Resumo: Ainda hoje o debate doutrinário travado entre Hans Kelsen e Carl Schmitt no início do Século XX, concernente à quem deve ser atribuída a guarda da constituição, conduz a acesos debates na doutrina e jurisprudência pátrias. De tal sorte que a influência dos ensinamentos de ambos os autores na formação da teoria constituição brasileira é inegável, sobretudo na Constituição Federal de 1988, o que justifica o interesse neste trabalho.
Palavras-chave: Constituição, Jurisdição Constitucional, Poder Judiciário, Poder Executivo.
Abstract: Even today the doctrinal debate between Hans Kelsen and Carl Schmitt at the beginning of the twentieth century, concerning who should be assigned custody of the constitution, leads to heated debates in homeland doctrine and jurisprudence. Thus, the influence of the teachings of both authors on the formation of the Brazilian constitution theory is undeniable, especially in the Federal Constitution of 1988, which justifies the interest in this work.
Key words: Constitution, Judicial Review, Judiciary, Executive Branch.
Sumário: Introdução 2. A concepção de Constituição em Kelsen 3. A concepção de Schmitt 4. Considerações Finais 5. Referências
INTRODUÇÃO
Após a 2ª Guerra Mundial, diversos países do ocidente passaram a adotar um modelo de corte constitucional inspirado nas ideias de Kelsen. É lugar comum encontrar nos manuais de direito constitucional brasileiro a referência a uma suposta vitória, no campo das ideais, do modelo kelseniano, em razão da já citada adoção, por diversos países[1], das ideias ligadas ao controle de constitucionalidade defendidas pelo mestre de Viena.
Nada obstante, em se tratando de Brasil, notadamente no que concerne à Constituição Federal de 1988, tal afirmativa não parece encontrar agasalho em sua totalidade. Ao revés, algumas ideias defendidas por Schmitt, como veremos, parecem ter merecido atenção especial do Constituinte brasileiro de 1986-1988, encontrando abrigo em diversos capítulos do Texto Constitucional, circunstância essa que vai de encontro à visão comum segundo a qual as ideias de Kelsen teriam de alguma forma condenado ao ostracismo as ideias de Schmitt.
2. A CONCEPÇÃO DE CONSTITUIÇÃO EM KELSEN
Antes, contudo, de iniciarmos a análise dos pontos de vista dos autores no que se refere à competência para a guarda da constituição, devemos lançar algumas luzes sobre um ponto que por vezes passa desapercebido nas discussões sobre o assunto: a distinta concepção de constituição de Kelsen e de Schmitt, como premissa à preocupação em quem deve ser o responsável por sua manutenção em momento posterior.
De partida, devemos ter em mente que Kelsen idealiza uma ideia de constituição normativa. Extrai-se tal noção, com clareza solar, de sua obra Teoria Pura do Direito. Aliás, a própria noção de direito, para Kelsen, estriba-se na sua concepção como ordem normativa, isso porque “o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a validade de uma outra norma” [2].
Nesse passo, todas as normas cujo fundamento de validade pode ser reconduzido a uma mesma norma comum fundamental formam, em seu conjunto, uma ordem normativa[3]. É fácil daí extrair a ideia de pirâmide normativa kelseniana, segundo a qual a norma imediatamente inferior busca seu fundamento de validade na norma superior, e assim sucessivamente até uma norma que se pressupõe como a última e mais elevada de toda a ordem normativa.
Ora, não seria crível repetir esse processo de fundamento de validade na norma superior ao infinito, sob o grave risco de perder-se no interminável a fundamentação de validade do próprio ordenamento jurídico. É nesse sentido que Kelsen afirma que esse processo “tem de terminar numa norma que se pressupõe como a última e mais elevada”, ao que estabelece que tal norma deve ser pressuposta, uma vez que não pode ser simplesmente posta por qualquer autoridade[4]. Noutras palavras, a norma não pode ser positivada em algum documento, mas deve ser pressuposta por aquela comunidade, como fundamento último de validade do ordenamento jurídico.
É de bom alvitre destacar que a norma pressuposta de Kelsen não é equivalente à soma de todas as demais normas de dado ordenamento. Longe disso, ela consubstancia-se numa norma diferente daquelas e representa, pois, o fundamento de validade de todas as demais normas.
