Resumo: O artigo tem por objetivo analisar os principais aspectos civis sobre os direitos à privacidade e a intimidade. Para tanto, busca-se conceituar cada um dos institutos jurídicos, bem como analisar a legislação pátria à luz dos aspectos sócio-culturais contemporâneo, a fim de demonstrar a necessidade de aprimoramento dos dispositivos normativos vigentes.[1]
Palavras Chaves: Intimidade. Privacidade. Sossego. Esquecimento. Direito Civil.
Abstract: The article aims to analyze the main aspects of civil rights to privacy and intimacy. Therefore, it is intended to conceptualize each of the legal institutes and analyze the Brazilian legislation in the light of socio-cultural aspects of contemporary, to demonstrate the need to improve the existing regulatory provisions.
Keywords: Intimacy. Privacy. Quiet. Forgetfulness. Civil Law.
Sumário: Introdução. 1. Histórico Legal. 2. Privacidade, Intimidade e Sossego como Diretos da Personalidade. 3. Diferenciação entre Privacidade e Intimidade. 3.1. A questão das Biografias. 4. Direito ao Sossego. 5. Direito ao Esquecimento. Conclusão. Bibliografia.
Introdução
Desde a publicação do romance "1984", do escritor e jornalista inglês George Orwell, em junho de 1949, questões como os limites da privacidade e da intimidade passaram a ser debatidas com maior ênfase perante a sociedade contemporânea.
Passados 66 anos desde então, em que pese ainda não tenhamos um "Grande Irmão", que tudo sabe e tudo vê, vivemos em um contexto social onde cada vez mais a privacidade e a intimidade são mitigadas, em uma incessante busca em ver e ser visto.
Assim, considerando certos comportamentos e acontecimentos recorrentes, é trazido à baila novamente o debate sobre até onde iriam os limites da privacidade e da intimidade de cada indivíduo.
A todo o momento nos deparamos com um sem fim de reality shows, cujo mais famoso dele se baseia, ironicamente, no romance supracitado do autor inglês. Em tais programas de televisão, em busca de um prêmio, sucesso e fama, pessoas têm sua vida devassada, a ponto de terem sua intimidade e sua privacidade expostas para qualquer um quiser "dar uma espiadinha".
Por outro lado, aqueles cuja fama já foi alcançada, lutam para manter um mínimo de privacidade e intimidade para conviverem tranquilamente com aqueles que os cercam. Não são raros os casos de celebridades que são diariamente perseguidas por paparazzi e têm até os mais insignificantes momentos expostos pela mídia e vendidos para quem queira pagar por eles.
Nesta mesma esteira, a questão das biografias não autorizadas tem reforçado a discussão sobre a necessidade de melhor regulamentação sobre o tema e os limites que devem ser impostos à liberdade de expressão. Em suma, trata-se de assunto bastante atual, cuja rediscussão se faz necessária para sua compreensão em face do contexto em que nos encontramos.
Destarte, pretendemos analisar os conceitos clássicos de privacidade e intimidade à luz do direito civil contemporâneo e do atual contexto social, vislumbrando todos os limites e possibilidades analisadas caso a caso.
1. Histórico Legal
O ser humano é curioso por natureza. A intensa busca pelo saber e pelo conhecimento daquilo que nos cerca evidencia tal característica. Contudo, a curiosidade humana vai muito além da busca por respostas e pelos desígnios da vida. O que muitas vezes nos atiça é a informação sobre a vida alheia, como "o que fulano fez ou beltrano deixou de fazer" e assim por diante. Não nos contentamos simplesmente em saber, necessitamos compartilhar e nos vangloriar da importância da informação que obtemos.
Neste contexto, a fim de barrar a especulação sobre a vida alheia, paulatinamente surgiram os conceitos de privacidade e intimidade, conforme a sociedade se desenvolvia.
As primeiras noções sobre privacidade remontam à idade média e ao feudalismo. O suserano, ao reservar parte da terra para seu uso exclusivo e privativo, além de demonstrar seu poder, impunha limites aos seus servos, de modo que poderia usufruir daquele espaço da maneira que bem entendesse e sem ser incomodado.
Tal conceito passou a evoluir, ainda que lentamente, sob a noção burguesa de propriedade privada oriunda do século XVIII, mas sem que ainda houvesse uma noção clara dos conceitos de intimidade e privacidade.
Contudo, ao final do século XIX e nos primeiros anos do século XX, o tema ganhou destaque através de dois juristas norte-americanos, Samuel Warren e Louis Brandeis, que em 15 de dezembro de 1890, publicaram na Harvard Law Review um estudo pioneiro e aprofundado abordando seus principais aspectos.
A principal razão para o desenvolvimento do estudo foi uma série de ataques midiáticos sofridos pela esposa de Samuel Warren, o qual, para proteger a sua intimidade e privacidade de sua consorte, desenvolveu as bases que serviriam de apoio para estudos futuros sobre o tema.
