Resumo: O artigo investiga a possibilidade do direito de usucapião de propriedade estatal, especificamente na modalidade especial coletiva urbana, consubstanciada nos princípios constitucionais da função social da propriedade e da dignidade da pessoa humana, combinado com o comando constitucional, que expressamente, prevê que é função estatal promover os meios necessários para que os cidadãos tenham acesso à moradia digna, coadunando com o princípio da dignidade da pessoa humana elencado no artigo 3° da Constituição Federal de 1988 .
Palavras-chaves: Usucapião especial coletivo urbano, vedação constitucional, princípios constitucionais, função social da propriedade, dignidade da pessoa humana, coletividade, paz social.
Sumário: Introdução. A existência do direito do usucapião especial urbano coletivo frente a propriedades urbanas pertencentes ao estado. Considerações finais. Referências.
1. Introdução
O artigo apresentado, tem por temática uma reflexão acerca do instituto do usucapião especial coletivo urbano, regulamentado pela Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 que foi denominada de Estatuto da Cidade, frente a impossibilidade prevista pela Constituição Federal no que tange inexistir a possibilidade de usucapião quando a propriedade for estatal, demonstrando que a expressa vedação constitucional deve ser mitigada, como já vem sendo, mesmo que de maneira implícita, frente a utilização de tais imóveis públicos.
A contraposição do instituto do usucapião especial coletivo urbano e da impossibilidade de usucapião de imóveis pertencentes ao Estado, demonstra que tal vedação fere o princípio constitucional da função social da propriedade, e no confronto posto, de maneira reflexa, deve ser suscitada que tal impossibilidade fere o princípio da dignidade da pessoa humana, o que é perceptível ao minudar os requisitos legais para aquisição do direito de usucapião especial coletivo urbano, fica claro que sua aplicação se dá nos casos onde a propriedade adquire, pelo uso que lhe é atribuído, uma finalidade social, frente a um número razoável de pessoas, assim sendo retirar as pessoas de uma propriedade, mesmo que está seja estatal, negando-as o direito de se tornarem reais proprietários de tal imóvel, é negar-lhes a possibilidade de uma existência digna, portanto negar esse direito de usucapir é afrontar dois princípios constitucionais fundamentais em privilégio a uma normativa constitucional de menor relevo, além de retirar efetividade, parcialmente, no artigo 10[1] do mencionado Estatuto das Cidades.
Regulamentando os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, foi aprovada a Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, denominada de “Estatuto da Cidade”, a qual em seu artigo 1º, parágrafo único “estabelece normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. O mencionado dispositivo legislativo traça além de outras diretrizes gerais da política urbana, que são conjunto de ações planejadas e executadas pelo Estado, nas suas diferentes esferas de atuação, a saber federal, estadual e municipal, com vistas ao bem coletivo, que objetiva o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, a regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda, assim sendo, almeja de maneira lógica atribuir uma real função social à propriedade, coadunando com o principio constitucional de extrema relevância na atual conjuntura nacional de déficit de moradias, especialmente nos centros urbanos, onde os terrenos que podem ser utilizados para construção de moradias tornam-se mais escassos e mais caros.
A supra mencionada regularização fundiária trata, entre outros direitos relativos a imóveis rurais e urbanos, do usucapião especial coletivo de áreas urbanas invadidas e ocupadas por número indeterminado de pessoas que nelas construíram suas moradias, locais esses que deram origens a favelas, e em outros casos a bairros populares desorganizados e carentes de infra-estrutura, que em muitos casos estão incrustados entre bairros nobres, estando disciplinados os requisitos necessários para configurar o usucapião nos artigos dez a quatorze do “Estatuto das Cidades”. O usucapião este que foi instituído em razão da função social coletiva da propriedade e do preceito constitucional que prevê que é função estatal promover as condições para que os cidadãos tenham acesso a uma moradia com qualidade, e de forma reflexa uma forma de promover a dignidade da pessoa humana.
