que o uso de um benefício se faça em prejuízo de terceiros. É evidente, que embora sendo uma pessoa individualizada, titular de direitos e deveres, com patrimônio próprio, para agir, a pessoa jurídica é dependente de seus integrantes, em especial, de seus administradores.
Se, no exercício da administração social, o sócio ou administrador age com abuso dos poderes que o ato constitutivo lhe confere ou infringe a lei, fazendo mau uso da pessoa jurídica, trazendo prejuízo a credores e terceiros, tais práticas devem ser coibidas.
Essas situações já atribuem responsabilidade pessoal aos sócios e administradores, entre outros, como liquidantes e prepostos. Esta possibilidade está inscrita em lei. O texto legal expõe uma determinada circunstância e, na sua ocorrência, prevê a responsabilização do agente ou sócio. Prova-se a ocorrência do fato registrado no dispositivo legal e pode-se atingir o patrimônio pessoal, geralmente, de modo subsidiário, ou a pessoa do sócio ou administrador.
É o caso, por exemplo, dos artigos 116, parágrafo único, 117, 153, parágrafo 3º do 155, 158, 165, 238, 245, 246, 281, 282 da lei 6.404/76 (lei da S.A.), do artigo 32 da lei 11.101/05 (lei de falências), do art. 135 do Código Tributário Nacional e, também, do artigo 1.016 do Código Civil[27]. Nesses casos, o alcance do patrimônio pessoal dos sócios, administradores ou terceiros, ou suas pessoas, é previsto em situações especificadas em lei, que, em geral, pressupõem atos praticados com abuso de poder ou infração legal, por isso denominado responsabilização.
A responsabilização por infração à lei ou ao ato constitutivo ou por ato praticado com excesso de poder é legalmente prevista, não necessitando aplicar-se a desconsideração da personalidade jurídica, pois existe legislação específica a ser utilizada para atingir os dirigentes sociais ou seus bens, inclusive reconhecida pelos artigos 592, II e 596 do CPC.
É preciso não se confundir a responsabilização e a desconsideração. Ambas têm em comum o fato de buscar bens no patrimônio pessoal dos responsáveis ou impor sanção aos sócios ou agentes sociais, embora, em cada uma das possibilidades isso se dê de modo diverso. No caso de responsabilização, basta a prova do ato previsto em lei e do prejuízo. Na desconsideração é necessário provar que o ato do qual decorreu o prejuízo foi abusivo, já que, em regra, a aparência é de legalidade.
Essa confusão está presente nos textos dos artigos que prevêem a desconsideração no Código de Defesa do Consumidor e na lei antitruste, demonstrando imprecisão técnica em sua redação. Neles, o legislador arrola como desconsideração várias condutas que correspondem, na verdade, à responsabilização.
Veja-se: excesso de poder, infração à lei, fato ou ato ilícito, violação dos estatutos ou contrato social, falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade provocados por má administração ou sempre que a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos aos consumidores[28].
Já em primeira constatação, é fácil reconhecer a redundância do legislador consumerista, vez que as hipóteses de violação do estatuto ou contrato social vão estar agasalhadas pela figura de excesso de poder, do mesmo modo que o fato ou ato ilícito e o encerramento ou inatividade irregulares cabem na infração à lei.
Ressalve-se que a confusão não se limita a considerar caso de desconsideração o que é responsabilização, mas, também, quando menciona a falência, o estado de insolvência, a má administração ou sempre que a personalidade jurídica for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos aos consumidores, posto que, desse modo, está-se derrogando a limitação da responsabilidade e a personalidade jurídica como um todo.
