Resumo: A sociedade vive um histórico distanciamento do Direito e da Justiça. A elitização da linguagem empregada (verbal ou não verbal) é uma das principais causas da segregação do conhecimento jurídico e do acesso à justiça. O trabalho propõe identificar que um dos motivos desse emprego insistente e desnecessário do “Juridiquês” provém da própria conceituação do que é o direito (ciência ou prudência, engajada ou não na dialética social) tanto na visão da sociedade (que não se sente “protegida” pelo direito, desacredita na Justiça e não conhece seus direitos e deveres) quanto para os juristas, advogados, serventuários e estudantes (que monopolizam o conhecimento jurídico e perpetuam o uso de uma linguagem inacessível aos jurisdicionados). Através de uma abordagem sócio-filosófica, semiótica, como também embasada em pesquisa de campo local, o trabalho explica e indica possíveis soluções para que o discurso jurídico seja inteligível e as barreiras para o acesso à justiça e o conhecimento acerca do Direito sejam quebradas.
Palavras-chave: Justiça, linguagem, “Juridiquês”, sócio-filosófica, semiótica.
Abstract: The society lives a historic detachment of the Law and the Justice. The elitism of the aplicated language (verbal or not verbal) is one of the principals causes of segreation of this juridic meaning and acess to justice. This project proposes identify that one of the reasons of this persevering and unecessary use of “Juridiquês” cames from of the own concept about what is the law (cience or prudence, engajed or not in the social dialog) so in the society vision (that don't fells “protected” by the law, don't believe in the Justice and don't know your rights and duties) as for the judges, public defenders, lawyers, clerks and students (that monopolize the juridic knowing and perpetuate o use of a inacessible language to the jurisdictional). Through a social-philosophical approach, semiotics, as also grounded in local field research, this project explain and indicates possibles solutions for the juridic discurse be intelligible and the barriers to the acess to justice and the knowledge about the Law be broken.
Keywords: Justice, Language, “Juridiquês”, social-philosophical, semiotics.
Sumário: Introdução. Desenvolvimento .Capítulo 1 Direito, linguagem e poder .1.1 O fenômeno linguistico – semiótica jurídica .1.1.1 A ordem do discurso. 1.2 "O poder simbólico" .1.3 O giro linguístico.1.4 A pós modernidade e o senso comum. Um novo para- digma social, uma nova teoria linguística. Capítulo 2 Sociologia Jurídica – "Fazer algo socialmente e querer algo socialmente". 2.1 A racionalidade jurídica em Weber e em Habermas. 2.2 "Prudência" jurídica e dialética social: definições de Lyra Filho. Capítulo 3 Limitações da linguagem na ordem jurídica – Os abusos do “juridiquês”. 3.1 A linguagem jurídica como óbice ao acesso à justiça e ao judiciário . Conclusão. Bibliografia. Anexo.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho aborda o discurso jurídico, a linguagem jurídica inteligível e sua importância na eficácia do acesso à justiça. Para tanto, utiliza de argumentos da área linguística, filosófica, sociológica e jurídica, além das conclusões práticas da pesquisa de campo.
Em primeiro plano, são analisadas, teoricamente, as relações entre o binômio Direito e linguagem e o exercício de poder que este binômio “escolheu” para segregar o conhecimento jurídico. Sob a ótica da linguística, este exercício de poder decorre do rigor e tradição que historicamente foi formado (levando-se em conta todas as espécies de texto linguístico – verbal e não verbal).
Após analisar o papel da semiótica jurídica, a monografia traz a compreensão de Foucault e a “ordem do discurso” cuja função é analisar e revelar o papel do discurso na reprodução da dominação entendida como o exercício do poder pelas elites, instituições ou grupos e de que resulta, dentre outras coisas, a desigualdade social. Trata o discurso como desejo e não objeto de desejo, capaz, portanto de “agir” e mudar quadros sociais.
Complementando esta visão foucaultiana, analisa-se a posição de Bourdieu em “o poder simbólico”. Bourdieu vislumbrou o direito e a linguagem jurídica como uma forma de manifestação de poder e constatou que simples limitações às diversas formas de interpretação jurídica, representam, por si só, forma de controle social.
Ao longo da abordagem tanto de Foucault como de Bourdieu a monografia trará enfaticamente a linguagem jurídica como foco das duas posições a fim de que o leitor compreenda sua dimensão como instrumento de poder na sociedade.
Ponto crucial do trabalho é mostrar as transformações na linguagem, através do chamado giro linguístico e a subsequente “parceria” do discurso com as ciências sociais e não mais com a economia. O giro linguístico deu dinâmica à linguagem, interferindo na construção dialética das normas jurídicas, agora “recheadas” de interpretação (não mais de apenas dados literais da lei). Este giro, por sua vez, ganha força na conclamada e possível pós-modernidade. Na monografia, o que se pretende explicar com a teoria do giro linguístico e os paradigmas pós-modernos é o direito como texto, instalado nos desejos sociais do dever-ser e da justiça e o possível encontro da ciência e o senso comum, o que estimularia a visão do direito como uma prudência. Dando-se essa valoração e sentido para o direito, a linguagem acessível, inteligível, clara e concisa torna-se consequência lógica do seu objetivo: justiça social.
Numa tentativa de esgotar argumentos acerca dessa valoração do direito como prudência que utiliza a linguagem para incluir e não para segregar a justiça, a monografia trará em seu corpo uma análise sociológica sob vários ângulos. Os ângulos opostos de Marx Weber e Habermas, por exemplo; enquanto para aquele o discurso está pautado no positivismo jurídico e no distanciamento do direito e moral, para este, o discurso deve ser inteligível sob a ótica da ação comunicativa e ligado à moral. Para Habermas os atores da fala seriam iguais, uma vez que o discurso é consensual e entendido por todos, cumpre, pois, seu objetivo de inclusão.
Outro ângulo proposto é o do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos. Segundo ele, a linguagem é um dos instrumentos mais eficazes na difusão e engajamento social do conhecimento jurídico. De maneira semelhante destaca-se o posicionamento de Roberto Lyra Filho cuja análise baseia-se no papel social do direito. Na chamada “dialética social” o direito deve acompanhar as mudanças da sociedade em vez de engessar suas leis, bem como dinamizar a linguagem jurídica a fim de difundir o conhecimento acerca do Direito e da Justiça. A finalidade de trazer esses ângulos sociológicos no trabalho é mostrar que o objetivo do Direito é o alcance da justiça na sociedade e para a sociedade. Não há como mudar a “atitude linguística” jurídica sem pensar “socialmente”.
A última parte do desenvolvimento da monografia cuida de trazer exemplos práticos da análise teórica feita até então. Explica, tomando como referência principal o juiz federal Novély Vilanova, como os abusos do chamado “juridiquês” prejudicam a compreensão do que é direito e de como essa linguagem pode afetar o acesso à justiça. A proposta é mostrar a dificuldade em engajar a sociedade no conhecimento dos seus direitos, deveres e senso de justiça real (e não a tardia, segregada) por conta de uma linguagem completamente inacessível e incompatível com os objetivos teóricos (ao menos) do Direito. Além da dificuldade do chamado “homem médio” em entender a linguagem jurídica e, por sua vez, distanciar-se, sem querer, da justiça e do judiciário, a monografia trará exemplos de que a própria elite jurídica pode sofrer com esse rebuscamento desnecessário da linguagem.
Finalmente, na pesquisa de campo, pretende-se confirmar a análise teórica e os exemplos trazidos no corpo da monografia. Trata-se de um levantamento de dados local acerca da opinião de estudantes, advogados, juristas, professores e a população como um todo (em diferentes classes econômicas) sobre a linguagem jurídica, o acesso à justiça e a compreensão acerca do direito e da justiça.
DESENVOLVIMENTO
1 Direito, Linguagem e Poder.
A linguagem jurídica especificou-se para segregar. Segregar conhecimento, o acesso à justiça, bem como ao judiciário, o “modo de vida” dos indivíduos, as relações interpessoais e assim, definir-se como forma de dominação. A linguagem simples, fora das convenções arcaicas de manutenção do poder, seria a independência real do Poder Judiciário, todavia, engessa-se o Direito sob o conceito de ciência exata como se assim fossem as relações sociais.
Estas relações sociais, entretanto, é que refletem como deve ser o Direito e como ele é recepcionado e compreendido. A linguagem jurídica usa de “palavras difíceis” e termos jurídicos “exclusivos” para individualizar-se, mas se distancia da sábia afirmação de que o compreensível não é esquecido.
Nem todos sabem que cabente é o devido a cada herdeiro; que de cujus é a pessoa falecida; jacente é a herança abandonada; premoriência é a morte de uma pessoa antes da outra, e todos estes termos estão na fundamentação de Vossa nunca circunducta, ou melhor, nunca desmotivada e, por isso, jamais nula decisão. Conquanto a pesquisa deu-nos os sinônimos, ainda que aproximados, o problema está no conjunto ininteligível para as pessoas comuns. É importante que a linguagem jurídica seja entendida por todos. Trata-se de conhecer os direitos e deveres que asseguram a própria dignidade da pessoa humana e não um conjunto de regras, normas, pedidos e decisões formulados por “operadores-robôs” do direito. A transparência é um princípio democrático, inclusive. Não há participação, não há luta sem compreensão.
O poder segregado está engajado no Direito que “manda e desmanda” e a linguagem cheia de rebuscamentos desnecessários é base para a manutenção deste direito que se explica por suas normas e não pelas transformações sociais.
1.1 O Fenômeno linguístico – Semiótica Jurídica.
Os serviços judiciários brasileiros são um fenômeno semiótico, logo um processo verbal e não-verbal bloqueador da comunicação.
Segundo o professor Dolzany (2003a) o século passado deixou o aparecimento e desenvolvimento de duas ciências da linguagem – a Linguística, ciência da linguagem verbal, e a Semiótica, ciência de toda e qualquer linguagem. Uma síntese do objeto de cada uma delas está em diagnosticar que existe uma linguagem verbal, veículo de conceitos e articulada no aparelho fonador, e que, no ocidente, teve uma tradução visual alfabética chamada “linguagem escrita”, ao mesmo tempo em que se reconhece a existência de múltiplas e outras linguagens que traduzem sistemas sociais e históricos de representação do mundo. Todo cuidado é pouco ao se falar em linguagem, pois melhor seria referir-se a “linguagens”.
A Semiótica deve muito de sua sistematização aos estudos de Charles Sanders Peirce, um jovem químico, matemático, físico, astrônomo e poliglota cientista americano da segunda metade do século XIX. Quase à mesma época também se registram estudos semelhantes entre cientistas russos e europeus, dentre os últimos Ferdinand Saussure, considerado o formulador do pensamento estruturalista, base para o estudo do significado de acordo com seu contexto, no caso a estrutura. Em palavras curtas, “a Semiótica tem por objeto de investigação todas as linguagens possíveis, ou seja, tem por objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido” (SANTAELLA 2005, pag. 13). A conceituação levaria a crer que o objeto da semiótica abarcaria todo o conhecimento apreendido da realidade.
A comunicação não-verbal antecede a comunicação verbal. O homem primitivo, à falta de um código de linguagem falada, recorria a gestos e expressões faciais para traduzir sinais de perigo, alegria e ódio. O registro não é apenas histórico, mas também biológico. Uma criança leva muito tempo do parto até as primeiras palavras, mas nem por isso deixa de emitir e receber mensagens quando chora, levanta os braços ou abre um largo sorriso. Essa comunicação, chamada não-verbal, é frequentemente estudada por psiquiatras, psicólogos, antropólogos e sociólogos. Dolzany (2003b) ainda diz que um imenso saber desconhecido está por vir no estudo da comunicação não verbal, especialmente porque a transmissão do pensamento científico por muitos séculos se prendeu à linguagem falada e escrita. Não é à toa que em muitas culturas ocidentais o saber científico seja próprio de pessoas “letradas”, enquanto se atribua o conhecimento empírico a sociedades em estágio primitivo. A mensagem verbal costuma cair no descrédito porque há uma tendência em se acreditar mais no componente não-verbal, este provavelmente sob menor controle consciente.
Já a comunicação verbal foi tema recorrente em Ferdinand Saussure, cuja pretensão era a de fundar uma “ciência da linguagem verbal”. Para ele, língua e fala são fenômenos distintos, porém inseparáveis. A língua se forma pelo conjunto das convenções necessárias à comunicação, é produto social que cada indivíduo terá de assimilar. Por outro lado, a fala é parte individual da linguagem, tem a ver com o uso das regras da língua num ato de fala e comunicação. Saussure, resumidamente, tem a língua como um sistema de valores diferenciais, onde cada elemento só existe e adquire seu valor e função por oposição a todos os outros. Os elementos que constituem a estrutura de uma língua têm uma interação tão forte que qualquer alteração de qualquer elemento, ainda que mínima, levará à alteração de todos os demais elementos do sistema.
A chamada “Literatura Jurídica” segundo o professor Dolzany (2003c) tem conferido especial relevância à comunicação verbal, mas essa opinião não é pacífica. Essa predileção citada por Dolzany se explica nas raízes históricas dos sistemas judiciários ocidentais, cada vez mais complexos pela necessidade de regulamentação dos comportamentos dos indivíduos e da atuação do Estado. É do sistema românico (civil law), sempre devoto extraordinário à lei escrita, o culto à codificação para que “a ninguém fosse lícito ignorar a lei”. A escola anglo saxônica (common law) substituiu o apego à lei pela figura do julgador. É possível que daí decorra entre “nós”, os latinos, o sentimento de que um instituto jurídico ganha solidez apenas quando normatizado em lei, pois “vale o que está escrito”[1].
A um cidadão inglês importa apenas saber qual o entendimento de um juiz ou tribunal sobre determinada questão jurídica em dado momento e espaço. A oralidade no sistema saxônico e o culto à forma do sistema românico podem explicar porque no primeiro realça a comunicação oral enquanto no segundo é mais importante a língua escrita que a falada.
O estudo da comunicação no sistema judiciário brasileiro tem, assim, privilegiado o enfoque à escrita em detrimento da oralidade, por isso que os “operadores do Direito” foram “doutrinados” desde os bancos acadêmicos a acreditar que “o que não está nos autos não está no mundo”. Portanto, a atividade jurisdicional se reduziu a um processo de comunicação quase exclusivamente escrita: juízes, advogados, promotores e escrivães parecem seres cujo único meio de comunicação é a escrita. Mesmo as reclamações trabalhistas e os depoimentos de partes e testemunhas precisam se converter à linguagem escrita e assim perdem muito em substância. Os tribunais valorizam mais a documentação dos julgados, sempre na linguagem escrita.