Assim, na teoria normativa de Kelsen, a sentença judicial, norma para o caso concreto, tem o fundamento de validade na lei, norma geral, ao passo que a lei encontra seu fundamento de validade na constituição, entendida como a norma superior que representa o escalão do direito positivo mais elevado.
O corolário lógico dessa estrutura normativa piramidal assenta-se na circunstância de a validade da norma não depender do seu conteúdo intrínseco, de sua justeza, de valores pautados pela equidade, de sua observância a critérios morais ou éticos, mas apenas pela sua compatibilidade com o disposto na norma que lhe concede a validade. É exatamente em razão disso que Kelsen defende a ideia segundo a qual “todo e qualquer conteúdo pode ser Direito. Não há qualquer conduta humana que, como tal, por força de seu conteúdo, esteja excluída de ser conteúdo de uma norma juridica” [5].Assim é que a constituição estabelece o processo pelo qual as leis serão produzidas, e, eventualmente, o conteúdo que deverão ostentar, ao passo que, mutatis mutandis, a lei deve, numa relação de determinação ou vinculação, direcionar o conteúdo das sentenças judiciais.
A despeito disso, e isso é fundamental, há alguns casos de indeterminação na norma hierarquicamente superior, a qual não pode vincular todo o conteúdo da norma hierarquicamente inferior, ora porque há uma deliberação intencional do órgão de que emanou, ora porque se deu uma situação não intencional[6]. Em ambos os casos, no entanto, para Kelsen, o direito a aplicar afigurar-se-ia uma moldura dentro do qual há várias possibilidades de aplicação[7].
Tal assertiva não pode ser compreendida, sobretudo no tocante ao conceito de Constituição adotado por Kelsen, e por seus contemporâneos, sem levar em conta a influência que a nova roupagem conferida às diversas constituições europeias que surgiram no período entre a primeira e a segunda grande guerra, bem assim após esta última, acarretaram nas formulações dos estudos relativos à teoria constitucional. Antes, porém, de tecermos alguns comentários sobre essa mudança paradigmática ocorrida final do século XIX e no início do século XX, convém trazer à baila alguns contributos para a formação do que se convencionou chamar de constituição em sentido ideal.
Conquanto não se desconheça a imensa repercussão de outros documentos jurídicos na formação da moderna teoria constitucional, um deles merece especial atenção, por traduzir, em poucas palavras, a essência da formação do pensamento constitucional à época e sua influência nos anos que se seguiram. Trata-se da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, produzida no evolver da Revolução Francesa de 1789[8], em especial o seu art. 16, segundo o qual “A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição”[9].
O conceito de constituição que se formou após a Revolução Francesa[10] está, pois, umbilicalmente ligado ao seu conteúdo. Nesse passo, afirma-se que numa sociedade na qual não seja estatuída a separação de poderes e assegurada a garantia de direitos não se pode falar na existência de uma constituição. Tal modelo, com uma outra particularidade no que tange à extensão da garantia de direitos no seu corpo, ficou conhecido como o modelo liberal clássico de constituição, porque estribado, em larga medida, na ideia de limitação de poderes do estado.
Ainda no decorrer do século XIX, muitas críticas contundentes eram feitas, no campo da teoria constitucional, ao modelo liberal clássico. Para mirar-se um exemplo especial, registre-se a contribuição de Ferdinand Lassalle, na Prússia, um dos Estados que posteriormente integrou-se à Alemanha, para quem era latente a falta de correspondência dos documentos constitucionais à realidade fática a eles subjacente. Malgrado as constituições do modelo liberal clássico estatuíssem genericamente direitos como a liberdade e a igualdade, não se verificava uma exata correspondência entre a descrição normativa e a realidade empírica daqueles países. Talvez o exemplo mais significativo dessa distorção seja a permissão da escravidão, tolerada no início do século XIX por países como o Brasil e os Estados Unidos da América, conquanto as suas constituições à época – no caso brasileiro, a Constituição de 1824, e no caso americano, a adoção do Bill of Rights, por meio da primeira emenda em 1791 – garantissem em plano normativo direitos fundamentais em plano embrionário.
