Nome do autor: Thamiris Aló Maia Rollemberg – Advogada graduada pela Universidade Candido Mendes. Pós-graduanda em Direto e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes. E-mail: thamirismaia@gmail.com
Resumo: Este artigo parte de considerações preliminares quanto às jornadas dos empregados e à concessão de intervalos para repouso e alimentação, com vistas à recomposição física e mental do trabalhador, considerando o desgaste gerado pelo trabalho ininterrupto. Busca-se analisar a possibilidade de flexibilização de normas jurídicas à luz do arcabouço protetivo estabelecido em sede constitucional, seja por normas negociadas pelos entes coletivos, seja pela edição de normas estatais infraconstitucionais. O objetivo final do estudo é o exame da constitucionalidade do parágrafo 5º, do artigo 71, da Consolidação das Leis do Trabalho, sob a perspectiva das peculiaridades que circundam a atividade profissional desempenhada pelos rodoviários, suas implicações para a proteção da saúde e da segurança da referida categoria profissional e daqueles que com ela interagem diretamente.
Palavras-chave: Intervalo intrajornada. Fracionamento. Redução. Rodoviários Urbanos. Inconstitucionalidade.
Abstract: This article is based on preliminary considerations about employee’s journeys and concession of rest and feeding breaks, with a view to the physical and mental recovery of the worker, considering the damages of uninterrupted work. The aim is to analyze the possibility of flexibilization of legal norms under the perspective of the protection established in the constitution, either by norms negotiated by unions, or by infraconstitutional state norms. The final objective of the study is the examination of the constitutionality of paragraph 5, of article 71, of the Consolidation of Labor Laws, under the perspective of the peculiarities that surround the professional activity carried out by road drivers, its implications for the protection of health and security of these professional category and those who interact with it directly.
Keywords: Meal Breaks. Fractionation. Reduction. Urban Drivers. Unconstitutionality
Sumário: Introdução. 1. Natureza jurídica do intervalo intrajornada. 2. Intervalo intrajornada dos rodoviários urbanos. 3. Exame de constitucionalidade do artigo 71, parágrafo 5o da CLT. Conclusão. Referências.
Introdução
O Direito do Trabalho nasceu como forma de resistência à Revolução Industrial e à maneira pela qual os trabalhadores eram explorados com jornadas e condições de trabalho extremamente desumanas. Quando do surgimento do modelo de produção industrial, que veio a substituir a predominância da sociedade agrícola por um modelo fabril de manufatura, principalmente na Inglaterra do século XVIII, os empregados não possuíam qualquer garantia de salário digno, condições de higiene, saúde e segurança no trabalho e, dentro desse contexto, buscava-se eliminar as formas mais perversas de utilização da força de trabalho.
No âmbito nacional, verifica-se que a institucionalização do Direito do Trabalho no Brasil teve início em 1930 e foi marcada pela intensa atividade administrativa e legislativa do Estado, conforme novo padrão de gestão sociopolítica que se instaurou no país, principalmente com a ascensão de Getúlio Vargas. Formou-se um Estado intervencionista com atuação nas questões sociais. Em 1943, essa preocupação com os direitos dos trabalhadores provocou a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho, que, além de outros direitos, pretendia limitar a jornada de trabalho e permitir períodos de descanso durante as jornadas e entre as jornadas, com vistas à recomposição física e mental do trabalhador, considerando o desgaste gerado pelo trabalho ininterrupto.
Em 1988 a Constituição Federal trouxe uma nova página na história dos direitos sociais no Brasil, repercutindo diretamente no modelo justrabalhista tradicional brasileiro sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Ao prever diversos dispositivos que versam sobre direitos trabalhistas (individuais e coletivos), a Constituição consagrou o direito ao trabalho como direito social e o inseriu no título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.
No entanto, as últimas alterações legislativas estão na contramão do fenômeno da constitucionalização do Direito do Trabalho, pois estabelecem, por exemplo, a supremacia das normas negociadas sobre as demais fontes normativas de proteção aos trabalhadores.
