Resumo: Este trabalho versa sobre o problema da produção de efeitos jurídicos por normas reconhecidamente inconstitucionais. Tradicionalmente, os ordenamentos jurídicos entendiam que uma norma inconstitucional deveria ser fulminada desde o momento da sua criação, não produzindo qualquer efeito jurídico, obedecendo-se a uma rigorosa lógica formal. Contudo, atualmente, já se nota em todo o mundo uma tendência diversa, no sentido de mitigar esta solução clássica. A possibilidade de que normas reconhecidamente inconstitucionais venham a produzir efeitos jurídicos é algo que causa espanto a vários doutrinadores. Contudo, a tendência atual no direito comparado aponta justamente para esta hipótese, posto que se tornam mais comuns os sistemas onde as Cortes Supremas possuem “poderes” de flexibilização das decisões de inconstitucionalidade, observados alguns requisitos que variam de acordo com ordenamento interno. Assim, normas inconstitucionais podem produzir efeitos jurídicos através da manipulação da eficácia das decisões de inconstitucionalidade. O objetivo principal deste trabalho é demonstrar como tal tendência está se consolidando no mundo e mais especificamente no Brasil. Para tanto, trataremos do sistema de controle de constitucionalidade brasileiro e comparado, suas características principais, além de discutir como se manifesta a técnica da modulação de efeitos nas decisões de inconstitucionalidade no ordenamento pátrio e no mundo. Por fim, analisaremos a (in)constitucionalidade da lei n.º 9.868/99, a qual introduziu legalmente a modulação de feitos no ordenamento brasileiro, tecendo também considerações sobre a viabilidade da modulação de efeitos com base nos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade. Trata-se de trabalho jurídico, teórico e analítico, realizado sob o método dedutivo.
Sumário: 1. Introdução 2. Controle de constitucionalidade 2.1. O Controle Judicial de Constitucionalidade no Direito Comparado 2.1.1. O sistema norte-americano 2.2.2. O sistema austríaco 2.2. O Controle Judicial de Constitucionalidade no Direito brasileiro 2.2.1 Controle Judicial de Constitucionalidade por via de exceção. 2.2.2. Controle de Constitucionalidade Concentrado. 3. A modulação de efeitos no controle judicial de constitucionalidade.. 3.1 Os Precedentes no Direito Comparado. 3.2. A Modulação de Efeitos no Direito Brasileiro 3.2.1. O Princípio da Nulidade como Regra 3.2.2. Da Evolução Doutrinária 3.2.3. Da Evolução Jurisprudencial. 3.2.4. Da Evolução Legislativa. 4. A inconstitucionalidade do artigo 27 da Lei 9.868/99. 5. A modulação de efeitos com base nos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
Classicamente, seria inconcebível entender a existência de normas inconstitucionais que produzissem quaisquer efeitos jurídicos. Segundo este pensamento, uma decisão que reconhecesse uma norma como inconstitucional seria meramente declaratória, fulminando-a desde o momento de sua criação, em respeito à supremacia constitucional.
Contudo, atualmente, está se consolidando em vários países uma tendência diversa no sentido de mitigar esta solução, de forma que normas inconstitucionais possam produzir alguns efeitos jurídicos através da manipulação da eficácia das decisões de inconstitucionalidade exaradas pelos Tribunais.
Já se admite que a decisão que declara a inconstitucionalidade produza efeitos apenas a partir do seu trânsito em julgado (eficácia ex nunc) ou após um termo fixado pelo tribunal (eficácia pro futuro), geralmente por questões de segurança jurídica ou interesse público, afastando-se da clássica teoria da nulidade, a qual exige que a declaração de inconstitucionalidade tenha efeito retroativo (ex tunc). Nestes casos, percebe-se que apesar das normas serem reconhecidamente inconstitucionais desde a sua criação, terão produzido efeitos jurídicos (como se constitucionais fossem) até o termo determinando na decisão de inconstitucionalidade exarada.
Tal tendência parece irreversível, posto que razões políticas (política judiciária) mostram que o reconhecimento da produção de efeitos por normas inconstitucionais, em casos específicos, é claramente menos danoso que a expulsão ex tunc da norma atacada.
No Brasil, tal tendência culminou na edição da Lei n.º 9.868/1999, a qual dispõe em seu art. 27 o seguinte:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica e excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir do seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”
Como se vê, tal lei trouxe profundas mudanças no modelo de controle de constitucionalidade brasileiro, permitindo que os efeitos da decisão de inconstitucionalidade possam ser manipulados pela Suprema Corte, inclusive pro futuro, criando-se, nos moldes que se apresentará na monografia, a estranha figura das normas inconstitucionais constitucionais.
Entretanto, ainda há vários questionamentos quanto às conseqüências geradas pela modulação de feitos na declaração de inconstitucionalidade de normas. Há doutrinadores que questionam o próprio alcance e validade das alterações introduzidas pela Lei 9.868/1999, pondo-se em dúvida, inclusive, a possibilidade lógica e constitucional dos seus postulados, conforme será demonstrado no presente trabalho.
DESENVOLVIMENTO
2. Controle de Constitucionalidade:
A supremacia da Constituição em relação às demais normas jurídicas é uma garantia primordial do Estado Democrático de Direito, seja pelo motivo de assegurar o respeito à ordem jurídica, seja pelo motivo de permitir a efetivação dos direitos fundamentais.
Desde o clássico modelo piramidal de Kelsen, a Constituição é vista como fundamento de validade das demais normas jurídicas, condicionando-as no aspecto formal (processo de produção legislativa) e no aspecto material (conteúdo)[1].
É justamente neste contexto que nascem os mecanismos de controle de constitucionalidade, como instrumentos jurídicos hábeis a manter a integridade e a supremacia constitucional. Neste mesmo sentido, ensina Mauro Cappelletti[2]:
“É, exatamente, na garantia de uma superior legalidade, que o controle judicial de constitucionalidade das leis encontra sua razão de ser: e trata-se de uma garantia que, por muitos, já é considerada como um importante, se não necessário, coroamento do Estado de direito e que, contraposta à concepção do Estado absoluto, representa um dos valores mais preciosos do pensamento jurídico e político contemporâneo.”
Tais mecanismos de controle fazem com que as normas jurídicas inferiores tenham que observar uma estrita compatibilidade formal e material com as normas constitucionais, sob pena de serem “expulsas” do sistema normativo.
