Sumário: 1. Aspectos introdutórios – Os critérios de fixação de competência segundo a teoria de Giuseppe Chiovenda – 1.2. Competência absoluta e competência relativa – 2. Competência oriunda de eleição de foro – 3. Foro de eleição em contrato de adesão – 4. As novas regras do parágrafo único do art. 112 e do art. 114 do CPC – 4.1. Ausência de determinação legal específica tratando a competência decorrente de eleição de foro em contrato de adesão como absoluta – 4.2. Inclusão da nova regra no âmbito da competência relativa – 4.3. Prorrogabilidade – 4.4. Necessidade de exame do contexto fático – 4.5. Conclusão acerca da natureza jurídica da competência concernente à eleição de foro em contrato de adesão.
1. Aspectos introdutórios
A jurisdição é exercida pelo Estado, que a monopoliza, sendo vedado ao administrado o exercício arbitrário das próprias razões (CP, art. 345). Dentro da complexa estrutura do Estado, a atividade jurisdicional é desempenhada por um Poder precipuamente criado para tal finalidade: o Poder Judiciário, que cumpre esse especial papel através dos seus diversos órgãos. Cada órgão, todavia, exerce a jurisdição nos limites impostos pela lei. Daí é que exsurge a noção de competência, que se qualifica como conjunto de atribuições jurisdicionais afeto a determinado órgão judiciário. Graças às limitações estabelecidas, é possível conhecer a exata dimensão da atividade jurisdicional de cada unidade jurisdicional. Essas limitações – que guardam em si uma máxima de divisão de trabalho – seguem preceitos técnicos e com eles se evita a distribuição arbitrária de atribuições.
O próprio ordenamento – que cuida de estabelecer as regras distributivas de competência – leva em conta uma série de elementos, tanto de ordem fática como de ordem jurídica. Nessa linha, têm-se vários critérios de fixação de competência que nem sempre obedecem a uma lógica de razão pura. Por vezes, o ordenamento sopesa aspectos de ordem política ou de conveniência social, implicando variantes, como o tempo e o espaço.
São numerosos os critérios de fixação de competência. De outro lado, eles possuem “diferentes comportamentos”. Por conseguinte, é de valiosa importância a busca de uma classificação, no sentido de melhor teorizar o instituto. Arduamente, a doutrina vem formulando diversas classificações em torno da competência jurisdicional, pretendendo dar-lhe arcabouço lógico. Para fins de otimização da abordagem do tema proposto, abordarei apenas a classificação acolhida pelo Código de Processo Civil vigente.
1.1. Os critérios de fixação de competência segundo a teoria de Giuseppe Chiovenda
O direito processual civil brasileiro abraçou a teoria do jurista italiano Giuseppe Chiovenda, segundo a qual os critérios de fixação de competência baseavam-se em três searas: a) objetiva; b) territorial; c) funcional.
A objetiva leva em conta o objeto da ação, id est, o bem da vida posto em juízo. Nestes termos, importa saber a natureza da relação jurídica na qual se encontra engajado o bem jurídico, resultando daí a chamada competência ratione materiae. Além disso, leva em consideração o valor econômico atribuído àquele bem, redundado na conhecida competência em razão do valor da causa. Por derradeiro, importa conhecer as partes envolvidas na relação de direito material, resultando a competência ratione personae. No tocante a esta última, é importante frisar que o jurista italiano, em sua originária lição, não a mencionava. Mas, dentro da temática do direito brasileiro e, notadamente, considerando o relevo que se dá a certas funções públicas, não se pode deixar de conceber dito critério de fixação de competência. Uma vez que, inelutavelmente, relaciona-se com o objeto da ação, há de pertencer à classificação objetiva.
A competência territorial refere-se ao critério espacial-geográfico (ratione loci), vinculando-o a algum elemento que tenha relação com a parte, com o objeto ou com a causa de pedir. Assim, poderá ser: o domicílio, o lugar do fato, o lugar de assunção da obrigação, a situação do imóvel etc. Tais elementos são eleitos pela lei, variando caso a caso.