A problemática de maior relevância nos grandes centros urbanos na contemporaneidade reside especificamente em como promover o acesso da população, em crescente expansão, a moradia digna e de qualidade, principalmente a população hipossuficiente,visto que é cada vez mais escassa a oferta de terrenos que possam atender este nicho populacional nos grandes centros brasileiros, ressaltando que muitos dos existentes pertencem ao Estado, e estão sem nenhuma utilidade, prejudicando a sociedade. Isto posto, fica evidente que a vedação constitucional que proíbe o direito de usucapir propriedades estatais, especialmente na modalidade especial urbana perde relevância, tornando-se um óbice para a promoção da dignidade humana para o anteriormente mencionado grupo social.
É de suma importância informar que a expressão “usucapião” será utilizada no gênero masculino, a despeito do Estatuto da Cidade usar no gênero feminino, considerando que o primeiro gênero é a forma usual em diversos diplomas legislativos e costumeiramente vendo sendo utilizada na forma masculina, a qual será adotada em todo o texto deste artigo.
2. A EXISTÊNCIA DO DIREITO DO USUCAPIÃO ESPECIAL URBANO COLETIVO FRENTE A PROPRIEDADES URBANAS PERTENCENTES AO ESTADO.
A constituição federal no seu artigo 183 § 3 prevê a não existência do usucapião de propriedades pertences ao Estado posição essa reforçada pela doutrina, exemplo disso encontra-se na assertiva de Orlando Gomes: “ Certos proprietários não podem, porém, perder a propriedade por usucapião. Neste caso se encontram as pessoas jurídicas de direito público, cujos bens são imprescritíveis.(GOMES,2010, p.182), no entanto regulamentado pela Lei Federal n.º 10.257 de 10 de julho de 2001 que se foi intitulado de Estatuto da Cidade, é prevista a modalidade de usucapião especial coletivo urbano, nesta modalidade o que está consagrado é uso da propriedade com uma finalidade social, buscando promover a dignidade da pessoa humana, assim sendo tal modalidade coaduna com os princípios constitucionais pétreos da função social da propriedade, e da dignidade da pessoa humana.
A moradia é considerada direito social, conforme estatuído no art. 6° da CF, assentado nos princípios fundamentais da cidadania e da dignidade da pessoa humana. Cuida-se de normas jurídicas de cumprimento obrigatório pelos Municípios, inclusive em virtude do poder de polícia urbanístico, assim como por toda a população, com o intuito de vedar o uso prejudicial e distorcido da propriedade urbana, sendo está motivo de especulação imobiliária, e responsável por aumentar o problema habitacional, preleciona in verbis:
“Art. 6° da Constituição Federal – “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Entre os instrumentos de efetivação dessa política o usucapião especial coletivo urbano é o instituto que cumpre mais efetivamente a finalidade de buscar garantir a finalidade social da propriedade pois os requisitos usados para que um grupo de indivíduos tenham este direito, garantem que a propriedade está sendo usada em prol do coletivo, da sociedade, com fins de moradia, em favor de pessoas e de baixa renda, que vivem, ou melhor subsistente de maneira indigna, essa assertiva fica explicita nos artigos 9° e 10° do referido Estatuto, verbis:
“Art. 9º da Lei nº 10.257 de 2001 – “Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.”
Art. 10 da Lei nº 10.257 de 2001 – “As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.”