Sabe-se, empiricamente, que, em grande parte, os casos de insucesso da atividade empresarial se devem à má administração, já que nenhum tipo de preparo é oferecido àqueles que desejam empreender em nosso país[29]. Tal situação se torna ainda mais crítica devido ao fato de muitos não disporem de alternativa ante um mercado de trabalho retraído, como ocorre entre nós, na atualidade. Sendo a esmagadora maioria das empresas brasileiras constituída de micro e pequenas empresas[30], muitas são titularizadas por indivíduos excluídos dos postos formais de trabalho, que utilizam seus recursos de FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), amealhados ao longo de toda uma vida laboral, para iniciarem-se na atividade empresarial, tencionando ganharem a vida e o sustento da família, sem nenhum preparo, repita-se.
Outro caso equivocado, a nosso ver, é o do artigo 82 da nova lei de falências, que prevê a responsabilização de sócios de responsabilidade limitada, controladores e administradores de sociedade falida, independentemente da prova de insuficiência de ativo, pois também ignora o princípio da limitação da responsabilidade. O citado artigo 596 do código de rito expressa que a responsabilidade dos sócios é sempre subsidiária. O artigo 82 da lei 11.101/05 parte da má-fé dos sócios, o que é sempre condenável, mormente num sistema falimentar que, há muito, deixou de ser punitivo e infamante. Além disso, alcançando-se os bens dos sócios de maneira prévia, é provável que haja, ao final, saldo positivo para ser devolvido aos titulares das quotas sociais. Ora, pelo menos outros dois princípios, agora de ordem processual, estão sendo também ignorados: o da economia processual e o da execução menos gravosa.
3- A Desconsideração da Personalidade Jurídica
Para as situações que a lei não consegue prever, casuisticamente, nas quais o benefício da pessoa jurídica é mal utilizado, tendo como objetivo conseguir uma vantagem indevida em detrimento de prejuízo causado a terceiro, elaborou-se a desconsideração da personalidade jurídica. Em casos tais, há, como mencionado, uma legalidade aparente.
Também chamada teoria da penetração ou teoria da superação (disregard doctrine, disregard of legal entity, piercing the corporate veil, lifting the corporate veil – no direito anglo-americano, superamento della personalitá giuridica – no direito italiano, durchgriff der juristischen personen – no direito germânico, abus de la noction de personnalité sociale, mise à l’écart de la personnalité morale – no direito francês), surgiu em 1897, na Inglaterra[31], para se atingir o patrimônio dos sócios ou administradores envolvidos, em circunstância excepcional, mesmo que o tipo social previsse a responsabilidade limitada.
Entre nós, Rubens Requião[32] foi o primeiro a levantar a questão, autorizando sua utilização:
“Diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o Juiz brasileiro, tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.”
A aplicação dessa teoria tem o objetivo, como já se disse, impedir que a personalidade jurídica seja instrumento de impunidade a abusos. É o que ensina Lamartine Correa[33]:
“Se é em verdade uma outra pessoa que está a agir, utilizando a pessoa jurídica como escudo, e se é essa utilização da pessoa jurídica, fora de sua função, que está tornando possível o resultado contrário à lei, ao contrato, ou às coordenadas axiológicas fundamentais da ordem jurídica (bons costumes, ordem pública), é necessário fazer com que a imputação se faça com predomínio da realidade sobre a aparência.”
Porém, para sua aplicação não basta, por exemplo, a insolvência da sociedade. É necessário que tal fato tenha decorrido do mau uso da pessoa jurídica. É preciso cautela e critério na sua aplicação.
Há inclusive os que entendiam, antes do Código Civil – mas posterior a outros diplomas legislativos que adotavam a desconsideração – que não se deve aplicar a doutrina da desconsideração porque não existe nenhuma forma jurídica que deva ser desprezada pelo juiz[34].
O direito brasileiro permite a utilização da desconsideração nos termos do artigo 28 da lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), do artigo 18 da lei nº 8.884/94 (lei antitruste) – praticamente cópia literal do texto do CDC; ambos ainda que eivados de imprecisão técnica, como observado -, do artigo 4º da lei 9.605/98 (lei do meio ambiente) e do artigo 50 do Código Civil.
A aplicação da teoria vinha sendo reconhecida pela doutrina e jurisprudência e independia de previsão legal[35]. Ficava – como fica – porém, sempre condicionada à apreciação judicial.