Dolzany (2003d) ainda reflete a ideia de que, embora a comunicação não verbal tenha despertado pouco interesse dos estudiosos da linguagem jurídica, não se nega sua existência no “modo jurídico brasileiro”, cuja relevância algumas vezes reflete na linguagem escrita e falada. A linguagem do sistema judiciário nacional chega a confundir-se em alguns pontos com a linguagem das religiões. O caráter esotérico de ambas as linguagens também as aproxima no sentido de que supostamente tratam de um saber restrito a iniciados que não pode ou não deve ser vulgarizado. Particularmente dentre os ocidentais, muitos sinais (signos) religiosos migraram para a liturgia forense sem qualquer dificuldade, mesmo que a separação dos poderes temporal e religioso seja aclamada como uma das maiores conquistas da democracia moderna. São frequentes os ícones entre ambas as instituições: balanças e espadas empunhadas por estátuas de feições angelicais são versões profanas dos arquétipos de virtude das divindades greco-romanas. O significante em ambas também coincide: a crença na igualdade dos homens e num sentimento de Justiça acima deles. A Justiça impõe o signo da divindade para realçar seu poder.
Um segundo elemento marcante da comunicação não-verbal realçada pelo professor Dolzany (2003e) no Judiciário é o rigor indumentário. Talvez apenas as religiões tradicionais se comparem aos rigores dos paramentos dos rituais forenses. Para ele, um sacerdote e um juiz em suas vestimentas se confundem (veste talar cria um “ar” de superioridade). Por último, um importante traço da comunicação não-verbal no Judiciário é a linguagem do corpo. A comunicação gestual na instituição também parece fincar raízes em posturas monásticas que aderem inconscientemente à figura do magistrado e seus auxiliares. A sisudez da deusa Têmis parece encarnar no magistrado, tornando-o à semelhança de outras referências da cultura judaico-cristã. Não por acaso a divindade nessa cultura é sempre representada, dentre outros papéis, por um julgador que não sorri e não chora, enfim, que jamais exterioriza o menor traço de emoção.
A comunicação verbal no Judiciário, por seu lado, tem sido estudada mais sobre seus elementos de estilo do que propriamente na exata compreensão do fenômeno. É visível a preocupação na reformulação do discurso jurídico, ainda que muito mais voltada para o purismo gramatical do que propriamente à sua re-estruturação (simplificação). Algumas instituições de ensino superior, inclusive as escolas preparatórias da carreira jurídica, têm dedicado um pouco de seus programas a cursos de reciclagem no português instrumental. A preocupação, contudo, se limita a isso.
A linguagem verbal judiciária está marcada por uma espécie de cientificismo exacerbado, o que não destoa de outros conhecimentos (medicina, filosofia, economia e etc). Uma primeira característica dessa linguagem verbal judiciária é a ambiguidade. Difícil encontrar no linguajar jurídico um simples vocábulo que denote um único sentido. Para começar, poucos textos contêm mais ambiguidades que as leis, onde o risco dos casuísmos precisa ser contornado pelo uso de palavras e expressões vagas que serão lidas de acordo com cada intérprete em seu tempo. O advogado é o primeiro intérprete da norma, logo, tem maior liberdade nesse ponto porque a melhor interpretação será aquela que beneficiar seu cliente. A ambiguidade interpretativa deságua nas mãos do julgador, que, por sua vez, emite nova opinião de onde outras ambiguidades surgirão para motivar os recursos de quem saiu prejudicado com a nova interpretação.
A tradição é a segunda forte característica da linguagem verbal jurídica. A ambiguidade traz em si o inconformismo do intérprete a enriquecer a linguagem; a tradição se presta como freio à força criativa. Por aí se explica que muito do que se fala e se escreve na literatura jurídica e forense seja mera repetição de fórmulas e estilos que comprometem, e, no mais das vezes, bloqueiam o processo de comunicação. O chamado “estágio obrigatório” nos cursos de graduação às vezes é simples aprendizado por mimetismo, mera reprodução literal de modelos de petições, erigidas a modelos perfeitos e acabados. A didática da imitação da linguagem se entranha tanto que o futuro advogado, juiz, promotor ou escrivão sentirá dificuldade em escrever ou falar sem recorrer a latinismos e fórmulas gongóricas.
Compreender a jurisdição como fenômeno semiótico implica aceitar que todos os usuários nas diversas instituições que o integram (tribunais, defensorias, promotorias, delegacias de polícia, escrivanias) estão incessantemente a transmitir e receber mensagens em cada gesto, postura, palavras escritas e faladas, imagens e rituais. A linguagem verbal de advogados, juízes e promotores no Brasil talvez ainda seja um dos últimos laços de identificação com a sociedade colonial. Existe nostalgia nas longas e eruditas construções gramaticais. O bacharel é “treinado” ao longo de sua preparação acadêmica a dominar o jargão e apreender dos textos as ambiguidades de que se valerá mais tarde como ferramenta de trabalho. O culto à forma e ao estilo levou à perda da substância humanística que tanto custaram às ciências jurídicas. Um jovem advogado facilmente reproduzirá as “regras” de um agravo, mas raramente se lembrará do princípio da instrumentalidade do processo.
É curioso notar que ao cliente se passa a mensagem de que “o bom advogado é o que fala e escreve muito”. Ao juiz, entretanto, a mensagem chega invertida: “típico caso de procrastinação que desacredita o pedido do cliente”. São raras as páginas de um processo cautelar, por exemplo, em que não se encontre um periculum in mora, fumus boni iuris ou inaudita altera pars.
A psicóloga Davis (1979a) ao interpretar posturas físicas afirma que todo mundo tem um jeito característico de conservar o corpo quando anda, senta ou fica em pé, qualidade tão pessoal quanto a assinatura. O curioso, continua a psicóloga, é que essa postura parece ser uma pista de caráter bastante digna de confiança. Logo adiante há uma passagem que confirma a ideia do poemeto: “A postura de um homem nos fala de seu passado. A própria conformação de seus ombros pode ser indicativa de cargas sofridas, de fúria contida ou de timidez pessoal” (DAVIS, Flora, pag 101, 1979).
O juiz e professor Dolzany (2003f) ainda cita Fátima Andrighi, então desembargadora do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, entusiasta e mentora do projeto dos juizados de conciliação que clamava pela mudança de comportamento do magistrado que fosse trabalhar naqueles juizados. O juizado era um projeto que exigia do juiz um outro olhar e um novo agir sobre a função judicante. Informalismo era insuficiente para que a lei funcionasse; era preciso que o juiz se dedicasse ao papel do conciliador e abandonasse um pouco o mito da equidistância física. Hoje, ministra do STJ, fez um comentário seu sobre uma ousada aplicação dos conhecimentos de cromoterapia no ambiente das audiências do juizado. Ouvir de uma magistrada de carreira tais referências a conhecimentos que estão além da vã filosofia positivista é um indicativo de que os juízes pelo menos intuitivamente reconhecem o jogo semiótico.
A título de exemplo, Davis (1979b) cita que os estudiosos da linguagem corporal no cotidiano forense costumam citar o julgamento dos Sete de Chicago, em 1919, como ilustração da existência de uma forma de comunicação inconsciente. Durante o julgamento, o advogado de defesa protestou formalmente contra a postura do juiz. Ao longo do sumário de acusação, o juiz Julius Hoffman dirigia toda a atenção inclinando-se para frente, mas durante o sumário de defesa, ele se inclinava tanto para trás na cadeira, que parecia quase dormindo. A objeção foi recusada. Aqui no Brasil, houve um caso parecido no STF. Enquanto sustentava da tribuna, o advogado interrompeu sua argumentação até que dois juízes da Corte encerrassem uma animada conversa paralela à apresentação da defesa, o que demonstrou descaso total à sustentação do advogado.
É possível notar, portanto, a importância da linguagem verbal e não verbal para uma construção da comunicação jurídica inteligível entre os atores sociais. A linguagem ora pode ser usada como instrumento de dominação e manutenção do status proporcionado pelo eruditismo da fala ou escrita, ou ainda da postura e comportamentos do sujeito, ora pode ser instrumento democrático de inclusão e compreensão da justiça.
1.1.1 A Ordem do Discurso.
A instância do discurso jurídico pode ser apresentada por Foucault (2003a), na Ordem do Discurso, enquanto resultado de diversos sistemas de controle da palavra, resultado das mais diversas práticas restritivas da palavra: sejam aquelas que limitam o que pode ser dito de verdadeiro, o que pode ser dito de razoável, operando uma espécie de bloqueio, sejam aqueles mecanismos que prendem tudo aquilo que aparece na ordem do discurso a um mesmo — texto primeiro, autor, disciplinas —, sejam aqueles que, pela instituição de uma cena a repetir, pela constituição de “sociedades de discurso”, pelo funcionamento doutrinal do discurso, pelas apropriações sociais, limitam os sujeitos falantes. São os três sistemas de exclusão do discurso: externos ao discurso — o interdito, a partilha da razão e da loucura e a vontade de verdade; internos ao discurso — o comentário, o autor, as disciplinas teóricas; exclusão dos sujeitos falantes — rituais da palavra, sociedades de discurso, doutrinas e apropriações sociais. Quer dizer aquilo que é efetivamente dito não provém de um tesouro infinito de significações,mas de condições de possibilidades.
Segundo a professora Lopes (2010a), numa releitura de Foucault, “A ordem do discurso” tem a função de analisar e revelar o papel do discurso na reprodução da dominação entendida como o exercício do poder pelas elites, instituições ou grupos e de que resulta, dentre outras coisas, a desigualdade social. Esta, por sua vez, reflete a diferenciação e a discriminação de raça, classe, sexo e características étnicas. Especificamente os analistas críticos do discurso querem saber quais as estruturas, estratégias ou outras propriedades do texto, falado ou escrito, da interação verbal ou dos acontecimentos comunicativos em geral que desempenham um um papel nestes modos de reprodução. Para a professora Lopes (2010b), a análise crítica do discurso jurídico procura encontrar-se nas estratégias discursivas que legitimam o controle, que naturalizam a ordem social e, especialmente, as relações de desigualdade. Rejeita-se a ideia de autonomia do sistema da língua, pois reivindica analisar o discurso no interior da sociedade como um todo.
Para Foucault (2003b), a compreensão de poder discursivo não é como um fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indivíduo, grupo ou classe sobre outros, mas como algo que circula e só funciona em cadeia, exercendo-se em rede. Não é algo unitário e global, e sim formas heterogêneas, em constante transformação, que não é uma coisa em si, mas sim um conjunto de práticas sociais que pressupõe relações em diversos pontos e lugares da rede social. Desta forma, para que o discurso jurídico possa assumir um papel revolucionário, deve contar com a ação reivindicatória das pessoas, que se percebendo responsáveis por essa construção, não abdiquem de seu direito, induzindo, nessa correlação de forças sociais, a sua “participação decisória”, autônoma, cidadã. O poder se exerce independente de sua vinculação com o Estado, e sua dinâmica está ancorada em “efeitos de verdade” que ele procura produzir no interior dos discursos. A “verdade deve ser compreendida como um sistema de procedimentos ordenados para a produção, regulamentação, distribuição, circulação e operação de enunciados” (FOUCAULT, pag. 14, 2003c). Em "A ordem do discurso”, o filósofo Foucault (2003d) diz que o surgimento do discurso (da fala) pode parecer de pouca importância, entretanto, as proibições que o circundam logo revelam suas ligações com o desejo e com o poder. Não há nada surpreendente nisto, já que, como a psicanálise mostra, o discurso não é simplesmente aquilo que manifesta (ou esconde) o desejo – ele é também o objeto do desejo; e já que, como a história constantemente ensina, o discurso não é somente aquilo que traduz as lutas dos sistemas de dominação, mas é a coisa pela qual, por meio da qual e através da qual se luta, o discurso é o poder a ser tomado. Vê-se então, um desafio que é tornar o discurso jurídico (esse poder real) do entendimento coletivo, favorecendo toda uma sociedade e não um pequeno grupo. Desenvolver a simplicidade é uma das formas de assegurar a existência individual do homem e também legitimar o Direito a partir da determinação e do respeito por sua natureza humana e igualitária.
1.2 O poder simbólico.
Não há como falar em “poder simbólico” sem mencionar Pierre Bourdieu, que em sua obra vislumbrou o direito e a linguagem jurídica como uma forma de manifestação de poder e constatou que simples limitações às diversas formas de interpretação jurídica, representam, por si só, forma de controle social.
A linguagem no universo jurídico tem por finalidade persuadir e convencer. E, para fazê-lo, deve-se expor os fatos de forma clara, demonstrando que a conclusão do raciocínio é a sentença que se espera. Presume-se que os indivíduos, de uma dada sociedade, ao edificarem o Direito que irá reger as suas relações sociais e limitar a satisfação das suas necessidades, aceitam como legítimo tanto o poder que cria as normas, quanto válidas (e também) aceitáveis o conteúdos destas, pois, do contrário existiria, no mínimo, um contexto de subversão política, já que, estaria, em questionamento, a própria obediência ao estatuto social criado pelo poder político constituído. Neste ponto, nota-se a percepção de Bourdieu acerca do poder simbólico e a noção de que ele pressupõe que os dominados se submetem espontaneamente ao controle porque possuem crença neste comando:
“O poder simbólico como o poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer crer e fazer ver, de confirmar ou de transformar a visão de mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo: poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer ignorado como arbitrário.” (BORDIEU, 2005a, p.14)
A concepção do direito como um fenômeno social isolado da própria sociedade que o cria, trabalhando-se com as normas positivadas, separando tais normas dos valores e contextos sociais, repercutiu no ensino jurídico, que almeja apenas treinar/instruir “técnicos jurídicos”. Ao buscar apenas formar quadros técnicos, o ensino jurídico estritamente dogmático retira do futuro “operador do Direito” a percepção de que este fenômeno social é alimentado e construído pelos mesmos atores sociais que estariam submetidos àquelas normas.
Bourdieu explica que esta construção de um discurso homogêneo, engajado nos valores sociais e históricos para o conhecimento jurídico advém inclusive de formação jurídica também homogênea que os “operadores do direito” adquirem: uma tecnologia que lhes permitirá, pela vias do direito, trabalhar com os conflitos sociais:
“A proximidade dos interesses e, sobretudo, a afinidade dos habitus, ligada a formações familiares e escolares semelhantes, favorecem o parentesco das visões de mundo. Segue-se daqui que as escolhas que o corpo deve fazer, em cada momento, entre interesses, valores e visões do mundo diferentes ou antagonistas têm poucas probabilidades de desfavorecer os dominantes, de tal modo o etos dos agentes jurídicos que está na sua origem e a lógica imanente dos textos jurídicos que são invocados tanto para justificar como para os inspirar estão adequados aos interesses, aos valores e à visão do mundo dos dominantes.” (BORDIEU, 2005b, p. 242)
Segundo Campello (2010a) As normas jurídicas não são entes independentes dos agentes sociais, são reflexos dos movimentos destes agentes sociais. Ao isolar as normas, busca-se construir uma impressão de que elas poderão existir para sempre, independente da pressão social: esta é a ideologia que prega a manutenção do status quo. Portanto, o direito procura construir uma simbologia própria para a utilização delas por operadores do direito “aptos” e “treinados” para tanto, ou seja, controlar e manter dentro das expectativas do aceitável, os potenciais conflitos sociais que possam emergir das diversas interações entre os agentes socais.