É assaz conhecida a lição de Lassalle segundo a qual a constituição consubstancia-se no resultado dos fatores reais de poder atuantes na sociedade, ao passo que uma constituição escrita que não refletisse tais fatores reais de poder seria desprovida de importância na realidade política do país, afigurando-se apenas uma mera folha de papel. Nas palavras de Lassalle “a verdadeira constituição de um país somente tem por base os fatores reais e efetivos de poder que naquele país vigem”, ao passo que “as constituições escritas não tem valor bem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores de poder que imperam na realidade social”[11].
Nesse descortino, foram muitas as constituições que, já no início do século XX, passaram a trazer em seu corpo previsões outras que não aquelas relativas à contenção do poder estatal. A Constituição da República de Weimar (Weimarer Verfassung), que governou o Império Alemão desde 1919 até 1933, e teve vigência – ao menos formal – durante o Terceiro Reich Alemão, no período entre 1933 até 1945, perpassando, pois, por toda a 2ª Guerra Mundial, é um exemplo sempre lembrado desse novo modelo de constituição, que marca o início da passagem do modelo liberal clássico de estado ao estado social.
Nesse novo modelo, a preocupação com o absolutismo estatal e com a organização fundamental do estado revelam-se, sozinhos, insuficientes para atender aos anseios dos cidadãos. A ideia de liberdade contra o estado, de não intervenção estatal nos campos da vida privada dos indivíduos já não mais atende aos anseios de uma comunidade que passa a enxergar, por meio de ações do estado, insculpidas no documento máximo de organização estatal, a Constituição, um importante mecanismo de prescrição de comportamentos dirigidos à melhoria da vida dos cidadãos. A Constituição da Weimar, assim, estabelecia diversos direitos trabalhistas e até previdenciários entre os artigos 157 a 165, matérias que, até então, eram estranhas ao conceito de constituição do estado liberal.
E é exatamente nos debates que antecederam e que se seguiram à Constituição da República de Weimar que se instalou o debate travado entre Hans Kelsen e Carl Schmitt sobre quem deveria ser o guardião da constituição. No seu modelo de constituição normativa, como vimos, Kelsen defende a ideia segundo a qual a norma imediatamente inferior busca seu fundamento de validade na norma imediatamente superior, sendo que todas as normas de um dado ordenamento jurídico devem, para ser válidas, guardar compatibilidade com o texto da constituição[12]. Todavia, e isso é fundamental, exsurge a problemática de quem deve ser o responsável por verificar a compatibilidade das normas inferiores com a constituição[13]. Nas palavras de Kelsen[14] levanta-se a questão de saber a quem deve a constituição atribuir competência para decidir se, em determinado caso, foram cumpridas as normas constitucionais, uma vez que “a função política da Constituição é estabelecer limites jurídicos ao exercício do poder. Garantia da Constituição significa a segurança de que tais limites não serão ultrapassados”[15]. Em essência, percebe-se a preocupação de Kelsen na verificação de compatibilidade entre as disposições constitucionais e as normas que lhe são inferiores.
Para Kelsen, seria ingenuidade política contar que um órgão encarregado pela Constituição de elaborar as leis, isto é, o parlamento, anularia uma lei votada por ele próprio pelo fato de outra instância a ter declarado inconstitucional. O órgão legislativo, para Kelsen, se considera na realidade um livre criador do direito, e não um órgão de aplicação do direito, vinculado pela Constituição, quando, ao menos em plano teórico, ele o é sim, embora numa medida relativamente restrita. Portanto, segundo Kelsen, não é com o parlamento que se pode contar para efetuar a subordinação de todo o ordenamento jurídico à Constituição. É um órgão diferente dele, independente dele e, por conseguinte, também de qualquer outra autoridade estatal, que deve ser encarregado da anulação de seus atos inconstitucionais, isto é, uma jurisdição ou um tribunal constitucional.[16]
Em resposta à obra de Schmitt intitulada Quem deve ser o Guardião da Constituição (Der Huter der Verfassung), Kelsen critica a tentativa de resgate da mais antiga peça do “rebotalho do teatro constitucional”, segundo a qual o chefe de estado, e nenhum outro órgão, seria o competente guardião da constituição, resgatando assim a teoria do pouvoir neutre, defendida anteriormente, no século XIX, por Benjamim Constant[17].
