A participação popular, prevista na Constituição Federal de 1988, garante efetivamente a realização do Estado Democrático de Direito?

Resumo: A Constituição Federal de 1988 definiu o Brasil como um Estado Democrático de Direito, criando um novo modelo de gestão pública o qual estimula a participação popular, que deve ser entendida como o exercício pleno da cidadania, exigindo assim, a conscientização do indivíduo quanto ao seu verdadeiro papel na busca pela melhoria do bem estar social. Trata-se de um ensaio, cuja abordagem revela-se entorno dos novos paradigmas lançados com a promulgação da Carta Política de 1988, através dos seguintes tópicos: Novo modelo de gestão pública – novos paradigmas; Da participação popular; Críticas ao modelo de participação popular; Desafios impostos à sociedade em busca do Estado Democrático de Direito.


A Constituição Federal de 1988 classificou o Brasil como um Estado Democrático de Direito, elegendo a democracia como um dos pilares desse novo modelo de Estado, distinguindo-se dos demais (liberal e social) justamente por prever a participação popular nos atos decisivos no exercício do poder.  


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Nesse sentido, a democracia é uma forma de governo no qual o poder e a responsabilidade cívica são exercidos por todos os cidadãos, diretamente ou através dos seus representantes livremente eleitos. De acordo com Débora Nunes (2006, p. 14) “num país onde o poder de decisão foi historicamente monopolizado pelos representantes de uma elite econômica muito restrita, a participação da população significa uma democratização desse poder.”


Desse modo, a participação popular tornou-se a essência do Estado Democrático de Direito, motivo pelo qual a constituição vigente, também denominada “Constituição Cidadã”, inovou criando diversos mecanismos que possibilitassem o exercício da democracia direta e participativa, sendo que, para alguns casos (orçamento participativo), obrigou a sua observância para realização da própria gestão pública. Por conseguinte, a noção de cidadania ganha outro significado, ampliando a atuação da sociedade, que anteriormente se restringia à escolha dos governantes.


Visando a democratização do poder público, a carta política transferiu competência legislativa aos entes federativos, passando, inclusive, os municípios a legislarem sobre o “interesse local”, conforme inciso I do artigo 30 da Constituição Federal.


Malgrado haja divergência acerca do conceito de “interesse local”, para o presente trabalho, destaca-se a definição dada por Roque Carrazza (2002, p.157), o qual entende como “tudo aquilo que o próprio município, por meio de lei, vier a entender de seu interesse.” E ainda “(…) interesses dos municípios são os que atendem, de modo imediato, às necessidades locais, ainda que com alguma repercussão sobre as necessidades gerais do Estado ou do País.”


Com essa previsão na carta política surgiram diversos fóruns de debates para dirimir conflitos, no intuito de promover o desenvolvimento de determinada região, haja vista que este passou a ser compreendido, não só com cunho econômico, mas também social.


Tal “fenômeno” pode ser exemplificado com a introdução de um capítulo sobre a política urbana, prevendo como obrigatório, para determinados municípios, a elaboração de um Plano Diretor, além de estabelecer a função social da cidade e da propriedade urbana, como forma de garantir o acesso a terra urbanizada, segurança e bem estar, com direito à moradia, à infra-estrutura e ao saneamento básico, tudo de forma participativa, justa e igualitária.


Para tanto, o Estatuto da Cidade, importante diploma que representou avanços sociais, elencou quatro formas de participação, dentre as quais, ressalta os Conselhos Municipais, que são instituídos através de Lei Orgânica, compostos por integrantes da sociedade civil local, atuando na legitimidade dos interesses locais. Em suma, é um órgão colegiado que participa de todo o processo de decisão até o estabelecimento das metas a serem transpostas no plano diretor daquela localidade.


Para Maria da Glória Benevides, citada por José Arlindo Soares (1998, p. 75): “a própria Constituição de 1988 incorporou o princípio da participação popular direta na administração pública e ampliou a cidadania política, estabelecendo vários mecanismos de reforços às iniciativas populares.”


Desse modo, a gestão pública passa a contar com a participação daqueles que não detém obrigações legais para com o Estado. Há necessidade de intervenção da população na tomada de decisões em prol de políticas de melhoria do local, ocorrendo mudança significativa no paradigma, que antes previa as tomadas de decisões apenas pelos representantes do governo. Com o novo modelo, as decisões passam a ser tomadas de “baixo para cima”, ou seja, a sociedade civil, em conjunto com o Poder Público, traça as metas a serem atingidas, uma vez que são os cidadãos que desfrutam cotidianamente, detentores das reais necessidades locais.


Posto isso, a participação popular é vista como uma possibilidade de indivíduos e/ou grupos sociais intervirem em favor de seus interesses, nas decisões relacionadas à escolha e gestão de políticas públicas, sendo assim, um modelo clássico de democratização. É também um processo educativo de formação constante, que exige o exercício da cidadania, cujo sujeito ativo tem “direitos e deveres”, que são difundidos entre aqueles que participam de fato, de todo o processo de desenvolvimento local.