É simplista notar que o direito cria um discurso, baseado na forma, a fim limitar não somente a atuação de agentes sociais, mas a própria interpretação das normas jurídicas. Desta forma, para conseguir manter a eficácia destas regras, faz-se necessária a adesão daqueles que irão suportar essa “carga”, e isto se concretiza pela perda do discernimento (dos destinatários das normas) que estão sob prescrições arbitrárias e que não estão aptos a questioná-las ou delas discordar:
“É próprio da eficácia simbólica, como se sabe, não poder exercer-se senão com a cumplicidade – tanto mais cerca quanto mais inconsciente, e até mesmo mais sutilmente extorquida – daqueles que a suportam. Forma por excelência do discurso legítimo, o direito só pode exercer a sua eficácia específica na medida em que obtém o reconhecimento, quer dizer, na medida em que permanece desconhecida a parte maior ou menor de arbitrário que está na origem do seu funcionamento.” (BORDIEU, 2005c, p 243)
Constata-se, portanto, uma espécie de distanciamento da sociedade com relação às normas jurídicas, uma vez que estas são já criadas para tornar inacessível o seu discernimento. Como se daria, pois, este distanciamento? De modo brilhante, eis a percepção de Bourdieu:
“A maior parte dos processos linguísticos característicos da linguagem jurídica concorrem com efeito para produzir dois efeitos maiores. O efeito da neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em um sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo. O efeito da universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestativos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado [são] próprios para exprimirem a generalidade e atemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjectivos que pressupõem a existência de um consenso ético […]” (BORDIEU, 2005d, p 215-216).
Em outras palavras, na construção das normas jurídicas, pretende-se apresentar aos seus destinatários um aspecto de impessoalidade e abstração, que, em verdade, apenas existiriam na edificação do discurso cristalizado na lei e que serviriam para, diante do “súdito” da norma, transmitir-lhe a crença de que a sua natureza (ou a sua finalidade) coincidiriam com a forma como foi redigida.
Uma das formas de observar este distanciamento é pela forma como se redigem as disposições normativas, vislumbrar que o próprio ordenamento, pelo art.11 da lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, prescreve a forma da redação legislativa:
“Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
I – Para a obtenção de clareza:
a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se empregará a nomenclatura própria
da área em que se esteja legislando;
b) usar frases curtas e concisas;
c) construir as orações na ordem direta, evitando preciosismo, neologismo e adjetivações dispensáveis;
d) buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do presente;
e) usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos de caráter estilístico;
II – Para a obtenção de precisão:
a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma;
b) expressar a ideia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico;
c) evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao texto;
d) escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou regionais;
e) usar apenas siglas consagradas pelo uso, observado o princípio de que a primeira
referência no texto seja acompanhada de explicitação de seu significado;
f) grafar por extenso quaisquer referências a números e percentuais, exceto data, número de lei e nos casos em que houver prejuízo para a compreensão do texto;
g) indicar, expressamente o dispositivo objeto de remissão, em vez de usar as expressões ‘anterior’, ‘seguinte’ ou equivalentes;
III – Para a obtenção de ordem lógica:
a) reunir sob as categorias de agregação – subseção, seção, capítulo, título e livro – apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei;
b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;
c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;
d) promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens.”
Segundo o professor Campello (2010b), pelo discurso, pretende-se construir uma espécie de mise-en-scène, desviando a atenção do “súdito” da norma para o verdadeiro desiderato do comando, gerando neste a crença na impessoalidade e neutralidade da norma jurídica:
“Esta retórica da autonomia, da neutralidade e da universalidade, que pode ser o princípio de uma autonomia real dos pensamentos e das práticas, está longe de ser uma simples máscara ideológica. Ela é a própria expressão de todo o funcionamento do campo jurídico e, em especial, do trabalho de racionalização […] que o sistema das normas jurídicas está continuamente sujeito, e isto há séculos” (BORDIEU, 2005e, p 216).
Logo, para exercer o controle da sociedade, não basta apenas deter o monopólio da produção do direito, necessário também que haja uma limitação ao ato de interpretar as normas jurídicas.
No que concerne à atuação do “poder simbólico” nas relações jurídicas e na linguagem nelas aplicadas, quando os interesses se mostram conflitantes ou uma ação humana fere os valores da norma jurídica, exigindo reparação dos mesmos, forma-se a lide (conflito), criando um novo centramento na relação entre os interlocutores processuais: a polêmica. No confronto de posições, a linguagem jurídica torna-se mais persuasiva por perseguir o convencimento do julgador que, por sua vez, resguarda-se da reforma de sua decisão, explicando, na motivação da sentença, os mecanismos racionais pelos quais decide tal lide:
“o poder quase mágico das palavras resulta do efeito que têm a objetivação e a oficialização de fato que a nomeação pública realiza a vista de todos, de subtrair ao impensado e até mesmo ao impensável a particularidade que está na origem do particularismo […] e a oficialização tem a sua completa realização na manifestação, […] pelo qual o grupo prático, virtual, ignorado, negado, se torna visível, manifesto, para os outros grupos e para ele próprio, atestando assim a sua existência como grupo conhecido e reconhecido, que aspira a institucionalização.”(BORDIEU,2005f,p.117-118).
As partes processuais, por sua vez, organizam suas opiniões com representação simbólica que possa ser aplicada ao mundo real, demonstrando a possibilidade de correspondência entre motivo e resultado. Ao adentrar neste campo jurídico, os litigantes renunciam à possibilidade de solução própria individual do litígio, conferindo o poder de encontrar a interpretação adequada, ao caso concreto, para o Estado-Juiz, aceitando, portanto, as “regras do jogo”, o monopólio da justiça, para que possam ter acesso, de forma legítima, ao bem da vida que está sob disputa, mas, em regra, deverão as partes atuar por meio de profissionais habilitados para tanto: os “operadores do direito”. Do mesmo modo, para que se tomem possíveis às relações sociais, ou, nos termos de Bourdieu:
“Se “dê o jogo” – é preciso que haja um motivo, um "objeto de desejo" que motive os indivíduos e os levem "a respeitar as regras" desse "campo": "Para que um campo funcione, é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc..” (BORDIEU, 2005g, p. 89).
É fato que o conservadorismo e a dominação são reconhecidos pela sociedade como identificadores da linguagem jurídica. As “regras” deste tal “jogo” concebido por Bourdieu são cláusulas de exclusividade de um saber jurídico engessado. Uma das maneiras de reverter esse quadro e estabelecer uma evidente reconquista do Estado pela sociedade seria o Poder Judiciário refletindo na mudança de seu ato comunicativo. Muito do longo caminho ainda há a percorrer porque persistem as graves barreiras de comunicação dentro das instituições judiciárias e destas com seus usuários. Sob a perspectiva do conhecimento jurídico, a linguagem apresenta-se como um instrumento de revelação do direito.
Segundo a Professora Lopes (2010c), a concepção naturalmente dialética da argumentação jurídico-processual, que encadeia sequencialmente uma tese (do autor – petição inicial), uma antítese (do réu – contestação) e uma síntese (do juiz – sentença), nunca deveria permanecer na mera aplicação da lei ao caso concreto e, por mais simplista que seja, poderia revelar, ainda que de forma oblíqua, quais os valores que integram a ideologia do sujeito processual que se manifesta no discurso jurídico. Os advogados peticionam para o juiz que assim os entende; o promotor exara parecer e o direciona também para o juiz; e, finalmente, o juiz decide para os advogados, para o promotor e para o Tribunal. Ou seja, as palavras ficam em um mesmo círculo e, de rigor, ninguém necessita pedir explicações sobre o real sentido/significação daqueles termos técnicos utilizados. Trata-se, visivelmente, diante de tudo que se tratou, de uma forma de manifestação do poder simbólico fundamentado por Bourdieu.
1.3 O Giro Linguístico
O giro hermenêutico, ou giro linguístico nasce com a proposta de “girar” a parceria das ciências sociais com a linguística e não mais com a economia (Durkheim, Marx e Weber). Isso se deu, mais especificamente, pós círculo de Viena e o surgimento da escola crítica do Direito e a escola de Frankfurt, nas décadas de 20 e 30. Na primeira geração da escola de Frankfurt, se destacaram: Marx Horkeheim, Theodor Adorno, Hebert Marcusse e Walter Benjamim; na segunda geração, em que o giro linguístico tornou-se mais evidente, se destaca Habermas e sua teoria da ação comunicativa. Além dessas referências históricas à contextualização do giro hermenêutico, deve-se mencionar a paridade de ideias de Gregório Robles (teoria do Direito como texto) e Luduvig Wittgeinsteim (teoria dos níveis comunicacionais) que confirmam a dialética da interpretação jurídica e concebem a norma como decisão. Trata-se de enxergar o enunciado normativo como um dado, este, por sua vez, faz-se norma jurídica (construído) via interpretação.
Com o surgimento dessa “filosofia da linguagem”, cujo marco inicial é a obra de Wittgeinsteim, passou-se a considerar a linguagem como algo independente do mundo da experiência e até mesmo a ela sobreposta, originando o movimento hoje conhecido como giro linguístico. Essa nova corrente filosófica rompeu com a tradicional forma de conceber a relação entre linguagem e conhecimento, entendendo que a própria compreensão das coisas dá-se pela preexistência de linguagem, deixando esta de ser concebida como mero instrumento que liga o sujeito ao objeto do conhecimento.
O direito, por sua vez, se encontra objetivado em linguagem. A linguagem é elemento essencial do seu ser e toda norma em sentido amplo é um ato de fala. A norma jurídica vista pelo prisma do ato de fala demonstra o caráter fundamental exercido pela linguagem no interior do sistema do direito positivo. Sabendo-se, portanto, que o direito é fenômeno essencialmente de comunicação, quer se trate de seu caráter prescritivo ou descritivo, a aplicação da semiótica contribui para que se atualize e contextualize o desempenho no ordenamento jurídico, no nível sintático (refere-se às relações formais entre si), nível semântico (envolve as relações de significado entre as normas e as condutas intersubjetivas disciplinadas) e nível pragmático (tratam das relações significantes com seus interpretantes, neste caso, os usuários do discurso normativo).
Vendo-se por esse prisma, Passarelli (2009a) diz que o intérprete deve "traduzir" esses textos expressos em linguagem do legislador para a linguagem do aplicador do direito, e para isso deve promover entre os textos um intenso diálogo, submetendo-os nesse processo a uma investigação semântica, de forma a alcançar as possibilidades de significação do signo empregado, lançando-os em suas relações sintáticas, para alcançar seu sentido, e sempre vislumbrando a utilização pragmática dos mesmos pelos utilizados do sistema jurídico. Constrói o jurista, assim, o "sistema jurídico" no exercício do labor hermenêutico. É desse intenso trabalho exegético que surge a "norma jurídica", que não se confunde com um texto prescritivo isolado. Isto porque nenhum enunciado prescritivo encerra uma unidade completa de significação:
“[…] Entretanto, sem encerrar uma unidade completa de significação deôntica, na medida em que permanecem na expectativa de juntar-se a outras unidades da mesma índole. Com efeito, terão de conjugar-se a outros enunciados, consoante específica estrutura lógico-molecular, para formar normas jurídicas, estas, sim, expressões completas de significação deôntico-jurídica.” (CARVALHO, Paulo de Barros 2008, p. 67)
No que concerne ao aspecto sintático, a análise de um texto de direito positivo (como, de resto, de qualquer mensagem vertida em linguagem) pressupõe que os signos linguísticos se combinam entre si na produção de mensagens com sentido, e com isso também geram novos signos, razão pela qual a sintaxe detém-se também sobre o problema da derivação desses signos novos.
Acrescenta Gama (2009) que essa possibilidade de os signos poderem se agrupar, formando novos signos, é um dos fenômenos mais importantes da linguagem. Cita como exemplo o alfabeto, que a partir da combinação de um número reduzido de letras pode formar infinitas palavras, tal como se dá, também, com as sete notas musicais, que combinadas podem gerar as mais formidáveis sinfonias.
Levando-se em conta o aspecto semântico, ao enfrentar as questões semânticas oriundas do texto jurídico a que se propõe interpretar, depara-se o intérprete com os vastos problemas de imprecisão da linguagem utilizada. Surgem problemas relativos à ambiguidade e vagueza dos termos. Deve-se ter em mente que o signo linguístico é uma entidade relacional, de forma que há necessidade de combinar o significante com um significado. A linguagem, na verdade, cria a realidade conjugando os aspectos verbais e não verbais para compor uma comunicação eficaz. Não há um significado objetivo, ele depende do mundo em que inserido o sujeito cognoscente, sua cultura, sua história.
Segundo Passarelli (2009b) O que ocorre é que a linguagem pode ser permeada por "ruídos" na comunicação, prejudicando a compreensão da mensagem entre os interlocutores. Se o termo utilizado contiver objetos de natureza distintas na denotação, tem-se problemas de ambiguidade. Haverá problema de vaguidade se estiver diante de critérios de uso de uma expressão insuficientemente precisos para distinguir o seu significado do significado de outras expressões. A comunicação deve ser eficaz, essencialmente no contexto jurídico, para que atinja sua finalidade. Não há de se falar em justiça social se o discurso jurídico não é inteligível e ainda, inacessível, segregado. O intérprete deve buscar clarear ao máximo o alcance do conceito, valendo-se de exemplos e do uso do termo em situações típicas.
Enfim, o objetivo que a análise semântica do texto procura alcançar é a identificação das regras que indiquem a qual objeto ou circunstância uma palavra pode ser aplicada.
No campo pragmático, é certo que todo o ordenamento pode ser transformado com as modificações substanciais nas mensagens provocadas por essa pragmática das comunicações jurídicas. O direito é, pois, um sistema comunicacional, ou, noutro dizer, dá-se em um âmbito no qual o emissor e o receptor da mensagem possuem em comum, pelo menos de forma parcial, o repertório necessário para a decodificação da mensagem.
De toda sorte, a incidência das normas jurídicas não se dá automaticamente. Há a necessidade de intervenção de algum ser humano, o intérprete e o aplicador da lei. Estes deverão estar sempre atentos então à realidade social ínsita ao fenômeno-comunicacional. O giro linguístico, portanto, surge para incentivar a concretização de um dos objetivos do direito na história: a realização de valores caros à sociedade, através da regulação das condutas intersubjetivas. Para a realização desses valores, o intérprete, sempre partindo do texto legislado, "constrói" o sentido normativo. Essa construção se dá, por sua vez, contextualizada com as transformações sociais. O propósito da linguagem jurídica não é refletir, mas retratar a realidade.