O espírito da desconsideração foi também incorporado pela lei nº 8.429/92, no artigo 12, superando, de modo inverso, a personalidade jurídica para alcançar a empresa impedindo-a de contratar com o Poder Público, caso mantenha em seus quadros administrador, sócio ou controlador que tenha praticado ato de improbidade administrativa. Também há exemplo da desconsideração inversa na Lei do Sistema Financeiro (Lei nº 4.595/64), que proíbe certos negócios ou operações de serem efetuados entre a instituição financeira e pessoas jurídicas cujo capital tenha sido, de modo majoritário, constituído pelos administradores daquela instituição. A mesma lei responsabiliza, solidariamente, diretores e gerentes das instituições financeiras pelas obrigações assumidas pelas mesmas durante suas gestões.
A desconsideração inversa também tem sido apontada como solução em lides de separação ou divórcio, como informa Fábio Ulhoa Coelho[36].
O mesmo espírito da teoria da desconsideração da personalidade jurídica está presente em outros diplomas legais, dos quais ainda serve de exemplo, além dos acima citados, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em seu artigo 2º, § 2º, no qual é prevista a responsabilidade solidária, para efeitos de relação empregatícia, da empresa principal e subordinadas, quando constituam um grupo econômico. Mas, como há previsão específica na lei, trata-se de responsabilização. Muito embora o grupo de sociedades dependa de formalização entre as integrantes do grupo e posterior arquivamento na Junta Comercial, a legislação trabalhista, no artigo citado, se refere a grupo econômico, o que, tecnicamente, pode ser entendido de modo diverso do termo grupo de sociedades. Então, mesmo que não haja convenção registrada formalizando o grupo, nos termos do artigo 265 e seguintes da lei 6.404/76, a solidariedade na responsabilização por dívidas trabalhistas seria legítima. Não se exige a prova da fraude ou do abuso, desde que provada a lesão ao direito do empregado.
A Justiça do Trabalho também é pródiga em decisões, já constituindo entendimento cristalizado, que a personalidade jurídica do empregador deve ser desconsiderada e os bens dos membros sociais alcançados sempre para a satisfação do crédito trabalhista, quando a empresa não possuir patrimônio suficiente, mesmo na ausência de fraude ou abuso. A Justiça do Trabalho, na prática, ignora a personalidade jurídica e não reconhece a separação patrimonial e a limitação da responsabilidade.
Esse posicionamento é, no entanto, equivocado[37] porque, como regra, compromete o instituto da personalidade jurídica e o princípio da autonomia patrimonial. A desconsideração é válida apenas enquanto tem o intuito de preservar a pessoa jurídica e sua autonomia, já que ambos são instrumentos indispensáveis à organização da atividade econômica, sem deixar ao desabrigo terceiros vítimas de fraude.[38]
No anteprojeto do Código Civil (Projeto de Lei nº 634-B), a previsão de elevar-se a teoria à legislação, se dava na seguinte redação:
“art. 50 – a pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins estabelecidos no ato constitutivo para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do ministério público decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da sociedade. Parágrafo único – Neste caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar responsabilidade solidária de todos os membros da administração”.
A pena de exclusão do sócio ou de dissolução da sociedade, não são conseqüências, originariamente, previstas na disregard doctrine.
Pela imprecisão dos termos, o texto, na versão final, foi bastante reduzido, traçando critérios objetivos (desvio de finalidade e confusão patrimonial) para que o juiz aplique ou não a desconsideração no caso concreto.
A finalidade da desconsideração é afastar, momentaneamente, a personalidade jurídica da sociedade, para atingir os sócios ou administradores ou seus bens, caso tenham agido com abuso ou má-fé, prejudicando terceiros. A simples insolvência, decorrente de atos praticados dentro da normalidade administrativa de uma sociedade não autoriza a desconsideração.