Temos, por fim, a competência funcional, estabelecida com base nas atribuições inerentes a cada órgão judiciário. Com supedâneo nela, fixa-se a competência recursal dos tribunais, à guisa de ilustração.
Todos esses critérios possuem características próprias, permitindo-nos enquadrá-los em dois grandes grupos: o absoluto e o relativo.
1.2. Competência absoluta e competência relativa
Com arrimo na rigidez com que a lei trata dos critérios de fixação de competência, podemos classificá-los em absolutos (rígidos) e relativos (flexíveis). Há que se observar, malgrado, que a competência em si não é absoluta ou relativa, mas sim os respectivos critérios de fixação. Para fins meramente didáticos, doravante, utilizarei as terminologias comumente adotadas: competência absoluta e competência relativa.
O enquadramento dos critérios em uma classe ou em outra – advirta-se – depende da opção do legislador. Dentro do modelo constitucional brasileiro, seria inconcebível o julgamento, e.g., de uma reclamação trabalhista por um juiz eleitoral. A contrario sensu, mesmo dizendo a lei que “A ação fundada em direito pessoal e a ação fundada em direito real sobre bens móveis serão propostas, em regra, no foro do domicílio do réu” (CPC, art. 94), não se afiguraria absurdo o transcurso de uma ação (vinculada à referida regra) no foro onde é domiciliado o autor.
Teríamos, no primeiro caso, ofensa a preceitos de suma importância. Não foi sem propósito que a Constituição Federal instituiu a Justiça Eleitoral (com função tipicamente eleitoral) e, de outro lado, a Justiça do Trabalho (com competência para dirimir, em primeira mão, os litígios laborais). Portanto, o critério de fixação de competência relacionado com a matéria posta em juízo é considerado indisponível pelas partes. E isso é primaz para dar higidez ao sistema jurisdicional. Destarte, é critério do tipo absoluto.
Já no segundo caso (concernente ao foro), a própria lei não imprime tanta relevância. Há, inclusive, permissão para que as partes “transijam” quanto ao juízo competente. A respeito, diz o CPC: “Art. 111. A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações”. Sendo “modificável” a competência por ato volitivo da parte, aquela se classificará como relativa.
No direito processual pátrio, a competência fundada na matéria, no aspecto funcional e na qualidade da parte, está adstrita a normas rígidas (absolutas). Por outro lado, a competência fixada em razão do território e da valoração econômica do bem jurídico, via de regra, segue modelo flexível (relativo).
Pelos exemplos citados, vê-se facilmente que se o critério é do tipo absoluto, poderá o juiz dizer-se incompetente, independentemente de argüição da parte contrária. Aliás, diz o próprio Código, no art. 113: “A incompetência absoluta deve ser declarada de ofício e pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de exceção”. Inclusive, no § 2º do mesmo dispositivo, o CPC impõe a nulidade dos atos decisórios quando verificado o desrespeito a uma regra de competência absoluta.
Sendo relativo o critério de fixação, não pode o magistrado dizer-se incompetente ex officio, dependendo de alegação da parte adversa. Nessa linha, dispõe o CPC: “Art. 112. Argúi-se, por meio de exceção, a incompetência relativa”.
No intuito de tornar clara a impossibilidade de declinação ex officio da competência relativa, o Superior Tribunal de Justiça há muito editou a Súmula nº 33, segundo a qual “A incompetência relativa não pode ser declarada de ofício”.
Da leitura dos dispositivos legais, temos um outro traço divisor entre estas duas classes de critérios de competência. Se a competência absoluta pode ser objeto de apreciação ex officio – podendo, ainda, ser argüida em qualquer fase ou grau de jurisdição –, é sensato dizer que o juiz absolutamente incompetente não passará a sê-lo pela mera ausência de argüição da parte.
