Resumo: O direito passa por uma relevante mudança de paradigma, com a crescente aceitação da linha filosofia denominada pós-positivismo. Tal mudança é especialmente relevante para o direito tributário, uma vez que é ramo do direito que regula a relação entre Estado e cidadão no seu aspecto patrimonial. Como o direito de tributar age como exceção que atinge o direito da propriedade privada, deve ser profundamente regulado, não somente por regras (que podem ser mais facilmente "contornadas"), mas também por princípios que protejam o contribuinte de toda forma de arbítrio estatal. Os princípios, porém, não são conceitos estanques. Há pontos de conflito em casos concretos, que devem ser objeto de criteriosa ponderação. No presente trabalho, pretendemos analisar essa questão, com enfoque em algumas questões levantadas pela instituição do IPTU progressivo.[1]
Palavras-chave: Pós-positivismo. Direito Tributário. Princípios. Conflitos entre princípios. IPTU progressivo.
Abstract: The Law is undergoing a significant paradigm shift with the growing acceptance of the philosophic school called post-positivism. This change is especially relevant to the Tax Law, since it is the branch of the Law that governs the relationship between state and citizen in his patrimonial aspect. As the right to tax acts as an exception to the right of private property, it must be deeply regulated, not only by rules (which can be more easily "circumvented"), but also by principles that protect the taxpayer from all forms of state arbitrary intervention. The principles, however, are not mutually separated concepts. There are points of conflict in specific cases, which should be the subject of careful consideration. In this work, we intend to analyze this question, focusing on some issues raised by the institution of the progressive IPTU land tax.
Keywords: Post-positivism. Tax Law. Principles. Conflicts of Principles. Progressive IPTU.
Sumário: Introdução. Capítulo 1: Os Direitos Humanos. 1.1 Surgimento do pós-positivismo. 1.2. Relação entre princípios e regras. 1.3. A eficácia normativa dos princípios. Capítulo 2: O IPTU. 2.1 A origem do IPTU. 2.2 A progressividade. 2.2.1. Conceito. 2.2.2 História e crítica. 2.2.3. IPTU e progressividade. 2.3 Regra matriz de incidência. 2.4. Natureza jurídica. Capítulo 3: Princípios fundamentais. 3.1. Princípio da capacidade contributiva e isonomina- relações. 3.1.1. Capacidade contributiva. 3.1.2 Isonomia. 3.2. Progressividade e capacidade contributiva: relações. 3.3 Ponderações entre os princípios envolvidos – a busca por critérios. 3.4. Progressividade fiscal x progressividade extrafiscal. Referências bibliográficas.
INTRODUÇÃO
O direito tributário brasileiro encontra seu fundamento e paradigmas na Constituição Federal. Lá são fixadas as regras que compõem o Sistema Tributário Nacional. Assim, encontram-se definidas em âmbito constitucional as modalidades de tributos, as competências dos entes tributantes, limites ao poder de tributar, etc., bem como a repartição dos valores arrecadados entre as pessoas jurídicas de direito público.
Porém, acima de todas essas regras, encontram-se os princípios constitucionais, em especial aqueles que versam sobre direitos fundamentais, também chamados de direitos humanos. É crescente o enfoque doutrinário e jurisprudencial acerca dos princípios e seu peso no ordenamento jurídico pátrio. Isso é decorrência de uma mudança de paradigma no pensamento jurídico brasileiro. Outrora dominado pelo positivismo, é sentido a crescente influência do pensamento pós-positivista, também chamado de jushumanista.
Tal enfoque cresce na medida em que ganha aceitação a linha filosófica dos direitos humanos. Hoje nota-se maior inclinação do Judiciário em decidir com base, às vezes unicamente, em princípios. Trata-se de algo que seria impensável sob a égide do positivismo, e que nos conduz a novos paradigmas. Dentre estes, a forma de resolução de conflitos entre princípios e regras será objeto de breve análise.
Tal mudança de paradigma é especialmente relevante para o direito tributário, uma vez que é ramo do direito que regula a relação entre Estado e cidadão no seu aspecto patrimonial. Como o direito de tributar age como exceção que atinge o direito da propriedade privada, deve ser profundamente regulado, não somente por regras (que podem ser mais facilmente "contornadas"), mas também por princípios que protejam o contribuinte de toda forma de arbítrio estatal.
Esse, afinal, é o principal objetivo do direito tributário moderno, que se coloca como fonte de garantias dos direitos fundamentais, viabilizando uma tributação justa, regulada e com manutenção de equilíbrio entre sujeito passivo e ativo da obrigação. Não se deve esquecer que tais institutos do direito tributário são fruto de conquista histórica.
Os princípios, porém, não são conceitos estanques. Há pontos de conflito em casos concretos, que devem ser objeto de criteriosa ponderação. No presente trabalho, pretendemos analisar essa questão, com enfoque em algumas questões levantadas pela instituição do IPTU progressivo.
Assim, após a devida contextualização, trataremos do aparente conflito entre o citado instituto e alguns princípios e direitos fundamentais, na extensão que nos permite esse breve apanhado.
CAPÍTULO I – OS DIREITOS HUMANOS
1.1.SURGIMENTO DO PÓS-POSITIVISMO
Parece desnecessário repisar acerca do peso da linha filosófica do positivismo na cultura jurídica brasileira. Isso, pois esse pensamento também foi dominante em boa parte do mundo ocidental, especialmente na primeira metade do século XX.