A proposta dos autores era bem clara, na medida em que pretendiam analisar se a norma então vigente estava, principiologicamente, apta a amparar o direito à privacidade do indivíduo e, em caso afirmativo, qual a sua devida extensão.[2]
À época da publicação, os conceitos de propriedade física e intelectual já estavam assentados na doutrina norte-americana. Assim, os autores se aproveitam deste fato para criarem uma analogia com o direito de propriedade, porém, ressaltando de que não se tratava de um direito patrimonial, e sim de um direito da personalidade.[3]
A partir desta premissa, os autores desenvolveram os conceitos do "right to be alone" e do "right to privacy", os quais prescrevem um direito personalíssimo do ser humano poder estar só quando quiser, sem ser incomodado e ter seu espaço físico e mental respeitado.
No contexto de Warren e Brandeis, que se encontravam sob a égide da common law, não havia uma lei clara sobre o assunto, apenas julgados esparsos que não tratavam a questão de forma definitiva. Assim, propuseram a criação de uma norma com as seguintes diretrizes:
1) O direito a privacidade não deveria proibir qualquer publicação em que houvesse interesse público ou geral;
2) O direito a privacidade não deveria proibir a comunicação de qualquer fato, pensamento em sua natureza privada, quando a publicação fosse feita sob circunstâncias as quais legalmente não se verificasse calúnia e difamação;
3) A lei não deveria conceder invasão de privacidade em caso de publicação oral, a não ser que houvesse previsão especial para tal;
4) O direito a privacidade deveria cessar uma vez que a publicação dos fatos se deu pelo indivíduo, com ou sem seu consentimento expresso;
5) A verdade sobre assunto publicado não deveria dispor de defesa[4];
6) A ausência de malícia do agente que publicasse o fato não deveria servir de pretexto para sua defesa;
As referidas diretiva seriam, à época da publicação do referendado artigo, condizentes com seu tempo. Contudo, a noção de privacidade ainda estava demasiadamente atrelada à noção de propriedade. Entendia-se majoritariamente que "não se entra na propriedade, não se entra na vida", devendo existir um dever de abstenção geral tal qual existem nos direitos reais.
O passar dos anos e o desenvolvimento da tecnologia seriam cruciais para esta mudança de paradigma. O final do século XX e o início do século XXI trouxeram à tona ferramentas que tem como único fim a proliferação da informação, das quais certamente a que mais se destaca é a internet.
Warren e Bordais, ainda com todo o pioneirismo de seu estudo, jamais poderiam imaginar que, mesmo desenvolvendo as premissas básicas dos termos legais de privacidade e intimidade, tais questões seriam tão recorrentes na sociedade que se desenvolveu posteriormente.
O advento da internet tornou a informação instantânea. A mensagem que demorava meses cruzando os oceanos agora chega, instantaneamente, ao conhecimento das pessoas através de um simples apertar de botões. Mais do que mensagens, todos possuem acesso a ágeis câmeras, que publicam imagens e fotografias a todo instante nas mais variadas redes sociais.
Em suma, a sociedade atual se tornou invasiva e, em certos casos, desrespeitosa. Tal postura é considerada comum e muitas vezes sequer passível de sanção.
Por isso, percebe-se que a privacidade e intimidade, apesar de há muito presentes no ordenamento jurídico, ainda carecem de regulamentação condizente com a importância e com o volume de informações que circula entre as pessoas e os meios de comunicação.
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso X, preceitua que são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.
O Código Civil de 2002, em seu artigo 21, também aborda a questão ao dispor que a vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.
O que se percebe é que são instrumentos que basicamente se repetem. Apesar de fundamentais, ainda há a necessidade de maior regulamentação do tema. São muitas as questões que diariamente surgem e que não encontram qualquer respaldo legal.
A promulgação da Lei 12.737/12 – Lei Carolina Dieckmann – embora tenha como escopo a esfera penal, já trouxe avanços à proteção da intimidade e da privacidade ao dar nova redação ao artigo 154-A do Código Penal. O dispositivo criminal se preocupa em punir com penas que vão de reclusão à detenção aos que através de meios cibernéticos invadirem, comercializarem ou disseminarem fatos inerentes à privacidade de terceiros.
Nesta mesma toada, a Lei nº 12.965/14 – Marco Civil da Internet – também incide sobre o tema.
Percebe-se que ao editar seu projeto, houve forte preocupação do legislador em preservar a intimidade e a privacidade dos usuários da internet.
O artigo 8º do da lei é cristalino ao dispor que a garantia do direito à privacidade nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à Internet.
Para tanto, o legislador se justifica nas razões do projeto:
"Para o Poder Judiciário, a ausência de definição legal específica, em face da realidade diversificada das relações virtuais, tem gerado decisões judiciais conflitantes, e mesmo contraditórias. Não raro, controvérsias simples sobre responsabilidade civil obtêm respostas que, embora direcionadas a assegurar a devida reparação de direitos individuais, podem, em razão das peculiaridades da Internet, colocar em risco as garantias constitucionais de privacidade e liberdade de expressão de toda a sociedade. […] No terceiro capítulo, ao tratar da provisão de conexão e de aplicações de internet, o anteprojeto versa sobre as questões como: o tráfego de dados, a guarda de registros de conexão à Internet, a guarda de registro de acesso a aplicações na rede, a responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros e a requisição judicial de registros. As opções adotadas privilegiam a responsabilização subjetiva, como forma de preservar as conquistas para a liberdade de expressão decorrentes da chamada Web 2.0, que se caracteriza pela ampla liberdade de produção de conteúdo pelos próprios usuários, sem a necessidade de aprovação prévia pelos intermediários. A norma mira os usos legítimos, protegendo a privacidade dos usuários e a liberdade de expressão, adotando como pressuposto o princípio da presunção de inocência, tratando os abusos como eventos excepcionais".