1.4 A pós-modernidade, a linguagem e o senso comum. Um novo paradigma social, uma nova teoria linguística.
Depois de analisar o fenômeno linguístico sobre a ótica teórica- comunicacional, bem como identificar as teorias nas quais a linguagem jurídica é esmiuçada (Foucault, Bordieu e teóricos sobre o giro linguístico) resta entender o papel do Direito na atual conjuntura de (des)razão pós-moderna e, por conseguinte, identificar a importância da transformação da linguagem jurídica nessa “nova fase”. Na verdade, o possível advento da pós-modernidade complementa a insatisfação com a linguagem jurídica traçada pelas teorias da ordem do discurso, giro linguístico e o poder simbólico no sentido de “enxergar” o direito em transformação, objeto do dever-ser e flexível aos anseios e conquistas sociais. Esse direito, por sua vez, é incompatível com a linguagem segregada, que exclui a sociedade em detrimento de uma elite jurídica.
A pós-modernidade, para os que acreditam que ela exista de fato, se manifesta como movimento filosófico-sócio-cultural, mediante sentimentos de insatisfação, ceticismo, contestação e ruptura dos padrões de conduta adotados pelo homem na sociedade contemporânea. "Pós" vem de após, depois da modernidade, fato pelo qual alguns consideram essa modernidade vazia em suas razões, soluções e perspectivas. A modernidade foi formada com base nos ideais Iluministas, que privilegiavam a razão e a ciência, dotada, portanto, de uma concepção matemática e mecanicista de mundo, passível de controle, previsão e dominação.
Esta visão científica de mundo, dotada de método e objeto, surtiu influência nas ciências ditas humanas, tais como Economia, Sociologia e no próprio Direito, formando a denominada “Ciência” do Direito. Segundo concepções clássicas, a ciência do Direito tem por objeto a norma jurídica e deve ser aplicada sem qualquer juízo de valor da parte do “operador do direito”, sob pena de se romper com uma estrutura objetiva racional e previsível (o que teoricamente geraria uma insegurança jurídica). Viana (2010a), professor da escola de Magistratura do estado do Paraná e estudioso do fenômeno da pós-modernidade destaca Hans Kelsen e sua Teoria Pura do Direito, como reivindicadora do status de Ciência para o Direito (traços da modernidade criticados pela pós-modernidade), dotando-o, portanto, de razão e objetividade, em nome da segurança jurídica. Ele elege como objeto de estudo de sua teoria a norma jurídica que é constituída de modais deônticos P (permitido), V (proibido) e O (obrigatório). A norma jurídica, pois, manifesta-se como descritiva de objetos (proposições jurídicas – Rechtssatz) e prescritiva de condutas (norma jurídica – Rechtsnorm).
O professor Viana (2010b) destaca ainda que, nos moldes da teoria pura do direito tem-se um Direito positivo, moldado por condutas casuísticas pré-estabelecidas em normas jurídicas, e que, em nome da objetividade e segurança, já trazem em si respostas antes das perguntas, ou seja, apresenta soluções jurídicas antes mesmo da ocorrência dos fatos da vida em sociedade, o que colide com a dinâmica do próprio Direito, eis que "ex facto oritur jus" (dos fatos origina-se o Direito).
Desta forma, ao intérprete e aplicador da lei não caberia qualquer juízo de valor, mas tão-somente aplicar a lei, como se estivesse a fazer uma operação mecânica, autômata, baseando-se tão-somente no silogismo clássico, em que a premissa maior seria a lei; a premissa menor, o fato, enquanto o resultado dessa operação seria a conclusão “certa”, objetiva, previsível e mais: a única possível. Assim, para Kelsen, fatos sociais, relações intersubjetivas ou concepções do que é justo ou injusto não cabiam ao operador do Direito ou à Ciência Jurídica, mas à Sociologia ou à Filosofia do Direito, sob pena de se romper com uma estrutura racional e objetiva. Desta forma, consolida-se o entendimento da modernidade de que o que se aplica às ciências naturais, também deve valer à ciência do Direito. Estava formado o modelo ideal de mundo para o homem: objetivo, lógico, matemático, previsível, controlável e seguro.
A pós-modernidade, ao contrário, não se trata de movimento linear e uniforme, surgido em data certa ou formatado por pensador específico. Ela decorre de diversas formas de expressão em épocas diferentes e em várias áreas do conhecimento. Na filosofia podem ser qualificados como precursores das noções de pós-modernidade: Friedrich Nietzsche, Jean-François Lyotard, Jacques Derrida, Michel Foucault, Jean Baudrillard, os quais, em diversas obras, adotaram posturas e discursos pós-modernistas. Na literatura, há quem observe traços pós-modernos em autores como Franz Kafka, George Orwell, Aldous Huxley e mesmo em Machado de Assis (O alienista).
Sampaio (1994) diz que o pós-modernismo perpassa por vários segmentos da sociedade, instigando o homem à revisão de (pré-)conceitos e valores moldados conforme interesses de certos segmentos da sociedade. Caracteriza-se pela ruptura de um pensamento padrão, formado com base na razão e na ciência. Assume, pois, uma postura zetética, e não dogmática.
Essa visão zetética, por sua vez, altera a maneira como o Direito é visto, aplicado e interpretado. Há um engajamento das relações sociais e do senso comum num mundo jurídico que agora se transforma assim como os “protagonistas” de direitos se transformam. O direito, sob a ótica das possíveis soluções que a pós-modernidade traz, não mais “é” e, sim, “está sendo”.
A critica pós-moderna elenca o Direito como instrumento de dominação e manutenção do status quo, concepção gerada no seio da modernidade. Entretanto, ao passo que critica, cria uma reflexão acerca do que o Direito pode ser, desde a conceituação da Justiça, o acesso a essa Justiça, o papel dos estudiosos e interpretes do direito, como também a acessibilidade linguística do Direito que não pode ser instrumento de segregação social.
Nesta tentativa de superar a modernidade e enfrentar a “transformação” do Direito, dando-lhe caráter de prudência e não mais de ciência engessada, surgiram movimentos de feições críticas e revisionistas que se aproximam do pós-modernismo. É o caso da França e o Critique du Droit; nos Estados Unidos e o Critical Legal Studies; na Alemanha e a Escola de Frankfurt, e, no Brasil, a Teoria Crítica do Direito. Tais movimentos, além de denunciarem as mazelas do sistema, instigam uma postura revisionista.
Uma das vertentes dessa postura, atrelada ao pensamento pós-modernista, diz respeito a uma aproximação entre ciência e senso comum. É fato que a ciência possui métodos e sistemas próprios, cujo objeto é uma natureza viva e dinâmica, especialmente com a pós modernidade. Esta, como já foi visto, caracteriza-se pela acentuação da complexidade, do risco e da produção da diversidade em contraposição a racionalidade, ao consenso e a certeza, e por isso pode aliar-se inclusive ao senso comum buscando não uma única resposta absoluta, mas respostas menos obscuras e que levem em consideração o todo e ao mesmo tempo as singularidades e fragmentações.
O sociólogo Boaventura de Souza Santos (1989a) trata de forma peculiar esse aspecto (ciência x senso comum), dividindo-o em duas “rupturas epistemológicas”. Na primeira ruptura epistemológica, a ciência constrói-se contra o senso comum e para isso dispõe de três atos epistemológicos fundamentais: ruptura, construção e constatação. Boaventura destaca que as ciências sociais têm por objetivo real um objeto que fala, que usa a mesma linguagem de base de que se socorre a ciência e que tem uma opinião e julga conhecer o que a ciência se propõe a conhecer. Nesta “primeira ruptura”:
“O senso comum é um conhecimento evidente que pensa o que existe tal como existe e cuja função é a de reconciliar a todo custo a consciência comum consigo mesma. É, pois, um pensamento necessariamente conservador e fixista. A ciência, para se constituir, te que romper com essas evidências e com o 'código de leitura' do real que elas constituem; tem de inventar um novo código – o que significa que, recusando e contestando o mundo dos objetos do senso comum (ou da ideologia), tem e constituir um novo universo conceitual, ou seja, todo um corpo de novos objetos, todo um sistema de novo conceitos e de relações entre conceitos.” (SANTOS, Boaventura de Souza. 1989b. p.32)
Já na “segunda ruptura” há, para Boaventura, um “re-encontro” entre ciência e senso comum (fruto do paradigma pós-moderno). Numa visão critica e brilhante de Boaventura, a primeira ruptura (paradigma moderno), só é compreensível se for contra o senso comum e recusa as orientações para a vida prática que dele decorrem: Um paradigma que pressupõe uma única forma de conhecimento válido, o conhecimento científico, cuja validade reside na objetividade de que decorre a separação entre teoria e prática, entre ciência e ética; um paradigma que tenta reduzir o universo dos observáveis ao universo dos quantificáveis e o rigor do conhecimento ao rigor matemático do conhecimento, do que resulta a desqualificação (cognitiva e social) das qualidades que dão sentido à prática ou, pelo menos do que nelas não é redutível, por via da operacionalização, a quantidades; um paradigma que desconfia das aparências e das fachadas e procura a verdade nas costas dos objetos, assim, perdendo de vista a expressividade do face a face das pessoas e das coisas onde, no amor ou no ódio, se conquista a competência comunicativa; um paradigma que assenta na distinção entre o relevante e o irrelevante e que se arroga o direito de negligenciar o que é irrelevante e, portanto, de não reconhecer nada do que não quer ou pode conhecer; um paradigma que avança pela especialização e profissionalização do conhecimento, com o que gera uma nova simbiose entre saber e poder, onde não cabem os leigos, que assim se veem expropriados de competências cognitivas e e desarmados dos poderes que elas conferem; um paradigma que se orienta pelos princípios da racionalidade formal ou instrumental, irresponsabilizando-se da eventual irracionalidade substantiva ou final das orientações ou das aplicações técnicas do conhecimento que produz; finalmente, um paradigma que produz um discurso que se pretende rigoroso, antiliterário ou outras figuras da retórica, mas que, com isso, corre o risco de se tornar, mesmo quando falha na pretensão, um discurso desencantado, triste e sem imaginação, incomensurável com os discursos normais que circulam na sociedade.
A “Segunda ruptura”, portanto, concebe esse possível re-encontro da ciência com o senso comum. Boaventura de Souza Santos (1989c, p. 36) diz que “uma vez feita a ruptura epistemológica, o ato epistemológico mais importante é a ruptura com a ruptura epistemológica”.
O senso comum, para o sociólogo, surge, enquanto conceito filosófico, no século XVIII e representa o combate ideológico da burguesia emergente contra o irracionalismo do antigo regime. A valorização filosófica do senso comum esteve, pois, ligada ao projeto político de ascensão ao poder da burguesia, pelo que não surpreende que, uma vez ganho o poder, o conceito filosófico de senso comum tenha sido correspondentemente desvalorizado como significando um conhecimento superficial e ilusório. Não é incomum que uma teoria sociológica erguia contra o senso comum seja considerada pela teoria posterior como não sendo mais do que senso comum, ainda que elaborado.
Ingressa-se, pois, numa seara polêmica. Boaventura de Souza Santos (1989d) diz que se o senso comum é o menor denominador comum daquilo em que um grupo ou um povo coletivamente acredita, ele tem, por isso, uma “vocação solidária e trans-classista”. Numa sociedade de classes, como é em geral a sociedade conformada pela ciência moderna, tal vocação não pode deixar de assumir um viés conservador e preconceituoso, que reconcilia a consciência com a injustiça, naturaliza as desigualdades e mistifica o desejo pela transformação. Desta forma, o senso comum torna-se o modo como os grupos ou classes subordinados vivem a sua subordinação, não é menos verdade que, como indicam os estudos sobre as subculturas, essa vivência, longe de ser meramente acomodatícia, contém sentidos de resistência que, dadas as condições, podem se desenvolver e se transformar em armas de luta. Boaventura dá um simples exemplo disso: o senso comum jurídico das favelas do Rio de Janeiro.
Para explicar tal polêmica, Boaventura de Souza Santos (1989e) diz que não é correto ter do senso comum uma concepção fixista. Tudo depende da conjuntura social. Uma sociedade democrática, com desigualdades sociais pouco acentuadas e com um sistema educativo generalizado e orientado por uma pedagogia de emancipação e solidariedade, por certo, produzirá um senso comum diferente do de uma sociedade autoritária, mais desigual e mais ignorante. Esse ultimo exemplo acontece no Brasil; dadas as disparidades sociais e a política das minorias dominantes, o senso comum, não desmascara a realidade e nem tampouco o Direito, conserva-os! Conserva-os excludentes, autoritários e antidemocráticos. É como se o senso comum, nesses moldes deterministas, funcionasse para manter a ciência do Direito envolta de uma grande máscara chamada: Justiça. Justiça tardia, defasada, não acessível a todos, pragmática. O senso comum no Brasil convencionou, por exemplo, que advogado, juiz ou promotor de justiça tem que “falar difícil” e escrever mais “difícil” ainda para ser digno do título de “doutor fulano”; não se contesta pelo saber jurídico, não se questiona a hierarquia formada pela linguagem.
Boaventura, entretanto, traz uma consideração interessante do que acha ser cabível para “equilibrar” o novo paradigma ou a segunda ruptura, uma nova consideração entre ciência e senso comum: qualquer deles é feito do outro e ambos fazem algo de novo. O senso comum é transparente e evidente, desconfia da opacidade dos objetos tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do principio da igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência linguística. Essa caraterização alternativa do senso comum procura salientar sua positividade, o seu contributo possível para um projeto de emancipação cultural e social nas condições de haver uma chamada “dupla ruptura epistemológica”.
Segundo Boaventura de Souza Santos, (1989f) essa “dupla ruptura” se daria quando o senso comum e a ciência se superassem a si mesmos para darem lugar a uma nova forma de conhecimento. Enquanto a primeira ruptura é imprescindível para constituir a ciência, mas deixa o senso comum tal como estava antes dela, a segunda ruptura transforma o senso comum com base na ciência. Com a dupla ruptura pretende-se um senso comum esclarecido e uma ciência prudente.
Este paradoxo ciência versus senso comum esclarecido e sua factível aproximação na dupla ruptura de Boaventura traz um leque de possibilidades para que a linguagem jurídica ultrapasse os limites da formalidade e se engaje nas relações sociais. Isto porque nessa leitura de Boaventura, o senso comum seria critico o bastante para desmascarar as mazelas sociais, incluindo, é claro, as mazelas do direito. Isso alcançaria, sem sombra de dúvidas a democratização da linguagem jurídica em vez de restringir-se a quem detém essa “imprudente” ciência jurídica nas mãos. Trata-se de ciência inacabada, incontroversa e, por muitas vezes, incompatível com a própria justiça. As transformações sociais, políticas, culturais e econômicas não param de acontecer e o senso comum esclarecido retrata isso; resta adequar o conhecimento jurídico e a aplicação do Direito nestas “realidades” e não o contrario (enquadrar as transformações às regras rígidas da ciência Jurídica).
