Fernando Pagani Possamai – Delegado de Polícia Civil de Santa Catarina; Professor de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense–UNESC, Mestre em Ciências Ambientais pela UNESC; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UNISUL/LFG; Pós-graduado em Gestão de Segurança Pública pela UNIDAVI; Pós-graduado em Direito Penal pela Faculdade Metropolitana de São Paulo -FAMEESP
Criciúma (SC), julho, 2020.
Resumo: O objetivo desta pesquisa foi estudar a redação do art. 156 do Código de Processo Penal (CPP) trazida pela Lei n. 11.690/2008, que trata especialmente sobre a produção antecipada de provas e a atuação de ofício por parte do juiz, trazendo a discussão que se refere à sua constitucionalidade. Uma das principais correntes acerca do assunto é a que aponta pela inconstitucionalidade da referida norma, sob o argumento de que a medida não se compatibiliza com o sistema acusatório em vigor. Em contrapartida está o posicionamento dos que entendem pela legitimidade da atuação do juiz na antecipação da produção de provas, sendo esta, pois, até o momento, a posição do Supremo Tribunal Federal (STF) e Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Palavras-chave: Produção de Provas. Sistema Acusatório. Código de Processo Penal.
Abstract: The aim of this research was to study the wording of art. 156 of the Code of Criminal Procedure (CPP) brought by Law 11.690/2008, which deals especially on the early production of evidence by the judge, bringing the discussion regard to its constitutionality. One of the main currents on the matter is that points the unconstitutionality of that standard, under the argument that the measure is not compatible with the accusatory system in country. In contrast is the position of those who believe in the legitimacy of the actions of the judge in the anticipation of the production of evidence, and this is the position of Federal Supreme Court (STF) and Superior Justice Criminal (STJ) until the present time.
Keywords: Production of Evidence. Accusatory system. Code of Criminal Procedure.
Sumário: Introdução. 1. Apontamentos acerca dos Sistemas Processuais: Acusatório e Inquisitivo. 2. A Discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da Constitucionalidade e adequação ao Sistema Acusatório. Considerações Finais. Referências.
Introdução
A Lei n. 11.690, de 09 de Junho de 2008 alterou dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal (CPP), especialmente os relativos à prova, alterando, entre outros, o art. 156, acrescentando-lhe dois novos incisos autorizando a produção antecipada de provas e a atuação de ofício pelo juiz para realização de diligências em qualquer fase do processo.
De acordo com a nova redação do artigo, ao juiz é conferido os poderes de ordenar, de ofício e mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção de provas, e de determinar no curso da instrução processual, a realização de diligências que julgar necessárias.
Este dispositivo vem causando ainda discussão entre os doutrinadores da área, sendo que a maioria aponta pela sua inconstitucionalidade, tendo em vista o confronto com o sistema acusatório vigorante no país.
Frente a isso, o objetivo da presente pesquisa é analisar as peculiaridades da referida alteração legislativa no tocante à produção de provas por parte do juiz e verificar se os dispositivos em questão afrontam ou não o sistema acusatório supostamente trazido pela Constituição Federal de 1988 (CF/88).
Para cumprir com o objetivo proposto serão abordadas noções introdutórias acerca dos sistemas processuais confrontantes (acusatório e inquisitivo), bem como a problemática em torno da constitucionalidade ou não das normas que autorizam a produção antecipada de provas pelo juiz. Para tanto, serão apresentados diferentes posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito da matéria.
No desenvolvimento do presente trabalho utilizou-se o método dedutivo combinado à pesquisa descritiva, com técnica bibliográfica e a jurisprudencial.
1. Apontamentos acerca dos Sistemas Processuais: Acusatório e Inquisitivo
Historicamente, a aplicação do processo penal ao caso concreto foi concebida por meio de sistemas processuais penais, dos quais se destacam: o sistema acusatório, inquisitivo, misto e antropológico. Os apontamentos acerca desses sistemas ficarão basicamente restritos aos dois primeiros, haja vista estarem relacionados ao tema do presente artigo.
Em suma, o sistema acusatório impõe a imparcialidade do juiz, dividindo as funções de acusar, defender e decidir em três pessoas distintas, devendo haver a observância da missão atribuída a cada um dos sujeitos que desfilam pela relação processual (Naschenweng, 2008).
No sistema (processo) acusatório público há um órgão específico que tem a função exclusiva de realizar a acusação – o Ministério Público, que, no Brasil, tem a obrigação de agir quando se deparar com indícios de crime de ação penal pública e não pode desistir da ação interposta.
Por sua vez o sistema inquisitivo surgiu como uma superação do sistema acusatório e teve como nota essencial a reunião na mesma pessoa as funções de acusar, defender e julgar, tornando a acusação desnecessária, pois o juiz poderia agir de ofício.