Deve-se destacar ainda que para existir controle de constitucionalidade é necessário que o ordenamento jurídico seja dotado de uma Constituição rígida. Decorre diretamente da rigidez constitucional a existência de normas jurídicas com processo de modificação diferenciados: as normas constitucionais são consideradas superiores, e assim, sujeitas a um processo de modificação mais rígido e complexo do que o processo de modificação das normas “ordinárias”. Por outro lado, nos ordenamentos jurídicos que possuem Constituição flexível, não se pode falar em verdadeiro controle de constitucionalidade, posto que o Legislativo é detentor de poder constituinte ilimitado, não se podendo controlar as normas por ele expedidas em face do texto constitucional.
Não obstante, é importante destacar a consideração do professor Dirley da Cunha Júnior, citando Clèmaerson Merlim Clève, para quem é possível a existência de controle de constitucionalidade formal mesmo nos países que adotam Constituições flexíveis. Argumenta o autor que “a inconstitucionalidade formal pode se verificar em face de uma Constituição flexível, uma vez que, fixado nesta um procedimento para elaboração das leis, qualquer violação desse procedimento consistirá em inconstitucionalidade[3]”. Não obstante ser realmente possível a existência de inconstitucionalidade formal em face das Constituições flexíveis, não há como se reconhecer inconstitucionalidade material das leis nestes sistemas, posto que o processo de alteração das leis é semelhante ao processo de alteração da própria Constituição, motivo pelo qual a maioria da doutrina entende não haver verdadeiro controle de constitucionalidade nos sistema detentores de Constituição flexível.
Em suma, o controle de constitucionalidade é um sistema de instrumentos hábeis a garantir a supremacia e integridade de uma Constituição rígida, em face das demais leis e atos normativos do ordenamento jurídico, sejam provenientes do Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário.
2.1. O Controle Judicial de Constitucionalidade no Direito Comparado
Analisando os antecedentes históricos do controle de constitucionalidade no mundo, percebe-se que existem dois modelos básicos: o sistema norte-americano, também chamado de judicial review of legislation e o sistema austríaco[4].
2.1.1. O sistema norte-americano
O modelo norte-americano de controle de constitucionalidade caracteriza-se por permitir que qualquer juiz ou tribunal, ante um caso concreto, possa analisar a compatibilidade das leis e dos atos do poder público em face da Constituição.
É um controle puramente judicial (reservado apenas aos órgãos do Poder Judiciário) difuso (todos os órgãos do poder judiciário podem exercê-lo), incidental ou indireto (só se realiza dentro de um processo judicial em curso, como uma questão prejudicial ao mérito) e subjetivo (desenvolvido em razão de um conflito de interesses subjetivos postos em juízo).
Não obstante qualquer juízo ou tribunal ter a faculdade jurídica de declarar a inconstitucionalidade no caso concreto, é importante ressaltar que os pronunciamentos de Suprema Corte tomam repercussão especial, sobretudo diante do princípio do stare decisis. Por este princípio, as decisões e precedentes da Suprema Corte Norte-Americana têm eficácia vinculante, transformando-se na última e definitiva palavra sobre as questões constitucionais naquele país[5].
No sistema norte-americano não existe um processo específico para o controle de constitucionalidade (não existe uma “ADI”, por exemplo). O poder dos juízes se manifesta exclusivamente dentro de um processo civil “comum” quando a questão constitucional é suscitada por quaisquer das partes. Como leciona o professor Ivo Dantas, a questão é resolvida “ad casum”. [6]
2.1.2. O sistema austríaco
Hans Kelsen foi o grande idealizador do modelo de controle de constitucionalidade instituído na Áustria pela Constituição de 1920 e aprimorado na reforma de 1929.
Em tal sistema, conferiu-se a um único órgão central o poder de pronunciar a inconstitucionalidade das normas. Este órgão chamado de Tribunal Constitucional, detém, com exclusividade, o dever de analisar “concentradamente” a compatibilidade de qualquer lei ou ato normativo em face do texto constitucional.
O Tribunal constitucional, no modelo proposto por Kelsen, é apartado e independente da estrutura ordinária do Poder Judiciário. Ele não julga qualquer demanda concreta, não julga conflito de interesses subjetivos. A atividade da Corte Constitucional é plenamente objetiva, ou seja, analisa apenas a compatibilidade da norma em face da constituição, abstratamente. O Tribunal age como um verdadeiro legislador negativo.
No modelo austríaco, as questões constitucionais podem ser remetidas para decisão do Tribunal Constitucional por via principal (através de órgãos políticos legitimados) e por via incidental (em sede de um litígio em trâmite perante o poder judiciário), mas a decisão sempre é objetiva.
Historicamente, o sistema de controle de constitucionalidade austríaco serviu de base para toda a Europa ocidental, refletindo, logicamente, nos países latino-americanos de tradição romano-germânica.
2.2. O Controle Judicial de Constitucionalidade no Direito brasileiro
No Brasil, o controle judicial de constitucionalidade apresenta características sui generes. Tem-se uma mescla dos modelos norte-americano e austríaco, culminando na existência concomitante dos métodos difuso por via de exceção e concentrado.
2.2.1 Controle Judicial de Constitucionalidade por via de exceção.
O controle difuso por via de exceção está consagrado no Brasil desde a Constituição de 1891, mantendo-se presente até a atual Carta Magna de 1988, especialmente no artigo 102, inciso III.
Através do controle difuso por via de exceção qualquer interessado poderá suscitar a questão de inconstitucionalidade, em qualquer processo, seja de que natureza for, qualquer que seja o juízo[7]. Por este método, o litigante pode questionar ao juiz ou tribunal a constitucionalidade da lei em relação ao caso concreto posto em discussão, devendo o julgador pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade ou não da norma.
Interessante notar que a discussão sobre a constitucionalidade da lei é apenas um incidente, uma questão prejudicial para a solução do litígio em questão, e não o objeto principal da lide. Declarada a inconstitucionalidade da lei ou ato normativo, este não será considerado no caso concreto.
Para a doutrina tradicional, o efeito da decisão que declara a inconstitucionalidade incidental atinge apenas os litigantes e retroage desde a data de criação da lei (efeito ex tunc). A constituição ainda prevê a possibilidade de ampliação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade incidenter tantum, quando declarada pelo STF, mediante a aplicação do disposto no art. 52, X. Por deste dispositivo o Senado Federal poderá editar resolução suspendendo a execução, no todo ou em parte, da lei ou ato normativo declarado inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal em controle difuso. Havendo a expedição desta resolução do Senado, a eficácia da declaração de inconstitucionalidade passa a ser erga omnes, contudo, com eficácia apenas a partir da publicação (efeito ex nunc)[8].