Tal visão jurídica se firma definitivamente com a Revolução Francesa, visando resolver o problema de insegurança jurídica que então se instalara. A sociedade se tornara mais complexa e o direito natural parecia não mais fornecer a necessária segurança jurídica. Ocorre que o positivismo também veio para reforçar o mando dos novos detentores do poder.
Nos dizeres de Tércio Sampaio Ferraz Jr:
"O positivismo jurídico, na verdade, não foi apenas uma tendência específica, mas também esteve ligado, inegavelmente, à necessidade de segurança da sociedade burguesa. O período anterior à Revolução Francesa caracterizara-se pelo enfraquecimento da justiça, mediante o arbítrio inconstante do poder da força, provocando a insegurança das decisões judiciárias."[2]
Atualmente é crescente o entendimento de que o positivismo iniciou uma fase empobrecedora do direito. Lembramos o maior expoente do positivismo no Brasil, Hans Kelsen, com a afirmação que reduz direito à norma jurídica[3]. João Maurício Adeodato deixa clara a crítica, ao lembrar que “a objeção mais comum ao positivismo é que ele considera o direito auto-referente”.[4]
Em verdade, se trazer segurança jurídica foi o intento, o positivismo falhou miseravelmente. Sob essa visão, o legislador poderia inserir livremente normas no ordenamento jurídico, de forma a resolver conflitos unicamente pelo peso da legalidade. Ocorre que nunca seria possível prever todos os tipos de situações. Pior ainda. Sob o positivismo, as normas jurídicas tendem a se multiplicar, a ponto de gerar todo tipo de conflito normativo. Conflitos esses cujas soluções não tinham o esperado grau de previsibilidade. O direito se tornara incerto pelo excesso de diplomas legais.
Como o positivismo também considera a lei moralmente incontrastável, buscou excluir a moral do direito. Isso levou a uma dissociação entre o legal e o moral, dissociando o direito do senso comum social. Nos dizeres de Tácito: Corruptissima in republica plurimae leges (As leis abundam nos Estados mais corruptos).[5]
Com o fim da Segunda Guerra Mundial é sentido o declínio do positivismo jurídico. Vale lembrar que as atrocidades do comunismo e do nazi-fascismo foram cometidas sob a égide da mais absoluta legalidade. Não que o positivismo não se prestasse anteriormente – e ainda se presta – a legitimar toda sorte de injustiças. Ocorre que as ideologias que culminaram na Segunda Grande Guerra deixaram isso por demais evidente. Nos dizeres de Luis Roberto Barroso:
“Em busca de objetividade científica, o positivismo equiparou o direito à lei, afastou-o da filosofia e de discussões como legitimidade e justiça e dominou o pensamento jurídico da primeira metade do século XX. Sua decadência é emblematicamente associada à derrocada do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha, regimes que promoveram a barbárie sob a proteção da legalidade. Ao fim da 2ª. Guerra, a ética e os valores começaram a retornar ao direito.”[6]
Encerrado o conflito em 1945, foi feita uma revisão das leis promulgadas no período do III Reich. Com isso, foi justamente o Tribunal Constitucional Alemão o grande responsável por reinserir no direito a questão dos direitos humanos e seus princípios. Assim, a revisão se deu com base em princípios como o da justiça, o da razoabilidade e o da dignidade humana, e não no mero silogismo positivista. Essa mudança radical passaria a influenciar o direito alemão a partir de então, com reflexos pelo mundo. Era o chamado pós-positivismo (ou jushumanismo).
O resumo dessa nova linha pode ser visto no trecho do julgado abaixo transcrito, do Tribunal Constitucional Alemão:
“o direito e a justiça não estão à disposição do legislador. A ideia de que um legislador constitucional tudo pode ordenar a seu bel-prazer significaria um retrocesso à mentalidade de um positivismo legal desprovido de valoração, há muito superado na ciência e na prática jurídica. Foi justamente a época do regime nacional-socialista na Alemanha que ensinou que e legislador também pode estabelecer a injustiça (…). Por conseguinte, o Tribunal Constitucional Federal afirmou a possibilidade de negar aos dispositivos ‘jurídicos’ nacional-socialistas sua validade como direito, uma vez que eles contrariam os princípios fundamentais da justiça de maneira tão evidente que o juiz que pretendesse aplicá-los ou reconhecer seus efeitos jurídicos estaria pronunciando a injustiça, e não direito (…).”[7]
O direito retorna assim, ainda que em parte, à sua raiz jusnaturalista. Na verdade, pode-se entender que ocorre releitura do direito natural, pois há enfoque do direito no Homem, e não na norma. Ainda sim, essa corrente não rompe com o positivismo. Na complexa sociedade moderna não haveria como alijar a lei de sua força normativa ou sua eficácia. A lei é aceita a priori, podendo ser contrastada pelos princípios, notadamente aqueles que constituem os direitos fundamentais.
Da mesma força, é aceito o realismo "moderado". Não aquele que substitui o poder supremo do legislador pelo do juiz, mas aquele que permite ao juiz maior assertividade na sua conduta de manutenção das regras do direito em consonância com seus princípios fundamentais.
Outrossim, não cremos que o pós-positivismo significa um retorno completo dos princípios de direito natural. Notamos forte influência do pensamento progressista nos valores e princípios mais caros ao jushumanismo. Algo de certa forma inevitável, haja vista a força dominante desse pensamento nas altas esferas jurídicas na atualidade. Nesse aspecto nos parece relevante que se dê maior ênfase ao conceito naturalista de Justiça, que não confere em muitos pontos com o conceito progressista de justiça social.
1.2. RELAÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS
Passemos a analisar a questão dos princípios, sua valoração e eficácia normativa.
