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A questão da vulnerabilidade no caso de pesquisas em seres humanos: algumas reflexões sociais e jurídicas a partir do quadro normativo

Resumo: O presente artigo é resultado parcial de pesquisa bibliográfica, realizada pela equipe de pesquisadores, no curso de especialização em Direito Ambiental da Universidade Federal de Pelotas. Versa sobre a questão da pesquisa com seres humanos em situação de vulnerabilidade social. Como conclusão, tem-se um quadro em que se constatam deficiências quanto ao quadro normativo geral, quanto ao emprego do TCLE, em  países subdesenvolvidos, e ainda, apontam-se deficiências quanto ao papel do Ministério Público neste processo.


Palavras-chave: Ética. Grupos vulneráveis. Pesquisa.


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Sumário: Introdução. 1 Definição de pesquisa. 1.1 Diferença entre Pesquisa com seres humanos e pesquisa em seres humanos. 1.2 Princípios de Pesquisa. 1.2.1 Respeito pelas pessoas. 1.2.2 Beneficência. 1.2.3 Justiça. 1.2.4 Duplo padrão. 2 Vulnerabilidade. 3 Grupos Vulneráveis. 3.1 Incapazes. 3.2 Crianças. 3.3 Doentes mentais e comportamentais. 3.4 Mulheres grávidas. 3.5 Países subdesenvolvidos. 4 O protocolo da pesquisa. 4.1 Proteção. 4.2 Atribuições da CONEP. 5. O atual quadro acerca da fundamentação legal. 5.1. Código de Nuremberg. 5.2 A Declaração de Helsinque. 5.3 Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Envolvendo Seres Humanos. 5.4 Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. 5.5 Uso do placebo: polêmica oriunda da nova redação da Declaração de Helsinque. 6. Acesso ao tratamento pós-investigação. 7 Considerações finais. 8 Referências.


Introdução


As pesquisas realizadas com seres humanos, sobretudo, grupos vulneráveis necessitam de cuidados e atenção de forma que seja proporcionada a proteção requerida nesses casos.


Crianças, prisioneiros e doentes mentais são exemplos de grupos vulneráveis, pessoas com baixa escolaridade, pobres ou que têm acesso limitado a serviços de saúde são outros exemplos. Em muitas situações, as mulheres também podem ser consideradas como grupo vulnerável. Em algumas culturas, as mulheres estão submetidas aos homens no que se refere ao processo de tomada de decisão e a obtenção do consentimento informado voluntário torna-se extremamente difícil. Essas condições podem comprometer a capacidade de uma pessoa de recusar-se a participar em um estudo. Neste trabalho buscamos abordar o tema de modo sucinto focando, sobretudo, na fundamentação legal no tratamento desses grupos.


1 Definição de pesquisa


A atividade de pesquisa como atividade humana, pode ser definida como todo trabalho metódico e sistemático de produção de conhecimento, o que caracteriza a produção científica. A resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde em seu capítulo II.1, define como sendo:


“classe de atividades cujo objetivo é desenvolver ou contribuir para o conhecimento generalizável. O conhecimento generalizável consiste em teorias, relações ou princípios ou no acúmulo de informações sobre as quais estão baseados, que possam ser corroborados por métodos científicos aceitos de observação e inferência (resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, capítulo II.1).”


Essa definição adotada pela referida resolução é bastante genérica, caracterizando a atividade de pesquisa de forma muito clara e concisa, mas, não abarcando os aspectos relativos às particularidades quando do envolvimento de seres humanos na produção da pesquisa.


Sendo assim, já em definição seguinte (II.2), traz o que seria uma pesquisa envolvendo seres humanos, sendo: a “pesquisa que, individual ou coletivamente, envolva o ser humano de forma direta ou indireta, em sua totalidade ou partes dele, incluindo o manejo de informações ou materiais”. Novamente, a definição é dotada de um generalismo, uma vez que não faz referência a campos de pesquisa.


Essa diferenciação é bastante significativa para pensarmos em termos de padrões éticos, uma vez que existem enfoques metodológicos diferenciados de uma área em relação à outra. Podendo-se cometer equívocos ou o que é pior impedir o avanço da efetividade de direitos já consolidados normativamente.


1.1 Diferença entre Pesquisa com seres humanos e pesquisa em seres humanos


Essa diferenciação é bastante relevante para pensarmos a efetividade da resolução quando se trata dos aspectos éticos envolvidos em pesquisas que utilizam seres humanos.