2.2.2. Controle de Constitucionalidade Concentrado.
Além do modelo difuso por via de exceção, o Brasil consagra o modelo de controle de constitucionalidade concentrado ou abstrato. Tal espécie de controle surgiu no Brasil por meio da Emenda Constitucional n.º 16, de 06/12/1965, a qual atribuiu ao Supremo Tribunal Federal a competência para apreciar originariamente a representação de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo (federal ou estadual)[9].
O diferencial do controle de constitucionalidade concentrado é que um único órgão responsável (Tribunal Constitucional, ou, no modelo brasileiro, o Supremo Tribunal Federal) analisa a constitucionalidade da lei ou ato normativo de forma abstrata, ou seja, dissociada de um caso concreto. A análise da adequação da norma impugnada em relação à Constituição é o objeto único da ação. Na preciosa lição de Kelsen:
“Se a Constituição conferisse a toda e qualquer pessoa competência para decidir esta questão (inconstitucionalidade da lei), dificilmente poderia surgir uma lei que vinculasse os súditos do Direito e os órgãos jurídicos. Devendo evitar-se uma tal situação, a Constituição apenas pode conferir competência para tal a um determinado órgão jurídico.”
A Constituição federal de 1988 prevê várias espécies de controle concentrado, a saber: a ação direta de inconstitucionalidade genérica e a ação declaratória de constitucionalidade (art. 102, I,a); a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, § 2º); a ação direta de inconstitucionalidade interventiva (art. 36, III) e a argüição de descumprimento de preceito fundamental (art. 102, § 1º), todas de competência exclusiva e originária do Supremo Tribunal Federal.
Para a doutrina tradicional, a decisão que declara a inconstitucionalidade ou constitucionalidade de uma lei ou ato normativo em sede de ADI ou ADC produz efeito retroativo (ex tunc) e para todos (erga omnes). No entendimento clássico, a lei inconstitucional é nula, devendo ser extirpada do ordenamento jurídico desde a respectiva criação, por isso o efeito ex tunc da declaração de inconstitucionalidade.
3. A modulação de efeitos no controle judicial de constitucionalidade.
Como já se argumentou acima, a lição clássica da doutrina é de que uma norma inconstitucional está viciada de nulidade desde a sua criação, não podendo produzir qualquer efeito válido. O entendimento é que a decisão que reconhece a inconstitucionalidade tem natureza declaratória, constatando um estado preexistente de incompatibilidade da norma com a Carta Magna, por isso deveria ser retirada do ordenamento jurídico desde a data da respectiva criação, consagrando-se a eficácia retroativa (ex tunc) da decisão de inconstitucionalidade. É justamente por se reconhecer a nulidade absoluta da norma declarada inconstitucional que se admite o efeito repristinatório[10], ou seja, o efeito de reestabelecer a norma anteriormente vigente à data de entrada em vigor da norma inconstitucional.
Contudo, como já assentara Pontes de Miranda, “um dos problemas de mais relevo prático e mais elegante que se possa encontrar, hoje, em direito constitucional é o da concepção da natureza da sentença sobre anticonstitucionalildade da lei no tocante à sua eficácia”.[11]
Tais palavras de Pontes de Miranda ainda continuam atuais, sobretudo no momento em que se percebe que o constitucionalismo moderno vem se afastando da clássica solução da nulidade da lei inconstitucional, passando a permitir a modulação dos efeitos das decisões de inconstitucionalidade, admitindo que normas reconhecidamente inconstitucionais, mediante certas condições, possam produzir efeitos como se constitucionais fossem, durante determinado lapso temporal.
3.1 Os Precedentes no Direito Comparado.
A doutrina constitucional norte-americana tradicionalmente defendeu a teoria da nulidade da lei inconstitucional. Neste sentido, Ricardo Ribeiro Campos leciona que “a particular frascologia da Constituição dos Estrados Unidos confirma e fortalece o princípio, que se supõe essencial a todas as constituições escritas, de que toda lei contrastante com a constituição é nula[12]”. Estando a lei em contrariedade com a Constituição, esta deve prevalecer absolutamente, reconhecendo-se a nulidade ab initio da norma impugnada (efeito ex tunc): quod nullum est, nullum producit effectum.
Tendo em vista que o poder pertence ao povo, sendo o legislador mero mandatário deste, se a vontade do legislador entrar em conflito com a vontade maior do povo expressa na Constituição, é à lei que se deve recusar aplicação, preservando-se a vontade constitucional. O excesso do mandatário é nulo. Não se pode admitir que a lei contrária à Constituição produza qualquer efeito, sob pena de ser atingida a supremacia popular.
Como exemplo desta doutrina, pode-se citar o clássico caso Norton v. Shelby County (1886)[13], onde a Suprema Corte Norte-Americana firmou o entendimento de que an unconstitutional act is not a law; it confers no rights; it imposes no duties; it affords no protection; it creates no office; it is in legal contemplation as inoperative as though it had never been passed (uma lei inconstitucional não é lei; não confere qualquer direito nem impõe obrigações; não assegura nenhuma proteção; é ineficaz como se nunca houvera existido).
Todavia, a própria Suprema Corte Norte-Americana, tempos depois, começou a admitir que a retroatividade plena da decisão que reconhece a inconstitucionalidade da lei não é princípio absoluto. Passou-se a entender que a questão da retroatividade deveria ser tratada como um assunto de política judiciária, devendo ser analisado em cada caso concreto. Gilmar Ferreira Mendes[14], noticiando tal fato, afirma que”
“É interessante notar que nos próprios Estados Unidos da América, onde a doutrina acentuara tão enfaticamente a idéia de que a expressão ‘lei inconstitucional’ configurava uma contradictio in terminis, uma vez que ‘the inconstitutional statute is not law at all’ passou-se a admitir, após a Grande Depressão, a necessidade de se estabelecer limites à declaração de inconstitucionalidade.”
Como exemplo desta guinada no entendimento da Suprema Corte Norte-Americana, pode-se citar o caso Linkletter v. Walker (1965)[15]. Neste leading case a Corte Suprema decidiu que não era conseqüência necessária da decisão de inconstitucionalidade o reconhecimento de efeito retroativo. Restou firmado na decisão que the Constitution neither prohibits nor requires retroactive effect, and in each case, the Court determines whether retroactive or prospective application is appropriate. This approach is particularly correct with reference to the unreasonable search and seizure prescription of the Fourth Amendment (a Constituição nem proíbe nem exige efeito retroativo, e em cada caso, o Tribunal determina se a aplicação prospectiva ou retroativa é adequada. Esta abordagem é particularmente correta com referência à irrazoável busca e apreensão prescrição na Quarta Emenda).