Como se vê, há um forte avanço legislativo no que concerne à proteção da privacidade e à intimidade.
Tal regulamentação, todavia, não pode ficar adstrita somente à internet. A questão das biografias, bem como outros fatos cotidianos recorrentes, não é abrangida pelas recém editadas normas. Há uma clara necessidade de aperfeiçoamento do tímido artigo 21 do Código Civil ou, eventualmente, edição de uma lei específica, a fim de abarcar todas as situações que, diariamente, surgem em face do tema em apreço.
2. Privacidade, Intimidade e Sossego como Direitos da Personalidade
Aos olhos daqueles que não são versados nas letras jurídicas, os conceitos de privacidade, intimidade e sossego podem parecer sinônimos e não possuir distinção entre si.
Diferentemente do que se pensa, os referidos conceitos não se confundem e possuem clara disparidade. Tal distinção é notada na medida em que se analisa o grau de proteção e exposição que a pessoa dá para sua vida pessoal.
Neste tocante, importante destacar a existência de posições conflitantes sobre o fato da privacidade, da intimidade e do sossego integrarem, ou não, os direitos da personalidade.
Roxana Brasileiro Cardoso de Morais se posiciona no sentido de que a privacidade integra, sim, o rol de direitos da personalidade, tendo em vista ser reconhecida a necessidade de proteger a esfera privada do sujeito em face da intromissão e curiosidade alheias.[5]
Francisco Eduardo Loureiro, ao analisar o direito ao sossego entende que este também estaria integrado aos direitos da personalidade, inclusive por força de norma constitucional, não abrangendo somente sua perspectiva física, mas, também o seu aspecto psíquico do indivíduo, que lhe é indissociável das funções intermédias do corpo.[6]
Massimo Bianca, escorado em Adriano De Cupis, mantém o mesmo tom dos supramencionados doutrinadores brasileiros, afirmando, até mesmo, que a noção geral de direito à privacidade se define como a não interferência alheia na vida do homem, o que traz clara correlação aos direito se sigilo e imagem.[7]
Em contraste aos pensamentos expostos, Pedro Frederico Caldas adota posição segundo a qual a privacidade e intimidade não integrariam os direitos da personalidade, se configurando direitos autônomos, pois o exame de suas características revela traços distintivos se comparados com os diretos ta personalidade propriamente ditos.[8]
O que se percebe é que a doutrina majoritária se assenta no sentido de considerar que os direitos à privacidade, à intimidade e ao sossego, de fato integram os direitos da personalidade.
Como se mostrou, tal limiar é tênue. O entendimento de que se tratam em realidade de direitos autônomos à privacidade parece um tanto quanto plausível. De fato, é possível que se viole a privacidade de alguém sem que este tenha vida, honra e imagem violadas.
Contudo, é preciso ter em mente que quando se aborda os direitos da personalidade, não adentramos em uma seara de numerus clausus trazidos pela norma. Adotamos, assim, a posição majoritária, uma vez que tanto doutrina e jurisprudência, com base na não taxatividade da lei, entendem que tais direitos se enquadram nas prerrogativas dos direitos da personalidade.
3. Diferenciação entre a Privacidade e Intimidade
Isto posto, o entendimento predominante na melhor doutrina aduz que a diferenciação entre intimidade, privacidade e publicidade se daria na medida em que são delimitados espaços onde incidem cada um dos conceitos, os quais possuem diferentes esferas de abrangência dentro dos fatos que são inerentes à vida do ser humano.
Maria Helena Cachapuz, escorada em Ludwig Raiser, afirma que a diversidade de meios de manifestação da vida civil – e, portanto, do Direito Privado – configura-se pela perspectiva do emprego de seus institutos jurídicos segundo o grau de publicismo ou de privatismo que se faz reconhecido a cada hipótese concretamente considerada.[9]
Nas palavras da referida autora, então existem três camadas que correspondem às esferas de publicidade dos fatos da vida de cada indivíduo[10]:
"A partir da decisão proferida no caso Elfes[11], o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha opta, formalmente, pela delimitação de três esferas distintas à intensidade de proteção exigida pelo Estado na tutela da personalidade. Há, assim, uma esfera mais interna e com proteção mais intensa, em que se faz abrangida a situação mais íntima e reservada do individuo; uma esfera privada ampla, que, segundo Robert Alexy, 'abarca al ámbito privado en la medida em que no pertenezca a la esfera más interna'; e uma esfera social, reservada a tudo que não esteja afeto à esfera privada ampla".[12]
A autora se apóia em Alexy para sustentar que o que torna relevante a separação das categorias por esferas é a possibilidade, a priori, de serem estabelecidos critérios jurídicos específicos para a determinação de maior ou menor intensidade de proteção jurídica a determinada situação concreta, relacionada a direitos fundamentais – e, de forma mais específica, a direitos fundamentais relacionados à personalidade.