3. A CONCEPÇÃO DE SCHMITT
Uma análise sobre a ideia de Schmitt sobre quem deve ser o guardião da constituição, no entanto, não pode prescindir, do mesmo modo, de uma análise, ainda que breve, sobre a ideia de constituição defendida pelo autor. Para cumprir tal mister, a leitura da obra Teoria da Constituição[18], de Schmitt, é imperiosa.
Sobre tal obra, não se pode perder de vista o caráter absolutamente inovador de seu conteúdo. Até então, os estudos sobre a teoria da constituição não mereciam, por parte dos acadêmicos europeus, especial atenção, senão em alguns tópicos especiais de teoria geral do estado, sobretudo na Alemanha do século XIX. O próprio conceito de constituição, como vimos, não era muito claro, antes era tomado com supedâneo em seu conteúdo.
A esse modelo que já referimos alhures, de constituição no modelo de estado liberal clássico, Schmitt convencionou chamar de constituição em sentido ideal. No processo histórico da Constituição moderna, segundo Schmitt, prosperou um conceito ideal de constituição segundo o qual, desde o século XVIII, “só se haviam designado como constituições aquelas que correspondiam às demandas de liberdade burguesa e que contivessem certas garantias de tal liberade.”[19].
Para Schmitt, a influência das ideias de Montesquieu, aliadas à ascensão da burguesia liberal, são causas inequívocas para que se chegue à conclusão de que o estado que não observasse tal modelo de organização estatal, no qual asseguradas as garantias constituições de liberdade não possuiria, pois, Constituição[20].
Tal concepção, no entanto, parece não convencer Schmitt. A par de um certo desprezo do autor com as instituições liberais burguesas da época, que pode ser extraído das críticas contundentes por ele proferidas àquelas instituições, aqui o que nos interessa é exatamente essa crítica ao modelo liberal de constituição.
Schmitt defende uma ideia de constituição que se assemelha, em larga medida, a um conceito sociológico de constituição. Em contraste com a posição defendida por Kelsen, de constituição como norma posta hierarquicamente superior, para Schmitt a Constituição de um determinado estado afigura-se uma decisão política fundamental de determinado povo em dado momento histórico. Para Schmitt, o conceito de constituição não equivale à ideia de leis constitucionais. É nesse contexto que é possível iniciar a compreensão das ideias de Schmitt para o que se deve compreender como Constituição e leis constitucionais, ou, ainda, as tão ideias difundidas ideias de constituição em sentido material e formal[21]. Em poucas palavras, a Constituição não é um documento, mas algo que se verifica no mundo dos fatos.
Nesse diapasão, a decisão política fundamental é que merece especial atenção de Schmitt, e não aquilo que se compreende como leis constitucionais, que, em reduzida síntese, podem ser compreendidas num sentido mais próximo ao que compreendemos hoje como previsões inseridas num documento escrito, independentemente de seu conteúdo.
Há uma passagem do texto de Schmitt que traduz essa concepção em poucas linhas, as quais, por sua importância, merecem ser transcritas[22]:
“La Constitución de Weimar de 11 de agosto de 1919 se apoya en el Poder constituyente del pueblo alemán. La decisión política más importante se halla contenida en el preámbulo: ‘El pueblo alemán se ha dado esta Constitución’, y en el arto 1, 2: «El poder del Estado emana del pueblo.» Estas frases indican como decisiones políticas concretas el fundamento jurídico-positivo de la Constitución de Weimar: el Poder constituyente del Pueblo alemán como Nación, esto es, unidad con capacidad de obrar y consciente de su existencia política”.
Ao nosso sentir, é essa decisão fundamental que devemos ter em mente quando analisamos a concepção de Schmitt sobre quem deve ser o Guardião da Constituição. Assim, quando falamos no guardião da constituição em Schmitt não podemos ter como premissa a defesa judicial da constituição, numa concepção jurídico-normativa como a defendida por Kelsen.