Essa diferenciação relaciona-se a distinção metodológica existente entre a pesquisa envolvendo seres humanos numa perspectiva Biomédica e das Ciências Sociais. O Antropólogo Luís Roberto Cardoso de Oliveira situa bem esta distinção a partir da diferenciação entre “pesquisa em seres humanos” e “com seres humanos”, afirmando o autor que há:


“uma distinção central na relação com os sujeitos da pesquisa, invisibilizada pelo que estou chamando de areacentrismo, seria a diferença entre pesquisas em seres humanos, como no caso da área biomédica, e pesquisas com seres humanos, que caracterizaria a situação da antropologia” (OLIVEIRA, 1996, p.01).


Essa linha de raciocínio trata a questão em sua essência, uma vez que não se trata de uma distinção meramente terminológica, mas, trata-se do fato de considerar de forma geral, o que em sua gênese é dotado de especificidade, que é o caso das áreas científicas. Em relação a esta generalidade, o Professor Luís Roberto Cardoso de Oliveira, ressalta que:


“que a resolução 196, que foi instituída pela Comissão de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde para regular a ética em pesquisa com seres humanos em geral, comete alguns equívocos graves. Ao regular toda e qualquer pesquisa com seres humanos a resolução sugere certo exagero ou certa extrapolação de domínios” (OLIVEIRA, 1996, p.01).


Esse enfoque generalista pode levar a uma instrumentalização jurídica que pode incorrer em equívocos do ponto de vista ético, principalmente numa sociedade como a brasileira, uma vez que, do ponto de vista da pesquisa com seres humanos, estes são sujeitos do processo de pesquisa, sendo toda pesquisa estruturada num processo relacional entre pesquisador e sujeito pesquisado, já sob a ótica da pesquisa em seres humanos, a pessoa torna-se um elemento central na experimentação.


Em síntese, a natureza metodológica dos campos é distinta, o que implica a adoção de perspectivas, posturas e procedimentos na relação de pesquisa que não podem ser considerados no mesmo arcabouço ético.


1.2 Princípios de Pesquisa


As questões éticas relacionadas às pesquisas que envolvem seres humanos apoiam-se em três princípios básicos que são considerados o fundamento de todas as regulamentações e diretrizes que norteiam a condução ética de pesquisas, quais sejam: o respeito pelas pessoas, à beneficência e a Justiça. Estes princípios são considerados universais, transcendendo barreiras geográficas, culturais, econômicas, legais e políticas.


Pesquisadores, instituições e sociedade estão de certa forma, obrigados a assegurar-se de que estes princípios estarão sendo seguidos durante todo o processo de realização das pesquisas que envolvem seres humanos. Embora estes princípios possam ser considerados universais, a disponibilidade de recursos necessários para a sua manutenção não é, de forma alguma, universal.


Nesse sentido, os procedimentos utilizados para a vigilância ética dos estudos pode não alcançar um nível considerado ótimo ou aceitável. Um exemplo dessa situação é o fato de que não existem princípios universais que delimitem como um estudo clínico deveria ser supervisionado e acompanhado. Apesar dessas limitações, estes princípios devem direcionar o comportamento de todas as pessoas envolvidas no planejamento, implementação e financiamento de pesquisas que envolvem seres humanos.


1.2.1 Respeito pelas pessoas


Respeito pelas Pessoas significa reconhecer a capacidade e os direitos de todos os indivíduos de fazerem suas próprias escolhas e tomarem suas próprias decisões.


Este princípio está relacionado ao respeito pela autonomia individual e à autodeterminação que todo ser humano possui, reconhecendo sua dignidade e liberdade. Um componente importante deste princípio é a necessidade de proporcionar proteção especial às pessoas vulneráveis dos grupos que serão citados nos próximos capítulos.


O princípio do Respeito pelas Pessoas está contido no processo de obtenção do consentimento informado, devendo promover a capacitação necessária ao indivíduo para que ele possa tomar uma decisão voluntária, baseada em informações e esclarecimentos pertinentes no que diz respeito à sua participação na pesquisa. Potenciais participantes da pesquisa devem ser capazes de compreender completamente todos os elementos do processo de consentimento informado.


1.2.2 Beneficência


O Princípio da Beneficência torna o pesquisador responsável pelo bem estar físico, mental e social do participante, no que está relacionado ao estudo, sendo também vinculado ao princípio da não maleficência.


Os riscos para uma pessoa que participa de uma pesquisa específica devem ser avaliados em contraposição aos potenciais benefícios para a mesma.