Ao contrário, se a regra de fixação de competência for relativa – não havendo argüição pela parte a quem aproveite a declinação –, o magistrado que, de ordinário, não seria o naturalmente competente, passará a sê-lo. A tal fenômeno processual dá-se o nome de prorrogação de competência. A esse respeito, já dizia o Código desde o seu nascedouro até o advento da Lei nº 11.280/06: “Art. 114. Prorroga-se a competência, se o réu não opuser exceção declinatória do foro e de juízo, no caso e prazo legais”.
Em outras palavras, a figura da prorrogação é inerente à de competência relativa. Não se presta, inexoravelmente, ao critério de fixação absoluto. Sob esta ótica, com muita propriedade, ensina-nos Cândido Rangel Dinamarco: “O caráter absoluto da competência consiste na imunidade a prorrogações. Diz-se absoluta a competência que não pode ser desfeita ou alterada por conexidade, por ausência de argüição ou por qualquer ato de vontade das partes, consensual ou unilateral” (Instituições de direito processual civil, vol. I, p. 605).
2. Competência oriunda de eleição de foro
A competência territorial, como abordado, está classificada como relativa. Pode, portanto, ser objeto de livre disposição das partes. Essa faculdade, aliás, vai mais longe que própria temática da prorrogação da competência. Com efeito, mesmo antes da existência do litígio, podem as partes estabelecer convenção de competência de foro, através de contrato escrito. A única exigência feita pela lei é a vinculação do ajuste a um negócio jurídico certo e determinado. Sendo tal foro de livre escolha das partes, dá-se o nome de foro de eleição. Nesse contexto, pontua Arruda Alvim:
“O foro de eleição decorre do ajuste entre dois ou mais interessados, devendo constar de contrato escrito e se referir especificamente a um dado negócio jurídico (disponível), para que as demandas oriundas de tal negócio jurídico possam ser movidas em tal lugar” (Manual de direito processual civil, vol. I, p. 277).
Ainda na vigência do CPC/39 – que não continha disposição expressa a respeito – o Supremo Tribunal Federal já reconhecia o foro de eleição, conforme sua antiga Súmula nº 335, editada na sessão plenária de 13.12.63, com o seguinte teor: “É válida a cláusula de eleição de foro para os processos oriundos do contrato”.
No Código vigente, o foro de eleição encontra-se positivado no art. 111, segundo o qual “A competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações”.
Não pode o foro de eleição, contudo, ser confundido com o foro do contrato. Este se refere ao lugar de sua celebração; aquele, ao lugar escolhido pelas partes para ser a base territorial-judiciária onde deverá correr a demanda tendente a dirimir conflitos da avenca, conforme lecionado por Arruda Alvim, na obra antes mencionada. Desta forma, o art. 111, § 2º, do CPC, deve ser interpretado com a devida ponderação. Onde se lê “foro contratual”, entenda-se “foro de eleição”.
Da interpretação do art. 111 fica claro que a eleição de foro somente é permitida quando se tratar de competência relativa. Por via de conseqüência, o sistema legal não permite eleição de foro no tocante à competência absoluta. E, no mesmo sentido, chega-se à outra constatação: o foro de eleição não tem o atributo da rigidez. Tanto isso é verdade que, inobstante a existência da regra do foro de eleição, o autor poderá propor a demanda no domicílio do réu (regra geral). A lição de Arruda Alvim é por demais esclarecedora, nesse mister:
“Mesmo havendo cláusula de eleição de foro, não fica uma das partes inibida de propor ação no domicílio da outra, dado que o réu não será prejudicado. É legítima a propositura da ação no domicílio do réu, ao invés de o ser no foro de eleição. Assim, a eleição de foro não elimina, nunca, o foro do domicílio. (…). Razão pela qual, também, aqui, poder-se-ia falar na existência de foros concorrentes. (…) a opção pelo foro do domicílio, mesmo havendo foro de eleição, não enseja o oferecimento por parte do réu de exceção de incompetência ratione loci. O foro de eleição é um foro a mais, mas que, nem pelo fato de existir, transmuda o foro domiciliar em foro incompetente” (Obra citada, p. 278/279).