Quando o tema versa sobre princípios, dificilmente encontraremos unanimidade na doutrina. Segundo a visão tradicional, em resumo, regras teriam efetividade, ao contrário dos princípios. Regras seriam mandamentos objetivos, enquanto princípios somente apontariam um caminho ideal a ser seguido (nem sempre possível). ALEXY os denomina como “mandamentos de otimização”.[8]
Há grande mudança de paradigma quando se trata de conflitos entre princípios e regras. Quando duas regras se contradizem, uma será necessariamente invalidada. Nesse sentido dispõe a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro[9].
Já o conflito entre princípios resulta em ponderação, conforme a visão de Humberto Ávila, que muito nos agrada nesse ponto. Nenhum dos princípios será extirpado do ordenamento. Certamente haverá valoração, com sobreposição de um em detrimento do outro no caso específico. Não há hierarquia a priori entre princípios fundamentais.
O mesmo não se dá no conflito entre princípios e regras. É conhecido o conceito Kelnesiano de que o ordenamento jurídico é um "sistema hierárquico de normas". Ocorre que o autor positivista contemplava um ordenamento formado somente por regras positivadas. A linha dos direitos humanos rompe com essa conceituação, apresentando um modelo completamente diferente.
Humberto Ávila propõe a abolição do conceito de normas superiores servindo como base para normas inferiores, advogando o conceito de que ambas se inter relacionam. Assim, as normas superiores (princípios) ainda condicionariam as inferiores (regras), mas estas últimas também contribuem para determinar elementos das superiores. Uma relação “circular”, como ele a denomina, e não a conhecida relação “vertical”.
Ao abolir o conceito de hierarquia nessa questão em tela, o autor propõe o postulado da coerência, da razoabilidade.
1.3. A EFICÁCIA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS
Há de se notar que as modernas constituições ocidentais contemplam abertamente princípios. Paulo Bonavides define essa axiologia dos princípios enquanto “pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais”, de forma que “a teoria dos princípios hoje é o coração das Constituições”.[10]
Já Luis Roberto Barroso, discorrendo sobre a eficácia dos princípios constitucionais, esclarece:
“A Constituição, uma vez posta em vigência, é um documento jurídico, é um sistema de normas. As normas constitucionais, como espécie do gênero normas jurídicas, conservam os atributos essenciais destas, dentre os quais a imperatividade. De regra, como qualquer outra norma, elas contêm um mandamento, uma prescrição, uma ordem, com força jurídica e não apenas moral. Logo, a sua inobservância há de deflagrar um mecanismo próprio de coação, de cumprimento forçado, apto a garantir-lhe a imperatividade, inclusive pelo estabelecimento das conseqüências de insubmissão ao seu comando. As disposições constitucionais são não apenas normas jurídicas, como têm um caráter hierarquicamente superior, não obstante a paradoxal equivocidade que longamente campeou nesta matéria, considerando-as prescrições desprovidas de sanção, mero ideário não-jurídico”. [11]
Assim, não faria sentido interpretar o ordenamento de modo a conferir eficácia a uma norma infra-constitucional específica e não a um princípio constitucional. Seria uma inversão de valores. Expoente dessa visão, Humberto Ávila parece romper com a dogmática clássica e defende, de forma que nos parece acertada, a eficácia normativa dos princípios.
Nada mais distante da visão jurídica positivista, que induz a pensarmos exclusivamente em termos de subsunção, hipótese e conseqüência. Claro que o conceito de subsunção é necessário dentro da hermenêutica jurídica, mas deve ser encarado como aplicável somente às regras. Não se aplica a princípios, que são a base da ciência jurídica, justamente por traduzir seus valores fundamentais.
Na realidade, tanto uns quanto outros devem constituir sistema harmônico. Sem normas não haveria um mínimo de segurança jurídica e sem princípios não haveria fundamento válido para as normas. O Estado de Direito seria sujeito ao arbítrio legislativo, como já vimos ocorrer, especialmente na primeira parte do século XX.
Feitas essas considerações, só nos resta demonstrar que os princípios vêm sendo utilizados de forma cada vez mais freqüente pelos tribunais para fundamentar suas decisões.
Podemos começar pelo Supremo Tribunal Federal, maior expoente dessa postura, quando decidiu por extinguir o instituto da prisão civil nos contratos de alienação fiduciária em garantia. Tal decisão teve por fundamento violação ao princípio da proporcionalidade, bem como disposições do Pacto de Jan Jose da Costa Rica, que é carta repleta de princípios humanistas.[12]
O STF se pautou na mesma linha ao decidir o HC 82.424/RS[13], que tratava da publicação de material anti-semita, dando ao direito à honra maior "peso", no caso, do que ao direito de livre expressão. Podemos citar também o julgamento do HC 71.373/RS[14], que versava sobre o direito de uma criança de determinar sua paternidade, em face do direito do suposto pai de não submeter-se à colheita forçada de sangue para exame de DNA. Ao final, por maioria, decidiu-se pela inconstitucionalidade da colheita forçada, com fundamento nos princípios da dignidade da pessoa humana, da intimidade e da intangibilidade do corpo humano. São bons exemplos do uso de princípios na Justiça, e também demonstram a dificuldade envolvida na ponderação entre eles.
Feitas essas considerações, é chegado o momento de adentrarmos na questão específica do IPTU.
Capítulo II – A PROGRESSIVIDADE DO IPTU
2.1.ORIGEM DO IPTU
Antes de seguirmos na análise do IPTU em seu formato atual, achamos conveniente passarmos brevemente pelo histórico desse imposto.