Como se vê, a Suprema Corte Norte-Americana passou a admitir, observadas as peculiaridades do caso concreto, a possibilidade da modulação de efeitos da decisão que reconhece o vício de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo. Assim, além da decisão de inconstitucionalidade com efeitos retroativos (limited retrospectivity), a Corte também entende cabível a superação prospectiva (prospective overruling).
Em Portugal, a constituição de 1982 consagra, como regra geral, o princípio da nulidade[16], prescrevendo no art. 282º-1. que “A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”.
Por outro lado, a própria constituição portuguesa prevê expressamente a possibilidade do Tribunal Constitucional fixar os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de forma mais restrita, desde que razões de segurança jurídica, equidade ou interesse público considerável recomendem, afastando o princípio da nulidade plena e consagrando a modulação de efeitos, como se vê no art. 282º-4, in verbis:
“4. Quando a segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excepcional relevo, que deverá ser fundamentado, o exigirem, poderá o Tribunal Constitucional fixar os efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restrito do que o previsto nos n.ºs 1 e 2.”
Analisando o caso português, o professor Jorge Miranda, citado por Gilmar Ferreira Mendes[17], afirma que:
“A fixação dos efeitos da inconstitucionalidade destina-se a adequá-los às situações da vida, a ponderar o seu alcance e a mitigar uma excessiva rigidez que pudesse comportar; destina-se a evitar que, para fugir a conseqüências demasiado gravosas da declaração, o Tribunal Constitucional viesse a não decidir pela ocorrência de inconstitucionalidade; é uma válvula de segurança da própria finalidade e da efetividade do sistema de fiscalização.”
O sistema austríaco também merece registro. O Art. 140 da Constituição da Áustria de 1920 prescreve expressamente que os efeitos da decisão que reconhece a inconstitucionalidade de uma lei se dão a partir da publicação da decisão do Tribunal Constitucional, salvo quando esta corte estabelecer outro prazo, que não pode ser superior a seis meses ou, quando for necessária a edição de outra lei, o prazo não pode superar um ano[18].
A decisão opera-se pro futuro, sendo a lei anulada. Contudo, os atos até então praticados com base na lei não são atingidos pela anulação. Hans Kelsen fundamenta tal posicionamento afirmando que “enquanto, porém, não for revogada, tem que ser considerada como válida (a lei); e, enquanto for válida, não pode ser inconstitucional”[19].
René Marcic, citado pelo professor Paulo Bonavides[20], destaca que:
“O Tribunal Constitucional austríaco se coloca na posição de somente afastar do sistema jurídico as leis declaradas nulas, de maneira ex nunc; segundo a ordem constitucional austríaca as leis inconstitucionais não são pois atos nulos ex tunc. Chega mesmo o Tribunal Constitucional vienense a deixar ficar como está, ou seja, com eficácia, por um determinado espaço de tempo, uma lei reconhecida por inconstitucional – isto em virtude da segurança jurídica e a fim de oferecer ao Governo a oportunidade de preparar, durante este espaço de tempo, uma lei que seja constitucional.”
Em suma, pelo sistema austríaco a lei reconhecida inconstitucional é válida até a decisão de inconstitucionalidade, não afetando os atos praticados com base nela. Ademais, quando o tribunal fixar prazo para cessação da vigência, a lei continua válida neste interregno como se constitucional fosse (seria uma lei inconstitucional, produzindo efeitos como se constitucional fosse…). Da mesma forma, os atos de execução praticados com base na lei durante este lapso temporal são considerados válidos.
3.2. A Modulação de Efeitos no Direito Brasileiro
3.2.1. O Princípio da Nulidade como Regra
No Brasil, a doutrina clássica sempre defendeu a existência do princípio da nulidade entre nós[21]. Argumenta-se que a decisão de inconstitucionalidade é meramente declaratória, reconhecendo uma situação de incompatibilidade pré-existente da lei ou ato normativo em relação à Constituição. Tal posicionamento funda-se na antiga lição da Corte Suprema Norte-Americana, conforme já se discorreu acima, segundo a qual “the inconstitutional statute is not law at all“.
De acordo com este entendimento, a declaração de inconstitucionalidade da lei ou ato normativo em face da Constituição Federal tem eficácia retroativa (ex tunc), ante a existência de vício congênito de nulidade, neutralizando, desta feita, todos os efeitos jurídicos produzidos pela norma inconstitucional. Não poderia a norma inconstitucional ter existência no ordenamento jurídico, sob pena de ofensa ao princípio da supremacia da Constituição.
Gilmar Ferreira Mendes cita esta doutrina afirmando que:
“O dogma da nulidade da lei inconstitucional pertence à tradição do direito brasileiro. A teoria da nulidade tem sido sustentada por praticamente todos os nossos importantes constitucionalistas. (…) significativa parcela da doutrina brasileira posicionou-se em favor da equiparação entre inconstitucionalidade e nulidade. Afirmava-se, em favor dessa tese, que o reconhecimento de qualquer efeito a uma lei inconstitucional importaria na suspensão provisória ou parcial da Constituição.”[22]
Esse também é o entendimento clássico do Supremo Tribunal Federal, de forma que a lei declarada inconstitucional é considerada, independentemente de qualquer outro ato, nula ipso jure e ex tunc.[23]
Não se pode negar que o princípio da nulidade tem guarida no texto Constitucional de 1988.
O Poder deferido aos Juízes e aos Tribunais de negar aplicação à lei inconstitucional (art. 97, art. 102, inciso III, “a”, “b” e “c” da Constituição Federal) pressupõe a adoção do princípio da nulidade. Da mesma forma, a Constituição assegura ao individuo a faculdade de provocar o Poder Judiciário para afastar a aplicação de uma lei inconstitucional ao seu caso concreto, podendo, inclusive, provocar a própria Corte Suprema através de recurso extraordinário, quando uma decisão judicial contrariar dispositivo da Constituição (art. 102, III, “a”), o que mais uma vez demonstra a existência do princípio da nulidade na Carta magna de 1988.