São pressupostos de sua aplicação a existência de mau-uso da pessoa jurídica (agora traduzido em desvio da finalidade ou confusão patrimonial) [39], a ausência de patrimônio social e a autorização judicial para que se entre no patrimônio pessoal dos sócios. Na desconsideração inversa, não se exige a existência de dívidas, mas, sim, a prática de atos condenados legalmente.
O que ocorre, na prática, então, é que para aquele caso isolado, e apenas para ele, de modo transitório e episódico, ignora-se a existência da pessoa jurídica e, portanto, os princípios da separação patrimonial e da limitação da responsabilidade, para que o credor seja satisfeito ou a sanção seja aplicada, sempre atentando-se para o implemento dos requisitos de aplicação. Para tudo o mais, concomitantemente, a personalidade jurídica não sofre qualquer abalo.
Por isso, somos de opinião que referir-se a essa possibilidade pelos termos descaracterização ou desconstituição da pessoa jurídica não atende à essência da técnica[40]. Tais expressões estariam mais próximas da despersonalização, outra medida que pode ser facilmente confundida com a desconsideração.
Enquanto a desconsideração pressupõe a existência de débitos decorrentes da má utilização da pessoa jurídica que a sociedade não tem condições de suportar e, por isso, para o episódio, a personalidade jurídica é, momentaneamente, afastada, a despersonalização é utilizada para pôr fim à pessoa jurídica, em situações decorrentes também do mau uso, mas que não envolvem, necessariamente, débitos, ou seja, quando a empresa da pessoa jurídica vem sendo desenvolvida de modo a causar danos de massa, causando prejuízos à concorrência ou meio ambiente ou aos consumidores ou ao mercado, por exemplo. Geralmente, há um agravamento de penalidades a serem aplicadas nesses casos, que não sendo suficientes para coibir a conduta danosa da sociedade empresária, pode chegar à determinação de extinção da empresa.
Bem assim, embora cientes de que tal determinação pode ser vista como pena para a sociedade transgressora e que o direito penal não comporta interpretação extensiva da lei, sustentamos que, aplicadas todas as medidas possíveis, previstas na legislação antitruste, se nenhuma delas foi capaz de modificar a atuação danosa da sociedade, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) tem permissão, observadas as circunstâncias mencionadas no artigo 27 da lei 8.884/94, de impor a despersonalização, porque, o que se quer, na verdade, não é a punição da sociedade, mas a salvaguarda do mercado, das relações de consumo, da livre concorrência, enfim, a preservação da higidez do mercado O texto do artigo 24 prevê que, ante a gravidade dos fatos ou em nome do interesse público geral, o CADE pode impor “qualquer outro ato ou providência necessários para a eliminação dos efeitos nocivos à ordem econômica.”
Voltando à desconsideração, Fábio Ulhoa Coelho faz toda uma elaboração sobre as teorias – maior e menor – dela decorrentes e elucida como pode ser vista como um instrumento de socialização das perdas para manter preços[41], o que interessa a todos.
Marçal Justen Filho[42] também já diferenciava a intensidade da desconsideração em máxima, que corresponderia à teoria menor de Fábio Ulhoa Coelho, média e mínima, correlata à teoria maior, para concluir, com Lamartine Correa, que a última é a “única compatível com o conceito de desconsideração”.
4- Desconsideração Após o Novo Código Civil
Conforme mencionado, em nosso entender, o Código Civil trouxe os necessários eixos pelos quais deve correr a desconsideração da personalidade jurídica no alcance do patrimônio dos sócios ou administradores: desvio de finalidade e confusão patrimonial.
Embora sejam apenas duas as hipóteses, é forçoso reconhecer que são, ambas, bem largas. Muitas condutas concretas poderão caber na hipótese de desvio de finalidade e, igualmente, quando se tratar de confusão patrimonial. Na prática, as hipóteses, muita vez, vão se confundir entre si. Um ato que configure desvio de finalidade vai também envolver confusão patrimonial. Sempre que o ônus ficar para a pessoa jurídica e a vantagem for para os titulares das quotas sociais ou terceiros por eles beneficiados, embora a aparência de legalidade, estaremos diante de um caso que comporta desconsiderar a personalidade jurídica.