É interessante perceber que essa crítica, dentre outros aspectos, já ajudam a viabilizar mudanças em alguns lugares, sobretudo no Brasil. Em alguns pontos de forma mais tímida, noutros de maneira mais expressiva. Há uma tendência positiva de aproximação do judiciário com a sociedade, tornando a justiça, redundantemente falando, mais justa na construção dessa “ciência prudente”.
Não se trata de utilizar apenas o senso comum como fonte de conhecimento, especialmente o jurídico, mas de entender que antes de fracionar tudo como catalogação científica, deve-se entender sua conexão, interatividade, integração e assim abrir os horizontes para modelos sistêmicos, escapando do conforto dos processos que se tem meramente controle e não a compreensão.
2 Sociologia Jurídica: “Fazer algo socialmente e Querer algo socialmente”
Na esfera sociológica, há de se perceber a importância da comunicação (entre os atores sociais) e seus efeitos na construção da própria racionalidade jurídica. Neste capitulo, o importante é enfatizar algumas opiniões de sociólogos que, de alguma forma, preocupavam-se com as relações jurídicas e a comunicação dentro de uma sociedade.
“Fazer algo socialmente e Querer algo socialmente”. Essas são palavras do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos, mulato, baiano e de família pobre. Retratam algo que para ele é o óbvio: não existe mudança social estrutural (quer seja política, econômica ou jurídica) sem que haja ação movida pelo anseio social. As reflexões de Guerreiro Ramos sobre a sociologia no Brasil promoveram uma dura crítica da importação de ideias e o elitismo dos intelectuais, trouxe à consciência os dilemas do pensamento social no Brasil e propiciou subsídios na tentativa de superar essa situação.
Para Guerreiro Ramos (1996a), a formação econômica, política e social brasileira dependente foi erigida sob as bases do colonialismo cultural, da subordinação mental da elite nativa em relação à cultura dos países dominantes. A visão etnocêntrica ancorada na cultura europeia e norte-americana teria disseminado entre os brasileiros uma concepção alienada da “realidade nacional”, homogeneizadora e propagadora de um universalismo abstrato que relegava a especificidade do “fenômeno nacional”. Este fenômeno, por sua vez, camuflava-se como simples acontecimento social, “abafando o ruído” dos reflexos alienadores culturais.
“Todo teorizar é extensão do fazer ao nível da representação” (RAMOS, 1996b. pg. 108). Foi assim então que o sociólogo chamou a atenção à sociologia crítica, em que conhecer é, sobretudo, transformar. Só se faz algo socialmente quem quer algo socialmente; a sociologia deve estar engajada na realidade social e isso deve ser perseguido com a possibilidade de autoconsciência do povo brasileiro. Foge-se assim, do “ruído” camuflado, da sociologia “enlatada”, importada.
O estudo do Direito, vinculado ao fenômeno sociológico, sofre das mesmas mazelas apresentadas por Alberto Guerreiro Ramos. O direito é aceito (embora não compreendido) na sociedade, mesmo quando “mascarado” do poder político e manutenção do status quo. Para fazer e querer “algo” socialmente no Direito deve-se engajar o conhecimento jurídico à realidade nacional, do povo.
A linguagem é um dos instrumentos mais eficazes na difusão e engajamento social do conhecimento jurídico. Levando-se em conta que o Direito faz parte da vida do cidadão brasileiro, em suas mais variadas formas, mostrando-lhe direitos, deveres, sanções, procedimentos; o vetor de ligação entre eles (sujeito e direito) é a linguagem, que deve ser inteligível. Trata-se de condição essencial para a própria eficácia da lei e acesso à justiça. Se a linguagem jurídica é complexa e inacessível, a sociedade alienada se conforma com a segregação do conhecimento e de seus direitos. Se, ao contrário, há a preocupação de aproximar esta sociedade ao conhecimento jurídico, aproxima-a dos seus direitos e da própria justiça.
Querer algo socialmente e fazer algo socialmente é uma das formas de inserir-se nesta sociologia crítica contemplada por Alberto Guerreiro Ramos. A sociologia do pensar e do agir, do teorizar e do refletir. As relações sociais afetam diretamente o Direito e, por isso, ele não é engessado, mas transforma-se ao passo que a sociedade também se transforma. A compreensão do direito é necessidade, é transformação urgente e sensata para a sociedade brasileira. A linguagem jurídica, portanto, deve fazer parte dos meios de “luta” pela democratização do conhecimento jurídico: o direito produtor de justiça social deve ser inteligível entre seus atores.
2.1 A racionalidade jurídica em Weber e em Habermas.
Neste subtítulo há mais uma demonstração das vertentes sociológicas da racionalidade jurídica e como elas sugerem "pontos de vista" diferentes, destinados a compreender o papel do direito na sociedade (engajado ou não nela): o paradoxo Weber versus Habermas. Trata-se de uma pesquisa teórica que relaciona a visão desses sociólogos com o seguinte questionamento: "o que é o Direito e por que a sua simples definição interfere nas relações sociais?". Se dissermos que o direito democratiza a justiça, incluímos a sociedade de todas as formas; na sua composição, interpretação, no acesso à justiça e na participação comunicativa com os representantes do órgão judiciário. Se, ao contrário, dissermos que o direito se limita a dirimir conflitos através de ações judiciais infindáveis, elitização dos chamados "operadores do direito" e a hierarquização da linguagem jurídica, excluímos a sociedade e abafamos a justiça. Weber e Habermas discutem a sociedade como um todo e trazem modelos de compreensão sobre "o que é direito" diversas, demonstrando que a comunicação e o uso da linguagem dependem de como se "deseja socialmente".
Jürgen Habermas, na tentativa de responder ao desafio weberiano sobre a democracia, pretende demonstrar que o povo pode fazê-la de modo justo e racional, malgrado as tensões do processo de racionalização que marcam o mundo ocidental, pois que a implementação democrática dos direitos é um processo no qual os indivíduos, com base na igualdade de participação, chegam a um consenso acerca das regras que desejam institucionalizar.
Weber (1996) acreditava na ligação estreita da modernidade com a secularização (desencantamento). Porém, a modernidade ruiu e com ela foi-se embora aquela "secularidade utilitária" responsável pelo retraimento do sagrado. Ele descobriu ser possível designar com propriedade o longo período de racionalização religiosa por que passou o mundo ocidental em virtude da hegemonia cultural alcançada por essa forma “ética” de religião desencantadora "deste mundo": o judeu-cristianismo. No Ocidente ocorreu também um desenvolvimento da racionalidade jurídica que trouxe o conceito (moderno) de ordem jurídico-legal formalmente legítima e legitimamente revisável. Vale ressaltar que o fato de a igreja cristã e as leis sagradas terem se tornado cada vez mais diferenciadas e separadas da jurisdição secular tornou esse processo de transformação, aos olhos de Weber, extremamente crucial. Isso porque abriu o caminho para a imposição de leis emanadas legitimamente apenas da autoridade secular e, além disso, trouxe o desenvolvimento lógico do formalismo jurídico, em íntima afinidade com as "intrínsecas necessidades intelectuais" dos juristas teóricos. Não por acaso Weber salienta como traço essencial da racionalidade do direito moderno seu caráter sistemático, e isto em função de ser o direito moderno, particularmente, "um direito de juristas". Entretanto, ele consegue constatar um “levantamento do véu”, a abertura de mais um caos mesmo naquela aura quase da ordem do supra-sensível de que se revestiam os axiomas jurídicos do direito natural. A tese de “destino inevitável” está presente quase que na totalidade da herança weberiana.
Habermas (1983) (representação da segunda geração da Escola de Frankfurt) discorda profundamente do conceito weberiano de “ponto final”, completamente dominado pelo positivismo jurídico que representa a colonização pós-direito natural, da esfera jurídica pela racionalidade técnico-instrumental-formal, a racionalidade dos meios. Trata-se de ver o direito como meio e não como valor. Em sua teoria da ação comunicativa, ele a coloca como base da construção do Direito como discurso. Nesse âmbito, as normas morais e jurídicas resultam de consensos comunicacionais, possíveis nas condições exigidas pela teoria do discurso de onde surgirão os direitos fundamentais. Existe, portanto, uma “saída” para Habermas (1989a) não prevista por Weber; a ação comunicativa possibilita a origem de um espaço público onde a liberdade seja viável e não exista a manipulação dos indivíduos para que todos, numa situação de fala, sejam iguais. A modernidade na concepção weberiana traça o destino não otimista da unidade natureza – relações sociais – ordem jurídica; no parecer habermasiano a divisão dos tipos de ação possibilitam (e não é utópico como parece ser) um discurso harmonioso pressupostamente criado pelo Giro lingüístico. Ele pretende, em diálogo permanente com a problemática pós-moderna, sustentar a atualidade de um projeto moderno renovado, atento a seu tempo e aos desafios que o mundo apresenta.
Estabelecendo as diferenças básicas, segundo Weber, um acordo normativo para ser racional, se orienta de forma “racional conforme fins” (teleológico), enquanto Habermas defende a idéia de “racionalidade segundo valores” (deontológico). Weber menciona a moral como sendo autônoma em relação ao direito, enquanto que Habermas caracteriza a moral de modo complementar em relação ao direito.
Segundo Barbacena (2006a), a sociologia política de Weber estabelece a relação entre a dominação e os termos correspondentes: a obediência, as razões normativas que motivam a subordinação dos submissos e os tipos ideais de legitimidade que fundam as pretensões dos dominadores. Além disso, a dominação não é tão facilmente abolida; mesmo a democracia a pressupõe, afirma. A sociologia weberiana tem em comum como a filosofia política moderna a inquietação em revelar a maneira pela qual se é levado a reconhecer a legitimidade de um poder e poder fazer da obediência um dever.
Na obra “Economia e Sociedade”, Weber (2004) fala em três tipos de dominação: a dominação carismática que se legitima na crença no caráter sagrado, na figura do chefe ou do profeta; a dominação tradicional que se baseia na crença e nos poderes de senhores, na santidade e na tradição; e a dominação legal, que se baseia em estatutos que podem ser modificados e criados desde que o mesmo esteja pré-estabelecido, em que há inexistência extra positiva na qual os que obedecem a essa dominação possam fundar sua validade. Há, portanto, um problema criado por um tipo de dominação característica da modernidade, no qual a legitimidade coincide com a sua legalidade. Segundo Weber, a dominação legal adquire um caráter racional, pois a fé na legalidade das ordens prescritas e na competência dos que foram chamados a exercer o poder tem a ver com a racionalidade que habita na forma do direito e que legitima o poder exercido nas formas legais.
A forma de dominação baseada na crença da legitimidade da ordem jurídica e política é, dentre outras características, o seu caráter impessoal, uma vez que a obediência não está ligada àquele que detém o poder, mas é condicionada pelo conteúdo obrigatório do direito. Há de se ressaltar também o caráter objetivo das competências juridicamente delimitadas. Segundo Barbacena (2006b), a dominação legal tem ainda duas características importantes e particulares: a direção administrativa burocrática e a preeminência da ordem jurídica estatal. O fundamento da legitimidade de uma ordem estatal não poderia escapar à decisão, momento especificamente político. A concepção weberiana de dominação racional decorre da relação de força com os interesses complexos e com as ações destinadas a dar forma a tais interesses e a lhes promover. Em razão desse ponto de partida, o que importa, antes de tudo, é mostrar que a dominação é diferente dos princípios de legitimação que a lei reivindica, mas não se trata de uma discussão sobre a justiça ou injustiça de uma determinada construção política. Para Weber cabe a visualização do problema da legitimidade, como meio de estabilização e racionalização da disputa do poder, e também como fim a ser perseguido por qualquer tipo de dominação.
Diferente modo, Habermas afirma que “as ordens estatais da sociedade moderna não podem tirar sua legitimação senão da idéia de autodeterminação, com efeito, é necessário que os cidadãos possam conceber-se a qualquer momento como os autores do direito ao qual estão submetidos enquanto destinatários” (HABERMAS, 1997a, p. 479). Habermas defende que não se pode supor que a fé na legalidade de um procedimento legitime-se por si mesma, como afirma Weber, pois o que dá força à legalidade é justamente a certeza de um fundamento racional, a partir de uma aceitabilidade consensual e dialógica, que transforma em válido todo ordenamento jurídico. Como exemplo pode-se citar a importância de se evidenciar a participação popular nos juízos de justificação das normas jurídicas.
Neste sentido, o direito, para se legitimar e fomentar a busca pela fundamentação racional da base de validade do próprio Direito deverá contar com a concordância de seus destinatários, que são ao mesmo tempo, seus autores. Isso acontece, segundo Habermas, a partir da conexão entre soberania popular (exige o entendimento mútuo – discurso inteligível) e os direitos subjetivos ou direitos humanos (permitem o agir orientado pelo interesse privado) e, portanto, entre autonomia pública e privada.
Levando-se em conta novamente à Teoria da ação comunicativa de Habermas (1989b), tem-se uma explicação acerca da legitimidade do direito com auxilio de processos e pressupostos de comunicação (que são institucionalizados juridicamente) os quais permitem levantar a suposição de que os processos de criação e de aplicação do direito levam a resultados racionais. Para Habermas, a linguagem serve como garantia da democracia, uma vez que a própria democracia necessita da compreensão de interesses mútuos e o alcance de um consenso. Assim o consenso social deriva da Ação Comunicativa, ou seja, uma orientação que responde ao interesse cognitivo por um entendimento recíproco e ao interesse prático pela manutenção de uma intersubjetividade ameaçada.
Habermas, portanto, questiona o distanciamento que Weber faz entre Direito e Moral e a relação entre este distanciamento e as noções de legitimidade e legalidade. Em síntese, no ver habermasiano só é legitima a legalidade circunscrita em uma racionalidade cujo procedimento se situa entre processos jurídicos e argumentos morais, o processo legislativo é revalorizado. Para estabelecer a relação entre Direito e Moral, Weber apela às instâncias formais e materiais e estas, por sua vez, não são suficientes porque, para Habermas, Weber confunde os aspectos estruturais com os aspectos de conteúdo; as qualidades formais de procedimento, que possibilitam uma fundamentação pós-metafisica, com as orientações de conteúdo (orientações valorativas materiais). Weber, segundo Habermas (1997b), não teria visto o cerne, o fundamento moral do direito, confundindo a preferência por valores que se traduz num resultado de orientações de valores subjetivos e culturalmente contingentes, com a validade normativa (o dever ser das normas obrigatórias e universais). Segundo conclui Barbacena (2006c) acerca destas diferenças, o direito é um meio ambíguo, podendo mesmo conferir uma aparência de legitimidade a um poder não legitimo, uma vez que se nutre das fontes de integração social seguintes: mercado (dinheiro), Estado (poder) e solidariedade (comunicação).