A colheita de provas também era atribuída ao juiz, que tinha total liberdade para isso. Tal sistema acabou padecendo, posto que a mistura de funções na pessoa do juiz (julgar, acusar e defender) impedia que fosse feito um julgamento imparcial, além do que, era comum o uso da tortura, procedimento comum e aceito na Idade Média, que posteriormente passou a ser visto como um atentado aos direitos humanos com a ascensão do Movimento Iluminista.
Para Hélio Tornaghi (apud LAGO, 2006), o processo tem de ser “suficientemente enérgico para evitar a impunidade dos criminosos e bastante dúctil para impedir a perseguição e condenação dos inocentes”.
Apesar de não haver previsão expressa na Constituição Federal de 1988 (CF/88), alguns doutrinadores afirmam que o sistema acusatório encontra-se implicitamente reconhecido em vários de seus dispositivos (art. 5º, incisos LV, LVII, LIX, LXXIV, art. 93, inciso IX, art. 129, inciso I, art. 144, §§ 1º e 4º, entre outros). Desta feita, para a grande parte dos estudiosos, a CF/88 adota o sistema acusatório público.
Entretanto, é imperioso advertir que boa parte da legislação penal brasileira apresenta ainda elementos do sistema inquisitivo, sendo constantemente atacados pelos juristas que concebem tais regramentos como inadmissíveis e inconstitucionais (AGUIAR, 2005).
Em contrapartida, acerca do tema, comenta Barros (2008), in verbis:
Como é sabido, o Código de Processo Penal apresenta profundo descompasso com o sistema implantado após 1988, pois a Constituição Federal adotou, de forma explícita, o modelo acusatório, destacando-se a titularidade exclusiva do Ministério Público, para a ação penal pública (CF, art. 129, I).
Como exemplo, tome-se o inquérito policial, o qual possui características inquisitivas: sigilo (art. 20 do CPP) e a não previsão do contraditório. A autoridade judiciária também está autorizada a dar início ao inquérito (art. 5º, inciso II, o CPP), clarividenciando novamente um resquício inquisitivo para boa parte dos estudiosos da área. Outro dispositivo que merece destaque é o art. 28 do CPP, donde o juiz exerce função de fiscal e porque não, de acusador, na ação penal pública.
Também na questão da produção de provas o CPP concentra dispositivos que, supostamente, diferem do modelo proposto pelo sistema acusatório. Dentre eles, ressalte-se o art. 156, que legitima a atuação do juiz e lhe dá ampla liberdade para requisitar a produção de provas; o art. 225 que autoriza, de ofício, a ouvida de testemunha antecipadamente; o art. 366, que autoriza a produção antecipada de provas consideradas urgentes caso o acusado citado por edital deixar de comparecer ou não constituir advogado, e tantos outros dispositivos que não foram aqui comentados, mas que podem ser facilmente encontrados numa breve leitura do CPP.
Entretanto, para alguns doutrinadores tais poderes do juiz, quer seja na produção de provas ou em outros procedimentos instrutórios, compatibiliza-se plenamente com o sistema acusatório adotado no Brasil. É o que se extrai do magistério de Giovanni Leone (apud BASTOS, 2008):
El origen del sistema acusatorio se vincula a una concepción democrática, y tan es así, que fue adoptado por los antiguos regímenes democráticos y republicanos. Carmignani hace notar que el proceso acusatorio tuvo como ‘causa natural e inmediata’ el concepto de que en una democracia ‘la autoridad soberana está en todos los miembros de la organización política’. (…) El advenimiento del Estado moderno y la necesidad cada vez más sentida de ajustar el proceso penal a la concepción del Estado de derecho, debían, efectivamente, llevar a separar en los dos precedentes sistemas la parte buena y todavía vital de la parte no ya aceptable; bosquejándose así, casi automáticamente, el sistema mixto, que se caracteriza por cualquier ‘combinación entre los caracteres del acusatorio y los caracteres del inquisitorio, combinaciones que cabe realizar en los más variados modos’ (…) El sistema mixto, que es el vigente, se construye sobre los principios siguientes: a) el proceso no puede nacer sin una acusación; pero ésta sólo puede provenir de un órgano estatal. Del proceso acusatorio deriva la necesidad de la separación entre juez y acusador (y de ahí el principio ne procedat iudex ex officio); del proceso inquisitorio deriva la atribución del poder de acusación a un órgano estatal (ministerio público); b) el proceso, de ordinario, se despliega a través de dos fases correspondientes a los dos sistemas opuestos: instrucción, inspirada en el proceso inquisitorio (escritura y secreto); el juicio, inspirado, a su vez, en el proceso acusatorio (contradictorio, oralidad y publicidad); c) la selección de las pruebas, la adquisición y la crítica de ellas, quedan a la libre facultad del juez: nos hallamos, pues, en el campo del sistema inquisitorio. [13]
Nucci (2020, p. 358), com relação à produção antecipada de provas por parte do magistrado, assinala que esta se reveste de caráter cautelar, sendo plenamente cabível desde cumpridos certos requisitos, tais como acompanhamento das diligencias por um advogado e garantindo-se ao indiciado ou processado, uma participação ativa. Eis seu magistério:
A produção antecipada da prova é um procedimento incidente, de natureza cautelar, determinado de ofício pelo juiz, a requerimento das partes envolvidas (art. 3º,-B, VIII, do CPP), quando foi indispensável a produção de provas, consideradas urgentes e relevantes, antes de iniciada a ação penal, pautando-se pelos critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade, assegurados a ampla defesa e o contraditório, em audiência pública e oral. Dispõe o artigo 381 do CPP/2015: a produção antecipada da prova será admitida nos casos em que: I- haja fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência de ação; II- a prova a ser produzida seja suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito; III- o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento da ação. Autua-se a parte o procedimento de colheita antecipada de provas, intimando-se as partes interessadas (Ministério Público, querelante, assistente, indiciado e defensor, se for o caso) para acompanhar o seu trâmite. Não tendo sido iniciada a ação penal, pode até mesmo não ter ocorrido, ainda, o formal indiciamento. Por isso, parece-nos fundamental que o juiz indique um defensor público para acompanhar a produção de prova. Se houver alguém indiciado, deve ser intimado para a produção cautelar da prova, devendo comparecer acompanhado de advogado. Se não o fizer, um defensor dativo (ou público) deve ser indicado pelo magistrado. O Ministério Público estará sempre presente (como titular da futura ação penal pública ou como fiscal da lei, em caso de ação privada). Trata-se de uma prova determinada pelo juiz e, como já se frisou, de natureza cautelar, razão pela qual as partes podem participar ativamente.
E leciona ainda Nucci (2020, pág. 36) com relação ao juiz das garantias criado pela lei 13.964/2019, porém, com ordem de suspensão por prazo indeterminado da aplicação da mudança legislativa até manifestação do Plenário do STF:
Juiz das Garantias: criou-se, pela Lei 13.964/2019, a figura do juiz encarregado de fiscalizar as investigações criminais, além de se tornar responsável por tomar decisões de ordem jurisdicional, em nível cautelar. Não se trata de um juiz instrutor, como há em algumas legislações estrangeiras, adotou-se no Brasil, o juiz fiscalizador, sem qualquer poder instrutório.
20-A, Liminar do STF: o relator da Medica Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 6.299-DF, Ministro Luiz Fux, houve por bem, em 22 de janeiro de 2020, suspender a vigência dos arts. 3º-A a 3º F, todos relacionados à nova figura do juiz de garantias. Assim, sendo, embora a Lei 13.96/2019 tenha entrado em vigor em 23 de janeiro de 2020, os referidos artigos estão suspensos, por prazo indeterminado, até que o Plenário do Pretório Excelso avalie o mérito da causa.
Do mesmo modo, a doutrinadora Grinover (1999) ressalta que há uma concepção errônea acerca dos sistemas tidos como confrontantes (acusatório e inquisitivo), ressaltando que nosso modelo atual impõe um processo publicista e coerente com sua função social, necessitando, pois, de um juiz necessariamente ativo.
2. A discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da Constitucionalidade e adequação ao Sistema Acusatório
Tendo em vista as recentes alterações legislativas no CPP, na esfera da produção de provas e de diligências de ofício por parte do juiz, necessário se faz estabelecer um paralelo sobre os diferentes posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito da matéria, reavaliando, pois, a atual redação do artigo em comento, ex positis:
Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício: I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a
produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante.
A despeito tem-se as palavras de Garcia (2008):
Cristalizados nos aforismos nemo judex sine actore (não há juiz sem autor) e ne procedat judex ex officio (o juiz não pode proceder – dar início ao processo – sem a provocação da parte), tais princípios consubstanciam a índole inerte dos órgãos jurisdicionais, que somente poderão aplicar a lei ao caso concreto se devidamente provocados pela parte interessada em face da existência de uma pretensão resistida ou insatisfeita amparada pelo ordenamento jurídico […]. Os órgãos jurisdicionais, sabemos, devem ser desinteressados e imparciais, características inerentes à própria existência da jurisdição. Visando a resguardar a imparcialidade na solução do conflito, melhor é deixar que o Estado só intervenha quando provocado por meio da ação […]. Ademais, ensina Tourinho Filho que se ao próprio juiz coubesse a provocação da tutela jurisdicional, estaria ele a pedir providências a ele mesmo, numa clara ocorrência de jurisdição sem ação, como se tem no processo do tipo inquisitório, não acolhido por nós em sede processual.
O doutrinador Tourinho Filho (2003), por sua vez, assinala:
[…] a experiência ensina que quando o próprio juiz toma a iniciativa do processo, ele se liga psicologicamente de tal maneira à idéia contida no ato de iniciativa, que dificilmente teria condições de julgar imparcialmente.