Considerando a ineficiência do poder público para oferecer condições plenas para o exercício da participação popular, severas críticas são feitas aos processos vigentes, tendo em vista a possibilidade de manipulação do Poder Público, uma vez que se encontram integrantes, como no caso do Conselho, com déficit educacional, para desempenhar funções, configurando-se, a maioria, em meros “atores partícipes”, que não têm a dimensão exata do “poder emprestado” para defesa dos interesses (necessidades) da sociedade.


Esse cenário propicia a atuação ímproba de alguns governantes, nascendo uma brecha para legitimar condutas que atendam aos interesses privados daqueles, não sendo, portanto, de caráter público, desencadeando daí, uma das formas do processo conhecido como “pseudoparticipação”.


A crítica também é feita aos financiadores externos, Banco Mundial e Banco Interamericano,  que exigem a participação popular, no intuito de alcançar credibilidade e legitimação dos processos, para projetos cujo fim seria o desenvolvimento local.


Além disso, a atuação das instituições da democracia brasileira, muitas vezes, é prejudicada pelas condições sob as quais operam, tendo em vista a existência do padrão de desigualdades sociais, econômicas e culturais que permeia toda a sociedade.


Desse modo o avanço obtido no que se refere à institucionalização dos direitos dos cidadãos, observa-se, na prática, carência quanto à capacidade requerida, para o seu efetivo exercício, pois há um visível desconhecimento dos direitos por parte da comunidade.


Ademais, a maior crítica recai sob a ideia da participação vinculada ao período eleitoral, principalmente em época de campanha, que funciona como “moeda de troca”, em favor do voto. Para muitos autores, o desconhecimento apontado anteriormente restringe a noção de participação somente para os períodos eleitorais, denunciando a democracia estritamente eleitoreira.


Nota-se que em todos os processos maculados pela “pseudoparticipação” há flagrante desvirtuamento da função precípua da participação popular, que é assegurar o exercício da cidadania, através das intervenções no processo decisório, em prol do desenvolvimento local.


Nessa linha, é comum nos municípios o estímulo a participação popular e não cidadã, visando obter interesses sócio-políticos do grupo no poder, ou seja, utilizam-se aspectos vinculados à racionalidade substantiva, por exemplo, a participação da comunidade nas decisões, para se alcançar fins específicos de determinada classe no poder.


Embora as críticas apontadas sejam de extrema relevância e mereçam análises minuciosas a cada caso concreto, o fato é que, apesar da constituição estar em vigor há, apenas, vinte anos, as pesquisas revelam que, paulatinamente, os ditames constitucionais ganham espaço na sociedade civil, observando-se o aumento do envolvimento da população no processo de tomada de decisão local.


Essa ideia da participação popular no processo decisório, ainda em sustentação, tornou-se possível a divisão do poder, aumentando o número de pessoas participando de todo o processo de tomada de decisão, proporcionando um aumento no atendimento aos anseios locais.


Outrossim, essa transformação da democracia eleitoreira para democracia, de fato, cidadã, conforme pretendido pelo legislador constituinte, apresenta-se como o grande desafio da ordem política brasileira. Neste sentido, a especialista e escritora Fátima Anastásia, em entrevista divulgada pelo site http://www.rejuma.org.br, ensina que:


“Há dois caminhos interligados. Um se refere ao aperfeiçoamento do arranjo político brasileiro, visando a produção de loci institucionalizados e permanentes de interlocução entre os processos de representação e aqueles de participação política. O outro se refere ao enfrentamento do padrão de desigualdades que atravessa a sociedade brasileira e que resulta em uma distribuição muito perversa de recursos políticos, entendidos como recursos materiais e de poder. Ambos os caminhos somente serão trilhados se formos capazes de construir uma coalizão política comprometida com tais metas e, ademais, portadora de recursos suficientes para implementá-las.” (grifamos)


De tudo quanto foi exposto, é possível inferir que a participação popular afigura-se como uma das garantias do Estado Democrático de Direito, sendo necessário que, para sua efetivação, o Poder Público ofereça condições para que a sociedade exerça, plenamente, a cidadania, entendida como a realização dos direitos e deveres previstos pelo ordenamento, exigindo, desde já, mudanças na atual estrutura política brasileira.


 


Referências

BRASIL, Estatuto da Cidade (2001). Estatuto da Cidade: Lei n.10.257, de julho de 2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana. – Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001;

BRASIL, Lei n. 10.257, de 10.09.2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Em www.senado.gov.br;

CARRAZZA, Roque Antônio. ICMS. 8 ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 157;

NUNES, Débora. Por uma pedagogia da participação popular. In: Organizações e

Sociedade. v. 6, n.16. Salvador: EAUFBA, 2006;

SOARES, José Arlindo; GONDIM, Linda. Novos modelos de gestão: lições que vêm do poder local. In: SOARES, José Arlindo & BAVA, Silvio Caccia (orgs.). Os desafios da gestão municipal democrática. São Paulo, Cortez, 1998, pp. 61-96.

Informações Sobre o Autor

Priscyla Mathias Scuassante

Pós-gadruanda em “Administração Pública”, pela Universidade Federal do Espírito Santo; em “Direito do Trabalho”, pela Faculdade São; Advogada no Espírito Santo.


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Equipe Âmbito Jurídico

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