A defesa de uma garantia jurisdicional da constituição na Alemanha da época deve-se, conforme Schmitt, ao fascínio que a Suprema Corte Americana exercia sobre os juristas alemães[23]. Todavia, para o referido autor, tal concepção não pode ser transposta à realidade Alemã da época. Isso porque deve-se dizer que o direito de exame judicial, por si só, apenas torna os tribunais sentenciadores guardiões da constituição em um estado judicial que subordina a totalidade da vida pública ao controle dos tribunais ordinários.
Para Schmitt, no entanto, a Suprema Corte Americana não é um exemplo de guardião da constituição, mas antes se “apresenta, na realidade, como guardiã de uma ordem social e econômica, a princípio não discutível, perante o estado.”[24]. E prossegue afirmando que quando um tribunal julga determinado caso, seja ele administrativo ou penal, não está a guardar a constituição, senão decidindo determinado caso litigioso. Não se pode olvidar que o modelo de controle judicial de constitucionalidade americano é um modelo difuso, segundo o qual qualquer juiz pode – e deve – afastar, no caso concreto, determinado ato normativo que contrarie a Constituição[25].
Em síntese, para Schmitt, o problema de aplicação de uma lei inferior ou da lei constitucional ao caso concreto não é senão um conflito a ser resolvido pelo tribunal sentenciador por meio de um juízo de subsunção, sem que isso se afigure um exercício de guarda da constituição. Em razão disso, defende Schmitt que[26]
“[…] guardiões da Constituição não são todas as posições e pessoas que, ocasionalmente pela não aplicação de leis anticonstitucionais ou pela não-obediência a disposições constitucionais, possam contribuir para que a Constituição seja respeitada e não seja violado um interesse protegido constitucionalmente”.
Mais do que isso, essa tendência de transferir ao processo judicial uma espécie esperança em resolver todos os problemas relativos à fixação do conteúdo de determina prescrição constitucional é fortemente influenciada, segundo Schmitt[27], pela tendência dos “’juristas da justiça’ em transferir a solução de todos os problemas simplesmente para um processo judicial e desconsiderar por completo a diferença fundamental entre uma decisão processual e a decisão de dúvidas e divergências de opinião sobre o conteúdo de uma determinação constitucional”.
Com isso, pode-se perceber que Schmitt não negava aos tribunais a possibilidade de verificar se a norma aplicável ao caso objeto de litígio estava prevista na constituição ou em uma lei inferior. Contudo, ao agir dessa maneira o órgão sentenciante não estaria a guardar a constituição, mas apenas resolvendo conflitos mediante um critério de subsunção dos fatos à lei constitucional ou outra previsão normativa.
Schmitt tenta desmitificar a noção de que a independência dos juízes mão tem de forma alguma o objetivo de criar um titular da melhor volição política do estado, mas apenas de “delimitar uma esfera da justiça vinculada à lei dentro de um ser estatal ordenado”[28]. Para ele, “a independência judicial é tão somente o outro lado da vinculação judicial à lei e, nesse ponto, apolítica.”[29], isto é, sem vinculação às orientações ideológicas formuladas e votadas pelo parlamento. Mas, de resto, e isso é fundamental, não só os juízes devem ser independentes, mas todo o serviço público, como determina a Constituição de Weimar em seu art. 130, quando assevera que “Os funcionários públicos são servidores da totalidade, não de um partido”, in casu, o partido que detém a maioria do parlamento.
Dentro dessa visão é que se torna possível compreender a assertiva de Schmitt segundo a qual “[o] Presidente do Reich encontra-se no centro de todo um sistema de neutralidade e independência político-partidárias, construído sobre uma base plebiscitária”[30]. Nessa concepção, todo o serviço público, e não só o judiciário, devem estar a serviço de toda a população, e não de um parlamento fragmentado por diversas concepções ideológicas e políticas.
Destaque-se que o parlamento alemão à época aglutinava em seu corpo representantes de vertentes muito distintas de pensamento, e isso, para Schmitt, era um grande problema a ser resolvido. Sobre o assunto, confira-se essa passagem:
“O ordenamento estatal do atual Reich alemão depende dele [do presidente] na medida em que as tendências do sistema pluralista dificultam, ou até mesmo impossibilitam, um funcionamento normal do estado legiferante. Antes que se institua, então, para questões e conflitos relativos à alta política, um tribunal como guardião da Constituição[31] e, por meio de tais politizações, se onere e coloque em risco a justiça, dever-se-ia, primeiramente, lembrar desse conteúdo positivo da constituição de Weimar e de seu sistema constitucional”.