Deve-se analisar o fato de a sociedade atual só acreditar na legitimidade se houver legalidade. Desta forma é preciso definir, conceituar o que é legalidade. A metafísica, a religião, dentre outras coisas, já foram utilizadas para explicar o porquê da legitimidade, baseada num “poder” acima da razão; entretanto, estes fundamentos não são mais aceitos. Busca-se então, a própria razão como explicação para a legalidade no seio social. Weber, neste aspecto, não acha compatível que a moral seja inserida no Direito, sem retirar-lhe, assim, a razão e, por conseguinte, a legalidade. A conceituação de Habermas, entretanto, afirma que as normas jurídicas e as decisões políticas e judiciais só podem ganhar o status de normas válidas e legítimas quando baseadas e justificadas racionalmente no princípio do tratamento igualitário dos sujeitos de direitos que vivem numa comunidade jurídica. Os atores sociais, numa situação de fala inteligível, viveriam sob a justiça social baseada na racionalidade moral de normas que não somente se impõem, mas que se legitimam naturalmente. Numa sociedade democrática, somente o público de cidadãos pode validar crítica e discursivamente as normas jurídicas, emprestando, assim, legitimidade ás decisões estatais.
Habermas (1997c) diz que o Direito não é um sistema fechado em si mesmo, o que possibilita uma abertura, inevitável, aos discursos morais. Dentre os princípios do Direito moderno, há em grande parte os princípios morais, que possuem uma dupla estrutura: ao mesmo tempo em que são morais, foram incorporados ao sistema jurídico por meio da positivação. Essa abertura do Direito à Moral significa que ela está incorporada à própria racionalidade procedimental. É o Direito encarregado de barrar os excessos do sistema econômico e político, porque ele, ao mesmo tempo em que regulamenta o poder e a economia, também regulamenta as expectativas dos sujeitos no mundo da vida. Cumpre assim, uma função integradora.
Tornar o discurso inteligível entre os atores sociais, mais especificamente, tornar a linguagem jurídica acessível e comum a todos os interessados pode parecer utopia, mas depende da maneira como enxergamos e entendemos o direito: democratizador ou autoritário, ciência ou prudência, atrelado ou não à moral, engajado ou não aos anseios sociais. Também vincula-se a maneira como vemos a norma jurídica: recheada ou não de interpretação, presa a literalidade da lei ou não. O paradoxo Habermas x Weber nos trás à reflexão de qual deve ser o papel do direito na sociedade que viabilize a participação social na comunicação jurídica de inclusão e efetivo acesso à justiça.
2.2 "Prudência" juridica e dialética social: definições de Lyra Filho
Roberto Lyra Filho é mais um representante sociólogo que, a partir de sua definição do que é o Direito na sociedade, leva à reflexão sobre a inclusão do povo para a construção jurídica (aí verifica-se a importância da comunicação efetiva entre os atores sociais). Lyra Filho (2006a) contempla o direito e a dialética social sob vários ângulos (histórico, antropológico, sociológico, econômico e jurídico). Traça um gráfico das diferentes “dominações”, controles e organização social, bem como as possíveis tentativas de libertação (reforma e revolução). Dentro desta dialética circular, caracteriza movimentos “centrípetos” e “centrífugos” na sociedade e forma, a partir disto, a concepção da “prudência” do Direito. Direito este que deve consolidar-se frente às transformações sociais e, por sua vez, aplicar a justiça social.
Nota-se que quando há mudança na concepção do direito (prudência versus ciência, justiça dos juristas versus justiça social), muda-se o próprio direito, suas finalidades e objetivos. Lyra Filho não diz expressamente, mas a linguagem usada no meio jurídico deve ser compatível com essa construção do Direito prudente, baseado no anseio social e não na manutenção do poder pela classe dominante.
Em sua teoria sobre dialética social, Lyra Filho (2006b) afirma que o conjunto das instituições e a ideologia que a pretende legitimar (a ideologia da classe e grupos dominantes) padronizam-se numa organização social, que se garante com instrumentos de controle social: o controle é a central de operações das normas dinamizadas, dentro do ramo “centrípeto”, a fim de combater a dispersão, que desconjuntaria a sociedade e comprometeria a “segurança” da dominação. Neste ramo, é evidente, só se pode falar em mudança social amarrada, pois o sistema de controle apenas “absorve” a quota de mudança que não lhe altere a organização posta e imposta; e, por isto, dita, normativamente, até as '”regras de jogo” da mudança.
Sobre a “força centrífuga”, o mesmo autor diz que as cristalizações de normas das classes e grupos espoliados e oprimidos produzem as instituições próprias, cuja presença na estrutura é fator de maior ou menor desorganização social, envolvendo a atividade anômica (a contestação das normas do ramo dominante), seja espontânea (sem maior coesão e ordem de militança), seja organizadamente (ao revés, com grupos adestrados e coesos, estratégia e táticas bem articuladas).
Dentro da perspectiva de Lyra Filho (2006c), não considerando as sociedades primitivas, cada sociedade, em particular, no instante mesmo em que estabelece o seu modo de produção, inaugura, com cisão em classes, uma dialética, jurídica também, já que, por exemplo, o estabelecimento da propriedade privada dos meios de produção espolia o trabalhador, cujos direitos então contradizem o “direito” ali radicado da burguesia capitalista. A oposição, para o autor, começa na infra-estrutura.
Sabe-se que o processo social, a História, é um processo de libertação constante; mas, é claro, há avanços e recuos, quebras do caminho, que não importam, pois o rio acaba voltando ao leito, seguindo em frente e rompendo as represas. Dentro do processo histórico, Roberto Lyra Filho (2006d) diz que o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem. Quando se fala em Justiça, entretanto, não estar-se referindo àquela imagem ideológica da Justiça ideal, metafísica, abstrata, vaga, que a classe e grupos dominantes invocam para tentar justificar as normas, os costumes, as leis, os códigos da sua dominação. Não é o idealismo iurisnaturalista que se rende ao direito positivo, que são as normas de dominação, porque a este concede o poder de definir, em especial, o que a “Justiça” é, nas situações particulares e concretas; nem aquele outro iurisnaturalismo progressista, de combate, que continua, entretanto, pondo de um lado o “direito ideal” e de outro o “direito real”. A contradição entre a injustiça real das normas que apenas se dizem justas e a injustiça que nelas se encontra pertence ao processo, à dialética da realização do Direito, que é uma luta constante entre progressistas e reacionários, entre grupos e classes espoliados e oprimidos e grupos e classes espoliadores e opressores. Esta luta faz parte do Direito, porque o Direito não é uma “coisa” fixa, definitiva e eterna, mas um processo de libertação permanente. Direito não “é”; ele “vem a ser”. Por isso mesmo é que o revolucionário de ontem é o conservador de hoje e o reacionário de amanhã.
Trata-se de enxergar o Direito como processo social e não como uma idéia metafísica, abstrata ou ainda, um conjunto de normas engessadas. Brilhantemente Lyra Filho conclui desta dialética social, que Direito e justiça caminham juntos, lei e Direito é que se divorciam com frequência. Critica a justiça proclamada por filósofos idealistas que a entregam a um grupo de “juristas”, deixando então, que estes “devorem” o povo com a manutenção do poder. Lyra filho salienta que justiça não é degradante a esse ponto. Isto vem a ser, sim, negação da justiça, uma negação que lhe rende, apesar de tudo, a homenagem de usar seu nome, pois nenhum legislador prepotente, administrador ditatorial ou juiz formalista jamais pensou que o “direito” deles não está cuidando de ser justo. A justiça verdadeira não estaria nas leis ou nos princípios abstratos, mas no processo histórico de que é resultante, no sentido de que é nele que se realiza progressivamente:
“Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Mas até a injustiça como também o Antidireito (isto é, a constituição de normas ilegítimas e sua imposição em sociedades mal organizadas) fazem parte do processo, pois nem a sociedade justa, nem a Justiça corretamente vista, nem o Direito mesmo, o legítimo, nascem dum berço metafísico ou são presente generoso dos deuses: eles brotam nas oposições, no conflito, no caminho penoso do progresso, com avanços e recuos, momentos solares e terríveis eclipses. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contra-dizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas”. (LYRA, Roberto Filho. 2006e. pg. 99).
O Direito, na ótica de Lyra Filho (2006f), se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda. A sociedade deve conhecer e compreender o direito não como quer uma grande maioria de juristas: de forma positivista, engessada e hierarquizada, mas de maneira acessível e sensata. Por isso, é importante não confundir o direito com as normas em que venha a ser vazado, com nenhuma das séries contraditórias de normas que aparecem na dialética social. Estas últimas pretendem concretizar o Direito, realizar a Justiça, mas nelas podem estar a oposição entre a Justiça mesma, a Justiça Social atualizada na História, e a “justiça” de classes e grupos dominadores, cuja ilegitimidade então desvirtua o “direito” que invocam. Também é um erro ver o Direito como pura restrição à liberdade, pois, ao contrário, ele constitui a afirmação da liberdade conscientizada e viável, na coexistência social; e as restrições que impõe à liberdade de cada um legitimam-se apenas na medida em que garantem a liberdade de todos. A absoluta liberdade de todos, obviamente, redundaria em liberdade para ninguém, pois tantas liberdades particulares atropelariam a liberdade geral.
O interessante é notar que basicamente os filósofos, sociólogos, estudantes de Direito ou juristas têm a oportunidade de "enxergar" e desejar o direito nesta ótica crítica: acessível, compreensível e eficaz. Isso não acontece pela falta de capacidade intelectual ou crítica dos "não-estudiosos" do direito, mas pela falta de oportunidade ou disposição do conhecimento, bem como a manipulação desse conhecimento, do senso comum. Convencionou-se que o meio jurídico é "moradia" de alguns e o conhecimento do direito tornou-se propriedade particular dos operadores do direito e do órgão judiciário. Por sua vez, a maneira como esses "proprietários do direito" agem, perpetua esse domínio exclusivo (por exemplo: só eles entendem – na maioria das vezes – tudo o que está escrito nas peças processuais ou o que é dito em audiência e ainda tudo o que está na legislação). O direito, a justiça e a linguagem que os veicula fazem parte das mínimas relações dentro da sociedade, mas a ciência do direito carregada e criada pelos juristas a tornam inatingível, sagrada e burocrática. O "juridiquês" empregado nas peças, decisões e inclusive na própria lei, são umas das provas cabais desse distanciamento entre direito e sociedade como um todo (mas isso será tema mais discutido no ultimo capítulo desse trabalho). Lyra Filho descortinou, em seu trabalho, a dialética social para explicar o direito engajado (e não poderia ser de outro jeito) na justiça social e a consequente aproximação desta com o povo. Nada mais óbvio que viabilizar essa aproximação com uma linguagem jurídica acessível, dentre outras coisas.
3 Limitações da linguagem na ordem jurídica – Os abusos do “juridiquês”.
Diante de toda exposição teórica acerca da historicidade e efeitos sociológicos da linguagem no "mundo jurídico", cabe agora enfatizar as consequências práticas desse chamado "juridiquês" nas relações jurídicas.
Sytia (2002a) diz que a linguagem jurídica é mediadora entre o poder social e as pessoas. Por isso, deve expressar com fidelidade os modelos de comportamento a serem seguidos, evitando-se, desta forma, distorções na aplicação do Direito. Os vocábulos técnicos e a linguagem precisa exercem a função de contribuir para a compreensão do Direito e para a eficácia do ato da comunicação jurídica. O emprego da palavra, portanto, no âmbito jurídico, deve ser exato, claro e conciso a fim de evitar sutilezas semânticas e dubiedades na interpretação e na aplicação das leis. Na obra "O direito e suas instâncias linguísticas", Sytia traça a função da linguagem no direito e propõe um discurso jurídico coerente e compreensível, técnico e não-ambíguo. Ressalta que o estudante de direito, bem como advogados, juízes e promotores podem confundir, costumeiramente, o "juridiquês" abusivo com a linguagem jurídica prática, "normal", a qual possui destinatários que não os "operadores do Direito"; linguagem esta que precisa ser engajada num contexto mais amplo da "formação discursiva", da ideologia, da história, das relações de significado dentro de uma determinada estrutura social.
Para tal engajamento, deve-se considerar que a linguagem do Direito é necessariamente uma linguagem natural e não uma linguagem técnica formalizada como a da matemática, com termos rigorosamente precisos e obrigatórios. Sytia (2002b) cita o linguista Charolles na proposição de "metarregras de coerência" para a construção de um texto com natureza lógico semântica; e essas regras não se limitam ao texto jurídico, servem para afastar todo e qualquer texto da incoerência, das ambiguidades e do modo inteligível dos interlocutores/ receptores. O texto jurídico não tem regras próprias (apesar de ter criado termos próprios), engessadas numa linguagem rebuscada, intangível e obrigatoriamente latinizada. O que se requer das peças processuais – Inicial, contestação e recursos – é que sejam textos bem formados, com argumentos coerentes, com sequência lógica, com respeitada progressão semântica, sem repetições e sem contradições. Não se requer que eles contenham o uso abusivo da linguagem, o que traz verdadeiro paradoxo da cultura legal contemporânea: a prática social jurídica encontra-se fundada sobre uma ideologia de consenso e de transparência, em que todos os cidadãos são obrigados a conhecer a lei; por outro lado, a própria lei recorre a mecanismos que impedem seus destinatários de apreendê-la.
À linguagem jurídica deve-se dar a mesma importância dada à linguagem como um todo, a depender dos interlocutores e destinatários. É devido o uso de pronome de tratamento correto nas peças jurídicas? O emprego da ortografia e concordância? Sim, mas sempre lembrando que, segundo o que ensina Sytia (2002c), o texto jurídico deve contribuir para a eficácia da aplicação e compreensão do Direito, sem abusos de incompreensão. Da mesma forma que um texto fora do âmbito jurídico envolve seus objetivos e destinatários e utiliza, obviamente, da linguagem para isso, de forma adequada às regras da língua portuguesa; deve a dissertação ou ainda, a oralidade jurídica ser enquadrada a tais regras. Não há regra-linguístico-jurídica para o texto jurídico, há sim, regras linguísticas para toda e qualquer manifestação verbal-textual, cada regra, pois, condizente com o objetivo e endereçamento do texto. Para o texto jurídico, cabem, pois, o objetivo: justiça social; os interlocutores: partes, advogados, juízes, promotores, legisladores; e destinatários: a sociedade.
A distorção e o uso abusivo do chamado “juridiquês” (emprego de vocábulos de difícil compreensão a fim de elitizar a linguagem jurídica e segregar poder) no discurso jurídico podem trazer consequências irreversíveis à justiça e à sociedade. A “confusão” é notável: juristas teimam, diariamente, em dificultar a compreensão dos textos jurídicos (orais ou escritos) achando que com tal prática, contribuem com a “técnica jurídica” e aplicação da Justiça. Entretanto, com essa prática, só conseguem impressionar Alvazires (juízes), Egrégios Tribunais (nobres tribunais superiores) ou o Excelso Sodalício (Supremo Tribunal Federal).
A título exemplificativo, em uma das salas de aula da UESB, ainda neste ano de 2011, um professor, ao realizar uma avaliação em sua turma foi questionado por uma aluna sobre o conteúdo correto de uma questão. A aluna respondeu corretamente a questão de prova, mas não havia dado o nome esperado pelo docente à uma determinada ação (deu-lhe um título sinônimo). O professor alegou que “a Universidade forma técnicos em linguagem jurídica” e que “os operadores do Direito não podem se expressar coloquialmente ou fazer substituições da linguagem técnica pela usual”.