Todo esse panorama vem ensejando discussões quanto à constitucionalidade de alguns artigos alterados recentemente na Consolidação das Leis do Trabalho, como o artigo 71, parágrafo 5o, que trata da redução e/ou fracionamento, através de acordo ou convenção coletiva, do intervalo para repouso e alimentação dos empregados em condições especiais de trabalho a que são submetidos estritamente os motoristas, cobradores e fiscais de campo nos serviços de operação de veículos rodoviários.
O fracionamento disposto no artigo 71, § 5º, da CLT, não é compatível com a Constituição, por violar a garantia de que o Estado venha a legislar apenas no sentido de reduzir os riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de higiene, saúde e segurança (art. 7º, XXII, da Constituição).
Diante dessa incompatibilidade, o presente trabalho busca analisar a natureza jurídica das normas que visam a limitar as jornadas de trabalho, contexto no qual se inserem as disposições legislativas referentes ao intervalo intrajornada; a possibilidade de flexibilização dessas normas jurídicas à luz do arcabouço protetivo estabelecido em sede constitucional, seja por normas negociadas pelos entes coletivos, seja pela edição de normas estatais infraconstitucionais; e, especificamente, a constitucionalidade da inovação legislativa que introduziu na Consolidação das Leis do Trabalho o § 5º, do artigo 71, sob a perspectiva das peculiaridades que circundam a atividade profissional desempenhada pelos rodoviários, suas implicações para a proteção da saúde e da segurança da referida categoria profissional e daqueles que com ela interagem diretamente.
1 Natureza jurídica do intervalo intrajornada
Ao longo da evolução do Direito do Trabalho, as jornadas de trabalho e seus intervalos foram ganhando relevância diante da preocupação em preservar a saúde do trabalhador, pois o labor por períodos excessivos é apontado pelas pesquisas como gerador de doenças profissionais e de acidentes do trabalho.
Segundo Maurício Godinho, os períodos de descanso conceituam-se como:
“lapsos temporais regulares, remunerados ou não, situados intra ou intermódulos diários, semanais ou anuais do período de labor, em que o empregado pode sustar a prestação de serviços e sua disponibilidade perante o empregador, com o objetivo de recuperação e implementação de suas energias ou de sua inserção familiar, comunitária e política”. (MURICIO GODINHO, 2017, p.1069)
Tais intervalos decorrem de razões biológicas e econômicas, para que o empregado possa melhor produzir. Dessa forma, o empregador é obrigado a conceder intervalos para repouso e alimentação do empregado, que podem ocorrer entre duas jornadas diárias (interjornadas), dentro da mesma jornada contínua (intrajornada), semanalmente, em feriados e até anualmente.
Entretanto, o objeto de estudo do presente trabalho será apenas o intervalo intrajornada, que são as pausas que ocorrem dentro da jornada diária de trabalho, normalmente para alimentação e repouso, de pequena duração, do trabalhador.
A natureza jurídica do intervalo é de direito, algumas vezes caracterizado como interrupção contratual, quando computado na jornada ou no contrato, outras vezes como suspensão. (VÓLIA BOMFIM, 2018, p. 701)
O art. 71 da CLT prevê a concessão do intervalo para repouso e alimentação, sendo inválida a supressão ou redução desse intervalo que sejam incompatíveis com o cumprimento das normas de saúde, higiene e segurança laborativas. É direito garantido por norma de ordem pública e o empregador não pode, em regra, suprimir unilateral ou bilateralmente o período de descanso previsto em lei.