Na conduta exposta como desvio de finalidade, entrarão os casos em que os sócios obriguem a sociedade em compromissos que não se coadunam com o objeto social, seja em proveito próprio ou para explorar atividade distinta da originalmente prevista no contrato social, sem que a sociedade detenha recursos para tanto.
Não significa que a sociedade apenas poderá titularizar bens ligados diretamente ao seu objeto social. Ela tem autonomia patrimonial e capacidade negocial para efetuar os mais variados tipos de contrato e obrigações, podendo ser proprietária dos mais diversos tipos de bens e direitos. Mas, numa situação de ausência de patrimônio social em que se constate que tal circunstância se deve ao fato de seus recursos terem sido dilapidados em favor das pessoas dos sócios ou de interesses exclusivos destes ou estranhos ao objeto social, evidentemente, que se deve chamá-los a cumprir as obrigações daí decorrentes.
Quando a lei traz a confusão patrimonial, abarca os casos em que os sócios – ou, como é mais comum, um deles: o majoritário na sociedade aparente – pagam dívidas sociais com recursos próprios e, vice-versa, efetuam pagamento de despesas pessoais com recursos da sociedade. Mas, não só isso: refere-se, também, ao uso de bens da sociedade como se fossem bens pessoais e o contrário também, inclusive em relação a movimentações bancárias.
Assim, não basta a simples inadimplência ou, até, insolvência da sociedade. É preciso se chegar à comprovação de que tal situação se deveu ao desvio de finalidade ou à confusão patrimonial, em cada caso concreto.
Posição curiosa é a que a Justiça do Trabalho vem adotando, como mencionado: basta a inadimplência para que se determine a desconsideração, de tal modo que a personalidade jurídica não é por ela reconhecida. Esse posicionamento equivale à adoção de doutrina negativista da personalidade jurídica, ou seja, não haveria um ente, sujeito de direito, mas, sim, uma coletividade de pessoas naturais, que têm a tendência natural de associarem-se, possuidoras de um patrimônio em comum, objeto de direito. Assim, a parte ideal de cada pessoa natural no patrimônio coletivo integraria o seu patrimônio pessoal, sem possibilidade de separação. As teorias negativistas da personalidade estão superadas, senão no mundo todo, em grande parte dele, posto que não há mais como negar a existência formal e real da pessoa jurídica. O nosso Código Civil reconhece existência à pessoa jurídica (art. 40, 45 e 985) e a legislação trabalhista não tem o poder de alterar esse fato.
Desse modo, a postura da especializada federal deve se adaptar ao novo regramento a respeito da questão. Todos os requisitos para se aplicar a desconsideração, segundo o que prescreve o artigo 50 do Código Civil, devem estar presentes para autorizar a entrada no patrimônio pessoal dos sócios ou administradores. Senão, vejamos.
Segundo o comando do artigo 8º, parágrafo único, da CLT, o direito comum deve ser utilizado em caso de lacuna da legislação especializada. A legislação trabalhista não trata da personalidade jurídica nem de sua desconsideração – e nem deveria -, o que nos leva de volta ao Código Civil, o direito comum, e seu artigo 50. Esse, agora, por imperativo legal da própria CLT, deve ser o rumo a ser seguido pela Justiça do Trabalho.
Em relação ao direito do consumidor e à legislação antitruste, o mesmo caminho se impõe, devido a grave imprecisão técnica dos artigos 28 do CDC e 18 da lei 8.884/94, que deve ser corrigida.
Conclusão
Primeiramente, importa diferençar, na aplicação prática, o que seja responsabilização daquilo que configure hipótese de incidência da desconsideração.