Outro aspecto diz respeito à importância do conhecimento que poderá ser gerado pela realização da pesquisa.


A proteção do bem-estar do participante deve ser considerada como responsabilidade primordial do pesquisador. Proteger o participante é mais importante do que a busca de novos conhecimentos, o benefício para a ciência, que será resultante da pesquisa ou o interesse pessoal ou profissional.


1.2.3 Justiça


O pesquisador tem por obrigação distribuir igualmente riscos e benefícios no que diz respeito à participação na pesquisa. O recrutamento e seleção dos participantes da pesquisa devem ser feitos de maneira eqüitativa.


O princípio de justiça proíbe que determinado grupo de pessoas seja colocado em risco para que outras pessoas possam se beneficiar. Por exemplo, o princípio da justiça não permite a utilização de grupos vulneráveis – entre eles crianças, pobres ou prisioneiros – como participantes de pesquisas com o objetivo de beneficiar grupos mais privilegiados.


Assim como o princípio de respeito pelas pessoas, existe a necessidade de proteger grupos vulneráveis, incluindo-se os pobres e aqueles com acesso limitado à serviços de saúde.


1.2.4 Duplo padrão


O duplo padrão consiste em uma distorção da máxima jurídica de tratar os desiguais de forma desigual. Em síntese, é uma tentativa dos países desenvolvidos de subverter as regras limitadoras das pesquisas com os seres humanos nos países em desenvolvimento. Com um rol de regras mais flexíveis, em comparação às existentes em seus países, seria mais vantajoso investir em pesquisa utilizando voluntários de outros países, cujo sistema legal não fosse tão rigoroso.


Protagonizado pelos Estados Unidos, o movimento dos defensores da instituição do duplo padrão teve seu ápice recentemente, quando algumas tentativas de alterações na Declaração de Helsinque restaram frustradas, como veremos posteriormente em tópico específico. A essência da argumentação está posta no fato de que os tratamentos oferecidos com os testes seriam mais vantajosos e benéficos para os indivíduos do que os obtidos junto aos sistemas de saúde de seus países.


Apesar da argumentação supra, não há como defender o duplo padrão. A simples proposta de éticas diferenciadas por conta de fatores econômicos já soa atentatória contra a moral. E, sendo tal ética pretexto para a defesa da instrumentalização do ser humano torna inaceitável a própria discussão suscitada.


O duplo padrão não trata de tratamentos diferenciados para populações que se encontram em situações diversas. Mas sim, de graduações diferenciadas para seres humanos fundamentalmente iguais. E, esse entendimento não apenas não se coaduna com nenhum dos princípios da bioética, como se opõe frontalmente a eles. Em verdade, se opõe frontalmente ao princípio maior da proteção à dignidade da pessoa humana.


Se, as desigualdades submetem uma vasta parcela a condições indignas, a atitude mais adequada seria aproveitar-se da condição em que vivem os indivíduos para explora-los, supostamente fazendo-lhes um favor?


Longe disso, o mais adequado é trata-los da melhor forma possível, oferecendo-lhes, quando possível, o que há de melhor. Se as condições em que se encontram destoam dos países industrializados, então tais diferenças devem ser atacadas, e o tratamento dispensado deve ser no sentido de suprir o que lhes falta e assim garantir os mesmos direitos. É isso que afirmam os princípios da bioética e os próprios direitos humanos.


Admitir éticas diferentes seria desconstruir a essência do que se entende por ética e moral. O duplo padrão, no âmbito da bioética, simboliza justamente isso: a desconstrução de tudo o que foi feito e conquistado até o momento atual, não apenas pela subversão dos valores éticos pelos econômicos. Mas porque exprime algo maior, que é a tangível presença no mundo de um sentimento de superioridade e de ausência de solidariedade.


2 Vulnerabilidade


A pesquisa com seres humanos, como já visto, deve ser norteada por preceitos e princípios éticos que evidenciem o respeito à dignidade da pessoa humana e os demais direitos fundamentais e humanos. Para tanto, é preciso à observância de cada caso concreto, levando-se em consideração as peculiaridades da pesquisa a ser desenvolvida e dos atores que serão envolvidos no processo.


É sabido que o sistema capitalista é oriundo da desigualdade e que o modo de vida humano, logicamente, se opera em diferentes padrões. É de amplo conhecimento também, que diversas circunstâncias culturais variam amplamente entre diferentes povos e nações, gerando uma diversidade cultural, e de modo de vida, intensa. Somado a esse cenário diversificado pela desigualdade social e pelas diferenças culturais, se colocam questões de ordem biológica e questões de papel social, contribuindo para atestar inúmeras situações diversificadas nas quais um indivíduo pode estar inserido.