Roxana Brasileiro Cardoso Moraes adota posição semelhante para distinguir privacidade de intimidade. Segundo alega, a cisão do conceito entre vida privada em direito à privacidade e direito a intimidade não é, propriamente, uma distinção conceitual, mas uma questão de abrangência. Renan Lotufo, citado pela autora, afirma que "o campo da intimidade é mais restrito que o da privacidade".[13]
O que se percebe de fato é que, mais do que uma questão de abrangência, trata-se da proteção que a pessoa dá aos fatos que lhe são afeitos.
A intimidade será aquilo que a pessoa tem de mais pessoal, que somente ela e, eventualmente, as pessoas realmente muito próximas teriam condições de saber, e.g., anomalias físicas não aparentes ou mesmo sentimentos profundos não expostos para qualquer um.
A privacidade, por seu turno, terá como base ainda a proximidade do sujeito, porém o alcance da informação por certo será maior. Neste caso, amigos e colegas, ainda que não tão próximos e afeitos, possuem condição de ter ciência de determinada informação. Não se trata de informação pública, mas também não chega ao ponto de ser algo que o sujeito entenda como algo não possa ser divulgado para um determinado rol de pessoas.
Por fim, temos aquilo que é público e notório. Trata-se da informação que, se não é sabida por todas, pode ser acessada por qualquer um, independentemente da esfera de relacionamento que possua com a determinada pessoa.
Percebe-se que a referida classificação se faz necessária na medida em que terceiros rompem as fronteiras da intimidade e da privacidade, tornando públicos fatos que pessoais que jamais deveriam ser de conhecimento externo.
Assim sendo, feitos tais esclarecimentos sobre cada um dos limites da intimidade, privacidade e publicidade dos fatos pessoais de um indivíduo, há de se verificar de que forma e em quais situações tais barreiras são rompidas e, eventualmente, passiveis de sansão legal.
O binômio privacidade/intimidade traz consigo implicitamente a prerrogativa de permitir ao sujeito guardar para si e longe da ciência de terceiros suas opiniões, orientações, apelidos e fatos de sua vida cotidiana que sejam apenas de seu interesse.
Há também de se ressaltar que não se trata apenas da prerrogativa que o sujeito tem de guardar para si aquilo que se refere ao seu modo de vida, mas também que este fato não seja exposto por quem, ainda que licitamente, lhe tenha tomado ciência.
Segundo Roxana Brasileiro Cardoso de Moraes[14], a privacidade pode ser violada através de três maneiras:
a) Quando há acesso não consentido em relação à vida privada de alguém. Neste caso, o agente violador não faz parte do rol de pessoas próximas, mas adentra a privacidade do sujeito sem a sua permissão. Temos como exemplo o caso de detetives particulares que, em busca de informações, devassam a vida alheia sem, necessariamente, divulgar os fatos. (há de se salientar também que há violação ao sossego, conceito que será explorado oportunamente);
b) Quando o acesso às informações da vida privada de uma pessoa for autorizado, mas a divulgação dessas informações não for consentida a terceiros. Tomemos como exemplo o caso do médico que torna público o fato de determinada pessoa possuir doença ou anomalia não aparente;
c) Quando a intromissão não foi consentida e, além disso, houve divulgação das informações obtidas ilicitamente. Neste caso, temos os tão recorrentes paparazzi que, a todo o momento, fotografam e divulgam imagens de celebridades nos mais variados momentos cotidianos.
Neste tocante, importante ressaltar, conforme já se anteriormente, que a privacidade não mais está adstrita a noção de espaço privado. O entendimento moderno é que há o dever de respeito à privacidade e à intimidade mesmo que o sujeito se encontre em local público.
Tomemos como exemplo um apaixonado casal que troca juras de amor em um banco de praça. Por óbvio, ambos se encontram em um espaço público, cuja presença pode ser notada por qualquer um que ali passar.
Contudo, tal fato não dá a qualquer outro indivíduo a prerrogativa de que, sob a premissa de se tratar de recinto público, sorrateiramente, vir a fotografar o casal, ouvir, gravar ou divulgar o diálogo que ocorre.
A privacidade está além das barreiras físicas. Não se associa o respeito à privacidade, à existência de isolamento corporal. O conceito está de fato associado ao espaço moral, isto é, a abertura que um determinado sujeito dá para que outros venham a interagir com ele e, conseqüentemente, ter ciência daquilo que acontece em sua vida.
O entendimento exarado no parágrafo acima é pacífico quando a referência são pessoas anônimas e cujas vidas não despertam o interesse dos demais. Entretanto, o debate ganha novos contornos quando o ponto de referência passa a ser alguém famoso ou uma celebridade.
A fama tem como condição primordial o fato de alguém se destacar na multidão, atraindo para si todos os olhares e ser o centro das atenções. Nem sempre desejada, fato é que a notoriedade traz consigo algumas conseqüências das quais não é possível se desvencilhar.