O posicionamento de Carvalho e Depaoli (2008), também é no sentido de que o juiz não deve se colocar na posição de “descobridor” de provas, até mesmo porque há órgãos específicos para tal tarefa:
O juiz não pode, não deve, nem precisa produzir provas porque a Constituição ordena uma outra postura diametralmente diferente: para ele, o réu é inocente até prova em contrário (Constituição, artigo 5º, LVII). Na falta de provas, impõe-se a absolvição! E, mais, há outros órgãos incumbidos constitucionalmente de desconstituir a presunção de inocência: o Ministério Público e a Polícia. Por que haveríamos de ter uma terceira instituição – na verdade um dos poderes do Estado – com o mesmo propósito de produzir provas?
Para Carvalho e Depaoli (2008), a nova redação do artigo 156 e incisos I e II, do CPP, torna ilegítimo o processo penal, além de ferir o contraditório, a Constituição, e consolida o risco (concreto) de opções arbitrárias, além de permitir a fusão entre ação e jurisdição, elementos estanques e distintos.
Não obstante, o magistrado, ao requerer a produção da prova perderá a indispensável imparcialidade (AGUIAR, 2005). Nesse sentido doutrina Geraldo Prado (2005), ex positis:
[…] Desconfiado da culpa do acusado, investe o juiz na direção da introdução de meios de prova que sequer foram considerados pelo órgão de acusação, ao qual, nessas circunstâncias, acaba por substituir. Mais do que isso, aqui igualmente se verificará o mesmo tipo de comprometimento psicológico, objeto das reservas quanto ao poder do próprio juiz iniciar o processo, na medida em que o juiz fundamentará, normalmente, nos elementos de prova que ele mesmo incorporou ao processo, por considerar importantes para o deslinde da questão. Isso acabará afastando o juiz de sua desejável posição de seguro distanciamento das partes e de seus interesses contrapostos, posição essa apta a permitir a melhor ponderação e conclusão.
Corroborando do mesmo entendimento, extraem-se os dizeres do doutrinador Moreira (2008):
Outrossim, repete-se aqui o equívoco de se permitir ao Juiz de Direito atividade de natureza eminentemente persecutória (agir de ofício), o que significa um gravíssimo atentado aos postulados do sistema acusatório.
E ainda, apontamentos de Juan Montero Aroca (apud MOREIRA, 2008):
[…] si el medio de prueba practicado de oficio por el tribunal de instancia tiene por objeto la comprobación de los hechos, esto es, se dirige a probar su existencia o inexistencia, se produce la quiebra de la imparcialidad objetiva del tribunal.
Questão semelhante já foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADI 1.570, em que fora discutida a constitucionalidade do art. 3º da Lei 9.034 (Lei do Crime Organizado), que na sua redação original dava ao juiz poderes instrutórios e acusatórios.
O STF, por sua vez, reconheceu a inconstitucionalidade do art. 3º do referido diploma legal, exaurindo o entendimento de que o juiz não pode, de ofício, decretar provas que julgar convenientes, sob pena de estar fazendo às vezes de um policial, de um órgão do MP, acusador. Acreditou-se, pois, que tal decisão tornar-se-ia um paradigma, vindo a ser seguida por prudência pela jurisprudência. E de fato era o que se concebia até então, até a entrada em vigor de uma nova legislação eivada do mesmo vício.
Eis a ementa do referido julgado:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 9034/95. LEI COMPLEMENTAR 105/01. SUPERVENIENTE. HIERARQUIA SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM PARTE. “JUIZ DE INSTRUÇÃO”. REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS PESSOALMENTE. COMPETÊNCIA PARA INVESTIGAR. INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR. MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL. 1. […] 2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do princípio da imparcialidade e conseqüente violação ao devido processo legal. 3. Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2o; e 144, § 1o, I e IV, e § 4o). A realização de inquérito é função que a Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em parte (STF – ADI 1.570-DF. Min. Rel. Maurício Corrêa, DJ 22.10.2004).
Em data de 23.09.2008, o STF se manifestou acerca do assunto. A Primeira Turma do STF negou pedido em sede de Habeas-Corpus (HC n. 93157), onde se questionava o fato de o juiz ter interrogado antecipadamente as testemunhas do caso, sem justificação prévia.
Para os ministros, porém, o CPP legitima a atuação do juiz na antecipação da produção de provas. O único posicionamento divergente foi o do ministro relator Ricardo Lewandowski.
Na visão do ministro Ricardo Lewandowski, por ocasião do julgamento, ainda que o CPP permita a produção antecipada de provas, não se pode permitir o seu “automatismo”, devendo o procedimento ser previamente justificado quando necessária a sua aplicação.
Na opinião dos demais ministros que votaram, o juiz tem o poder de determinar essa produção antecipada de provas, estando ao seu alvedrio, assegurando o dever do estado, de modo que o CPP, em seus artigos 225 e 366 dão respaldo ao juiz.