Esse contexto, reflete claramente que, para que se efetivem a proteção à dignidade da pessoa humana, todos os fatores diferenciadores devem ser levados em consideração para que os limites éticos das pesquisas com seres humanos não sejam ultrapassados. Para garantir o respeito a tais limites, criou-se o conceito de vulnerabilidade.


A vulnerabilidade está intimamente conectada ao princípio da autodeterminação, embora não seja dele indissociável. Nos termos da Resolução 196/96 do CSN, a vulnerabilidade “refere-se a estado de pessoas ou grupos, que por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido”. O texto da referida resolução trata vulnerabilidade como sinônimo de capacidade de autodeterminação reduzida, mas, em verdade, embora a redução da autodeterminação seja um caso de vulnerabilidade, a vulnerabilidade em si não pode ser assim conceituada.


A redução da autonomia pode ser temporária ou definitiva, gerando,


consequentemente, redução na capacidade civil ou até mesmo a incapacidade. Já a vulnerabilidade não se limita ao preenchimento de vícios comportamentais ou limitações como prescritas em lei; vai mais longe, e pode se justificar meramente pelo contexto social. A capacidade civil é atributo inerente da personalidade, a qual decorre do nascimento com vida. Contudo, a capacidade, só é plenamente exercida após o indivíduo atingir a maioridade, desde que livre de quaisquer condições que limitem sua capacidade de entendimento. Assim, nos termos do art. 3º do Código Civil, são absolutamente incapazes os menores de dezesseis anos, os que por enfermidade ou deficiência mental não tiverem o discernimento mental necessário para a prática dos atos da vida civil, e aqueles que não puderem exprimir sua vontade. Aqui se encontram os doentes em estado comatoso, os surdos-mudos que não possuírem a educação adequada para se comunicar, entre outros. Aos incapazes é absolutamente vedada a prática de qualquer ato negocial ou que consista em consentimento de uso de seus bens ou até mesmo corpo. Qualquer ato praticado por eles será nulo desde a sua origem.


Prevê ainda o referido diploma legal uma situação intermediária, chamada incapacidade relativa, onde se encontram os jovens maiores de dezesseis e menores de dezoito anos, os excepcionais com desenvolvimento mental incompleto, os pródigos, os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e aqueles que possuem desenvolvimento mental incompleto. A esses indivíduos é possibilitada a prática dos atos da vida civil, desde que devidamente assistidos.


A redução da autonomia, portanto, pode ser tida como sinônimo de incapacidade relativa ou até mesmo de incapacidade civil, mas nunca de vulnerabilidade.


A vulnerabilidade é bem mais ampla, e abrange situações concernentes a indivíduos que, apesar de preencherem os requisitos legais para pleno gozo da capacidade civil, são absolutamente alienados do mundo por questões sociais, sem possuir o mínimo de instrução e educação para poderem entender a complexidade de uma pesquisa científica. A esses indivíduos, de nada adianta se utilizar dos métodos tradicionais para proporcionar o consentimento informado, pois seu grau de desconhecimento é tamanho que os deixa à margem.


São indivíduos que, quer por fatores econômicos, quer por fatores culturais, são vítimas da desigualdade em sua manifestação mais feroz, e não possuem o entendimento suficiente da sociedade na qual estão inseridos para manifestarem validamente suas vontades. Validamente no sentido de livre de vícios e fundadas na total compreensão do que lhes é questionado.


Em suma, a vulnerabilidade abrange não apenas os incapazes e os relativamente incapazes – ou indivíduos de autodeterminação reduzida – mas também os marginalizados, embora civilmente capazes. E, a grande ironia, ou talvez a grande perversão do sistema, é que são os vulneráveis justamente os alvos da maioria das pesquisas.


3 Grupos Vulneráveis


O conceito de vulnerabilidade, já trabalhado no presente, evidencia a existência de dois tipos de vulnerabilidade: a decorrente de redução de autonomia ou incapacidade civil e a decorrente de uma condição sociocultural e econômica.


Logo, os vulneráveis se dividem em grupos, dentre os principais, podemos destacar os incapazes, crianças, doentes mentais e comportamentais, mulheres grávidas, populações de países subdesenvolvidos e povos indígenas.