Assim, não é possível afirmar que uma celebridade possua o mesmo grau de privacidade que outro indivíduo qualquer possui. Isto não quer dizer que um famoso não possui o direito de ter sua vida privada e sua intimidade respeitadas. Por certo que o tem, mas o possui de maneira mitigada, tendo em vista que, de uma maneira ou de outra, por onde passa, tende a ser o centro das atenções.
De se observar que são comuns as manchetes que mostram os célebres em momentos do cotidiano ou até mesmo realizando tarefas rotineiras, como ir ao banco ou caminhar pela praia. Todavia, em que pese chamem a atenção, isto não dá para ninguém a prerrogativa, e.g., de se sentar ao lado de uma celebridade em um restaurante, com o único fim de escutar e divulgar o conteúdo de sua conversa.
Até mesmo a publicação de fotografias de famosos em momentos reservados pode configurar violação à privacidade e à intimidade. Como se disse, o fato de alguém ser famoso não quer dizer que ele tenha abdicado de seus momentos privativos. O que deve se ter em mente é que este tipo de pessoa, por sua condição, não terá a mesma esfera de proteção que uma pessoa anônima possui.
Bruno Lewick, ao comentar o famigerado caso da modelo Daniella Cicarelli, a qual teria protagonizado cenas de sexo em uma praia espanhola, tendo sido flagrada por um paparazzo que se encontrava longe de sua vista, aduz que não podem as pessoas presumirem que estão sob constante vigilância alheia, mesmo estando em locais públicos, assumindo os "riscos" pelos seus atos.[15]
A crítica tecida pelo autor é lúcida e certeira. Não há como vislumbrar a aplicação do sofisma relatado em julgamento como o entendimento que venha a prevalecer como voz uníssona para a resolução de casos similares.
A privacidade é um direito constitucionalmente assegurado a todos, independente da condição social, credo, religião ou da fama que tenha alçado, seja lá por quais razões.
O fato de a referida modelo ser famosa e estar em um local público não lhe retira a prerrogativa de ter seu espaço respeitado e não ter a intimidade invadida. Obviamente, ser uma pessoa célebre naturalmente fará com que atraia todos os olhares, de modo que a proteção a sua privacidade – única e exclusivamente por esta razão – encontre-se mitigada, o que não quer dizer que esta esteja extinta.
Neste tocante, importante questionar que, se o casal flagrado trocando carícias na praia tivesse ciência de que estava sendo filmado e que, o dito vídeo seria rapidamente disseminado, teriam os protagonistas mantido a mesma postura e praticado os mesmos atos?
Evidentemente que a resposta é não. A não ser que o casal fosse praticante de hábitos exibicionistas (o que não se demonstrou, pelos fatos que se sucederam), obviamente que em sã consciência não consentiriam com a efetivação da gravação e, muito menos, com a exibição do conteúdo para quem quisesse vê-lo a qualquer tempo e a qualquer lugar.
Houve no caso em tela uma gravíssima violação de privacidade. Nada justifica a gravação e a divulgação de um vídeo cujo conteúdo é extremamente constrangedor sob as premissas de que "o casal estava em um lugar público" e que "se queriam privacidade, deveriam ter feito isso encalacrados em quatro paredes".
Assim, postas tais falácias fora do debate jurídico acerca do caso, é fácil identificar que houve patente violação à privacidade do casal e que, como qualquer outro cidadão, tem o direito de ter seu espaço físico, moral e psíquico respeitado, independentemente da fama ao qual é alçado.
3.1. A Questão das Biografias
Apesar de rotineiros, não são os flagras jornalísticos que têm despertado o debate acerca da privacidade e da intimidade de famosos e celebridades. A recorrente questão das biografias não autorizadas ganhou novos contornos e emergiu como cerne do debate.
Há quem diga que uma biografia autorizada jamais será uma boa biografia.
Por isso, afirma-se que, ante aos interesses pessoais do biografado, a obra não retrataria a realidade dos fatos, tornando-a não um relato de uma vida, mas uma sucessão de fatos previamente editados.
Recentemente, um debate acalorado sobre a edição e censura recebeu destaque nos jornais e nas mais variadas mídias sociais. A questão, em suma, versava sobre a discussão em torno da possibilidade de veiculação de obras biográficas sem a autorização do agente biografado.
A projeção do debate se deu em função da atuação do Grupo Procure Saber, que reúne artistas favoráveis à autorização prévia das biografias, sendo integrado por renomados artistas brasileiros como Roberto Carlos[16], Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Djavan.
Assim, formou-se um embate entre aqueles que, sob a premissa da defesa da liberdade de imprensa e de livre manifestação defendem a publicação de biografias sem prévia autorização, por se tratarem de fatos históricos e jornalísticos, contra, de outro lado, os artistas biografados, que defendem a necessidade de proteção da privacidade e da intimidade de cada um e daqueles que os cercam.
Em países como os Estados Unidos e na Europa, a questão se encontra superada. Sob tais jurisdições diariamente são publicadas obras biográficas sem que tenha havido qualquer censura prévia pelo agente biografado. Estas obras, que nem sempre correspondem à realidade dos fatos, são comercializadas sem restrições por livrarias e servem de base para outras biografias e até mesmo reproduções artísticas em outras mídias.