Neste mesmo sentido, afirma Gilmar Mendes que:
“Tanto o poder do juiz de negar aplicação à lei inconstitucional quanto a faculdade assegurada ao indivíduo de negar observância à lei inconstitucional demonstram que o constituinte pressupôs a nulidade da lei inconstitucional. Daí se segue que a sentença que declara a inconstitucionalidade tem eficácia ex tunc.”[24]
Destaque-se ainda que na Assembléia Constituinte de 1986/1988 havia proposta de inclusão no texto constitucional de dispositivo que permitiria ao Supremo Tribunal Federal decidir se a decisão que reconhece a inconstitucionalidade de uma norma em controle abstrato teria efeito ex tunc ou ex nunc, a depender o entendimento do STF no caso concreto. Tal dispositivo buscava afastar a nulidade ipso jure da norma inconstitucional, em termos semelhantes ao disposto na Constituição portuguesa. Ocorre que tal proposta, que incluiria constitucionalmente a possibilidade da modulação de efeitos no direito brasileiro, foi rejeitada pela Assembléia Constituinte, o que faz presumir a adoção do princípio da nulidade pelo texto constitucional de 1988.
3.2.2. Da Evolução Doutrinária.
Não obstante ser inconteste que o constituinte pátrio adotou o princípio da nulidade como regra geral no ordenamento brasileiro, a doutrina mais moderna vem defendendo uma flexibilização deste princípio também no Brasil[25], observando, sobretudo, a evolução da doutrina européia.
A grande maioria dos juristas modernos entende que a simples declaração de nulidade plena de uma norma reconhecida como inconstitucional não resolve, com justiça e proporcionalidade, todas as questões postas em discussão no Poder Judiciário. Afirma o mestre José Afonso da Silva[26] que “essa doutrina privatista da invalidade dos atos jurídicos não pode ser transportada para o campo da inconstitucionalidade, pelo menos no sistema brasileiro”.
É obvio que em muitos casos a extirpação total da norma jurídica desde a sua origem pode causar um estado de inconstitucionalidade muito pior do que se permitisse que a norma inconstitucional produzisse efeitos até a declaração de inconstitucionalidade ou outro momento. Ou seja, em casos excepcionais deve-se entender que a norma inconstitucional deve produzir efeitos como se constitucional fosse, por um certo lapso temporal, a fim de evitar situações danosas ao próprio sistema jurídico.
Analise-se, por exemplo, um recente caso julgado pelo STF (ADI 2501)[27], no qual a Corte Suprema decidiu pela inconstitucionalidade de dispositivos da Constituição Estadual de Minas Gerais (inciso II do parágrafo 1º do artigo 82 do ADCT, bem como os parágrafos 4º, 5º e 6º do mesmo artigo). Tais dispositivos permitiam que o conselho estadual de educação de Minas Gerais autoriza-se e credencia-se cursos de instituições privadas de ensino superior no Estado, usurpando, claramente, competência exclusiva da União. Com base neste artigo, cerca de 39 instituições privadas de ensino superior, que gerenciam mais de 800 cursos de graduação com mais de 120 mil alunos matriculados, estavam funcionando há anos. Declarada a inconstitucionalidade pelo STF, se o tribunal aplicasse plenamente o princípio da nulidade da lei inconstitucional, todos os cursos teriam que ser imediatamente fechados, além de que todos os ex-alunos das referidas instituições teriam seus diplomas anulados, posto que viciados de inconstitucionalidade. É óbvio que uma situação como esta geraria uma insegurança jurídica extrema, além de sérios prejuízos aos ex-alunos e a toda sociedade. No referido caso, afastando a teoria da nulidade da lei inconstitucional e aplicando a modulação de efeitos (efeitos pro futuro), o STF declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados, mas determinou que ficariam mantidos os diplomas já expedidos pelas instituições, bem como os cursos que estão em andamento. Tal posicionamento da Corte Suprema preservou uma situação amparada por uma lei inconstitucional (algo impensável para a teoria da nulidade) em prol da segurança jurídica e da proporcionalidade. Sem dúvida, a declaração de nulidade plena da norma construiria uma situação caótica.
Justamente enfrentando problemas semelhantes a este, parte da doutrina constitucionalista alemã[28], com base em algumas decisões do Tribunal Constitucional Alemão, vem construindo uma nova definição jurídica para tais hipóteses, defendendo a existência de um novo tipo ou figura de situação da norma jurídica. Para esta doutrina, poderia existir a variante da “incompatibilidade” da lei com a Constituição (Uvereinbarkeit) distinta da clássica declaração de nulidade ou invalidade (Nichtigkeiterklärung).
Não obstante ainda não existir uma separação clara entre estas duas terminologias, vem se percebendo que o Tribunal Constitucional Alemão está empregando cada vez mais esse tipo de posicionamento, entendendo a hipótese de lei “somente incompatível”, como alternativa ao entendimento da plena nulidade.[29]
Paulo Bonavides afirma que a corte alemã chegou a firmar uma regra expressa nos seguintes termos:
“Excepcionalmente, disposições inconstitucionais devem, em parte, ou totalmente, continuarem a ter aplicação, se a peculiaridade da norma declarada inconstitucional fizer necessário por razões constitucionais, nomeadamente aquelas derivadas da segurança do direito, que se deixe existir o preceito inconstitucional como regulação durante um período de transição, a fim de que nesta fase uma situação não se produza muito mais apartada da ordem constitucional do que aquela até então prevalente (…) A variante consagrada por Karlsruhe consiste basicamente, pois, em reconhecer a “existência da lei”, ao invés de decretar, de plano, sua nulidade. Reconhecendo-lhe a existência, admitirá a aplicabilidade ou não aplicabilidade da norma constante a disposição que sentenciar.”[30]
O entendimento de declarar a “incompatibilidade” da norma em face da constituição ao invés da nulidade é uma ótima solução para os casos onde a declaração de nulidade plena da norma desde a sua origem pode gerar um dano significativo ao direito, em sentido amplo. Como se vê, é uma aproximação da teoria kelseniana, para quem a decisão de inconstitucionalidade tem caráter constitutivo e não simplesmente declaratório.
No caso particular do direito brasileiro entendo que a teoria da “incompatibilidade” da norma em face da constituição somente se aplica em casos excepcionais, onde for recomendada a modulação de efeitos com base nos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade. Por outro lado, a regra do direito brasileiro continua sendo a nulidade ipso jure e ex tunc da lei inconstitucional.