 Nestes casos, deverá haver uma justificação clara dos motivos pelos quais foram escolhidos para participarem da pesquisa, todos especificados no protocolo, para que sejam avaliados pelo Comitê de Ética. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido deverá ser garantido através de representantes legais dos referidos sujeitos da pesquisa. Outros grupos como aqueles preenchidos por indivíduos expostos a certos condicionamentos ou sujeitos à influência de autoridade, como por exemplo, estudantes, militares, empregados, presidiários, etc., serão igualmente protegidos, sendo-lhes garantido pleno direito de escolha na participação nas pesquisas sem sofrer represálias ou constrangimentos.


3.1 Incapazes


São aqueles indivíduos reconhecidos pela lei civil como incapazes de manifestar validamente sua vontade. Como exemplos têm-se: crianças, adolescentes, portadores de perturbação ou doença mental, doentes em estado de coma, interditados, etc. A Resolução 196/96 do CNS, determina que, nestes casos, há necessidade de expresso consentimento do responsável, pais no caso de crianças e curador no caso de doentes mentais e interditados. A Declaração de Helsinque coloca ainda a possibilidade de o consentimento do vulnerável acrescer a do responsável, como forma de deixá-lo participar ativamente do processo. As diretrizes da CIOMS possuem diversos princípios concernentes ao tema, os quais se encontram tácita e expressamente constantes nos textos legais nacionais.


3.2 Crianças


Antes de iniciar a pesquisa envolvendo crianças, o pesquisador deve estar seguro que crianças não devem ser envolvidas em pesquisas que possam ser desenvolvidas igualmente em adultos, de maneira que o objetivo da pesquisa deve ser o de gerar conhecimentos relevantes para a saúde das crianças. Os pais ou representantes legais devem dar um consentimento por procuração, sendo o consentimento de cada criança deve ser obtido na medida da sua capacidade.


A recusa da criança em participar na pesquisa deve sempre ser respeitada, a menos que, de acordo com o protocolo de pesquisa, a terapia que a criança receberá não tenha qualquer alternativa medicamente aceitável e o risco apresentado pelas intervenções que não beneficiem individualmente a criança sujeito da pesquisa seja baixo e proporcional com a importância do conhecimento a ser obtido e as intervenções que propiciarão benefícios terapêuticos devem ser, pelo menos tão vantajosas para a criança sujeito da pesquisa, quanto qualquer alternativa disponível.


3.3 Doentes mentais e comportamentais


Antes de iniciar uma pesquisa envolvendo pessoas, que por motivo de distúrbios mentais ou comportamentais, não são capazes de dar consentimento informado adequadamente, o pesquisador deve estar seguro que estas pessoas não serão sujeitos de pesquisas que poderiam ser realizadas em pessoas com plena capacidade mental, devendo ser o objetivo da pesquisa, gerar conhecimentos relevantes para as necessidades de saúde peculiares a pessoas com distúrbios mentais ou comportamentais.


O consentimento de cada indivíduo deverá ser obtido na medida de sua capacidade e a recusa de participação de um indivíduo em pesquisa não clínica será sempre respeitada. No caso de indivíduos incompetentes, o consentimento informado será obtido com o responsável legal ou outra pessoa devidamente autorizada, de maneira que, o grau de risco associado às intervenções que não beneficiem o indivíduo pesquisado deve ser baixo e proporcional à importância do conhecimento a ser gerado e as intervenções que possivelmente propiciem benefícios terapêuticos devem ser, no mínimo, tão vantajosas ao indivíduo pesquisado, quanto qualquer alternativa.


Não apenas a referida resolução do CNS aborda a pesquisa com os incapazes, a Resolução 41/95, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, vinculado ao Ministério da Justiça, estabelece que, além do consentimento por procuração dos pais ou responsáveis, também a criança ou adolescente devem participar ativamente do processo, quando tiverem capacidade moral adequada.


A Resolução 251/97 para projetos em área de farmacologia e novas substâncias, estabelece que a criança e o adolescente podem participar ativamente do processo, na medida de sua capacidade.


3.4 Mulheres grávidas


Gestantes não devem ser sob quaisquer circunstâncias, sujeitos de pesquisa não clínica, a menos que a pesquisa não acarrete risco maior que o mínimo para o feto ou bebê em aleitamento e o objetivo da pesquisa deverá ser sempre, gerar novos conhecimentos sobre a gestação ou lactação.