Desde a proclamação da República até a década de 1930, a principal receita tributária era advinda das operações de importação. Havia outros tributos, certamente, mas sem tamanho impacto nas receitas públicas. Com a Constituição de 1946 começa haver uma definição da forma de divisão de competências tributárias até hoje existentes, consolidada na década de 1960.
De sua parte, o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana tem sua origem na chamada "décima urbana" incidente sobre os imóveis edificados das cidades à beira mar. Tal tributo foi criado com a chegada da corte de D. João VI ao Rio de Janeiro, em 1808, com o intuito de suprir os gastos da aristocracia que o acompanhava. Porém, há referência a esse imposto já em 1799, em carta da Rainha D. Maria endereçada ao Governador da Bahia, datada em 19 de maio daquele ano.[15]
O incipiente imposto demandou a numeração e demarcação dos imóveis urbanos, o que não havia na época, mesmo nas grandes cidades. A fiscalização era exercida por uma Junta, composta de "dois homens bons, um nobre e outro do povo, dois carpinteiros, um pedreiro e um fiscal, que será advogado".[16] Havia um superintendente para solução de dúvidas, sendo que cabia recurso de suas decisões ao Conselho da Fazenda, que se subordinava ao Erário Régio.
Já em 1811 foram criadas as primeiras isenções, destinadas aos proprietários que cumprissem as determinações da legislação nas suas edificações.
No regime da Constituição de 1891, havia previsão do imposto predial e do territorial urbano como dois impostos distintos. O primeiro incidia sobre edificações e o segundo sobre imóveis não edificados, sendo que eram de competência dos Estados. A partir da Constituição de 1934, a atribuição passa aos Municípios, com quem permaneceu desde então. Foi somente na Constituição de 1946 que ocorreu a unificação dos impostos predial e territorial em um só.
2.2. A PROGRESSIVIDADE
2.2.1. CONCEITO
A progressividade é o aumento das alíquotas de um determinado imposto em função de um parâmetro definido.
Para o clássico De Plácido e Silva, a progressividade “caracteriza-se pelo aumento crescente da tarifa ou dos elementos, que servem de base à verificação do imposto, em razão do aumento da quota ou da riqueza, em que vai incidir.”[17]
Rubens Gomes de Sousa assevera: “Progressivos são os impostos cuja alíquota é fixada na lei em porcentagem variável conforme o valor da matéria tributável. O imposto progressivo é, na realidade, um imposto proporcional, cuja proporção aumenta à medida que aumenta o valor da matéria tributada.”[18]
Para a Profa. Regina Helena Costa, "um imposto é progressivo quando a alíquota se eleva à medida que aumenta a quantidade gravada".[19]
2.2.2. HISTÓRICO E CRÍTICA
Temos notícia da cobrança de impostos progressivos já na República Florentina dos séculos XV e XVI, bem como outra referência de sua instituição na Basiléia, no ano de 1429. Sua aplicação foi debatida no período da Revolução Francesa, tendo Montesquieu como ardoroso defensor. [20]
Pouco após, em 1848, o membro do parlamento e filósofo anarquista Pierre-Joseph Proudhon[21] apresentou projeto de lei na Assembléia Nacional Francesa, visando implantar esse princípio na legislação. O projeto foi amplamente rejeitado, ficando consignado na ordem do dia dos anais do parlamento que “o imposto progressivo era imoral e subversivo da ordem divina e humana.”[22]
É sabido que a doutrina pátria e de outros países é maciçamente favorável à progressividade tributária. Ainda sim, esse princípio é alvo de severas e bem fundamentadas críticas. João de Adhemar Barros nota que a progressividade tributária penaliza os mais eficientes e desestimulando o esforço. Afinal de contas, os mais bem sucedidos são mais penalizados, independentemente dos belos argumentos de "solidariedade" ou "justiça social", que geralmente são trazidos ao debate. Em suas palavras:
"Todo imposto representa um ato de espoliação. A progressividade do imposto permite a uma maioria de cidadãos espoliar mais particularmente, por intermédio de seus representantes, uma minoria da população, sob o pretexto de Justiça Social.”[23]
Roberto Campos, que atuou na Constituinte de 1988, também criticou a progressividade, da forma ácida que lhe é característica:
"A progressividade é uma coisa charmosa, principalmente quando ela é aplicada à custa do bolso alheio. No fundo, entretanto, a progressividade é uma iniqüidade. Significa não só obrigar os que ganham mais a pagar mais, mas também punir mais que proporcionalmente os ousados e criadores. O charme da progressividade advém de duas falsas premissas. Uma é que quanto mais bem sucedido o contribuinte mais deve ser punido. Outra é que o governo gasta melhor que o particular. Presume-se que o governo gastaria para prestar serviços; na realidade, gasta para pagar funcionários. Essa é a verdade, não só dos impostos, mas também das tarifas.”
Concordam os autores, acerca da progressividade, especialmente os que a defendem, que a sua principal função é a redistribuição da riqueza. Não foi à toa que tal ponto foi tão defendido pelos autores marxistas, como já mencionamos anteriormente. Com o tributo progressivo, o que tem mais paga não apenas proporcionalmente mais, porém mais do que isto, paga progressivamente mais.