Manuel Alceu Affonso Ferreira, em artigo publicado em periódico jurídico on line, mostrou-se favorável a possibilidade de publicação de biografia sem autorização prévia do biografado:
"A tarefa do verdadeiro biógrafo não é a de defender, perante tribunais eclesiásticos, um munus sanctificandi que conduza à beatificação daquele cuja vida retrata. Nesse gênero literário, o autor lança-se à narrativa factual e contextual do seu investigado, perscrutando-lhe as grandezas e as fraquezas, os méritos e os defeitos, bem assim as atitudes que, a despeito da valoração favorável ou negativa, servem para comprovar a congênita falibilidade subjacente à sua condição humana". [17]
Para o referido autor, uma biografia seria um relato histórico e jornalístico, no qual deve haver apenas o compromisso com a realidade e com a verdade dos fatos. Não há de se falar em exposição de ponto de vista ou julgamento sobre aquilo que se relata, apenas deve se mostrado aquilo que aconteceu e da forma mais fiel possível.[18]
A jurisprudência também tem se posicionado no mesmo sentido. Em março de 2015, foi proferida decisão negando indenização a uma mulher citada como amante de Assis Chateaubriand no livro "Chatô, o Rei do Brasil".
A autora da ação aduziu que o livro ofendeu sua imagem, honra, boa fama e respeitabilidade, ao afirmar que ela teria sido amante do referido jornalista e ao publicar, sem autorização, sua fotografia.
Assim, pleiteou o recolhimento e a destruição de todos os exemplares da obra colocados no mercado, com proibição de nova edição, impressão, reimpressão, publicação, divulgação e distribuição e com condenação da editora ao pagamento de indenização por danos materiais.
Ao se julgar a ação, ainda em primeiro grau, entendeu-se que "existe um legítimo interesse público de natureza cultural em conhecer profundamente a vida de pessoas públicas e notórias, tal como foi Assis Chateaubriand"[19], razão pela qual teve a autora negado provimento aos seus pedidos.
Questão tangente a esta chegou ao Supremo Tribunal Federal através da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4815/DF, proposta pela Associação Nacional dos Editores de Livros, cuja relatoria ficou a cargo da Ministra Carmen Lúcia. O objeto do pleito teve por fim o reconhecimento de que o ordenamento jurídico brasileiro (essencialmente os artigos 20 e 21 do Código Civil) não proíbe a veiculação de biografias sem prévia autorização da pessoa biografada.
Em julgamento realizado em junho de 2015, prevaleceu o entendimento de que é inexigível qualquer autorização prévia do biografado para a publicação de conteúdo que verse sobre sua vida – privada ou não.
Segundo a relatora, a privacidade e a intimidada de são de fato invioláveis, o que, contudo, não implica em necessária censura anterior pelo agente biografado quanto ao teor da obra publicada. Assim, os artigos 20 e 21 do Código Civil devem ser interpretados "em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível o consentimento de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo por igual desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas)".
Em que pese as opiniões acima expostas, ousamos discordar de tal entendimento.
Conforme já exarado anteriormente, entendemos de que o fato de alguém ser ou não conhecido não pode ser utilizado como premissa para que seja violada sua privacidade. Trata-se de direito constitucionalmente assegurado, respaldado pelo código civil e que visa proteger a privacidade de todos, independente de cor, classe, credo ou condição social.
Ademais, é falacioso o argumento de que haveria cerceamento à liberdade de expressão e de imprensa. É preciso ter muita parcimônia antes que sejam invocadas tais violações, uma vez que é questionável qual seria o interesse social que a população teria em saber sobre a vida íntima e privada de uma determinada celebridade.
Parece-nos totalmente irrelevante que a sociedade tenha conhecimento sobre quais eram os hábitos e manias de um ator ou quais foram as esposas e amantes de um cantor. Não há nada de histórico ou jornalístico em tais acontecimentos, há apenas um interesse geral das pessoas em satisfazer a sua curiosidade sobre determinada pessoa.
Nunca é bastante repisar, curiosidade não é sinônimo de interesse social.
O artista atinge a fama, o sucesso e seu status social pelo que faz nos palcos, no cinema e na televisão. Se não fosse por isso, seria como um anônimo qualquer. O fato das pessoas admirarem seu trabalho não lhes dá o direito de ter acesso a todo o tipo de informação sobre a vida pessoal de seu ídolo.
Assim, as informações veiculadas na mídia sobre um sobre determinado artista, por exemplo, devem ser restritas somente àquilo que diga respeito a sua atividade profissional ou sobre aquilo que ele mesmo, por opção própria, tenha optado em expor ao público.
Não há o menor sentido que alguém abra mão de sua privacidade somente porque atingiu determinado grau de notoriedade.
Ademais, outro ponto a ser destacado sobre uma biografia, que embora tenha um agente central, não dirá respeito apenas sobre uma pessoa. Se o fim da obra é relatar os fatos pessoais de alguém, certamente serão mencionados todos os seus relacionamento ocorridos durante sua vida – tal qual o caso da suposta amante de Assis Chateoubriand.
Assim, ao se escrever este tipo de obra, impossível que não se esbarre na privacidade de terceiros, que nem sempre querem ter sua vida exposta ao público geral.