Já em 14.06.2016, o STF manifestou novamente a possibilidade de atuação de ofício pelo juiz, não sendo causa de ilegalidade, conforme posicionamento:
A periculosidade do agente pode ser aferida por intermédio de diversos elementos concretos, tal como o registro de inquéritos policiais e ações penais em andamento que, embora não possam ser fonte desfavorável da constatação de maus antecedentes, podem servir de respaldo da necessidade da imposição de custódia preventiva. Diante do disposto no art. 156 do CPP, não se reveste de ilegalidade a atuação de ofício do magistrado que, em pesquisa a banco de dados virtuais, verifica a presença de registros criminais em face do paciente. HC 126.501, rel. p/ o ac. min. Edson Fachin, j. 14-6-2016, 1ª T, DJE de 4-10-2016.
O doutrinador Zilli (apud BARROS, 2008), concorda com a atividade instrutória judicial, justificando-a como “condição indispensável para a adequada e justa prestação jurisdicional e para a composição dos interesses públicos”, mas ressalva que pode ser indesejado o disposto no inciso I do artigo 156 do CPP, o qual permite a determinação, de ofício e mesmo antes de iniciada a ação penal, da produção de provas antecipadas pelo juiz, advertindo que, se mal conduzida, pode levar o juiz ao perigoso terreno da atuação investigatória, subvertendo-se, assim, o sentido de um processo penal de matriz acusatória.
O doutrinador Nucci (2020, p. 358) assevera que, tendo em vista a previsão expressa no CPP, conferindo ao juiz poderes de buscar provas antes mesmo de iniciada a ação penal, determinando a produção de provas para busca da verdade real, eis que sua atuação está plenamente legitimada:
A reforma trazida pela Lei 11.690/2008 ampliou a faculdade do juiz de determinar a formação das provas, possibilitando-lhe atuar, antes mesmo de iniciada a ação penal (inciso I do art. 156). Esta parte está revogada pelo advento da Lei 13.964/2019, que instituiu o juiz das garantias e vedou a este qualquer iniciativa probatória (art. 3º-A, do CPP).
E ainda expõe o doutrinador Nucci (2020, p. 358), citando decisão do STJ com relação a produção antecipada de provas no processo penal:
Na jurisprudência do STJ: Nota-se que a produção antecipada de provas é realizada na presença de defensor nomeado, podendo, ademais, ser renovadas ou requeridas novas diligências no momento em que o acusado comparecer ao processo. Trata-se, portanto, de postura que melhor se coaduna com o moderno processo penal, pois privilegia a busca da verdade real, por meio da produção de provas antecipadas, bem como o princípio da ampla defesa, possibilitando ao paciente o exercício da autodefesa, razão pela qual não há se se falar em prejuízo para defesa (RHC 63.682 – CE, 5ª T., rel. Reynaldo Soares da Fonseca, 07.06.2016, v.u).
Cabe lembrar que há entendimentos de que o sistema acusatório adotado em nosso processo penal, não é ortodoxo, de modo que o juiz que preside o processo tem plena legitimidade para procedimentos investigatórios e instrutórios, estando estes expressamente previstos em vários dispositivos do CPP (NOGUEIRA, 2004). Assim, tem-se este como principal argumento da corrente que aponta pela constitucionalidade de tais poderes serem exercidos pelo juiz, visando à produção de provas.
Assim como o doutrinador Zilli (apud BARROS, 2008) possui o entendimento de que mesmo no sistema acusatório o juiz pode exercer atividade instrutória judicial, desde que de forma prudente, a doutrinadora Grinover (1999), corrobora do mesmo entendimento e muito antes já afirmava que, apesar de se estar diante de um sistema acusatório, não se pode conceber a idéia de um juiz desinteressado com o acerto de sua decisão e completamente alheio ao jogo probatório, esclarecendo de que há, em verdade, um equívoco quanto à concepção do sistema acusatório:
[…] No entanto, alguns equívocos têm surgido aqui e acolá, a partir da errônea concepção do que se deve entender por “processo acusatório” e “processo inquisitivo”, assim como pelo significado da expressão “processo de partes”, ligada ao primeiro modelo. Esses mal-entendidos têm induzido alguns teóricos e certos sistemas a confundir o sistema acusatório moderno com o adversarial system dos países anglo-saxônicos, com profundas repercussões sobre o papel do juiz no processo penal.
Ressalva, ainda, que o sistema acusatório não pressupõe, necessariamente, as partes como adversárias, ficando o juiz apenas numa posição de árbitro, podendo perfeitamente conviver com um processo de cunho publicista, com uma postura ativa, de condutor do mesmo. Eis seus dizeres:
[…] Nesse quadro, não é possível imaginar um juiz inerte, passivo, refém das partes. Não pode ele ser visto como mero espectador de um duelo judicial de interesse exclusivo dos contendores. Se o objetivo da atividade jurisdicional é a manutenção da integridade do ordenamento jurídico, para o atingimento da paz social, o juiz deve desenvolver todos os esforços para alcançá-lo. Somente assim a jurisdição atingirá seu escopo social. O papel do juiz, num processo publicista, coerente com sua função social, é necessariamente ativo. Deve ele estimular o contraditório, para que se torne efetivo e concreto. Deve suprir às deficiências dos litigantes, para superar as desigualdades e favorecer a par condicio. E não pode satisfazer-se com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova […] Ninguém melhor do que o juiz, a quem o julgamento está afeto, para decidir se as provas trazidas pelas partes são suficientes para a formação de seu convencimento. Isto não significa que a busca da verdade seja o fim do processo e que o juiz só deva decidir quando a tiver encontrado. Verdade e certeza são conceitos absolutos, dificilmente atingíveis, no processo ou fora dele. Mas é imprescindível que o juiz diligencie a fim de alcançar o maior grau de probabilidade possível. Quanto maior sua iniciativa na atividade instrutória, mais perto da certeza ele chegará (GRINOVER, 1999).