Ives Gandra da Silva Martins parece bem expressar o ponto que queremos demonstrar: que a progressividade tributária tem "caráter mais ideológico do que econômico ou social".[24]
Sousa Franco, tratando da origem da progressividade, termina por nos ajudar a esclarecer a questão ainda melhor, ainda que involuntariamente:
"Esta forma de tributação apareceu ligada a intenções sociais de maior igualdade é, apesar de se encontrar hoje perfeitamente enquadrada em sistemas econômicos capitalistas, convirá recordar a ênfase que lhe é dada no 'Manifesto do Partido Comunista' de Karl Marx e Friedrich Engels.[25]"
Em outras palavras, temos que economia de livre mercado e socialismo são pólos opostos, conceitos extremos, separados por uma escala que contém inúmeros graus. Não são opções distintas, mutuamente excludentes, como se um país adotasse somente uma ou outra. Isso reflete, a nosso ver, "cacoete mental" muito comum, fruto da mentalidade da "Guerra Fria".
Nossa Constituição tem a "livre iniciativa" como princípio basilar da ordem econômica (art. 170), verdadeiro direito fundamental, porém também contempla princípios redistributivistas, que terminam por tolhê-la. Pode-se defender ou criticar a progressividade, mas nos parece claro que ela representa um grau da escala a que nos referimos anteriormente.
Nesse ponto podemos ver a influência mútua entre princípios e regras, conforme já mencionado, a chamada "relação circular". O resultado parece refletir o grau escolhido pelos constituintes na escala que separa o máximo da liberdade econômica e o máximo do redistributivismo. Isso, porém, não impede que se exerça a crítica saudável, como mecanismo que permita a devida ponderação entre os princípios conflitantes que apontamos.
2.2.3. IPTU E PROGRESSIVIDADE
A despeito de tudo isso, a questão da progressividade é amplamente aceita hoje, definitivamente integrada em nosso ordenamento por meio da Constituição de 1988. Uma vez prevista, era de aplicação obrigatória para o Imposto sobre as Rendas e Proventos de Qualquer Natureza (art. 156, § 2º), e facultativa para o IPTU (art. 156, § 2º e art. 182, § 4º – II).
Ainda sim, durante algum tempo discutiu-se acerca da aplicabilidade da progressividade para impostos reais. Era aceito que o art. 182 § 4º e respectivos incisos tratava de progressividade extrafiscal, com caráter sancionatório. Já quanto à interpretação do § 1º do artigo 156, havia divergência quanto ao seu caráter fiscal ou extrafiscal.
Esse debate atingiu seu ápice com o julgamento no STF do Recurso Extraordinário 153.771-0, relatado pelo Min. Moreira Alves. Constou no seu voto vencedor:
“Naturalmente, não queremos dizer – nem o podemos – que todos os impostos devem ser indistintamente progressivos, porque sabemos como isso seria impossível ou cientificamente errado: porque bem sabemos que a progressão não condiz com os impostos reais e pode encontrar só inadequada e indireta aplicação nos impostos sobre consumos e nos impostos indiretos em geral.”
Assim, com essa decisão, o STF efetivamente proibiu a legislação de municípios de instituir IPTU progressivo em função de valor venal ou do tempo (nesse caso, por falta de lei complementar que regulamentasse o assunto).
Após essa decisão, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional n. 29 de 2000, e todo o entendimento foi superado[26]. Nessa Emenda, ficou expresso que a progressividade do IPTU poderia ser tanto extrafiscal como fiscal, e que o § 1º do artigo 156 estava disciplinando a progressividade em seu caráter fiscal.
Feita essa breve contextualização, que será abordada com mais detalhes mais adiante, vamos analisar agora a natureza jurídica do IPTU, em rápida pontuação relacionada à sua regra-matriz.
2.3. REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA
O Imposto Predial e Territorial Urbano IPTU é um imposto direto que incide sobre a propriedade imobiliária.
Segundo a Constituição Federal ele é de competência privativa do município e deve observar os princípios constitucionais da legalidade, da capacidade contributiva, da igualdade, da proporcionalidade e o da proibição de confisco.
Adentremos agora na análise desse imposto com base nos ensinamentos do Prof. Paulo de Barros Carvalho. Segundo sua doutrina, a regra-matriz de incidência tributária é formada pela hipótese e pelo seu conseqüente.
No “enunciado hipotético”, termo utilizado por Paulo de Barros, encontramos os critérios material, espacial e temporal para a identificação do fato jurídico-tributário. No “consequente” encontramos o critério pessoal – sujeitos ativo e passivo, e critério quantitativo – base de cálculo e alíquota, que identifica a relação jurídica a ser formada quando da ocorrência de um evento no mundo real que contenha as características da hipótese de incidência prevista.
Assim, quanto à hipótese, temos seu critério material, abstratamente isolado das coordenadas de tempo e espaço, consistente num fato lícito, genérico e abstrato: ser proprietário de um imóvel. O critério temporal, aqui entendido como o momento em que surgirá a obrigação tributária, será estipulado pelo legislador municipal, definindo a data que deverá nascer a relação jurídico-tributária.
Para o Professor Paulo de Barros Carvalho:
"O critério temporal de hipótese tributária é o grupo de indicações, contidas no suposto da regra, e que nos oferecem elementos para saber, com exatidão, em que preciso instante acontece o fato descrito, passando a existir o liame jurídico que amarra devedor e credor, em função de um objeto – o pagamento de certa prestação pecuniária.[27]"
O critério espacial indica os possíveis locais de ocorrência do fato jurídico-tributário. Nesse sentido, o artigo 32 do Código Tributário Nacional – CTN, delimita o aspecto espacial da regra-matriz do IPTU:
“Art. 32. O imposto, de competência dos Municípios, sobre a propriedade predial e territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do Município.
§ 1º. Para efeitos deste imposto, entende-se como zona urbana a definida em lei municipal, observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados em pelo menos dois dos incisos seguintes:
I – meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;
II – abastecimento de água;
III – sistema de esgotos sanitários;
IV – rede de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição domiciliar;
V – escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3 (três) quilômetros do imóvel considerado.