É dentro dessa noção, complementada por outras ideias desenvolvidas nas obras citadas, que Schmitt resgata a ideia do chefe de estado enquanto poder neutro, à luz das ideias de Benjamim Constant[32], apto a representar, em sua totalidade, o povo alemão. Segundo Schmitt, todo esse sistema criado pela Constituição de Weimar tinha por objeto criar um órgão político-partidariamente neutro devido a sua relação direta com a totalidade estatal, o qual, como tal “é o defensor e guardião da situação constitucional e do funcionamento constitucional das supremas instâncias jurídicas e, em caso de necessidade, está dotado de poderes eficientes para uma proteção efetiva da Constituição.”[33].
Mais uma vez, repise-se que ao falar do guardião da constituição, Schmitt demonstrava não estar tão preocupado com o processo de verificação de compatibilidade entre o texto constitucional e as normas inferiores, processo que entendia menos importante. Em verdade, Schmitt acentuava sua preocupação com a manutenção da decisão política fundamental[34] do povo alemão, sobretudo em momentos de crise institucional e em momentos de exceção.
Segundo Schmitt, se na jurisdição constitucional há uma verdadeira atividade volitiva, e não meramente cognitiva, está-se diante de uma contradição inconciliável com a democracia, na exata medida em que o tribunal constitucional determina o que ela é, ao invés de simplesmente aplica-la a determinado caso. É por isso que, para Schmitt, o controle de constitucionalidade exibe sempre uma feição política, e não jurisdicional. Aliás, Schmitt não consegue conceber a possibilidade de uma verdadeira justiça constitucional, que se afigura uma contradição em si mesma. Segundo sua conhecida lição, a expansão sem limites da jurisdição constitucional tem como consequência não a juridicizacao da política, mas a politização da justiça, sendo que nessa circunstância a política não tem nada a ganhar[35].
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ultrapassadas esses breves esclarecimentos, que pretendem fornecer subsídios – ainda que incipientes – às visões de Kelsen e Schmitt, voltam-se os olhos, doravante, ao estabelecido pela Constituição Federal de 1988. De pronto, traz-se à baila o art. 102, da Constituição Federal, segundo o qual “Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição”.
Não há dúvidas, pois, que a Constituição Federal e 1988 conferiu ao Supremo Tribunal Federal um espaço de destaque, nas pegadas das lições de Kelsen. Malgrado não se possa dizer que o STF equivalha à uma Corte Constitucional, fora da estrutura do Poder Judiciário, é inconteste o fato que muitas ideias de Kelsen foram aproveitadas pelo constituinte.
Por outro lado, é também inarredável a conclusão de que muitas ideias de Kelsen foram abrandadas, ou pela sua não adoção na Constituição de 1988, ou pela construção de um modelo misto de controle de constitucionalidade. Sobre o assunto, deve-se ter em mente que no Brasil as primeiras regras sobre o controle de constitucionalidade inspiraram-se no modelo norte-americano, quando de sua inserção na Constituição Federal de 1891. Tal modelo define-se por seu caráter difuso, por permitir que todos os juízes, num dado caso concreto, possam aferir a compatibilidade entre o conteúdo da constituição e o comportamento dos agentes estatais.
Registre-se que mesmo a partir da adoção, em nosso ordenamento, do controle concentrado de constitucionalidade, realizado em tese, sem vinculação ao caso concreto, não se abandonou o modelo difuso de controle, resultando, com o passar dos anos, num complexo sistema de controle de constitucionalidade, que hoje alberga ambas as hipóteses.