Se se tratar de caso de desconsideração, do que aqui foi dito, depreende-se que compartilhamos a opinião dos autores citados quando indicam que a aplicação da desconsideração deve se dar de acordo com a teoria maior ou da desconsideração mínima, ou seja, na presença de mau uso da pessoa jurídica, para autorizar a entrada no patrimônio pessoal dos sócios. E insistimos: esse mau uso deve se traduzir, agora, nos critérios objetivos inseridos pelo novo Código Civil: desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
Qualquer pensamento diferente é arriscado e não atende ao rigor técnico, indispensável à segurança jurídica, nem aos interesses sociais.
Admitir o alcance de bens pessoais dos sócios por dívidas sociais levando-se em consideração, apenas, a existência de obrigação descumprida pela sociedade e a carência patrimonial do ente personalizado (teoria menor ou desconsideração máxima), é destruir a limitação da responsabilidade, o que, a médio e longo prazo, não interessa à sociedade como um todo.
Se um dos princípios que norteiam o novo Código Civil é o da socialidade[43], isto é, a função social que todo bem ou sujeito deve cumprir, o ataque direto à limitação da responsabilidade, representado pelo alargamento exagerado da aplicação da desconsideração, tem efeito frontalmente contrário.
Sob uma ótica, com a ampliação dos critérios para aplicação – ou falta deles – atende-se, de modo direto, o interesse do terceiro prejudicado, considerado, muitas vezes, como hipossuficiente, tanto nas lides trabalhistas, como nas acerca de relação de consumo. Há um benefício de caráter privado, disfarçado de interesse social. Não se pode utilizar, para defesa desse posicionamento, o fato de que o atendimento a esse interesse atende à dimensão social maior: a segurança jurídica e a busca do justo. A segurança jurídica e o justo (considerado de maneira concreta) advêm da existência de critérios pré-definidos e claros, aplicados nos casos concretos, o que a lei atual atende.
É certo que o teor do citado artigo 8º da CLT, no caput, determina que a aplicação de fontes subsidiárias nas lides trabalhistas deve ser feita de modo a preservar o interesse público. Ora, a expressão interesse público pode abarcar um sem número de situações, dependendo dos valores daqueles que ocupam posições de autoridade numa sociedade. Assim, temos que nos pautar pela realidade do contexto social dos tempos atuais. A ignorância, por completo, do ente jurídico pela Justiça Trabalhista representa grave desestímulo ao investimento em produção. A adoção da teoria menor (que é, na verdade, uma deformação da teoria original) não é aconselhável, com base, justamente, no citado princípio do interesse público, posto que “o perigo para o desenvolvimento econômico do País é gigantesco, pois o investidor desprotegido opta por não investir. A economia do Brasil sofrerá as duras conseqüências dessa orientação (…)”[44]. Além do mais, o modo como ela vem sendo praticada, acaba por provocar reação dos atingidos[45]. Não é a aplicação precipitada e irrefletida da desconsideração que atenderá ao comando da socialidade.
Empresariar, no Brasil, é, de fato, uma aventura. E arriscadíssima. Há pressões de todo lado: trabalhadores, fornecedores, instituições financeiras, Poder público, concorrentes, mídia, consumidores… Sem se falar no próprio despreparo de grande parte do empresariado nacional, que, muitas vezes, é empurrado a empreender, por falta de outras alternativas ou oportunidades para ganhar a vida. Mas, de algum modo, criou-se a lenda de que o empresário é aquele que ganha o quanto quer, sem limites à sua sanha ambiciosa.
Em primeiro lugar, com relação ao seu ganho, o lucro, condenável por muitos, é preciso lembrar que todos nós – ou quase todos – trabalhamos por dinheiro, já que sem ele nada fazemos e nossa existência fica em perigo.
Todo trabalhador merece a contraprestação por seu esforço. Trabalhador é todo aquele que trabalha, com ou sem vínculo empregatício. O empresário trabalha, é um trabalhador. Há uma tendência piegas em se considerar trabalhador apenas o empregado e, de preferência, o de baixa renda. Grandes executivos, por exemplo, também ficam à margem do deturpado estereótipo do trabalhador.