O fato de uma pessoa ter se relacionado com determinada celebridade não lhe impõe que parte de sua vida seja mostrada à sociedade, muito menos faz com que sua privacidade possa ser invadida.
Não há nada de histórico ou de jornalístico em publicar se fulano ou beltrano um dia manteve relacionamento com alguém. Qualquer posição em sentido contrário tende a ser vil não somente contra a privacidade do biografado, mas também com todos aqueles que um dia este se relacionou, terceiros aos quais, mais do que qualquer um, não possuem o menor interesse na divulgação de seus fatos pessoais.
Contudo, temos ciência de que não se trata de questão que penda somente para um lado.
O principal argumento de grupos favoráveis a ampla divulgação de biografias reside na defesa do jornalismo e da liberdade impressa e expressão. Ao sopesarmos os valores contidos nos princípios em debate, parece-nos que o direito de falar sobre alguém não se sobrepõe ao direito deste mesmo indivíduo preservar para si aqueles fatos que lhes são mais privativos e íntimos.
Não nos afigura possível que o direito à informação seja capaz de devassar a vida pessoal de um indivíduo sob a rasa argumentação de que sua notoriedade lhe derroga as prerrogativas de privacidade e de intimidade. Firmar tal entendimento é o primeiro passo para a possibilidade violação da privacidade e da intimidade dos ditos "não famosos", o que, além de ser frontal à Constituição Federal, gera insegurança e torna a sociedade refém se sua própria curiosidade.
Ademais, como exposto previamente, é um tanto quanto questionável a qualificação deste tipo de informação como "jornalística" ou "com relevante interesse social'. Trata-se de mera notícia especulativa, com único fim de satisfazer a curiosidade e o interesse alheio.
Em suma, trata-se de debate cheio de meandros e nuances, os quais ainda carecem de muita discussão. O fato é que a privacidade não deve ser invadida, independente sobre quem se fala. Fofocas e curiosidades não são fatos históricos e nem jornalísticos, são apenas fofocas e curiosidades.
4. Do Direito ao Sossego
Por fim, conforme mencionado previamente, temos o direito ao sossego, também constitucionalmente assegurado e prerrogativa básica de todo cidadão.
Trata-se de direito da personalidade, na medida em que diz respeitos ao desenvolvimento da saúde física e psicológica de um indivíduo.[20]
Como se assevera, o direito ao sossego está diretamente relacionado ao direito à integridade moral, ao direito à intimidade e às prerrogativas da vida privada. Assim, é plausível o entendimento de que havendo ofensa a qualquer uma destas prerrogativas, por via indireta, haverá violação ao direito ao sossego.
O limiar entre o sossego e o binômio privacidade/intimidade é tênue e, muitas vezes, se confunde. Contudo, enquanto este último se refere aos acontecimentos e fatos relacionados à vida pessoal, o sossego se relaciona muito mais ao direito de não ser incomodado, o direito de estar só.
O sossego, então, pode ser examinado como o direito de controlar o fluxo de informações e sensações que um determinado indivíduo tem sobre si, respeitando-se todas as prerrogativas de autonomia da vontade do sujeito.
O conceito se relaciona à possibilidade de o agente controlar o êxodo de informações e sensações sobre ele mesmo, decidindo quando e de qual maneira tais fatos são expostos para terceiros. Tal controle, embora não seja ilimitado, diz respeito tanto aos meios físicos e presenciais de transmissão, como também quanto aos distanciais e eletrônicos.
Do mesmo modo que a privacidade e a intimidade, o direito ao sossego não se limita ao espaço privado, muito embora seja dentro da privacidade do lar que tal prerrogativa é mais claramente perceptível. Nesta senda, haverá ofenda ao sossego, ainda que indiretamente, sempre que for violado o direito do agente em estar só e não ser incomodado, seja no ambiente de trabalho, em local público ou em qualquer outro recinto que se encontre. O que se preza ao resguardar o sossego é a proteção ao estado de descanso, de repouso e bem estar físico.
Ainda que se trate de prerrogativa essencial para proteção da personalidade, o direito ao sossego não é infinito, podendo ser limitado caso entre em conflito com os demais direitos da personalidade.
Segundo Francisco Eduardo Loureiro o conflito deverá ser analisado casuisticamente, inexistindo fórmula ou regra exata para solução da contenda.[21]
Dentro do Código Civil, o direito ao sossego é tutelado através do artigo 1.277, o qual arrazoa que o proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.
A jurisprudência é pacífica no sentido de que ninguém é obrigado a suportar a perturbação de vizinho. Porém, como já explicado, é necessário que se haja bom senso, tendo em vista que o direito ao sossego não é absoluto, uma vez que tudo aquilo que faz parte da vida cotidiana é permitido[22].
É possível observar também, como já salientado, que não são raras as vezes em que o agente, ao violar o sossego, também viola a intimidade do seu próximo, tendo o judiciário amplamente se manifestado sobre a questão[23].
O direito ao sucesso, em suma, se resume ao direito de estar só e não ser incomodado, com amplo resguardo normativo, doutrinário e jurisprudencial.