Nesse sentido, a título ilustrativo: “Se a empresa credora renuncia ao foro de sua sede e de eleição, optando pelo foro do domicílio do devedor para a promoção de ações judiciais, inexiste qualquer óbice, por se tratar de competência relativa, que permite modificação e, sobretudo, porque não traz prejuízos à parte adversa, que poderá, inclusive, litigar em seu domicilio” (TJGO – 4ª Câm. Cív. – AI nº 44566-0/180 – Rel. Des. Carlos Alberto França – j. 25.08.05).
No mais, o art. 95 do CPC é taxativo ao vedar a convenção das partes quando o critério for absoluto: “Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova”.
O CPC/73, portanto, é claro ao proibir a eleição do foro no tocante a critérios absolutos de fixação de competência (a respeito, cf. Celso Agrícola Barbi, Comentários ao código de processo civil, vol. I, p. 360.).
3. Foro de eleição em contrato de adesão
O CC/02, tal qual o CC/16, não conceitua o contrato de adesão. Ao longo dos anos, a tarefa coube à doutrina. Segundo Caio Mário da Silva Pereira, “Chamam-se contrato de adesão aqueles que não resultam do livre debate entre as partes, mas provêm do fato de uma delas aceitar tacitamente cláusulas e condições previamente estabelecidas pela outra” (Instituições de Direito Civil, vol. III, p. 43).
Dentro da boa técnica legislativa, não é função da lei estabelecer definições. Entretanto, o Código de Defesa do Consumidor trouxe o conceito de contrato de adesão, ao certo para melhor esclarecer o consumidor – geralmente, leigo. E não se deve olvidar que, na esmagadora maioria das vezes, o contrato de adesão é celebrado no âmbito consumerista.
Diz o CDC em seu art. 54: “Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo”.
O contrato de adesão, não se pode negar, sempre foi o “calcanhar de Aquiles” das relações de consumo. Não raras vezes, no trato adesivo, constam cláusulas abusivas, sobretudo quando o consumidor não tem condições de discuti-lo. São elas de diversas naturezas, a exemplo de encargos moratórios extorsivos, limitação de direitos, antecipação de dívida, cláusula de foro de eleição etc. De interesse do direito processual é essa última. Com efeito, a disposição contratual concernente ao foro refletirá diretamente em um dos temas mais importantes do processo civil: a competência jurisdicional.
Pois bem. Por vezes, há fornecedores de bens e/ou serviços situados em diversos Municípios ou Estados-membros. Ao contratar com o consumidor, em fórmula pré-estabelecida, tais fornecedores elegem foro que, de um lado, traz-lhes grande benefício; de outro, grave prejuízo ao aderente. Isso acontece, por exemplo, quando o foro escolhido não é aquele onde o consumidor (e também o fornecedor) tem domicílio; mas outro, muito distante, onde a empresa tem a sua sede administrativa ou o centro de seus negócios.
Em situações desse jaez, na prática, impor ao consumidor o deslocamento para comarca longínqua, visando a dirimir um conflito contratual, seria submetê-lo a um ônus desproporcional. Abusos dessa ordem têm o condão de extrair da esfera jurídica do indivíduo o próprio acesso à justiça, com seu sagrado figurino constitucional.
É válido frisar a intenção do constituinte ao conferir garantias efetivas ao consumidor. Positivamente, a CF/88 (apelidada de “Constituição Cidadã”), no âmbito dos “Direitos e Garantias Fundamentais”, fez contar em seu art. 5º, XXXII, o seguinte: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. Dando efetividade à norma programática, o legislador infraconstitucional promulgou o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), importante instrumento para o próprio exercício da democracia.
Reconhecendo a hipossuficiência do consumidor frente aos fornecedores, o CDC trouxe diversas regras de proteção. Interessa-nos duas dentre as previstas no art. 6º: “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas” (inciso V) e “a facilitação da defesa de seus direitos” (inciso VIII).