O salário do empresário é o lucro, portanto, legítimo. Em geral, o lucro tende a ser maior na proporção do risco da atividade empreendida. Mas, daí a dizer que não há limites para o lucro há um abismo. O primeiro limite que o empresário sofre na estipulação do lucro é o da concorrência. Não há ninguém que possa desconsiderar essa limitação impunemente. Mesmo porque, a própria legislação prevê a intervenção do Estado no domínio econômico em caso de aumento abusivo e injustificado de preço (inciso XXIV, art. 21, lei 8.884/94).
Apenas quem já viveu ou esteve muito próximo da condução de uma iniciativa empresarial pode fazer idéia das inúmeras dificuldades e da enorme complexidade que envolve o desenvolvimento de qualquer empresa, no Brasil. É curioso que agentes com elevada formação teórica, cujo sustento está bem garantido, condenem, acerbamente, aquele que não foi bem sucedido em seus esforços, sem conhecer os percalços enfrentados no cotidiano empresarial.
É preciso não olvidar que a esmagadora maioria das empresas em atividade no país é dirigida por micros e pequenos empresários[46], em geral, também gente sem qualificação profissional, como mencionado. Qualquer decisão que vá afetar o direito de empresa tem que ser tomada, hoje, pensando nas microempresas, por sua relevância na economia nacional.
Isso ocorre, como registrado, pelo enxugamento dos postos de trabalho: sem opção, aquele que perde seu emprego aventura-se a empreender.
É sabido que o empresário, na qualidade de patrão, não pode transferir os riscos de sua atividade para o empregado. Mas este postulado não deve mais ser visto com o rigor de outrora, desde que a Constituição Federal determinou no inciso XI do artigo 7º a participação dos empregados nos lucros e resultados, desvinculada da remuneração. Ora, a obrigação do empregador em troca da força de trabalho de seu empregado, é pagar o salário ajustado, acrescido de seus consectários legais. Participar dos resultados é um plus, que foge do contrato de trabalho original. Pois bem. Nessa linha de raciocínio, se o empregador deve repartir, em certa medida, com seus colaboradores, os resultados de sua empresa, além do pagamento previamente combinado, nada mais razoável que o empregado também participe, em certa medida, do insucesso do empreendimento, sabendo-se que, em caso de insolvência, será o credor de maior privilégio.
Mesmo na falência, atualmente, de acordo com a lei 11.101/05, há um teto estabelecido para que seja cumprida a preferência no pagamento dos débitos trabalhistas, posto que se reconhece a necessidade de composição entre todos os envolvidos no insucesso de uma empresa, para preservar, minimamente, o equilíbrio econômico e, portanto, social[47]. E a legislação trabalhista não tem o condão de mudar tal situação, ainda que entenda não ser isso compatível com os princípios fundamentais do direito do trabalho.
Por sua vez, o empregado pode dar preferência a, então, contratar emprego com empresários que não adotem o regime de limitação da responsabilidade, como qualquer credor, para ver aumentadas suas chances de recebimento.
Certamente, se dirá, com razão, que o mercado de trabalho está em recuo e que o empregado não tem como escolher seu patrão, já que, no Brasil, a mão-de-obra tem pouca qualificação. Ora, ambos os argumentos – reais – não estão dentro da esfera de poder da iniciativa privada. Cabe aos governos, segundo o que está na Constituição Federal, fomentar a livre iniciativa, porque é em seu âmbito que encontraremos os postos de trabalho de que tanto necessitamos. E, quanto à qualificação do trabalhador, a educação é um dever básico do Estado. Novamente, se pretende encobrir a incompetência estatal direcionando suas obrigações para o particular.
Não se trata de menosprezar o direito do empregado, mas de compô-lo com os demais, para que se mantenha a higidez do sistema no qual nos encontramos, sendo certo que tal sistema está muito longe do ideal. A economia e os agentes econômicos têm importância para a sociedade na direta proporção do que contribuam para a promoção do ser humano e sua dignidade, mesmo no capitalismo.