Em a “Data Vênia”, Christofoletti (2005) e uma associação de juízes organizou guia para desmistificar a linguagem da Justiça publicando um artigo sobre o chamado “Juridiquês” e o obstáculo criado para o acesso à Justiça. Afirma o artigo, inclusive, que há termos utilizados do “juridiquês” que confundem até os profissionais da área:
“'Encaminhe o acusado ao ergástulo público' Com essa frase o juiz Ricardo Roesler determinou a prisão de um assaltante de Barra Velha, comarca de Santa Catarina. Dois dias depois, a ordem não tinha sido cumprida. Ninguém havia compreendido onde era o tal do "ergástulo", palavra usada como sinônimo de cadeia. Quando Roesler descobriu que nem seus subordinados entendiam o que ele falava, decidiu substituir os termos pomposos e os em latim por palavras mais simples. Isso foi há 17 anos. Hoje (2005), presidente da Associação dos Magistrados Catarinenses, ele é um dos defensores da linguagem coloquial nos tribunais.
Preocupada com o excesso de 'juridiquês', a Ajuris (Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul) organizou um guia destinado a leigos para tentar desmitificar o jargão da Justiça. O presidente da entidade, Carlos Rafael dos Santos Júnior, tem estimulado os magistrados a participarem de debates em escolas com pais e alunos. A ideia, encampada pela AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), é uma gota num oceano de discursos herméticos que tomam conta dos tribunais, onde o simples talão de cheque vira 'cártula chéquica', o viúvo, 'cônjuge supérstite', e a denúncia (peça-formal), 'exordial-acusatória'.
O presidente do Superior Tribunal de Justiça (à época), Edson Vidigal, afirma que 'o juridiquês' é como latim em missa: acoberta um mistério que amplia a distância entre a fé e o fiel; do mesmo modo, entre o cidadão e a lei. Quanto mais complicada a linguagem, mais poder, porque menos gente entende'. Para ele, 'as decisões têm que ser acessíveis em todos os sentidos, inclusive no linguajar'.Para Sérgio Renault, secretário da Reforma do Judiciário (à época), o exagero de linguajar 'é uma forma de proteção, que afasta as pessoas da Justiça, faz com que o Judiciário fique inacessível e tem a ver com a preservação do monopólio do conhecimento. Intimida, distancia'. Para ele, 'a modernização também passa pela língua. Isso tende a acontecer com o tempo'. Mas não é só a população leiga que não compreende o 'juridiquês'. A fala rebuscada também dificulta o entendimento entre os próprios magistrados.
Em Itu, interior paulista, um homem preso pelo assassinato do empresário Nelson Schincariol foi solto após uma decisão ser interpretada de forma errada. Num texto ambíguo, um desembargador do Tribunal de Justiça determinou a manutenção da prisão. O juiz estadual entendeu o contrário. O acusado continua foragido.
Os erros mais frequentes, segundo Carlos Velloso, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), ocorrem quando os advogados se manifestam em latim. 'Algumas pessoas extrapolam e, como não conhecem o latim, vão perpetuando os erros'.
Colecionador de expressões jurídicas pitorescas, o ministro do STF Marco Aurélio de Mello recebeu uma petição escrita em italiano, inglês e francês. 'Pedi um novo texto e mencionei o Código de Processo Civil, que diz ser obrigatório o uso do vernáculo, considerados os vocábulos que são compreendidos por todos'.
O juiz federal Novély Vilanova, autor de 'O que não se deve dizer ou fazer', afirma que o rebuscamento contribui para a morosidade. 'Cada ciência tem a sua terminologia. Mas não se compreende, por exemplo, o uso de remédio heróico no lugar de mandado de segurança. ‘Se o juiz não é claro, o advogado pede esclarecimentos e retarda o serviço jurisdicional'”.
A folha de São Paulo ainda em 2005 anunciou uma campanha que vigora até hoje, da AMB (Associação dos magistrados brasileiros): pela Simplificação da Linguagem Jurídica, o chamado "juridiquês". O evento de lançamento da campanha ocorreu na faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio. Os estudantes de direito foram o alvo principal da campanha.
Com participação do conhecido professor Pasquale Cipro Neto, a associação luta até hoje pela troca de expressões em latim por palavras mais simples, que sejam compreensíveis para as pessoas leigas sobre matéria jurídica. "Essa iniciativa da AMB é muito importante, porque é fundamental que as pessoas consigam compreender aquilo que o outro fala. Por isso é necessária a utilização de uma comunicação cada vez mais precisa sem ambiguidade", disse Pasquale. (CIPRO; COLLAÇO, Pasquale Neto; Rodrigo, Folha de São Paulo/ 11/08/2005/folha-cotidiano).
Há sete anos, a AMB encomendou ao Ibope uma pesquisa de opinião pública sobre o Judiciário. Incompreensão dos termos e desconhecimento da estrutura foram as principais queixas. "A simplificação da linguagem jurídica é importante para a aproximação dos agentes do direito com a população. Essa campanha não pretende abolir os usos técnicos, mas evitar os exageros que impedem a compreensão por parte da sociedade em geral dos textos jurídicos", disse o presidente da AMB, Rodrigo Collaço. (CIPRO; COLLAÇO, Pasquale Neto; Rodrigo. Folha de São Paulo/ 11/08/2005 – folha cotidiano).
O juiz federal Novély Vilanova, citado no artigo da Folha de São Paulo (acima) pela associação “Data Venia”, tem textos publicados no IBRAJUS (Instituto Brasileiro de Administração do sistema Judiciário) e dentre eles, “O que não se deve dizer ou fazer” cujo trabalho é de importante contribuição em dizer que as praxes viciosas, a linguagem complicada e a cultura burocrática são fatores de retardamento da prestação jurisdicional. Vilanova (2009a) afirma que nenhuma forma legislativa pode mudar este estado das coisas. Só haverá mudanças quando houver uma nova consciência ou mentalidade de que a Justiça não pode conviver com isso.
Vilanova (2009b), em “O que não se deve dizer ou fazer” cita, como exemplo de abuso do juridiquês e do bom senso, o caso de determinado advogado que escreveu num recurso dirigido ao Superior Tribunal Militar: “O alcândor Conselho Especial de Justiça, na sua apostura irrepreensível, foi correto e acendrado no seu decisório. É certo que o Ministério Público tem o seu lambel largo no exercício do poder de denunciar. Mas nenhum lambel o levaria a pouso cinéreo se houvesse acolitado o pronunciamento absolutório dos nobres alvazires de primeira instância.” Novély recomenda a juízes, advogados e membros do Ministério Público que utilizem, nos atos judiciais linguagem acessível aos jurisdicionados.
Outro exemplo claro e usual dado por Novély Vilanova (2009c) diz respeito à expressão “citem-se (ou cite-se) como requerido”. Numa ação popular, o juiz despachou: “citem-se como requerido”. A Secretaria citou por oficial quem deveria ser citado por edital e vice versa. Foi aquela confusão. Tudo porque o autor requereu a citação de forma errada. Resultado: três agravos de instrumento, três mandados de segurança, uma correição e muito serviço perdido. Segundo Vilanova (2009d), logicamente nada disso teria ocorrido se o juiz tivesse explicado objetivamente como a citação de cada réu deveria ser efetuada. Preferiu o habitual “citem-se como requerido”. A confusão está formada quando o autor indica como réus em ação de conhecimento órgãos despersonalizados sem capacidade de ser parte (ministérios, secretarias etc). Em cumprimento do “cite-se” são expedidos inúmeros mandados de citação.
Outro exemplo interessante de Novély Vilanova (2009e) traz mais uma demonstração de como a linguagem jurídica influencia nas ações e decisões num processo. Há registro de um caso antigo em que o tribunal confirmou a sentença que indeferiu a petição inicial de reclamação trabalhista. Devolvidos os autos, o juiz exarou o “cumpra-se o venerando acórdão”. A reclamada requereu o arquivamento alegando que não havia o que cumprir. O juiz não concordou e disse: “intime-se a reclamada para cumprir o v. acórdão, sob as penas da lei”. Dessa decisão a parte agravou, tendo o juiz afirmado o seguinte: “Presentes o fumus boni iuris e o periculum in mora, mantenho a decisão agravada. Remetam-se os autos para o tribunal”.
Outra crítica apresentada em “O que não se deve dizer ou fazer” é a referente ao uso descabido de “parquet federal” em vez de Ministério Público. Vilanova (2009f) afirma que em vez dessa extravagância, deve-se dizer e escrever simplesmente “Ministério Público” (federal ou estadual). Mesmo porque em todos os atos e termos do processo, é obrigatório o uso da língua portuguesa (CPC, art. 156). Em outras palavras, Para quê o francês “parquet” (parte do tribunal de justiça reservada para os membros do Ministério Público) se o português é tão claro?
Exemplo interessante diz respeito à dificuldade de entender um termo da própria lei. “Preparo” significa pagamento das custas da ação ou do recurso. Embora a expressão esteja prevista em lei, advogados iniciantes têm dificuldade de entender o seu significado (CPC, art. 257: “Será cancelada a distribuição do feito que, em 30 dias, não for preparado no cartório em que deu entrada”. Art. 511: “No ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo preparo…”). Diante disso, em vez de “faça o preparo”, despache “pague as custas no prazo de…“.
Outro curioso caso: Embora prevista em lei, a expressão “promover a citação” deve ser evitada (CPC, art. 47, parágrafo único). Mais adequado é o juiz despachar “requeira o autor a citação do réu”. A propósito do “promova o autor a citação do réu”, conta-se que um advogado procurou o diretor de secretaria da vara relatando:
– “Não sei o que faço para cumprir o despacho do juiz. O réu não aceita de modo algum que eu promova a citação; só por oficial de justiça”.
O diretor então sugeriu:
– “Dr., peticione ao juiz requerendo a citação do réu. Talvez assim resolva o impasse”.
A questão foi parar no Superior Tribunal de Justiça, onde ficou esclarecido que “promover a citação significa requerê-la e arcar com as despesas de diligência; não significa efetivá-la, pois no direito processual brasileiro a citação é feita pelo sistema da mediação” (RMS 42-MG, r. Ministro Athos Carneiro, 4a Turma). Perdeu-se muito tempo por pouca coisa.
Mais um exemplo de como as “peculiaridades” indevidas na linguagem jurídica provocam divergências na compreensão é o uso da frase “recebo a apelação em seus devidos efeitos”. Muitas confusões já ocorreram por causa desse obscuro despacho. Nele não estão declarados os efeitos em que a apelação foi recebida, como exige a lei (CPC, art. 518). Ordinariamente esse recurso é recebido nos “efeitos suspensivo e devolutivo”, mas há hipóteses em que deve ser recebido somente no “efeito devolutivo” (art. 520). O juiz precisa deixar isso bem claro para evitar mal entendidos: “recebo a apelação nos efeitos suspensivo e devolutivo” ou “recebo a apelação somente no efeito devolutivo”.
São inúmeros os prejuízos de tempo e eficácia de um processo por causa dos “vícios” linguísticos no meio jurídico. Até quando nem existe processo ainda, a incompreensão afeta – a própria letra da lei! E a incompreensão não atinge somente àquelas pessoas que não estudaram o Direito, as leis, o processo, mas também afeta os advogados, promotores, serventuários e juízes (como pode-se observar dos exemplos citados neste capítulo). Essa maneira como o discurso jurídico circula, incompreensível e/ou ambíguo, atrapalha desde a concepção que a sociedade tem sobre a Justiça bem como o seu acesso a essa Justiça. E sobre isso falarei a partir de agora.
3.1 A linguagem jurídica como óbice ao acesso à justiça e ao judiciário.
É certo que a prática social jurídica é fundamentada sobre uma ideologia de consenso e transparência, em que todos os cidadãos são obrigados a conhecer a lei e mesmo assim a própria lei recorre a mecanismos que impedem seus destinatários de apreendê-la. Trata-se, portanto, de um dos mais discutidos paradoxos da cultura legal contemporânea. É como se a prática legal e a linguagem jurídica se encontrassem estruturadas de tal forma que inviabilizam a aquisição desse conhecimento por qualquer pessoa que não pertença a uma “elite” de especialistas altamente treinados nos vários ramos do domínio jurídico.
Pereira (2001a), em seu estudo sobre terminologia jurídica e o exercício da cidadania, discute como se dá a compreensão da terminologia jurídica pelo público não-especialista e sua relação com a cidadania. Após uma extensa pesquisa de campo, Pereira (2001b, p. 97) constata que “há uma verdadeira dificuldade de compreensão dos termos jurídicos pela população geral e esta limitação concerne, também, às normas fundamentais de exercício da cidadania”.
Como resultado de sua investigação, o pesquisador aponta que cerca de 80% da amostra, entre homens e mulheres de faixas etárias e níveis de escolaridade diversos, apresentaram uma compreensão nula ou insatisfatória da terminologia jurídica. Somados esses índices aos das respostas parcialmente satisfatórias, aferiu-se que menos de 10% do universo pesquisado respondeu adequadamente ao solicitado. Por fim, Pereira (2001c) argui que, apesar de o discurso jurídico – como qualquer outro discurso científico, técnico ou profissional – possuir a sua terminologia especializada, é fundamental atentar para o fato de que as leis transitam entre universos distintos de usuários, e deveriam, consequentemente, ser acessíveis a todos. Além disso, a compreensão de determinados termos jurídicos e de seu contexto é que torna possível, em princípio, o efetivo exercício da cidadania e do subsequente acesso à Justiça.
Alguns estudiosos do Direito contestam que a tecnicidade e rebuscamento da linguagem jurídica sejam prejudiciais em algum aspecto. O argumento utilizado quase sempre é o de que o Direito é ciência (assim como a medicina, a matemática e outros ramos do conhecimento) e, por isso, tem suas peculiaridades linguísticas que se limitam ao conhecimento dessa “elite jurídica”. Entretanto, o Direito, dentre os diversos campos do conhecimento especializado, é um dos que mais interessam a sociedade, uma vez que é a ordem jurídica que proíbe, obriga ou permite certas ações, penalizando aqueles que não se comportam conforme o estabelecido.
Como sendo um ramo do conhecimento que interessa tanto a sociedade, além de “conduzi-la” à ordem social, alguns autores argumentam sobre a necessidade de uma democratização do discurso. Esse fenômeno é facilitado ao passo que são retiradas as desigualdades e assimetrias dos direitos, das obrigações e do prestígio discursivo e linguístico de um grupo de pessoas. Adilson de Carvalho (2006a) diz que não há atividade profissional que exerça mais fascinação e seja mais atraente, pelo menos no Brasil, quanto aquelas ligadas ao universo jurídico. Advogados, juízes, desembargadores, membros do Ministério Público exercem nas pessoas uma espécie de reconhecimento imediato de nobreza e de autoridade, como se esses profissionais realmente fizessem parte de uma realidade metafísica e sagrada. Essa “consagração” é fruto, especialmente, da linguagem jurídica segregada.