Segundo Venosa, a possibilidade de a posse continuada gerar a propriedade justifica-se pelo sentido social e axiológico das coisas. Premia-se aquele que se utiliza utilmente do bem, dando uma função e importância mais que pessoal, cumprindo preceitos consagrados não só pela Lei Maior de 88, bem como pela doutrina, em detrimento daquele que deixa escoar o tempo, sem dele utilizar-se ou não opondo a que outro o faça, como se dono fosse. O usucapião coloca-se, que uma situação de fato pode transmudar-se em uma situação de direito, o tempo desta maneira assume o papel de força geradora. Para a configuração do usucapião especial coletivo urbano, mister se faz à atuação de três elementos: a posse contínua e pacífica, o tempo e a função dada a está propriedade, sem negar outros requisitos, no entanto conferindo maior relevância aos expostos. O usucapião é modo originário de aquisição da propriedade, pois, a titularidade da propriedade nasce sem vinculação com o passado, sanando vícios por ventura existentes, desse modo, constatamos que não existe relação entre o adquirente e o precedente sujeito de direito. Segundo Orlando Gomes, o fundamento jurídico do usucapião encontra resposta na teoria subjetiva, para os adeptos desta teoria, há sustentabilidade de que existe renúncia presumida do antigo proprietário, ou seja, o raciocínio desenvolvido é no sentido de que se o dono se desinteressa de sua utilização, durante determinado lapso temporal, é porque a abandonou ou tem esse propósito, tal linha de pensamento é coadunada pela afirmação escrita pelo mencionado doutrinador “ O raciocínio é este: se o dono de uma coisa se desinteressa de sua utilização durante certo lapso de tempo, é porque a abandonou ou está no propósito de abandoná-la”.(GOMES,2010, P181)
Frente a esta problemática é possível inferir, que mesmo tratando-se de propriedade estatal, o direito de usucapir deve ser contemplado quando na modalidade especial coletiva urbana, pois na situação em tela existe uma contraposição de normas constitucionais, sendo que os princípios que se opõem a norma têm maior relevância.
O usucapião é um instrumento para garantir a paz social, visto que possibilita que uma propriedade sem utilidade, sem um aproveitamento real, ganhe um utilização justa, especialmente na modalidade especial coletiva urbana, pois nesta, o principal uso da propriedade é de moradia de famílias de baixa renda, que em muitos dos casos migraram para os centros urbanos em busca de uma melhoria da qualidade de vida, entretanto, por conta dos baixos níveis educacionais, e do mercado de trabalho cada vez mais concorrido e especializado, vêm-se numa situação desesperadora, passando a utilizar terras, por vezes públicas, como moradia, sendo que estas são seu único e último recurso de moradia.
Diante da inércia do Estado em promover condições de vida digna para estes sujeitos, eles pouco a pouco vão investindo em obras de melhoria nos terrenos públicos ocupados, por vezes recebendo, inclusive, apoio e autorização do Estado para tanto, assim sendo há de perceber que existe de alguma maneira uma permissividade e concordância do Estado a utilização dessas terras, portanto a estrutura estatal legítima o usucapião das terras públicas quando por anos a fio permite e coaduna com melhorias e mudanças implementadas pelas famílias nessas áreas.
Ademais a retirada dessas famílias dessas áreas, após décadas de ocupação produzirá um prejuízo social e econômico, que constitui uma afronta ao Estado democrático de direito muito maior do que mantê-las nessas áreas concedendo-as o título de propriedade da área que já é utilizada para sua moradia, como prevê o Estatuto das Cidades, sendo que no citado dispositivo legal é prevista uma indenização por tratar-se de imóvel particular, na situação ora apresentada, não há de mencionar a possibilidade de indenização, pois o real proprietário dos imóveis públicos, e mais especificamente das terras públicas, é o povo, sendo assim de uma maneira ou de outra o povo está dando utilidade aquilo que é seu por direito, uma utilidade social que dignifica a vida do indivíduo. Para consubstanciar esse pensamento a idéia defendida por Von Ihering, de que “O direito no sentido objetivo é o conjunto de princípios jurídicos aplicados pelo Estado à ordem legal da vida” (IHERING,2009, p.39), é bastante pertinente, atinando que de nada vale o Direito se não for utilizado para promover uma vida mais digna, justa e plena aos homens.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto a vedação constitucional supracitada deve sofrer mitigação, como já vem sofrendo, frente a outros princípios constitucionais, por uma imposição das complexas problemáticas sociais advindas das constantes e rápidas mudanças que a sociedade contemporânea vêm sofrendo.
Assim o que preleciona a Constituição Federal de 1988, tanto o que é asseverado por alguns doutrinadores, deve ser relativizado por obstar a efetivação de normas pétreas da Lei Maior, e por ser uma afronta a bem estar da coletividade
Licenciado em História – UNEB, professor de História, Acadêmico de Direito na Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
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