Interessante também notar que a modulação de efeitos pode se fazer necessária tanto no controle concentrado quanto no controle difuso de constitucionalidade. No direito norte-americano, onde o controle de constitucionalidade é essencialmente difuso, a jurisprudência já admite a modulação de efeitos, como já se argumentou acima. A Suprema Corte estadunidense entende cabível tanto a clássica nulidade absoluta, quanto a superação prospectiva (prospective overruling), sobretudo nas decisões que representam alteração de jurisprudência (overrruling). Esta se divide em limited prospectivity, aplicável aos processos já iniciados e pendentes de decisão (incluindo o processo originário), e pure prospectivity, que exclui completamente a eficácia retroativa, nem sequer se aplicando ao processo que lhe deu origem.[31]
Sobre o assunto é interessante colacionar passagem do voto do Min. Gilmar Mendes, firmado no acórdão exarado na Medida Cautelar em Ação Cautelar n.º 189-7 SP de 06/04/2004, in verbis:
“No direito americano, o tema poderia assumir feição delicada tendo em vista o caráter incidental ou difuso do sistema, isto é, modelo marcadamente voltado para a defesa de posições subjetivas. Todavia, ao contrário do que se poderia imaginar, não é rara a pronúncia de inconstitucionalidade sem atribuição de eficácia retroativa, especialmente nas decisões judiciais que introduzem alteração de jurisprudência (prospective overruling). Em alguns casos, a nova regra afirmada para decisão aplica-se aos processos pendentes (limited prospectivity); em outros, a eficácia ex tunc exclui-se de forma absoluta (pure prospectivity). Embora tenham surgido no contexto das alterações jurisprudenciais de precedentes, as prospectivity têm integral aplicação às hipóteses de mudança de orientação que leve à declaração de inconstitucionalidade de uma lei antes considerada constitucional (Cf. Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade, cit., p. 743). A prática da prospectivity, em qualquer de suas versões, no sistema de controle americano, demonstra, pelo menos, que o controle incidental não é incompatível com a idéia da limitação de efeitos na decisão de inconstitucionalidade.”
Assim, não resta dúvida que a modulação de efeitos é compatível com o controle difuso. A fim de preservar os princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade, qualquer Tribunal ou Juiz pode entender razoável não declarar a nulidade plena da norma ao analisar incidentalmente a sua constitucionalidade, a depender do caso concreto. Ademais, o próprio STF já vem adotando tranqüilamente a modulação de efeitos no controle difuso no Brasil[32]. Também nestes casos entendo cabível a tese alemã de declarar a norma apenas “incompatível” com a constituição, preservando assim a sua existência jurídica até um certo termo e determinando a sua inaplicabilidade a partir de então.
3.2.3. Da Evolução Jurisprudencial.
Desde a década de 70 já se encontram vozes no Supremo Tribunal Federal defendendo a possibilidade da mitigação do princípio da nulidade.
No Recurso Extraordinário n.º 78.594/SP[33], julgado em 07/06/1974, a 2ª turma do Supremo Tribunal Federal enfrentou um caso onde um funcionário público assumiu as funções de oficial de justiça com base em uma determinada lei estadual que viria a ser declarada inconstitucional pelo STF. Ocorre que se aplicada a teoria da nulidade plena ao caso, todos os atos realizados pelo “oficial de justiça” seriam nulos de plano. Em seu voto, o Relator Min. Bilac Pinto afirmou que “os efeitos desse tipo de declaração de inconstitucionalidade – declaração feita contra lei em tese – não podem ser sintetizados numa regra única, que seja válida para todos os casos”. Para solucionar o referido litígio, o STF entendeu que os atos até então praticados pelo funcionário público seriam válidos, não obstante a inconstitucionalidade da lei que lhe deu investidura.
Também no julgamento do Recurso Extraordinário nº 79.343-BA em 31 de maio de 1977, o Relator, Min. Leitão de Abreu, apoiado na doutrina Kelseniana, propugnou a anulabilidade da lei e a natureza constitutiva da decisão judicial que proclama a inconstitucionalidade. O Ministro defendeu a presunção de constitucionalidade da lei – elaborada por órgão legislativo competente e na observância do devido processo legislativo, tendo passado até mesmo pelo crivo do chefe do Poder Executivo –, que não pode simplesmente ser declarada nula desde a origem, pois, enquanto vigente, estabeleceu relações jurídicas entre o particular e o público, relações estas que não são possíveis de ser ignoradas em face do princípio da boa-fé. O certo é que o ato normativo declarado inconstitucional, por um determinado interregno, constituiu fato jurídico eficaz. O particular que agiu em conformidade com a norma, na presunção de que o fazia segundo o direito objetivo, não pode por isso ser prejudicado. O Ministro Leitão de Abreu atribuía ao Supremo Tribunal Federal o poder de declarar a inconstitucionalidade com eficácia restrita, dando ensejo à aplicação da norma inconstitucional ao caso concreto, o que seria inconcebível para a teoria da nulidade[34].
Deste então, o Supremo tribunal Federal passou a adotar, em situações excepcionais, a técnica da modulação de efeitos das decisões de inconstitucionalidade, sobretudo por questões de segurança jurídica e proporcionalidade. Veja-se, por exemplo, o julgado no Recurso Extraordinário n.º 266994/SP de 31/03/2004, relatado pelo Ministro Maurício Corrêa, in verbis:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIOS. CÂMARA DE VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTONOMIA MUNICIPAL. LIMITES CONSTITUCIONAIS. NÚMERO DE VEREADORES PROPORCIONAL À POPULAÇÃO. CF, ARTIGO 29, IV. APLICAÇÃO DE CRITÉRIO ARITMÉTICO RÍGIDO. INVOCAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE. INCOMPATIBILIDADE ENTRE A POPULAÇÃO E O NÚMERO DE VEREADORES. INCONSTITUCIONALIDADE, INCIDENTER TANTUM, DA NORMA MUNICIPAL. EFEITOS PARA O FUTURO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. 1. O artigo 29, inciso IV, da Constituição Federal exige que o número de Vereadores seja proporcional à população dos Municípios, observados os limites mínimos e máximos fixados pelas alíneas a, b e c. 2. Deixar a critério do legislador municipal o estabelecimento da composição das Câmaras Municipais, com observância apenas dos limites máximos e mínimos do preceito (CF, artigo 29), é tornar sem sentido a previsão constitucional expressa da proporcionalidade. 3. Situação real e contemporânea em que Municípios menos populosos têm mais Vereadores do que outros com um número de habitantes várias vezes maior. A ausência de um parâmetro matemático rígido que delimite a ação dos legislativos Municipais implica evidente afronta ao postulado da isonomia. 4. Princípio da razoabilidade. Restrição legislativa. A aprovação de norma municipal que estabelece a composição da Câmara de Vereadores sem observância da relação cogente de proporção com a respectiva população configura excesso do poder de legislar, não encontrando eco no sistema constitucional vigente. 5. Parâmetro aritmético que atende ao comando expresso na Constituição Federal, sem que a proporcionalidade reclamada traduza qualquer lesão aos demais princípios constitucionais nem resulte formas estranhas e distantes da realidade dos Municípios brasileiros. Atendimento aos postulados da moralidade, impessoalidade e economicidade dos atos administrativos (CF, artigo 37). 6. Fronteiras da autonomia municipal impostas pela própria Carta da República, que admite a proporcionalidade da representação política em face do número de habitantes. Orientação que se confirma e se reitera segundo o modelo de composição da Câmara dos Deputados e das Assembléias Legislativas (CF, artigos 27 e 45, § 1º). Inconstitucionalidade. 7. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação excepcional em que a declaração de nulidade, com seus normais efeitos ex tunc, resultaria em grave ameaça a todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do interesse público para assegurar, em caráter de exceção, efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitucionalidade. Recurso extraordinário não conhecido.” (grifamos).”