Neste diapasão, a iniciativa oficial no campo da prova não embaçaria a imparcialidade do juiz. Sob o manto do entendimento de Grinover (1999), quando o juiz determina que se produza uma prova não requerida pelas partes, ou quando entende oportuno voltar a inquirir uma testemunha ou solicitar esclarecimentos do perito, ainda não conhece o resultado que essa prova trará ao processo, e tampouco sabe qual a parte que será favorecida por sua produção, posto que ao juiz interessa que saia vencedor aquele que realmente tem razão. Ainda que não atinja a verdade completa, a atuação ativa do juiz lhe facilitará inegavelmente o encontro de uma parcela desta.
Nucci (2020, p. 357), por sua vez, adverte que a atuação de ofício pelo juiz “trata-se de decorrência natural dos princípios da verdade real e do impulso oficial”, não devendo este “ter a preocupação de beneficiar, com isso, a acusação ou a defesa, mas única e tão-somente atingir a verdade”.
Esta também parece ser a posição de Bastos (2008), ao tratar do caso em seu recente artigo relativo ao tema:
Os arts. 155 e 156 do Código de Processo Penal, recentemente alterados pela Lei nº 11.690/08, mantiveram o poder instrutório do Juiz no Processo Penal, embora o tenham retirado da condição de protagonista e o colocado na condição de coadjuvante, privilegiando a atuação das partes, como protagonistas principais, no duelo probatório. No entanto, o Juiz se mantém capaz de, subsidiariamente, buscar a verdade dos fatos que são levados ao seu conhecimento pelas partes e submetidos à sua decisão, sem que isto tenha o condão de comprometer o sistema acusatório, o princípio da inércia ou o princípio da imparcialidade do julgador, regras que estão preservadas, em que pese a alteração legislativa. O processo penal moderno não comporta a figura de um Juiz indiferente ao reflexo de sua sentença sobre os fatos da vida, mas exige um Juiz que busque aproximá-la, dentro dos meios lícitos de que dispõe, o mais que for possível do exato retrato do que realmente aconteceu.
Mas a atuação do juiz na atividade instrutória não é ilimitada. Existem balizas intransponíveis à iniciativa oficial, que se desdobram em três parâmetros: a rigorosa observância do contraditório, a obrigatoriedade de motivação, os limites impostos pela licitude (material) e legitimidade (processual) das provas (GRINOVER, 1999).
Na visão de Felício (2008), tais impulsionamentos pelo juiz devem ser admitidos, porém, devem ser encarados como regra de exceção e desde que objetivamente fundamentados, sendo inadmissível a mera repetição do texto legal e a forma lacônica ou genérica, marcada pelo subjetivismo para justificar a medida.
Não obstante, os apontamentos acerca do art. 156 do CPP vão um pouco mais além. É discutível também a redação do caput do referido artigo, que voltou a repetir o mesmo conteúdo que detinha anteriormente, na parte em que dispõe a respeito do ônus da prova da alegação: “Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer […]”.
Há quem afirme que o ônus da prova é somente da acusação, de forma que referido artigo não se compatibiliza com a CF/88 (Constituição Federal de 1988), a qual professa e exige do magistrado um salutar respeito ao princípio fundamental do in dúbio pro reo e da presunção de inocência:
Lamentavelmente, continua o nosso Código de Processo Penal estabelecendo uma regra só aplicável para os processos cíveis, qual seja a de caber o ônus da prova a quem alega. Tal disposição é absolutamente inaplicável em processo penal, onde o ônus da prova é sempre da acusação, em razão dos princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo. Estabelecer simples e categoricamente que ‘a prova da alegação incumbirá a quem a fizer’, repetindo o Código de Processo Civil (artigo 333, I e II), é fazer tábula rasa do referido princípio constitucional da presunção de inocência (artigo 5º, LVII da Constituição Federal) (MOREIRA, 2008a).