Noutro giro, o que dizer da adoção das ideias de Schimitt pela Constituição Federal de 1988? Sem qualquer pretensão de exaurir o assunto, mas apenas de traçar algumas linhas provocativas, qual é a decisão política fundamental tomada pelo poder constituinte, nas pegadas da teoria de Schmitt? Ao nosso sentir, um cotejo entre o que estabelecido no preambulo da Constituição e conteúdo do art. 1º fornecem as linhas metres das decisões políticas fundamentais do nosso constituinte. Nesse diapasão, a forma federativa de estado, a opção pelo estado democrático com fundamentos na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político, a formação de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, comprometida com a solução pacífica de controvérsias, no plano interno e na ordem internacional, em conjunto, consubstanciam-se na decisão política fundamental de nossa Constituição Federal.
A esse respeito, caso ocorra alguma situação de anormalidade, caracterizadora de um período de exceção, como a ameaça iminente de invasão externa, como dar-se-ia a defesa daqueles valores supremos insculpidos na Constituição Federal? Numa visão Schmittiana, seria ingenuidade depositar todas as esperanças de salvaguarda de uma sociedade num processo judicial. Mas, a par do que defendeu Schmitt, é possível vislumbrar em nossa Constituição dispositivos que consagram construções teóricas inspiradas nas ideias do autor alemão?
O Título V, da Constituição Federal, intitulado Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas nos dá algumas pistas. No Capítulo I do sobredito Título V, Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio, permite-se ao Presidente da República, caso preenchidas as condições previstas nos arts. 136 e 137, da Constituição Federal, determinar a restrição ou mesmo a suspensão de uma série de direitos e garantias fundamentais.
Em linhas gerais, ex vi do art. 137, da Constituição Federal, o estado de defesa tem por objetivo reestabelecer, em um determinado local restrito, a ordem pública ou a paz social, quando ameaçadas por razões político sociais ou por razoes da própria natureza. A sua decretação, de responsabilidade do Presidente da República, deve ser precedida de reunião desse com os Conselhos da República e da Defesa Nacional. Após decretado, deverá ser submetido à apreciação do Congresso Nacional, que sobre ele decidirá por maioria absoluta.
Entre as medidas excepcionais que podem ser levadas a cabo durante o estado de defesa, cujo prazo máximo é de 30 dias, prorrogáveis uma vez, estão as seguintes: restrição aos direitos de reunião, sigilo de correspondência, de comunicação e a possibilidade de ocupação e uso, temporário, de bens e serviços públicos, estes últimos nos casos de calamidade pública.
Noutro giro, o estado de sítio, mais gravoso e restritivo que o estado de defesa, pode vir a ser decretado nas hipóteses previstas no art. 137, incisos I e II, da Constituição Federal, quais sejam: no caso de comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada no estado de defesa; ou nos casos de declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira, poderá o Presidente, ouvidos os Conselhos da República e de Defesa Nacional e autorizado pelo Congresso Nacional, por maioria absoluta.
Na hipótese de decretação do estado de sítio por força do inciso I, do art. 137, só poderão ser adotadas as medidas dispostas nos setes incisos do art. 139. Noutro giro, há um maior espaço de conformação a ser adotado pelo Presidente da República quando a decretação do estado de sítio se der nos casos do inciso II, do art. 137, isto é, nas hipóteses de declaração de guerra ou resposta a agressão armada. No decreto que determinar o estado de sítio, por força do art. 138, deverão constar as normas necessárias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas.
Ante o exposto, é lícito concluir que em tais hipóteses de exceção são conferidos maiores poderes ao chefe do executivo, em prol da defesa do estado e das instituições democráticas, na linha do que expôs Schmitt. Ou, utilizando-nos das lições do autor alemão, seria ingênuo acreditar que a força de decisões judiciais seria bastante a assegurar as decisões políticas fundamentais tomadas pelo poder constituinte de 1986-1988.
À evidência, espera-se que tais regimes de exceção jamais se concretizem, desejando-se sempre que a normalidade institucional prevaleça, ancorado nas regras e garantias do estado democrático de direito. Convém, nada obstante, não perder de vista algumas lições sobre o assunto.
De todo modo, quer nos parecer que a defesa da Constituição Federal, nos moldes da concepção defendida por Schmitt, mereceu agasalho nos institutos do estado de defesa e estado de sítio, previstos pelo poder constituinte originário, ao lado, à evidência, de um modelo jurisdicional de defesa da Constituição.
Advogado. Pós-Graduado em Direito Público. Mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto de Direito Público de Brasília (IDP).
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