Percebe-se que não há duvidas que o Supremo Tribunal Federal adota a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade, em situações excepcionais. Realizada uma cuidadosa ponderação de interesses e observada a proporcionalidade, o Tribunal afastava a nulidade plena (que é a regra) e permite que a norma inconstitucional produza efeitos jurídicos durante determinado lapso temporal, como se constitucional fosse.
3.2.4 Da Evolução Legislativa.
Com o objetivo de dispor sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, o Congresso nacional aprovou a lei 9.868/99, promulgada pelo Presidente da República em 10 de novembro do mesmo ano.
Avançando no tema, a lei 9.868/99 tenta legitimar a faculdade do Supremo Tribunal Federal realizar modulação de efeitos nas suas decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de uma norma. Neste sentido o art. 27 da citada lei dispõe o seguinte:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
Assim, nos termos fixados pela lei 9.868/99, endentemos que os limites temporais da declaração de inconstitucionalidade podem ser administrados pelo STF das seguintes maneiras:
1) Efeitos retroativos plenos: é a regra. Aplicação do princípio da nulidade, ou seja, a norma é excluída do ordenamento jurídico desde a sua gênese (eficácia ex tunc);
2) Modulação de efeitos: havendo razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social, mediante voto de dois terços dos seus ministros, o STF pode adotar:
2.1) efeitos retroativos limitados: o STF pode determinar que a norma declarada inconstitucional produza efeitos até um determinado marco temporal anterior à declaração de inconstitucionalidade. A decisão de inconstitucionalidade terá alguma eficácia retroativa, mas não excluirá a norma desde a sua formação, deferindo a ela alguma aplicabilidade;
2.2) efeitos ex nunc: o STF pode excluir completamente os efeitos retroativos, de modo que a norma seja considerada aplicável até o trânsito em julgado da decisão. Os efeitos da declaração de inconstitucionalidade iniciarão apenas a partir do trânsito em julgado.
2.3) efeitos pro futuro: nesta modalidade, o STF firma um marco temporal futuro a partir do qual a norma declarada inconstitucional perderá sua aplicabilidade. Neste tipo de decisão, a norma inconstitucional continuará a ser aplicada até o advento do termo fixado pelo STF. Apenas a partir do acontecimento futuro e certo firmado pelo Tribunal é que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade começarão a se produzir, excluindo a norma do ordenamento[35].
Interessante ressaltar que alguns doutrinadores, como por exemplo o Prof. Alexandre de Moraes, não admitem que o efeito pro futuro tenha a extensão aqui proclamada. Afirma Alexandre de Moraes que:
Assim, se o STF entender pela aplicação dessa hipótese excepcional, deverá escolher como termo inicial da produção dos efeitos, qualquer momento entre a edição da norma e a publicação oficial da decisão. Dessa forma, não poderá o STF estipular como termo inicial para produção dos efeitos da decisão data posterior à publicação da decisão no Diário Oficial, uma vez que a norma inconstitucional não mais pertence ao ordenamento jurídico, não podendo permanecer produzindo efeitos.[36]
Entretanto, entendemos que não foi este o sentido da norma. O artigo 27 da lei 9.868/99 fala expressamente que o STF pode “restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Quando a norma fala em outro momento que venha a ser fixado está a incluir, sem dúvida, momento posterior ao trânsito em julgado. Caso o legislador buscasse restringir, teria feito expressamente.
Ademais, tal técnica também é adotada na Constituição austríaca, a qual permite que a norma impugnada continue a viger por até um ano após a declaração de inconstitucionalidade. É óbvio que o termo final de vigência da norma deve ser fixado com prudência pelo STF, sob pena de se criar situações perigosas. Contudo, não há vedação na lei 9.868/99 que impeça os efeitos pro futuro nos moldes acima defendidos.
4. Da Inconstitucionalidade do artigo 27 da lei 9.868/99[37].
Conforme se constatou na exposição acima, mesmo antes da existência da lei 9.868/99 o STF já vinha aplicando a modulação de efeitos em algumas decisões, sobretudo com base nos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade.
A referida lei teve a intenção de legitimar e ao mesmo tempo restringir a atuação do STF, fixando requisitos (ainda que bastante flexíveis) para que o Supremo possa realizar a modulação de efeitos no caso concreto (a lei exige razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social e quorum qualificado).
Contudo, ousamos entender que o artigo 27 da lei 9.868/99 é inconstitucional. Primeiramente relembre-se que a Constituição Federal de 1988 apenas prevê o princípio da nulidade, ou seja, a orientação de que a lei inconstitucional não pode produzir qualquer efeito. Não há no texto constitucional brasileiro qualquer norma que permita a modulação de efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
Ademais, urge lembrar que na Assembléia Constituinte de 1986/1988 havia proposta de inclusão no texto constitucional de dispositivo que permitiria ao Supremo Tribunal Federal decidir se o acórdão que reconhece a inconstitucionalidade de uma norma em controle abstrato teria efeito ex tunc ou ex nunc, a depender do caso concreto, a semelhança do modelo constitucional português. Ocorre que tal dispositivo foi rejeitado pelo constituinte originário. Fazendo-se uma interpretação histórica, a Constituição brasileira de 1988 não “desejou” o acolhimento da modulação de efeitos.
É claro que o simples fato da proposta ter sido rejeitada na Assembléia Constituinte não impede que a mesma matéria seja discutida e incluída no ordenamento jurídico em momento posterior, contudo, não se pode admitir que isso ocorra por mera lei ordinária. Só por emenda constitucional poder-se-ia incluir na Constituição matéria desta jaez.