Neste sentido, v.g, decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), ex positis:
Cabe à acusação, preleciona o jurista Fernando da Costa Tourinho Filho, “provar a existência do fato e demonstrar sua autoria. Também lhe cabe demonstrar o elemento subjetivo que se traduz por dolo ou culpa. Se o réu goza de presunção de inocência, é evidente que a prova do crime, quer a parte objecti, quer a parte subjecti, deve ficar a cargo da acusação” (in Processo Penal. 14.ed. Saraiva: São Paulo, 1993. v. III, p. 213). Assim, não tendo o Ministério Público Federal arcado com o ônus material de provar a imputação penal atribuída ao réu na denúncia, encargo que lhe é conferido pelo art. 156, 1ª parte, do CPP, deve ser reformada a r. sentença condenatória em relação aos crimes dos arts. 334, § 1º, alínea “c”, e 288, ambos do CP (TRF4 – Apelação Criminal n. 2005.04.01.009927-8-PR. Rel. Min. Paulo Afonso Brum Vaz. DJE, 10 Jan. 2007).
Idêntico posicionamento é o do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como se observa do julgado a seguir transcrito:
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO. INTELIGÊNCIA DO ART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO CONDENATÓRIA. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE. DOCUMENTO APRESENTADO PELA DEFESA IGNORADO PELO ÓRGÃO JULGADOR. VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO PENAL E INFRINGÊNCIA AOS ARTIGOS 231 E 400 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA. 1. O órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. 2. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal. 3. Carece de fundamentação idônea a decisão condenatória que impõe ao acusado a prova de sua inocência, bem como ignora documento apresentado pela Defesa a teor dos artigos 231 e 400 do Código de Processo Penal. 4. ORDEM CONCEDIDA para anular a decisão condenatória, para que outro julgamento seja proferido, apreciando-se, inclusive, a prova documental ignorada (STJ. HC 27.684 – AM. Rel. Ministro Paulo Medina. DJ 09/04/2007, p. 267).
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Do voto do referido do relator Paulo Medina, quando do julgamento do referido julgado, extrai-se:
[…] Estarrecido estou com o teor do decreto condenatório, porquanto o trecho transcrito corresponde à integralidade da fundamentação. Nada mais há; sequer uma só referência à prova produzida pelo órgão ministerial, seja quanto aos fatos objetivamente considerados, seja com relação ao elemento subjetivo do tipo, ou seja, o intuito de fraudar. Não houve qualquer apreciação das provas produzidas pela acusação para firmar o juízo condenatório, mas, ao contrário, afirmou-se que não logrou o acusado provar inverídicos os fatos a ele imputados, numa inaceitável inversão do ônus da prova ao presumir, juris tantum, como verdadeira a narrativa do Parquet, incumbindo ao réu o dever de desconstituir tal presunção. É notório que o órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório, como retratado no art. 156 do Código de Processo Penal. Nesse sentido, afirma Afrânio Silva Jardim: “O réu apenas nega os fatos alegados pela acusação. Ou melhor, apenas tem a faculdade de negá-los, pois a não impugnação destes ou mesmo a confissão não leva a presumi-los como verdadeiros, continuando eles como objeto de prova de acusação. Em poucas palavras: a dúvida sobre os chamados fatos da acusação leva à improcedência da pretensão punitiva, independentemente do comportamento processual do réu. […] o ônus da prova, na ação penal condenatória é todo da acusação/ e relaciona-se com todos os fatos constitutivos do poder-dever de punir do Estado/, afirmado na denúncia ou queixa; conclusão esta que harmoniza a regra do artigo 156, primeira parte, do Código de Processo Penal com o salutar princípio in dubio pro reo”. (Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: forense, 2000, p. 214). (STJ. HC 27.684 – AM. Rel. Ministro Paulo Medina. DJ 09/04/2007, p. 267).
Em outra ocasião, o STJ em data de 21.03.2017, reiterou o entendimento expondo que é possível que o magistrado, na fase processual, determine a produção de provas de ofício, conforme posicionamento:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ESPECIAL. ARTIGOS 4º DA LEI N. 7.492/1986 E 1º, VI, DA LEI N. 9.613/1998. MAGISTRADO QUE HOMOLOGA ACORDO DE COLABORAÇÃO PREMIADA. IMPEDIMENTO. INEXISTÊNCIA. ARTIGO 252 DO CPP. HIPÓTESES TAXATIVAS. JUNTADA DE DOCUMENTOS NO CURSO DA AÇÃO PENAL. DETERMINAÇÃO JUDICIAL EX OFFICIO. POSSIBILIDADE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. 1. O Supremo Tribunal Federal, por sua Primeira Turma, e a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça, diante da utilização crescente e sucessiva do habeas corpus, passaram a restringir a sua admissibilidade quando o ato ilegal for passível de impugnação pela via recursal própria, sem olvidar a possibilidade de concessão da ordem, de ofício, nos casos de flagrante ilegalidade. Esse entendimento objetivou preservar a utilidade e a eficácia do mandamus, que é o instrumento constitucional mais importante de proteção à liberdade individual do cidadão ameaçada por ato ilegal ou abuso de poder, garantindo a celeridade que o seu julgamento requer. 2. As causas de impedimento do Magistrado para o processamento e julgamento da causa são circunstâncias objetivas relacionadas a fatos internos ao processo, previstas, taxativamente, no artigo 252 do Código de Processo Penal. 