Na tentativa de explicar uma das origens desse efeito de superioridade no meio jurídico através de uma linguagem própria e rebuscada, Homci (2011a) explica que o jurista se permitiu construir um aparato linguístico, que lhe é atribuído desde os primeiros passos na academia, com jargões popularmente conhecidos, no sentido de que “advogado bom fala difícil”; “como é bonito ver um advogado balbuciando lindas palavras [que poucos entendem] nas tribunas”. Entretanto, essa pressão ideológica é reforçada por um instrumento praticamente infalível na orientação linguística de qualquer pessoa: o livro.
Se é por meio da ideologia que o jurista se empenha em construir a sua linguagem rebuscada, é por meio da leitura dos livros de Direito que o mesmo operacionaliza e aprende a desenvolver tal formação linguística. Sendo a palavra o principal instrumento de trabalho do jurista, é por meio da leitura que ela é absorvida, para posteriormente ser expelida nos instrumentos de comunicação do Direito.
A formação jurídica contemporânea é forjada mediante uma aprendizagem técnica, direcionada para o conhecimento sistemático do ordenamento jurídico, das leis, com o domínio básico de técnicas de interpretação legal. Essa formação, desenvolvida na maioria dos cursos de graduação do Brasil, possui como principal fonte de pesquisa bibliográfica os manuais de Direito, direcionados de acordo com as especificidades dos ramos de ensino da ciência do Direito (Manual de Direito Civil, Manual de Direito Processual Penal, Manual de Direito Constitucional etc.).
Esses livros têm como característica principal o conteúdo vasto, abordado de forma esquemática, aparentemente simples, e que possibilita o acesso a pequenas partes de forma direta, sem a necessidade de compreensão do todo.
Segundo Hamci (2011b), a abordagem técnica realizada nos manuais de Direito não permite determinadas “divagações linguísticas”, pois o texto deve ser seco, direto, explicando objetivamente os institutos jurídicos. Qualquer expressão que remonte a questões filosóficas, românticas ou estéticas é desperdício de tempo para o leitor, e para aquele que está a produzir academicamente. A leitura – assim como o conteúdo – deve ser esquematizada, possibilitando a efetividade da memorização, deixando em segundo plano a compreensão e interpretação textual. Basta notar o simples “receio” que muitos estudantes de Direito possuem no que diz respeito às matérias propedêuticas do curso. A maioria as considera apêndices – o direito é representado apenas pelas matérias de Direito civil, penal, constitucional, entre outras.
A linguagem da maioria dos manuais acaba inebriando o jurista, que a reproduz de forma automática, pois é a mais apropriada dentro do contexto jurídico, não sofrendo críticas dos profissionais do Direito – muitas dos críticos rotineiramente cometem o mesmo erro que tanto criticam.
No entanto, a objetividade da linguagem dos manuais cede espaço para o rebuscamento linguístico, como se esse fosse o responsável por sustentar algumas posições que não estão sedimentadas em bons argumentos. A linguagem complexa substituiu a necessidade de fundamentação das posições, tornando aparentemente embasadas as posições jurídicas calcadas apenas, e apenas mesmo, em um linguajar inacessível à maioria da população brasileira.
Poucos são os autores, na área do direito, que conseguem desenvolver em suas obras, mesmo nos manuais, uma linguagem menos carregada, menos “tecnicamente correta” e comunicativamente ineficaz. Esse problema, no entanto, parece não ser percebido por boa parte dos juristas, em especial os mais novos, que se deslumbram com a possibilidade de reproduzir esse falso eruditismo em seus discursos, textos e mesmo nas conversas mais informais possíveis.
Essa questão também denota outro ponto crítico: quanto mais aprofundados nas leituras jurídicas, menos interessados em outras fontes do conhecimento ficam os juristas. Daí ser recorrente ouvir de um jurista (estudante ou profissional): “queria tanto ler outros livros, mas os meus livros de direito e os processos me consomem”. Essa questão – que parece apenas mera desculpa para a insegurança de adentrar em outras áreas do conhecimento – é crucial para a manutenção secular da tradicional linguagem jurídica. A solução aparentemente mais simples e talvez a mais eficaz seja alertar os juristas – especialmente os mais novos – para a necessidade de diversificação das leituras realizadas. Deixar os manuais de lado – ao menos por um tempo – e se aventurar em romances, biografias, contos e poesias. É certo que os resultados serão proveitosos e rápidos. Isso poderá encadear a consciência linguística, modificar a forma como o texto jurídico (escrito ou falado) é emitido e, por conseguinte, ampliar o acesso à justiça.
Ainda sobre a valorização exacerbada e ludibriada da linguagem empregada pelos juristas e operadores, Adilson de Carvalho (2006b) diz que, parte da explicação para essa altíssima cotação e valorização das atividades jurídicas no mercado simbólico da cultura brasileira, estão no poder real que esse universo exerce na estrutura de poderes do Estado brasileiro. Em um país com uma Constituição escrita, com mais de trezentos artigos, mais um emaranhado de centenas de milhares de leis, de cuja interpretação depende todas as relações sociais, políticas e econômicas de toda a população, é evidente que o universo jurídico representa, efetivamente, um espaço de extremo poder. Como acontece em qualquer espaço de poder, o acesso a esse universo não é franqueado a qualquer um. Por ter consciência da importância do grupo de que fazem parte, aqueles que têm o privilégio de pertencerem ao mundo jurídico fazem de tudo para que esse “mundo sagrado” não seja profanado pela presença dos não-iniciados. Na promoção dessa separação fundamental entre quem faz e quem não faz parte do mundo jurídico, entra em ação um conjunto de elementos, que são tão mais eficazes quanto menos são percebidos como aparatos dessa segregação.
A linguagem é extremamente eficaz em “proteger” o universo jurídico do acesso de grande parte da população. Magistrados, advogados, promotores e outros do ramo do direito têm utilizado a linguagem jurídica de maneira tão específica que, a despeito de qualquer argumento a favor, só tem servido para negar o acesso ao universo jurídico à maioria da população. Os pareceres, sentenças, petições, etc, são escritos de uma forma tal que se torna impossível a compreensão desses textos por alguém que não faça parte do meio jurídico. E esse parece ser mesmo o propósito dos produtores desses textos: dificultar a compreensão para quem não teve a sorte ou herança de fazer parte da “casta jurídica”.
O fato é de que não há argumentos convincentes para justificar a utilização de uma linguagem pedante, barroca e afetada, recheada de expressões em latim ou em outras línguas estrangeiras no meio jurídico. Deve-se buscar justamente o contrário, sob um argumento simples e suficientemente convincente: o acesso à justiça. Para isso, nada mais eficaz que uma linguagem mais simples e objetiva.
Adilson de Carvalho (2006c) aponta que o Poder Judiciário e o Ministério Público passam por uma onda de transformações que, pelo menos teoricamente, visam torná-los mais eficientes, transparentes e democráticos. Um exemplo disso foi a criação do Conselho Nacional do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça. Seria um grande começo se a questão da linguagem jurídica fosse colocada na pauta desses órgãos como um problema a ser solucionado. E, claro, para começar a buscar caminhos para que a linguagem jurídica deixe de ser uma barreira à Justiça, é preciso, primeiro, que ela seja realmente vista como um problema a ser resolvido. Resistências não vão faltar, já que além de pressupor uma redivisão de poder, a democratização do acesso à Justiça pela transformação da linguagem jurídica também acabaria mexendo com a vaidade historicamente construída e intocada de muitos membros desse universo. Mas se há realmente pessoas preocupadas em transformar o Judiciário e o Ministério Público em instituições democráticas e eficazes, não há como ignorar o problema da linguagem. Para os que não têm nenhum compromisso com a democratização do acesso à Justiça é mesmo interessante que o universo jurídico continue falando pra si mesmo.
Há um ponto relevante sobre esse obstáculo que a linguagem jurídica cria para o acesso à Justiça – os fatores sociais e econômicos. Trata-se de um ciclo que o Brasil conhece bem; quanto menor o estado sócio- econômico do indivíduo, menor acesso ele terá à informação/educação. E trazendo este quadro ao tema “acesso à justiça”, óbvio é concluir a consequência dessa escala do “menor” – se há menor acesso à informação, menor será a compreensão sobre o Direito e sobre a justiça.
Sobre isso, destaca Boaventura de Souza Santos (1994) que estudos revelam que a distância dos cidadãos em relação à administração da justiça é tanto maior quanto mais baixo é o estado social a que pertencem e que essa distância tem como causas próximas não apenas fatores econômicos, mas também fatores sociais e culturais, ainda que uns e outros possam estar mais ou menos remotamente relacionados com as desigualdades econômicas. Em primeiro lugar, os cidadãos de menores recursos tendem a conhecer menos os seus direitos e, portanto, têm mais dificuldades em reconhecer um problema que os afeta como sendo problema jurídico. Podem ignorar os direitos em jogo ou as possibilidades de reparação jurídica. Isso ficou bem latente em pesquisa de campo realizada na cidade de Vitória da Conquista – BA, no período entre Abril e Junho de 2011, em que foi possível observar algumas causas e reflexos sócio-econômicos-jurídicos do uso do “juridiquês”, bem como opiniões de três grandes grupos acerca do assunto Justiça x Direito x linguagem: o grupo dos que lidam com o Direito através da profissão, o grupo dos estudantes de direito e o grupo do público em geral – que não trabalha diretamente com o Direito e nem o estuda de forma acadêmica (este ultimo grupo é composto de diversas variações sócio-econômicas). Observe:
Tem-se, portanto, na linguagem jurídica, através da análise dos gráficos e de todo o referencial teórico, um poder-dever extraordinário de dirimir desigualdades já solapadas pela ordem econômica e social. Tornar o discurso jurídico inteligível e consensual é compatível com o próprio anseio pela justiça e pelo acesso à essa justiça.
Para tanto, Dolzany (2003g) traça algumas características que um texto jurídico necessita para aproximar-se ao máximo de seu objetivo principal: o alcance da justiça. A objetividade: Antes de assinar qualquer das peças que produzirem ou pedir a palavra durante uma audiência, é importante que cada um dos atores processuais se indague até que ponto estão transmitindo com objetividade suas ideias. Um bom exercício é imaginar o que o homem médio compreenderia da mensagem contida na sentença, petição, recurso ou arrazoado. Simplicidade: A linguagem é ferramenta da jurisdição, portanto é meio de convencimento da parte adversária ou do juiz sobre o direito que se quer reconhecido. A fundamentação dos pedidos e das decisões dispensa erudição, que fica melhor nos anais das teses acadêmicas ou nas estantes de doutrina. Instrumentalidade: É sempre bom lembrar, especialmente aos juízes, que a liberdade de formas consagrada no Direito brasileiro resulta do princípio da instrumentalidade. O processo é sempre veículo de prestar a jurisdição, portanto deve ser tratado como um dos meios de comunicação verbal onde as ambiguidades devem ser evitadas ao máximo para evitar prejuízos à mensagem. Criatividade: A liberdade da forma é estímulo à criatividade dos atores processuais. Nenhuma fórmula de termo ou ato processual é acabada. Sempre haverá um modo mais rápido e mais completo de transmitir e receber a mensagem da jurisdição. A padronização deve ser apenas uma etapa no aprendizado de novos métodos nessa linguagem. Sobre a comunicação não verbal, Dolzany propõe que todos os atores processuais – juiz, advogado, promotor, defensor e escrivão – tenham a curiosidade de apreender nos outros ramos do conhecimento humano a respeito da eloquência dos gestos, posturas e rituais que eles próprios mecanicamente repetem e assim inconscientemente aderem a seus papéis. Certamente todos descobrirão a riqueza da comunicação que espontaneamente emerge das praxes forenses. Descobrirão assim quais as mensagens que a todo minuto transmitem ao jurisdicionado. Cada um concluirá quais sentimentos e expectativas chegam a seus interlocutores. Os destinatários receberão dos “operadores do direito” a mensagem de respeito, não de medo; de seriedade, não de “casmurrice”; e, finalmente, de honestidade e transparência, jamais de hipocrisia e desconfiança. No aperfeiçoamento desse desafiador processo dialético de comunicação vivido em cada causa tem-se a oportunidade de tornar a Justiça cada vez mais acessível ao povo.
CONCLUSÃO
Esmiuçar o tema com uma análise sociológica trouxe uma visão crítica e histórica sobre as nuances acerca da conceituação do direito e suas limitações quanto ao seu objetivo na sociedade: justiça social. Já a análise semiótica e linguística, bem como filosófica, trazem o poder que a linguagem e a comunicação exercem, seja unindo os atores sociais, seja segregando algum tipo de conhecimento.
Como pilar da monografia, o acesso à justiça não se limita ao acesso ao judiciário, mas estende-se ao acesso à ordem jurídica justa. Esta, por sua vez, é facilitada pelo conhecimento do direito (ou dos direitos). A comunicação, dentro das esferas linguística, semiótica, filosófica, sociológica e jurídica é que veicula esse conhecimento em todas as esferas sociais, uma vez que o Direito interessa e faz parte da vida de todos.
O trabalho explicou, portanto, a importância da linguagem jurídica acessível e inteligível entre os atores sociais, linguagem que democratiza o conhecimento do direito e aproxima o cidadão das estruturas e mecanismos de realização da Justiça.
Como diz o poeta Thiago de Mello, “Falar difícil é fácil, falar fácil é que é difícil”. Militar pela causa da “facilitação” da linguagem empregada pelos juristas, estudantes e advogados é um nobre empreendimento. A verdade é que a comunicação jurídica elitizada traz certo status aparente viciante e vicioso, uma cultura arraigada e difícil de ser mudada.
A monografia, portanto, trouxe um aspecto novo como uma das maneiras de viabilizar mudanças na aplicação da linguagem jurídica acessível: a própria conceituação sobre o que é o direito. Através da análise sociológica e filosófica, o direito pode ser visto ora como ciência, engessado nas leis e nos padrões técnicos da construção jurídica formal; ora como prudência, baseada nos anseios sociais do “dever-ser”, engajado na dialética social e na construção histórica do povo. Esta ultima visão, de certa forma, enquadra-se melhor na conscientização sobre a aplicação de uma linguagem jurídica flexível, acessível e democratizadora.
O projeto que tentar lutar pela acessibilidade da linguagem jurídica deve entender que a mudança, além de ser útil, é necessária. E para entender isso, deve enxergar o Direito como parte da história e construção da sociedade. Deve compreender que os atores sociais, especialmente os jurisdicionados, não são marionetes incapazes de compreender uma linguagem que os separa de seus próprios interesses (direitos, deveres), mas fazem parte do “mundo jurídico” e precisam ter acesso claro, efetivo e inteligível à justiça.
Graduada em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia – UESB
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