Também há uma outra percepção no campo da Teoria geral do Direito. Seguindo o modelo piramidal Kelseniano, toda norma jurídica necessita de uma outra norma hierarquicamente superior que lhe seja o fundamento de validade. Kelsen explica que:
“A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar, finalmente na norma fundamental – pressuposta.”[38]
Então, se uma norma é reconhecidamente inconstitucional, como poderia uma mera lei ordinária (lei 9.868/99) ser o fundamento de validade da norma declarada inconstitucional (que é de mesma hierarquia ou até superior à lei 9.868/99)? Ou seja, como poderia uma lei ordinária ser fundamento de validade de outra lei ordinária ou emenda constitucional? Claro que isto não se mostra possível.
Nos modelos português e austríaco as normas inconstitucionais têm como fundamento de validade justamente as normas previstas na constituição que regulam a modulação de efeitos. Estas normas constitucionais deferem validade às outras inferiores que foram declaradas inconstitucionais. Trata-se de norma criada pelo poder constituinte, servindo de fundamento de validade às normas de hierarquia inferior, amoldando-se plenamente ao modelo de ordenamento jurídico acima referido por Kelsen e aceito quase que unanimemente pela doutrina.
Desta feita, corroborando o entendimento aqui defendido, Ricardo Ribeiro Campos afirma que o art. 27 da Lei 9.868/99 não pode ser aplicado posto que:
“Afigura-se despropositado uma simples lei ordinária servir de fundamento de validade a normas situadas no mesmo plano hierárquico e mesmo em plano superior – no caso das emendas constitucionais aprovadas com violação das cláusulas pétreas”[39].
Também chegou à mesma conclusão o ilustre Silvio Nazareno Costa, afirmando que:
“O princípio da hierarquia afasta da esfera ordinária a matéria em questão. Matéria com repercussões sobre o equilíbrio e independência entre as funções estatais não encontra na flexível e instável via da lei ordinária seu meio próprio. Ademais, a rigidez da Carta brasileira não se compraz com a possibilidade da normatização ordinária com infringência constitucional, como no caso parece ocorrer. Nos sistemas constitucionais rígidos, como se sabe, somente a normatização derivada pode nascer do rito ordinário, com o estabelecimento de Direito positivo submetido aos lindes firmados na Constituição, mesmo que não expressamente”.
Em suma, entendemos ser inconstitucional o disposto no art. 27 da lei 9.868/99, ressaltando que a modulação de efeitos pode (e deve) ser incluída expressamente no ordenamento jurídico brasileiro através de emenda constitucional. A inclusão de dispositivo semelhante através de emenda superaria todos os empecilhos aqui noticiados: 1) a modulação de efeitos teria legitimidade, mesmo diante da rejeição de proposta semelhante pelo poder constituinte originário; 2) permitir-se-ia que a nova disposição constitucional servisse de fundamento de validade para as normas declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, as quais poderiam legitimamente produzir efeitos válidos.
Nestes termos, o Brasil adotaria a teoria da norma simplesmente “incompatível” em face da constituição, quando houvesse necessidade de modulação de efeitos, afastando a regra da nulidade. Se a norma “inconstitucional” obtivesse fundamento de validade no próprio texto da Carta Magna, tecnicamente, a mesma nem seria verdadeiramente “inconstitucional” e sim apenas “incompatível”[40].
5. Da Modulação de Efeitos com Base nos Princípios da Segurança Jurídica e da Proporcionalidade.
Por fim, convém discutir uma última questão: admitindo-se o entendimento da inconstitucionalidade do artigo 27 da lei 9.868/99, estaria o Supremo Tribunal Federal impedido de aplicar a modulação de efeitos nas suas decisões de inconstitucionalidade? Entendemos que não.
Primeiramente, como já se argumentou, a jurisprudência do STF já vinha admitindo a modulação de efeitos muito antes da existência da lei 9.868/99.
Ademais, os princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade, os quais têm assento constitucional, permitem o afastamento casuístico do princípio da nulidade (que é a regra), num legítimo processo de ponderação de interesses. Neste sentido, afirma Gilmar Ferreira Mendes o seguinte:
“Tal como observado, o princípio da nulidade continua a ser a regra também no direito brasileiro. O afastamento de sua incidência dependerá de um severo juízo de ponderação que, tendo em vista análise fundada no princípio da proporcionalidade, faça prevalecer a idéia de segurança jurídica ou outro princípio constitucional importante, manifestado sob a forma de interesse relevante.”[41] (grifamos).
Nenhum princípio constitucional tem caráter absoluto. Sempre haverá casos onde a aplicação plena do princípio da nulidade poderá gerar uma situação de inconstitucionalidade muito pior do que aquela criada pela aplicação da lei inconstitucional. Nestas situações, caberá ao Tribunal fazer uma análise ponderada e criteriosa da situação, modulando os efeitos da decisão de inconstitucionalidade, tendo em vista os interesses afetados pela lei inconstitucional e aqueles eventualmente sacrificados pela declaração de inconstitucionalidade[42].
Feito todo esse criterioso processo de ponderação de interesses, pode o STF entender legitimamente que uma norma inconstitucional produza efeitos durante certo lapso temporal, como se constitucional fosse. Tal norma inconstitucional terá como fundamento de validade os princípios constitucionais da proporcionalidade e da segurança jurídica, sempre em prol da máxima efetividade da Constituição.
6. Conclusão
Diante do que foi discutido no presente trabalho, chegamos à conclusão de que a modulação de efeitos das decisões de inconstitucionalidade é uma tendência mundial inevitável. Vários países já admitem tal possibilidade implícita ou expressamente em seus textos constitucionais. No Brasil, a regra ainda é o princípio da nulidade, não obstante, tendo em vista situações excepcionais, admite-se a modulação de efeitos nas decisões de inconstitucionalidades tanto no controle difuso quanto no controle concentrado. O artigo 27 da lei 9.868/99 tentou trazer regulamentação para a espécie, entretanto, tal artigo padece de inconstitucionalidade. A despeito da inconstitucionalidade do art. 27 da lei 9.868/99, o Poder Judiciário pode realizar a modulação de efeitos com base nos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade, mediante um criterioso processo de ponderação de interessem em conflito, permitindo-se, excepcionalmente, que a norma inconstitucional produza efeitos como se constitucional fosse.
Procurador Federal, graduado pela UFPE, pós-graduado em Direito Público pela PUC Minas, ex-pesquisador bolsista do PIBIC/CNPq/UFPE, ex-Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Pernambuco
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