Há previsão na Consolidação das Leis do Trabalho de que esse intervalo pode ser reduzido por ato do Ministro do Trabalho, se verificar que o estabelecimento atende integralmente às exigências concernentes à organização dos refeitórios e os empregados não estiverem sob o regime de trabalho prorrogado a horas suplementares
Com o advento da Lei 13.647/17, surgiu a possibilidade de a norma coletiva reduzir o intervalo intrajornada para 30 minutos, mesmo que a empresa não possua refeitório, conforme previsão do novo art. 611-A, inciso III da CLT. Antes da mencionada Lei, nem a norma coletiva poderia suprimir o intervalo, pois a pausa era considerada pela jurisprudência do C. TST como indispensável para reposição de energia, alimentação e descanso (Súmula 437, II, do TST), salvo a previsão legal quanto aos motoristas, cobradores e fiscais, cuja constitucionalidade será discutida em tópico específico deste trabalho (art. 71, §5, da CLT).
O fracionamento do intervalo também foi permitido ao doméstico que reside no trabalho, desde que desmembrados em, no máximo, dois períodos e que nenhum deles tenha menos de 1 hora, até o limite de 4 horas ao dia, como estabelece o artigo 13, §1, da LC 150/2015.
A Constituição Federal prevê no rol dos direitos dos trabalhadores a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XXII). Claro está que a Constituição tem o cuidado de ressalvar que as normas jurídicas a que o trabalhador tem direito, na área de saúde, higiene e segurança, são as que propiciem redução dos riscos inerentes ao trabalho e não as que tenham sentido contrário.
Objetivando sistematizar o instituto do intervalo intrajornada, conforme exposto acima, o TST editou a Súmula 437, estabelecendo alguns critérios para a sua aplicação. Entretanto, conforme será exposto no próximo item, o entendimento da súmula está em colisão com as últimas alterações da Consolidação das Leis do Trabalho.
2 Intervalo intrajornada dos rodoviários urbanos
A atividade dos motoristas é, em regra, exercida em turnos irregulares e com elevado número de horas de trabalho que, além de colocar sua própria vida em risco, podem causar danos a terceiros. Há várias pesquisas que mostram a influência da falta de descanso nos acidentes de trânsito.
A manutenção dos intervalos intrajornada e interjornadas é indispensável para os trabalhos de longas jornadas que provocam fadiga física e psíquica. Entretanto, até a edição da Lei 12.619/2012, ainda havia discussão quanto ao direito de concessão de intervalos a esses trabalhadores, pois era possível sustentar seu enquadramento como empregado que exerce atividade externa e cuja atividade era incompatível com o controle de suas jornadas de trabalho (art. 62, inciso I, da CLT).
A Lei 12.619/2012 acrescentou o parágrafo 5º ao art. 71 da CLT, dispondo sobre os intervalos do caput e parágrafo 1º:
“Art. 71.
(…)
Em seguida, houve uma nova alteração legislativa e esse parágrafo 5º do art. 71 da CLT foi novamente alterado pela Lei 13.103/2015, passando a ter a seguinte redação:
“Art. 71.
(…)
As alterações trazidas pelas legislações citadas possibilitam o fracionamento ou a redução do intervalo intrajornada no transporte coletivo urbano de passageiros. O art. 4o da Lei 13.103/2015, que alterou o art. 71, § 5o, da CLT, autoriza a redução do intervalo intrajornada de empregados motoristas, cobradores, fiscais de campo e afins, por negociação coletiva, sem garantia de limite mínimo, mostrando-se incompatível com a finalidade de evitar doenças e acidentes de trabalho.
A permissão da norma no sentido da redução negociada do intervalo intrajornada autoriza sua estipulação em patamar irrisório e inútil para promover recuperação das energias físicas e mentais do trabalhador e para sua alimentação adequada, com esvaziamento de eficácia das normas constitucionais de proteção.
A Constituição Federal, em seu art. 7o, inciso XIII, tutela o direito a intervalos de repouso, como desdobramento do direito à limitação do tempo de trabalho, combinado com o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7o, inciso XXII). A proteção ao intervalo intrajornada é dotada de indisponibilidade, por sua relevância para a saúde dos trabalhadores.
3 Exame de constitucionalidade do artigo 71, parágrafo 5o da CLT.
O fracionamento disposto no artigo 71, § 5º, da CLT, bem como a redução prevista nas normas coletivas juntadas aos autos não são compatíveis com a Constituição, por violarem a garantia de que o Estado venha a legislar apenas no sentido de reduzir os riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de higiene, saúde e segurança (art. 7º, XXII, da Constituição).