§ 2º. A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior”.
Analisemos agora a questão do “consequente”, em seus diversos aspectos. O critério pessoal serve para indicação de sujeitos da relação jurídico tributária. Temos ainda o sujeito ativo, ou credor da obrigação tributária. No caso o Município da situação do imóvel, se a lei municipal nada dispuser em sentido contrário. O sujeito passivo, ou devedor da obrigação tributária, é o realizador do fato imponível. No presente caso, será o proprietário do imóvel no dia primeiro de cada ano.
Quanto ao critério quantitativo, “nele reside a chave para a determinação do objeto prestacional, isto é o valor que o sujeito ativo pode exigir e que o sujeito passivo deve pagar”.[28]
A base de cálculo tem a função de dimensionar a materialidade da hipótese de incidência tributária, apurar o montante devido, constatar a observância dos princípios da capacidade contributiva e da reserva de competências impositivas e confirmar, afirmar ou infirmar a espécie tributária. No caso do IPTU, conforme dispõe o art. 33 do CTN: "A Base de cálculo do imposto é o valor venal do imóvel."
A alíquota tem a função de graduar o montante devido, proporcionalmente à capacidade contributiva do sujeito passivo da obrigação tributária. Para o IPTU, ela representa uma fração do valor venal.
2.4. NATUREZA JURÍDICA
Geraldo Ataliba ressaltava a importância da classificação dos tributos. Para o eminente Professor, isso decorre da minucia e extensão do texto constitucional, o que serve para limitar e muito a liberdade legislativa.[29]
Antes de mais nada, é imperioso classificar o IPTU como imposto pessoal ou real. Aparentemente, "esta classificação de impostos deve ser a mais antiga conhecida, posto que já vem dos jurisconsultos romanos (Digesto, 50, 4, 1)"[30]
Cabe diferenciá-los. Conforme a doutrina, são pessoais os impostos que, no processo de determinação do alcance da hipótese de incidência, tomam como relevantes aspectos relativos à pessoa do contribuinte. Para Villegas “são impostos pessoais os que levem em conta a especial situação do contribuinte, valorando todos os elementos que integram o conceito de sua capacidade contributiva.”[31]
Já os impostos reais seriam aqueles "que são decretados sob a consideração única da matéria tributável, com abstração das condições personalíssimas do contribuinte."[32] Assim, irrelevante quem seja a pessoa física ou jurídica de seu proprietário, qual seu patrimônio ou qualquer outro item a ele atinente. Os impostos reais focam no objeto a ser tributado, somente.
Interessante, contudo, notar a definição proposta para os impostos reais, que é baseada não mais na prevalência do princípio da capacidade contributiva para fins de sua imposição, mas antes no caráter assumido pelo imposto enquanto uma forma de ônus real.
Anote-se, no entanto, que é mensagem positivada em nosso sistema (art. 130 do CTN), a propósito dos impostos "cujo fato gerador seja a propriedade, o domínio útil ou a posse de bens imóveis", que os créditos tributários dessas relações advindas "subrogam-se na pessoa dos respectivos adquirentes." Assim, parece que, para o legislador, a referida categoria de impostos deveria ser classificada como real, pois se verifica uma relação especial entre a obrigação tributária e o bem. Por fim, o próprio STF[33] já determinou que o IPTU é "inequivocamente" um imposto real.
Tal posição não é unânime na doutrina, vale dizer. Há autores que defendem que propriedade é sinal objetivo de riqueza do contribuinte. Logo, IPTU seria imposto pessoal. Nessa linha, diversos autores defendem a aplicabilidade da capacidade contributiva ao IPTU, com argumentos dos mais diversos. Dentre eles, constam nomes de peso, como Roque Antonio Carrazza[34] e Elizabeth Nazar Carrazza[35] e Hugo de Brito Machado. Nesse sentido, leciona esse último:
"Primeiro, note-se que o § 1º do art. 145 não veda de modo nenhum a realização do princípio da capacidade contributiva relativamente aos impostos reais. É certo que preconiza, tenham os impostos, sempre que possível, caráter pessoal e sejam graduados em função da capacidade econômica do contribuinte. Isto, porém, não quer dizer que só os impostos de caráter pessoal sejam instrumentos de realização do princípio da capacidade econômica, ou contributiva." [36]
Na mesma linha da aplicabilidade do citado princípio ao IPTU, Geraldo Ataliba entende que o fato de se caracterizar um imposto como real denota tão somente uma prevalência na hipótese de incidência do aspecto material sobre o pessoal, não significando que este segundo não exista, porém que “é indiferente à estrutura do aspecto material ou do próprio imposto”.[37]
3.1.1. A CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
Cumpre esclarecer o real significado do princípio da capacidade contributiva, até porque, pontifica Alfredo Augusto Becker: “Esta expressão, por si mesma, é recipiente vazio que pode ser preenchido pelos mais diversos conteúdos; trata-se de locução ambígua que se presta às mais variadas interpretações."[38]
Orientemo-nos então pelas lições da Profa. Regina Helena Costa: “capacidade contributiva relativa ou subjetiva, por seu turno, opera, inicialmente, como critério de graduação dos impostos."[39]
É certo que o conceito não é de fácil apreensão, mas, por contingências práticas, podemos entendê-lo como a aptidão que o contribuinte tem de contribuir para as despesas do Estado, na medida de suas possibilidades.
