Ainda que se admita a constitucionalidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica (o que não é o nosso caso[1]), o certo é que esbarraríamos em um obstáculo: a Lei 9.605/98 não estabeleceu qualquer regra procedimental ou processual a respeito de um processo criminal em relação a uma pessoa jurídica, o que torna absolutamente impossível a instauração e o desenvolvimento válido de uma ação penal nestes termos.
Evidentemente que o nosso Código de Processo Penal é um diploma dirigido a estabelecer regras para um processo penal cujos acusados são pessoas físicas; todos os seus dispositivos assim foram pensados. Ora, se as normas penais não podem ser aplicadas diretamente, pois o Direito Penal não é meio de coação direta, evidentemente que seria indispensável estabelecer-se o respectivo procedimento, adequado a esta nova realidade.
Observa-se que em França, ao contrário do Brasil, procurou-se adaptar as regras processuais penais à possibilidade da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Naquele país, promulgou-se a Lei 92-1336, de 16 de dezembro de 1992, a chamada Lei de Adaptação, acrescentando ao Code de Procédure Pénale o Título XVIII, sob a seguinte epígrafe: “De la poursuite, de l´instruction et du jugement des infractions commises par les personnes morales.”
O legislador francês neste título tratou de estabelecer as regras atinentes à acusação, instrução e julgamento das pessoas jurídicas. Assim, por exemplo, o art. 706-42 trata da questão relativa à competência; já o art. 706-43 trata de estabelecer que a ação pública é exercida contra o ente moral na pessoa do seu representante legal à l´époque dês poursuites. O art. 706-44 estabelece que “o representante da pessoa jurídica processada não pode, nessa qualidade, ser objeto de nenhuma medida de coação, a não ser aquela aplicável à testemunha.” O art. 706-45 prevê uma série de obrigações às quais pode le juge d´instruction submeter a pessoa jurídica.
Esta mesma Lei de Adaptação modificou os arts. 555, 557 e 559 do Code de Procédure Pénale. O art. 557, por exemplo, afirma que o domicílio da pessoa moral se entende como sendo o do local de sua sede.
Em nosso País nada disso ocorreu, muito pelo contrário, razão pela qual o Professor René Ariel Dotti afirmou com muita propriedade que “os corifeus e os propagandistas da capacidade criminal das pessoas coletivas ainda não se dedicaram ao trabalho de analisar as consequências desse projeto no quadro do processo penal.”[2]
Vejamos, por exemplo, algumas dificuldades que existem quando se trata de um processo penal cujo acusado é uma pessoa jurídica.
1) A quem serão dirigidos os atos processuais de cientificação: citação, intimação e notificação? Ao Presidente da empresa ou a quaisquer dos seus diretores? Note-se que em França o art. 555 foi modificado para estabelecer expressamente o regramento das citações da pessoa jurídica.
2) Quem será interrogado? Teria ele o direito ao silêncio e o direito de não autoincriminação? Sabe-se que o interrogado tem também o direito indiscutível de não se autoincriminar e o de não fazer prova contra si mesmo, em conformidade com o art. 8.º, 2, g, do Pacto de São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22 de novembro de 1969 e art. 14, 3, g, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova York, assinada em 19 de dezembro de 1966, ambos já incorporados em nosso ordenamento jurídico, por força, respectivamente, do Decreto 678 de 6 de novembro de 1992 e do Decreto 592, de 6 de julho de 1992. Já em 1960, o grande Serrano Alves escrevia uma monografia com o título O Direito de Calar (Rio de Janeiro, Editora Fretas Bastos S/A), cuja dedicatória era “aos que ainda insistem na violação de uma das mais belas conquistas do homem: o direito de não se incriminar”. Nesta obra, adverte o autor que “há no homem um território indevassável que se chama consciência. Desta, só ele, apenas ele pode dispor. Sua invasão, portanto, ainda que pela autoridade constituída, seja a que pretexto for e por que processo for, é sempre atentado, é sempre ignomínia, é torpe sacrilégio.” (p. 151).
3) E a confissão? Será admissível a confissão pelo interrogando (seja ele quem for) em prejuízo, por exemplo, dos demais sócios da pessoa jurídica? A confissão prejudicará os demais membros da corporação?
4) E a revelia? Será possível a decretação da revelia pela ausência injustificada de quem deveria comparecer para o interrogatório? E os demais membros do ente coletivo ficarão prejudicados? É possível a aplicação do art. 366 do Código de Processo Penal, no caso de citação editalícia?
5) E as regras sobre competência? Caso, por exemplo, não seja conhecido o lugar da infração, é possível aplicar-se o art. 72 do Código de Processo Penal? E se uma das pessoas físicas também denunciadas (em coautoria com a pessoa jurídica) tiver prerrogativa de função, aplicar-se-ão as regras de continência (art. 78, III, do Código de Processo Penal c/c o Enunciado 704 do Supremo Tribunal Federal)? A pessoa jurídica seria julgada pelo respectivo Tribunal ou haveria a separação do processo (art. 80, CPP)?
6) Quem teria interesse e legitimidade para recorrer em nome da pessoa jurídica? Apenas aquele que foi interrogado ou qualquer membro do ente coletivo que se sentiu prejudicado com a sentença?
7) Se se tratar de uma infração penal de menor potencial ofensivo, lavra-se o Termo Circunstanciado ou instaura-se o Inquérito Policial? Também nesta hipótese quem poderá em nome da empresa, fazer a composição civil dos danos? E a transação penal?
8) E na suspensão condicional do processo (art. 89 da Lei 9.099/95) quem poderá aceitar a proposta do Ministério Público?
Evidentemente que são indagações cujas respostas não encontraremos no Código de Processo Penal. Valer-se de outros diplomas legais, como o Código de Processo Civil e mesmo a Consolidação das Leis do Trabalho, parece-nos um exercício hermenêutico de altíssimo risco, tendo em vista a especificidade de cada ramo do Direito.
Como uma possível solução, já que o próprio Supremo Tribunal Federal aceita a responsabilização penal da pessoa jurídica, podemos apontar, por analogia, o art. 26 da Lei nº. 12.846/2013, que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, in verbis:
“A pessoa jurídica será representada no processo administrativo na forma do seu estatuto ou contrato social. § 1o As sociedades sem personalidade jurídica serão representadas pela pessoa a quem couber a administração de seus bens. § 2o A pessoa jurídica estrangeira será representada pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil.”
Procurador de Justiça no Estado da Bahia. Foi Assessor Especial do Procurador-Geral de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais. Ex- Procurador da Fazenda Estadual. Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador-UNIFACS, na graduação e na pós-graduação (Especialização em Direito Processual Penal e Penal e Direito Público). É Coordenador do Curso de Especialização em Direito Penal e Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela Universidade Salvador-UNIFACS (Curso coordenado pelo Professor J. J. Calmon de Passos). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais e do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e ao Movimento Ministério Público Democrático. Integrante, por duas vezes consecutivas, de bancas examinadoras de concurso público para ingresso na carreira do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor convidado dos cursos de pós-graduação da Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, do Curso JusPodivm e do Curso IELF. Autor das obras “Curso Temático de Direito Processual Penal”, “Comentários à Lei Maria da Penha” (em co-autoria com Isaac Sabbá Guimarães) e “Juizados Especiais Criminais”– Editora JusPodivm, 2009, além de organizador e coordenador do livro “Leituras Complementares de Direito Processual Penal”, Editora JusPodivm, 2008. Participante em várias obras coletivas. Palestrante em diversos eventos realizados na Bahia e no Brasil.
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