As atividades cumpridas pelos rodoviários provocam elevado grau de desgaste físico e psicológico em tais trabalhadores, sendo o fracionamento ou a redução de seus intervalos medidas que depõem contra a saúde do trabalhador.
Não foi por outro motivo que o E. TST, ainda no contexto anterior à Lei nº. 13.467/2017, considerou inválida qualquer “cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada porque este constitui medida de higiene, saúde e segurança do trabalho, garantido por norma de ordem pública” (Súmula nº. 437, item II).
Analisando o teor da súmula 437, II, ALICE MONTEIRO (2016, p.450) destaca:
“(…) sustentamos que a norma coletiva não poderá suprimir intervalo, exigindo dos empregados motoristas, por exemplo, sete horas seguidas. Esse comportamento atinge preceito de ordem pública, com sérias implicações tanto na saúde do trabalhador, quanto, sobretudo, na segurança dos próprios usuários e de terceiros. A questão não pode ser apreciada apenas sob a ótica da flexibilização das normas alusivas às relações de trabalho, da autonomia da vontade coletiva ou da transação entabulada, sob o prisma da teoria do conglobamento, pois, aqui, trata-se de preceito imperativo indisponível pela vontade das partes, na forma em que estas o negociaram”.
No que tange à redução ou ao fracionamento do intervalo intrajornada para o motorista profissional, ainda que por meio de fonte normativa de autocomposição, parece-nos que há violação aos princípios constitucionais da vedação do retrocesso social e da proteção (precaução e prevenção) ambiental (CF, arts. 5º, § 2º, 7º, caput, e XXII, 200, VIII, e 225), como, aliás, vem entendendo o TST (Súmula 437, II). (BEZERRA LEITE, 2018)
O comando constitucional inserto no artigo 7º, inciso XXII, não se direciona apenas aos entes coletivos do Direito do Trabalho, mas certamente vincula também o legislador, pois todos os direitos elencados em sede constitucional devem visar sempre à melhoria da condição social do trabalhador (art. 7º, caput, da Constituição). Há, portanto, clara proibição do retrocesso nesse particular.
Dentro do tema abordado, merece destaque o artigo 611-A, inciso III, introduzido recentemente pela Lei 13.467/17, pois também é de duvidosa constitucionalidade. O dispositivo traz a possibilidade de a norma coletiva reduzir o intervalo intrajornada para 30 minutos, mesmo que a empresa não possua refeitório, ratificando a ideia de flexibilização e, consequentemente, violando princípios constitucionais.
Por fim, cabe mencionar que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Terrestres – CNTTT ajuizou, perante o Supremo Tribunal Federal, Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5322) contra o artigo 4º, da Lei federal n.º 13.103/2015, discutido no presente trabalho. Entretanto, essa ADI ainda está pendente de julgamento.
Considerações finais
O presente trabalho buscou analisar as questões principais relacionadas ao intervalo intrajornada dos motoristas rodoviários e a possibilidade de seu fracionamento ou redução, à luz do arcabouço protetivo fornecido pela Constituição. A abordagem iniciou-se pela natureza jurídica do intervalo para repouso e alimentação e sua importância na jornada desses trabalhadores.
Foram analisadas as inovações legislativas quanto ao intervalo intrajornada dos empregados motoristas ocorridas nos últimos anos. Apresentou-se, então, a problemática que orienta o presente trabalho, qual seja, a inconstitucionalidade do artigo 71, § 5o, por violação aos direitos constitucionais que visam à melhoria da condição social do trabalhador e não o retrocesso social.
Referências
BOMFIM, Vólia. Direito do trabalho – 14. ed. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017.
BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho – 10. ed. – São Paulo: LTr, 2016.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho – 16. ed. – São Paulo: LTr, 2017.
LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho – 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
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