3.1.2. ISONOMIA
A isonomia, como o direito ao tratamento igualitário, reflete direito fundamental, logo, previsto na Constituição. Não pretendemos adentrar na questão em toda sua complexidade, mas apenas determinar se se trata de igualdade material ou formal.
Em outras palavras, nossa Constituição busca somente conferir a todos igual tratamento perante a lei, não interferindo na seara econômica, ou justamente o oposto, efetivamente buscando reduzir as desigualdades naturais dos seres humanos, tratando-os desigualmente justamente por conta disso?
Sem procurarmos retomar debate anterior, entendemos que se trata da igualdade material. Isso fica claro por conta de a "erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais" serem objetivos fundamentais da República. Se a Constituição buscasse conferir igualdade de todos perante a lei, bastaria afirmá-lo, sem adentrar em aspectos extra-jurídicos, como os acima mencionados, que são conseqüência de aspectos sociais e econômicos, acima de tudo. Críticas à parte (e elas são bem cabíveis), fica claro que esse foi o "desejo" do constituinte.
Dessa forma, tomando por base estas características de nosso ordenamento, concluímos que a isonomia, para direito tributário, demanda a utilização do filtro da capacidade contributiva, pois se busca dar tratamento desigual aos desiguais.
3.2. PROGRESSIVIDADE E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA – RELAÇÕES
Seguindo a linha de raciocínio, qual a relação entre o princípio da capacidade contributiva e a progressividade?
Mizabel Derzi e Sacha Calmon Navarro Coelho entendem que a progressividade não é incompatível com o princípio da igualdade e da proporcionalidade.[40]
Américo Lourenço Masset Lacombe[41] entende que a progressividade é decorrência lógica do princípio da capacidade contributiva. Na mesma linha segue Elizabeth Nazar Carrazza. Para Misabel Abreu Machado Derzi:
"graduar ‘segundo a capacidade econômica do contribuinte’ é dito que, aliado aos arts. 1º a 3º da Constituição, autoriza a progressividade nos impostos incidentes sobre a sucessão e o patrimônio. O conceito de igualdade não se vincula, na atualidade constitucional, à manutenção do status quo, mas ganha um conteúdo concreto que obriga o legislador a medidas mais socializantes"[42].
É possível afirmar, com base em nessa linha de raciocínio, que a progressividade é a medida utilizada para se atender ao princípio da capacidade contributiva, de forma a permitir que se atinja a isonomia desejada pela Constituição.
3.3. PONDERAÇÕES ENTRE OS PRINCÍPIOS ENVOLVIDOS – A BUSCA POR CRITÉRIOS
Em face dessa última conceituação (certamente simplificada), fica ainda o desejo de se atingir algo mais objetivo. Afinal, na ponderação entre esses princípios, onde reside a Justiça?
Uma forma de situar-nos seria mediante a utilização do conceito Aristotélico de que a Justiça se encontra no meio-termo entre duas noções extremas (sofrer e cometer uma injustiça). Ou seja, a virtude está no meio-termo.
Nessa linha, se já entendemos que a Constituição privilegia o conceito da igualdade material, não seria a capacidade contributiva o meio-termo entre a propriedade privada absoluta e a coletivização?
A isonomia exige tratamento desigual para aqueles que se encontrem em situações desiguais (igualdade material). Daí ser imprescindível a adoção de um critério de comparação entre indivíduos e situações, para que se possa avaliar a equiparação ou não destes. Essa posição é defendida por Misabel Derzi.[43]
A questão da igualdade nos remete ao problema comum dos valores jurídicos: Qual o critério a ser levado em conta? Ou, em outras palavras: que diferenças devem ser desprezadas? Que características são relevantes para agrupar os objetos em consideração?
O princípio da capacidade contributiva nos parece ser o mais adequado para o reconhecimento jurídico de diferenças entre sujeitos e situações, com a conseqüente diversidade de tratamento.
"É que a capacidade contributiva é princípio que serve de critério ou de instrumento à concretização dos direitos fundamentais individuais, quais sejam, a igualdade e o direito de Propriedade ou vedação do confisco." [44]
Dessa forma, entendemos que o princípio da capacidade contributiva no Brasil deve ser interpretado à luz da concepção do nosso Estado Democrático de Direito, como prescrito no art. 1º da Constituição Federal, e tendo em conta os objetivos fundamentais da nossa República, expressos no art. 3º. São esses objetivos, o de construir uma sociedade "livre, justa e solidária." Notem o paralelo com tese, síntese e antítese nesses três vocábulos, nessa ordem.
Deve-se, ainda, ter em conta os direitos e garantias fundamentais, tal como o direito de propriedade e os direitos sociais. Resolve-se assim uma colidência de princípios pela ponderação, feita à luz da Constituição.
3.4. PROGRESSIVIDADE FISCAL X PROGRESSIVIDADE EXTRAFISCAL
Tradicionalmente, os tributaristas dividem a progressividade em fiscal e extrafiscal. A fiscal é fixada em função da base de cálculo do imposto. No caso do IPTU, o valor venal do imóvel. Sua natureza é arrecadatória.
A progressividade extrafiscal é determinada em função de um parâmetro externo ao direito tributário, com a finalidade de atingir algum objetivo social ou econômico. É a chamada progressividade no tempo do IPTU e é uma penalização imposta ao proprietário do imóvel urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, quando este se negar a dar um adequado aproveitamento a seu imóvel, de acordo com o estabelecido no plano diretor. Tal penalidade é aplicada por lei, após a imposição da penalidade de parcelamento ou edificação compulsória.