Por conseqüência, mitigou-se a máxima segundo a qual o juiz não pode declinar a incompetência relativa. Com efeito, a jurisprudência, aos poucos, veio firmando entendimento favorável ao consumidor. Nesse ponto, tratando-se de competência territorial estabelecida por força de contrato de adesão, o magistrado poderá declinar a competência, notadamente, quando se convencer do prejuízo trazido ao consumidor com o foro escolhido (em verdade, imposto).
Enveredando-se por esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça passou a emitir reiteradas decisões, permitindo a declaração ex officio de incompetência territorial. Vale colacionar alguns arestos para ilustrar o tema:
“Em se tratando de relação de consumo, tendo em vista o princípio da facilitação de defesa do consumidor, não prevalece o foro contratual de eleição, por ser considerada cláusula abusiva, devendo a ação ser proposta no domicílio do réu, podendo o juiz reconhecer a sua incompetência ex officio” (STJ – 2ª Seção – CC nº 48097/RJ – Rel. Min. Fernando Gonçalves – j. 13.04.05).
“O Código de Defesa do Consumidor é aplicável aos contratos submetidos às regras do Sistema Financeiro de Habitação, e, dessa forma, o Juiz pode declinar, de ofício, a competência, visando à proteção do consumidor, quando a cláusula de eleição de foro vier a prejudicá-lo” (STJ – 4ª Turma – AgRgAI nº 495742/DF – Rel. Min. Barros Monteiro – j. 29.06.04).
O afastamento do foro de eleição, que redundará na declinação ex officio da competência territorial, não ocorrerá, por óbvio, em qualquer situação. Deverá o magistrado, com o seu poder geral de cautela, analisar as circunstâncias do caso concreto, averiguando se houve, de fato, abuso no tocante à cláusula de eleição e/ou se ela realmente dificulta o acesso à justiça.
A fim de sacramentar a questão, a Lei nº 11.280/06 passou a prever a matéria expressamente no CPC, o que será objeto de comentário no item seguinte.
4. As novas regras do parágrafo único do art. 112 e do art. 114 do CPC
A Lei nº 11.280/06 acrescentou parágrafo único ao art. 112. Diz ele: “Argúi-se, por meio de exceção, a incompetência relativa”. No seu parágrafo único, taxativamente, vaticina que “A nulidade da cláusula de eleição de foro, em contrato de adesão, pode ser declarada de ofício pelo juiz, que declinará de competência para o juízo de domicílio do réu”.
A mesma Lei nº 11.280, ainda, modificou a redação do art. 114, passando à seguinte: “Prorrogar-se-á a competência se dela o juiz não declinar na forma do parágrafo único do art. 112 desta Lei ou o réu não opuser exceção declinatória nos casos e prazos legais”.
Como afirmado anteriormente, a intenção do legislador foi apenas positivar a copiosa jurisprudência. Há, entretanto, uma série de julgados que, a nosso ver, incorrem em equívoco, quando tratam o assunto sob a ótica de competência absoluta. Vejamos alguns arestos do STJ, à guisa ilustrativa:
“A eleição de foro diverso do domicílio do réu, previsto em contrato de adesão, não deve prevalecer quando acarreta desequilíbrio contratual, dificultando a própria defesa do devedor. No caso, trata-se de incompetência absoluta, podendo ser declarada de ofício. Precedentes da Corte” (STJ – 3ª Turma – AgRgAI nº 455965/MG – Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro – j. 24.08.04).
“Reconhecida nas instâncias ordinárias a relação de consumo estabelecida entre a instituição financeira e o beneficiário de crédito bancário em contrato objeto de ação revisional, bem como a nulidade de cláusula de eleição de foro em contrato de adesão, estabelece-se a competência absoluta, definida pelo foro do domicílio do réu (art. 6º, VIII, da Lei n. 8.078/90), nos termos da jurisprudência assentada na egrégia Segunda Seção (CC n. 17.735/CE, Rel. Min. Costa Leite, DJU de 16.11.1998)” (STJ – 4ª Turma – REsp. nº 445214/MT – Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior – j. 24.09.02).