Da mesma forma, é preciso ponderar sobre a aplicação da desconsideração nas lides de consumo.
Quanto ao direito anti-truste, a previsão de desconsideração da personalidade jurídica é, praticamente, inútil, já que no artigo 16 da lei 8.884/94 existe a previsão de responsabilidade individual dos dirigentes da empresa ou seus administradores, de modo solidário. Bem assim, o inciso II do artigo 23 e o artigo 25 prevêem aplicação de pena direta ao administrador ou responsável pela infração ou ato.
No caso da lei de proteção ambiental, embora o texto legal contenha maior precisão, percebe-se que, de todo modo, também já existe previsão de responsabilização. O artigo 2º é bastante abrangente e o parágrafo único do artigo 3º prevê a responsabilidade das pessoas físicas autoras, co-autoras ou partícipes do ato lesivo ao meio ambiente. Há, portanto, responsabilidade direta dos administradores, já que o ato que dá causa ao dano ambiental, quando praticado por pessoa jurídica, o será em concurso com seus agentes.
As razões da limitação da responsabilidade expostas no presente estudo se mantêm atuais.
Embora o tema seja apaixonante, não há espaço aqui para o prolongamento dessa discussão, que, certamente, comporta muitas observações. Só resta aguardar o comportamento judicial, na expectativa de que o bom senso prevaleça.
Do contrário, não há mais porque se manter a personalização das sociedades e, muito menos, o regime de limitação da responsabilidade. Se a opção for no sentido de se aplicar a desconsideração fora dos parâmetros oferecidos pelo Código Civil, que seja, então, levantada, por aqueles que assim defendem, a bandeira em favor do banimento da personalização do ordenamento pátrio para as sociedades empresárias e da limitação da responsabilidade dos sócios, adotando-se a teoria negativista, posto que não haverá mais sentido em mantê-las. Ou, pelo menos, que se risque do ordenamento nacional o tipo societário da sociedade limitada.
A desconsideração da personalidade jurídica não pode representar um abalo ao instituto da pessoa jurídica e seus efeitos. Ao contrário, retomando a lição de Fábio Ulhoa Coelho[48],
“ela visa preservar o instituto em seus contornos fundamentais, diante da possibilidade de o desvirtuamento vir a comprometê-lo. Isto é, a inexistência de um critério de orientação, a partir do qual os julgadores pudessem reprimir fraudes e abusos perpetrados através da autonomia patrimonial, poderia eventualmente redundar no questionamento do próprio instituto, e não do seu uso indevido.”
Esse “questionamento do próprio instituto” é aquele que foi sintetizado por José Lamartine Corrêa de Oliveira[49], que diagnosticou que as incertezas acerca do assunto se projetavam em dois sentidos: um, referente à sistemática de regulação da pessoa jurídica e outro, concernente à “desnaturação” da sociedade personificada ou a uma “crise de função”, que deu origem à teoria da desconsideração da personalidade jurídica.
A insistência da aplicação da desconsideração na ausência dos critérios legais nos leva ao ponto mencionado pelo autor acima citado, ou seja, a questionar o próprio instituto da personalidade jurídica.
A desconsideração deve representar um aperfeiçoamento da limitação da responsabilidade e não a sua derrogação. Como preleciona Georges Ripert, a modificação do alcance de uma regra jurídica, para ampliá-la ou restringi-la em razão de considerações novas, tem por fim conservá-la, e não, destruí-la, podendo-se afirmar que assim se mantém o seu verdadeiro sentido.[50]
Caso contrário, não há mais porque manter o tipo da sociedade limitada entre nós.
Doutora em Direito pela PUC-SP, Mestra em Direito pela UNIMEP, Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUCCAMP, Professora Adjunta da PUC-MINAS, Coordenadora dos Cursos de Pós-Graduação em Direito Processual e Direito Público da PUC-MINAS, campus Poços de Caldas, Advogada
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