Conforme ensina Paulo de Barros Carvalho, “a essa forma de manejar elementos jurídicos usados na configuração dos tributos, perseguindo objetivos alheios aos meramente arrecadatórios, dá-se o nome de extrafiscalidade[45]”
Kiyoshi Harada nos ajuda a diferenciar a progressividade fiscal e a extrafiscal:
"A progressividade fiscal, decretada no interesse único da arrecadação tributária tem seu fundamento no preceito programático representado pelo § 1.º do art. 145 da CF, segundo o qual sempre que possível, o imposto será graduado conforme a capacidade econômica do contribuinte".
“Já a progressividade extrafiscal tem seu fundamento no poder de polícia…. Assim, a progressividade extrafiscal, tanto aquela prevista no § 1.º do art. 156 da CF ( progressividade genérica) como aquela prevista no § 4.º, II do art. 182 da CF (progressividade específica), tem objetivo ordinatório. O fim visado não é o aumento da arrecadação tributária."[46]
Como já dito, antes da Emenda Constitucional nº 29 de 2000, a Constituição somente previa para o IPTU uma progressividade extrafiscal, consistente no aumento, de ano para ano, da alíquota para o imóvel que deixasse de cumprir sua função social (art. 182 da CF). Entendia-se que, para instituir o IPTU progressivo no tempo, o município deveria prever a hipótese no plano diretor e editar lei específica municipal, nos termos de lei federal.
Essa lei federal somente foi publicada em 2001 e foi chamada de "Estatuto da Cidade" (Lei nº 10.257, de 2001).
Prevê o art. 182, § 4.º da CF:
"É facultado ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para a área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I parcelamento ou edificações compulsórios;
II Imposto sobre propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III Desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais.”
Todavia, o IPTU progressivo extrafiscal, previsto no art. 182, § 4º, II da Constituição não pode ser exigido sem que antes a municipalidade conclua o parcelamento ou edificações compulsórios, previstos no inciso I, uma vez que este artigo refere-se à sucessibilidade das condições. Assim, somente após o parcelamento ou edificações compulsórios, previstos no inciso I, é que poderá ser instituído o imposto IPTU progressivo no tempo, previsto no inciso II.
Os municípios, portanto, não podiam instituir a progressividade extrafiscal, por falta da lei federal, e não havia permissão expressa na Constituição para instituir a progressividade fiscal.
Ocorre que, à época, vários municípios instituíram a progressividade fiscal, com fundamento na opinião de vários tributaristas que a admitiam.
Como foi mencionado anteriormente, a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal, que, considerando a progressividade fiscal somente admissível para impostos pessoais, declarou a inconstitucionalidade de várias leis municipais que estatuíam alíquotas progressivas para o IPTU.
Então o Congresso Nacional, seguindo a orientação de que a progressividade fiscal é medida de justiça, aprovou a acima mencionada Emenda Constitucional nº 29, de 2000, que, expressamente, não só permitiu a progressividade fiscal (aumento de alíquotas em função do valor venal do imóvel urbano), como também criou a possibilidade de instituição de alíquotas seletivas, em função da localização e do uso do imóvel (art. 156, § 1º, I e II).
Com a EC 29/2000, o art. 156, § 1.º da CF passou a ter a seguinte redação:
“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I propriedade predial e territorial urbana;
II transmissão inter vivos, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;
III serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.
§ 1.º- Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4.º, inciso II, o imposto previsto no inciso I, poderá:
I ser progressivo, em razão do valor venal do imóvel e
II ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e do uso do imóvel. “
Dessa forma passa a ser permitida constitucionalmente a progressividade em razão do valor venal do imóvel, bem como, a diferenciação de alíquotas, em função da localização e do uso do imóvel, consagrando a constitucionalidade em função da base de cálculo. Assim, a progressividade do IPTU estendeu-se também à sua função fiscal, pois a extrafiscal já era prevista pelo art. 182, § 4.º, II.
Dessa forma, podemos afirmar que, atualmente, temos quatro hipóteses constitucionais previstas em que a progressividade das alíquotas do IPTU é possível: 1. Progressividade como instrumento de política urbana no tocante ao solo urbano não edificado ou não utilizado; 2. Progressividade de acordo com o valor do imóvel; 3. Progressividade de acordo com a localização do imóvel; 4. Progressividade de acordo com o uso do imóvel.
Importante salientar que o Estatuto da Cidade regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição. O art. 182 refere-se à progressividade extrafiscal temporal já analisada. Dessa forma, o Estatuto da Cidade não oferece impedimento algum à instituição do IPTU progressivo em função do valor venal do imóvel, nem ao IPTU de alíquotas seletivas, em função da localização e do uso do imóvel (art. 156).
Para Roque Antonio Carrazza: "A Constituição quer que, além de obedecer ao princípio da capacidade contributiva, o IPTU tenha alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade (nos termos do plano diretor). Em outras palavras, além de obedecer a uma progressividade fiscal (exigida pelo § 1.º do art. 145, c.c. o inc. I do § 1.º do art. 156, ambos da CF), o IPTU deverá submeter-se a uma progressividade extrafiscal (determinada no inc. II do § 1.º do art.156 da CF)."[47]
Conclui-se, assim, que a instituição de alíquotas progressivas e seletivas, apesar de permitida, deve obedecer aos princípios constitucionais da isonomia e da vedação ao confisco e não pode adotar critérios arbitrários na fixação das alíquotas, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade. O debate deve seguir no campo do quantum, e passará pela ponderação entre os princípios envolvidos, conforme tratamos no decorrer desse estudo.
Notas:
sócio de Rosenthal e Sarfatis Metta Advogados e mestrando em Direito Tributário na PUC-SP
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