Inelutavelmente, a competência é territorial e, portanto, relativa. Com isso não pretendo dizer que o nosso sistema seja avesso à competência territorial-absoluta. Em verdade, está ela prevista no próprio art. 95, que diz: “Nas ações fundadas em direito real sobre imóveis é competente o foro da situação da coisa. Pode o autor, entretanto, optar pelo foro do domicílio ou de eleição, não recaindo o litígio sobre direito de propriedade, vizinhança, servidão, posse, divisão e demarcação de terras e nunciação de obra nova”.
Semelhante disposição está prevista no art. 44 do Código de Processo Civil Francês: “En matière réelle immobilière, la juridiction du lieu où est situé l’immeuble est seule competente”.
Mas, no caso dos arts. 112 e 114, sob comento, não se pode cogitar de regra absoluta de competência. Vários são os argumentos que podem ser utilizados nesse sentido. Vejamos alguns:
4.1. Ausência de determinação legal específica tratando a competência decorrente de eleição de foro em contrato de adesão como absoluta
Com a inclusão do parágrafo único ao art. 112 e modificação do art. 114, em momento algum o legislador apontou a nova sistemática como regra de competência absoluta.
Dentro da linha do Código, em princípio, a competência territorial é relativa. Só não será quando houver disposição expressa nesse sentido, tal qual faz o art. 95. Esta norma, como visto, veda a escolha de outro foro que não seja o da situação da coisa – e assim o fez expressamente.
Ressalte-se que se a competência for absoluta, o magistrado poderá decliná-la ex officio. Mas, nem sempre quando assim proceder, estar-se-á diante de critério rígido de competência. Com efeito, a declinação de ofício é uma relevante característica da competência absoluta, mas não exclusiva dela.
4.2. Inclusão da nova regra no âmbito da competência relativa
A incompetência relativa deve ser alegada pelo réu através da denominada exceção de incompetência (art. 112). De outro turno, a incompetência absoluta independe de exceção (art. 113). Ora, se a pretensão do legislador fosse classificar a incompetência do juízo, oriunda de cláusula contratual de eleição de foro, como absoluta, por óbvio a regra não estaria no art. 112, mas sim no art. 113.
Vindo a nova regra inserida no parágrafo único do art. 112, ao seu caput se vincula. Não se poderia, com efeito, pensar em competência absoluta argüível através de exceção.
Não parece razoável, ainda, admitir tenha o legislador tratado de dois institutos antagônicos no mesmo dispositivo.
4.3. Prorrogabilidade
A competência absoluta, como outrora afirmado, é improrrogável. Embora não haja manifestação da parte ré, o juiz poderá, de ofício, declarar-se incompetente. Isso, inclusive, poderá ocorrer em qualquer fase do processo ou grau de jurisdição, repita-se. Aqui, talvez esteja presente o mais importante traço da competência absoluta: a indisponibilidade pelas partes.
Se de um lado o autor não pode argüir a incompetência relativa (já que ele próprio escolheu o foro), por outro viés, no caso de incompetência absoluta (estando em jogo o interesse público), poderá o próprio demandante argüi-la. Isso porque, não há possibilidade de prorrogação da competência absoluta, mas tão-só da relativa. Nesse sentido: TRF-4ª Região – 4ª Turma – AC nº 9604206567/PR – Rel. Juiz Sergio Renato Tejada Garcia – j. 13.09.01 e TRF-4ª Região – 2ª Turma – AC nº 9004183825/RS – Rel. Des. Teori Albino Zavascki – j. 09.12.93.
O parágrafo único do art. 112, portanto, necessariamente, deve ser lido em consonância com o art. 114. Como se observa, a regra concernente ao foro de eleição previsto contratualmente poderá ser objeto de prorrogação, instituto típico da competência relativa. No mais, o art. 114 encerra afirmando a mencionada prorrogação se “o réu não opuser exceção declinatória (…)”.
Ora, se o legislador diz que haverá prorrogação caso o réu não excepcione o juízo, não há solução outra senão concluir estar-se diante de competência relativa. Nesta ordem de idéias, pensar o contrário, seria impor ao juiz um efeito preclusivo no tocante à possibilidade de dizer-se absolutamente incompetente, o que se afiguraria de todo absurdo.