3. Nesse diapasão: a) não é possível interpretar-se extensivamente os seus incisos I e II de modo a entender que o juiz que atua em fase pré-processual desempenha funções equivalentes ao de um delegado de polícia ou membro do Ministério Público ( HC 92893, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em 02/10/2008, DJe de 11/12/2008); b) não se pode ampliar o sentido do inciso III de modo a entender que o juiz que atua em fase pré-processual ou em sede de procedimento de delação premiada em ação conexa desempenha funções em outra instância (o desempenhar funções em outra instância é entendido aqui como a atuação do mesmo magistrado, em uma mesma ação penal, em diversos graus de jurisdição) – HC 97553, Relator Min. DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 16/06/2010, DJe de 09/09/2010. 4. Na hipótese vertente, não houve exteriorização de qualquer juízo de valor acerca dos fatos ou das questões de direito emergentes na fase preliminar que impeça o Juiz oficiante de atuar com imparcialidade no curso da ação penal. O acórdão impugnado considerou que a participação do magistrado restringiu-se à homologação do acordo de delação premiada e a sentença consignou que os depoimentos dos delatores não haviam sido isoladamente considerados para embasar a condenação. 5. Em resumo, a homologação do acordo de colaboração premiada pelo Magistrado não implica seu impedimento para o processo e julgamento da ação penal ajuizada contra os prejudicados pelas declarações prestadas pelos colaboradores, não sendo cabível interpretação extensiva do artigo 252 do CPP. Precedentes. 6. Em obediência ao princípio da busca da verdade real e pela adoção do sistema de persuasão racional do juiz, é possível que o magistrado, na fase processual, determine a produção de provas ex officio, desde que de forma complementar à atividade probatória das partes. No caso, o juiz, conhecedor de elementos probatórios constantes de outras ações penais conexas à presente, e que poderiam suprir dúvidas existentes nos autos sobre pontos relevantes para o julgamento da causa, determinou a sua juntada ao procedimento criminal, com a reabertura de prazo às partes para manifestação. Inteligência dos arts. 156, II e 502 da Lei Adjetiva Penal. 7. Habeas corpus não conhecido. (HC 221.231/PR, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5ª Turma, julgado em 21/03/2017, DJe 29/03/2017)
Resta evidente que existe divergência doutrinária a respeito dos poderes instrutórios e de produção de provas pelo juiz, quanto à constitucionalidade e adequação com o sistema acusatório. Assim como a doutrina não é pacífica, tampouco a jurisprudência é unânime neste sentido. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF), já se manifestaram quanto à matéria em procedimentos criminais, conforme já explanado, tomando tais medidas como plenamente aceitas no sistema acusatório e em consonância com a Constituição Federal de 1988. Contudo, assim como as discussões doutrinárias seguem adiante, nada impede que os ministros modifiquem seu campo de visão e de entendimento.
Considerações Finais
Em verdade, há tempos a liberdade de iniciativa probatória da autoridade judiciária no processo penal vem suscitando controvérsias no meio jurídico, tanto com defesas quanto a sua legitimidade, como também de sua ilegitimidade frente ao modelo de Estado arquitetado pela atual Constituição.
Convém ressaltar, pois, que no processo penal, o que se busca é o esclarecimento de um delito que interessa, na maioria das vezes, a toda a sociedade. Sob este prisma, o fato de o juiz buscar provas de ofício não necessariamente vai prejudicar o réu (pois tal prova pode também favorecê-lo). Tal iniciativa do magistrado tem (ou pelo menos, sempre deveria ter) o propósito de atingir a verdade dos fatos da maneira mais eficaz possível.
Ademais, apesar de o juiz construir seu convencimento sob o manto da imparcialidade, ele não deve tomar a posição de mero expectador processual. Ao contrário, deve calcar seu entendimento em provas consolidadas e, se for necessário, deve buscá-las ou ordenar a produção destas para que sua decisão não seja eivada de qualquer dúvida. Esse entendimento já está sendo consolidado pelas recentes decisões dos Egrégios Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal (STJ e STF), reconhecendo a atuação do juiz ex officio na produção da prova na fase processual.
Outrossim, ressalte-se que a atuação do juiz na atividade instrutória não é ilimitada, posto que existem balizas intransponíveis à iniciativa oficial como por exemplo, a observância e plenitude da ampla defesa, do contraditório e da obrigatoriedade de motivação dos atos judiciais. São estes, pois, princípios constitucionais que deverão ser respeitados no ordenamento jurídico nacional.
Clarividente, pois, que a parte que toma a atuação do magistrado em determinar a produção de provas como arbitrária e contrária ao sistema acusatório, certamente tem algo a esconder, pois do contrário, teria é que agradecer ao juiz pelos impulsionamentos probatórios visando à justa solução da lide e a garantia da paz social em sua atuação de ofício para realização de provas nos autos, evidenciando a busca da verdade formal e verdade real, respeitando-se, sempre, os princípios constitucionais atinentes ao processo penal.
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