Por seu turno, ainda que não se confunda com este conceito, o direito ao esquecimento, tão evocado em tempos de fácil acesso à informação, possui prerrogativas similares, mas com diferenças sensíveis o suficiente para que seja analisado separadamente.
5. Direito ao Esquecimento
Segundo Stefano Rodotà, nem todos os passos de um homem devem segui-lo pelo resto de sua vida.
Surgido dentro dos estudos de direito penal como uma forma de ressocializar antigos presos e reintegrá-los à sociedade, o direito ao esquecimento foi importado para o direito civil como maneira de impedir que fatos pretéritos, notoriamente de conteúdo constrangedor, fossem impedidos de serem trazidos à tona, como forma de resguardar a imagem e abalos ao sujeito.
O direito ao esquecimento parte da premissa que se toda pessoa tem direito a controlar a coleta e uso de seus dados pessoais, deve também ter o direito de impedir que dados de outrora sejam revividos na atualidade, de maneira descontextualizada, gerando-lhe risco considerável.
Contudo, importante é a observação de Anderson Schreiber, para quem o direito ao esquecimento não pretende apagar o passado, mas tão somente discutir o uso dado aos fatos históricos de determinado indivíduo.[24]
Trata-se de debate recente e sobre o qual ainda não foi dado parecer definitivo. Os julgados ainda são imprecisos e claudicantes, não sendo raras as vezes em que casos similares são julgados de maneiras completamente distintas ante à falta de um parâmetro ou critério especifico para aplicação do direito ao esquecimento.
Deste modo, o exercício do direito ao esquecimento impõe a necessidade de ponderação com o exercício de outros direitos (tal qual o de liberdade de imprensa e de informação), sendo patente que tal avaliação nem sempre penderá em favor do esquecimento. Pode-se observar, e.g., dois casos em que um mesmo julgador, por do conflito de valores, aplica de maneiras distintas as prerrogativas do direito ao esquecimento.
No primeiro caso[25], escorado no Enunciado nº 531 da VI Jornada de Direito Civil do CJF, no qual se preconizou que a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento, reconheceu-se que as vítimas de crimes e seus familiares têm direito ao esquecimento, se assim desejarem, consistente em não se submeterem a desnecessárias lembranças de fatos passados que lhes causaram, por si, inesquecíveis feridas.
Contudo, foi decidido que exibição não autorizada de uma única imagem da vítima de crime amplamente noticiado à época dos fatos não gera, por si só, direito de compensação por danos morais aos seus familiares. Segundo o magistrado, deve-se analisar qual o cerne da publicação: se o fato é o foco da publicação ou se é mera menção em publicação cujo ponto central é outro completamente diferente.
No segundo caso[26], por sua vez, foi adotado posicionamento no sentido de que gera dano moral a veiculação de programa televisivo sobre fatos ocorridos há longa data, com ostensiva identificação de pessoa que tenha sido investigada, denunciada e, posteriormente, inocentada em processo criminal.
Segundo o magistrado, "se os condenados que já cumpriram a pena têm direito ao sigilo da folha de antecedentes – assim também a exclusão dos registros da condenação no Instituto de Identificação –, por maiores e melhores razões aqueles que foram absolvidos não podem permanecer com esse estigma, conferindo-lhes a lei o mesmo direito de serem esquecidos".
Da leitura dos referidos julgados extrai-se a conclusão de que é preciso analisar a questão casuisticamente, levando-se em contra a relevância informativo-social contida na veiculação da notícia, de maneira a se ponderar se o reavivamento dos fatos poderá de alguma maneira acarretar prejuízos ao agente envolvido. Não se trata de questão simples e de fácil resolução, sobre a qual deverão ser sempre sopesados os interesses de cada uma das partes no litígio.
De todo o exposto, percebe-se que o tema já não mais é novidade nos círculos de debates jurídicos. Contudo, ante a revolução digital e o recorrente comportamento auto-expositivo da sociedade, a questão sobre os limites da privacidade e da intimidade ainda continua atual e muito espinhosa.
O intenso debate acerca das biografias, bem como os recorrentes casos de invasão de privacidade e de quebra do direito ao sossego deixam claro que a atual composição normativa sobre o tema carece de reestruturação.
A existência de poucos artigos e normas regulando a questão torna evidente a necessidade de mudança. Talvez por se tratar de conceito extremamente arraigado na cultura jurídica pátria, tenha se passado desapercebida a necessidade de edição de novas normas e regulamentações.
É inviável, com uma internet pulsante e com uma comunicação globalizada instantânea, que questões como as abordadas no presente estudo sejam balizadas por alguns poucos dispositivos legais, uma série de princípios com alto caráter subjetivos e tenham parâmetros jurisprudenciais totalmente sem padrão, de modo que é possível encontrarmos julgados para todos os gostos e opiniões.
Conclui-se, portanto, que se trata de tema altamente relevante cujo respaldo legislativo está deveras aquém das reais necessidades da questão. Há urgente necessidade de movimentação legislativa a fim de, senão ampliar as disposições já existentes no atual código Civil, que venha a ser editada norma especifica condizente com a realidade social em que vivemos.
Advogado. Mestrando em Direito Civil PUC-SP
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