4.4. Necessidade de exame do contexto fático
As regas de competência absoluta, no geral, não demandam exame fático-probatório. O raciocínio se encerra no plano puramente jurídico. Por exemplo, em qualquer situação, independente da análise do caso concreto, somente o STJ tem competência para apreciar recurso especial. Da mesma forma, é desnecessário analisar fatos para se chegar à conclusão de que compete ao STF processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade. No mesmo raciocínio, em uma comarca onde haja varas de família, independentemente das circunstâncias fáticas de uma causa objetivada à desconstituição do matrimônio, será ela distribuída para um daqueles juízos.
Em outras palavras, para se aferir a competência absoluta, bastará verificar a natureza da relação jurídica de direito material, a qualidade da parte envolvida ou alguma regra que vincule certa espécie processual a determinado órgão judiciário.
A competência relativa, por seu turno, geralmente reclama a análise de circunstâncias fáticas. Quando se diz, por exemplo, que o foro do domicílio do réu é o competente para as ações em geral (art. 94), a averiguação da competência reclamará a análise de documentos e/ou inquirição de testemunhas. Na demanda onde se pleiteia indenização, para concluir sobre o local do dano (necessário para configuração da competência – CPC, art. 100, IV, “a”), igualmente deverá o aplicador da lei debruçar-se sobre os fatos.
Conclui-se, desse modo, que eventual controvérsia relacionada à competência absoluta redundará em análise puramente jurídica. A contrario sensu, havendo controvérsia quanto à competência relativa, no geral, as partes debaterão a situação in concreto.
Por esta razão, a incompetência absoluta não exige oferecimento de exceção, mas mera preliminar de contestação (art. 301, II). D´outra banda, já sabendo que a discussão sobre a competência relativa socorre-se, via de regra, em contexto fático-probatório, o legislador previu a possibilidade de realização de audiência, inclusive com inquirição de testemunhas (art. 309). Ato dessa natureza, certamente, não ocorreria no âmbito de discussão acerca da competência absoluta.
Na hipótese do parágrafo único do art. 112, o juiz só poderá concluir que é incompetente após tecer minuciosa análise acerca da relação de direito material e, mais detidamente, do próprio contrato. Ainda, investigará se houve abuso na eleição do foro, isto é, enveredar-se-á pelos aspectos fáticos da demanda, caracterizando regime de competência relativa.
4.5. Conclusão acerca da natureza jurídica da competência concernente à eleição de foro em contrato de adesão
Analisados os argumentos apontados, é conclusivo que a competência oriunda de cláusula abusiva de eleição de foro, em contrato de adesão, guarda uma característica própria da competência absoluta: possibilidade de declinação ex officio. Contudo, concentra uma série de características relevantes da competência relativa.
É válido ressaltar, de mais a mais, que o dispositivo não proíbe a concordância, expressa ou tácita, do consumidor com o foro de eleição. Ora, tratar o caso como competência absoluta, levar-nos-ia à contraditória situação na qual, o magistrado deveria (e, se competência absoluta fosse, outra alternativa não lhe restaria) declinar de ofício a competência quando o próprio hipossuficiente aceita aquele foro.
Em outra linha, se o caso fosse tratado como competência absoluta, a parte vencida na demanda sempre teria à sua disposição, inegavelmente, a ação rescisória. A respeito, diz o Código: “Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: (…) II – proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente”.
Com isso – e, em especial, quando a parte hipossuficiente (destinatária da especial proteção) fosse a vencedora – ao invés de incrementar meios eficazes de tutela jurisdicional, estar-se-ia a prejudicá-la sobremaneira.
Encontro-me inteiramente convicto, portanto, de que a situação preconizada no art. 112, parágrafo único, c/c art. 114, ambos do CPC, ostenta regra de competência relativa, muito embora com a nuance de poder ser objeto de declinação ex officio.
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