Como regra geral, gestantes e não devem ser sujeitos de quaisquer pesquisas clínicas exceto aquelas planejadas para proteger ou melhorar a saúde da gestante, nutriz, feto ou bebe em aleitamento, e que outras mulheres não grávidas não possam ser sujeitos adequados a este propósito.


3.5 Países subdesenvolvidos


Sabemos que a definição adotada pela Resolução 196/96 (II.15) trata a vulnerabilidade como sendo “o estado de pessoas ou grupos , que por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida”, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido, levando-nos ao um entendimento mais alargado da questão da vulnerabilidade, que passa pela ideia de pensarmos esta não somente a partir dos grupos ou setores exóticos (comunidades tradicionais) ou isolados socialmente (doentes, prisioneiros, abrigados, etc.), possibilitando a consideração da potencialidade da vulnerabilidade naqueles indivíduos próximos de nós, social, culturalmente ou economicamente.


Num país como o nosso, de dimensões territoriais continentais, com um processo de exclusão social estrutural e com níveis gerais de escolarização muito baixa, pensar a vulnerabilidade sob a ótica do exotismo, pode levar ao mascaramento daquilo que está no âmago da questão ética, quando na pesquisa envolvendo seres humanos, qual seja, a questão da autonomia, tanto do pesquisador como do pesquisado, ou seja, o investimento científico não é algo espontâneo, existe com uma intenção, todo processo de pesquisa contém por trás a pergunta para que e para quem esse conhecimento vá servir? O que implica por outro lado pensarmos que a participação do ser humano também é condicionada por uma intencionalidade.


Em decorrência disso, devido as nossas condições materiais, onde vivemos numa sociedade marcada pela desigualdade e ignorância, falarmos em liberdade e esclarecimento é algo distante da realidade, o que faz com que o instrumento do consentimento livre e esclarecido, se constitua, muito mais, enquanto um procedimento formal, ineficaz, do ponto de vista do estabelecimento de uma relação positiva dentro do processo de produção de conhecimento.  Seria idealismo ou má fé, considerarmos que um sujeito em situação de extrema pobreza e ignorância é incapaz de consentir sobre algo tão complexo quanto uma pesquisa.


Conforme traz-nos a resolução 196/96, II.16, incapacidade “refere-se ao possível sujeito da pesquisa que não tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido”, o que num país onde milhares de pessoas não tem existência civil, leva-nos a pensar com mais cuidado sobre a ideia de incapacidade, como pressuposto para o consentimento.


Num país como o nosso deve ser observado estas condições de ordem material para pensarmos o agir ético em pesquisa que envolva seres humanos, pois o vulnerável está bem perto de nossos olhos, compartilhando conosco, mesmo que numa condição desigual, a condição efêmera da existência humana.


Esse exercício de pensar o vulnerável de forma mais alargada e não somente pelo exotismo, pode prevenir nossa sociedade de não repetir barbaridades experimentadas ao longo da história da humanidade, como o uso de prisioneiros de guerra e doentes, como foi o caso do uso de judeus pelos cientistas nazistas ou algo que ronda nossos dias, como é o caso da proposta norte americana do duplo padrão para ética em pesquisa, um para os países desenvolvidos e outro para os países pobres.


3.6 Índios


As pesquisas envolvendo povos indígenas devem obedecer também aos referenciais da bioética, considerando-se as peculiaridades de cada povo e/ou comunidade.


Os benefícios e vantagens resultantes do desenvolvimento de pesquisa, devem atender às necessidades de indivíduos ou grupos alvo do estudo, ou das sociedades afins e/ou da sociedade nacional, levando-se em consideração a promoção e manutenção do bem estar, a conservação e proteção da diversidade biológica, cultural, a saúde individual e coletiva e a contribuição ao desenvolvimento do conhecimento e tecnologia próprias.


Qualquer pesquisa envolvendo a pessoa do índio ou a sua comunidade, deve respeitar a visão de mundo destes povos, ou seja, os costumes, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social, filosofias peculiares, diferenças linguísticas e estrutura política, não admitindo exploração física, mental, psicológica ou intelectual e social dos indígenas.


Ter a concordância da comunidade alvo da pesquisa que pode ser obtida por intermédio das respectivas organizações indígenas ou conselhos locais, sem prejuízo do consentimento individual, que em comum acordo com as referidas comunidades designarão o intermediário para o contato entre pesquisador e a comunidade. Em pesquisas na área de saúde deverá ser comunicado o Conselho Distrital, garantindo a igualdade de consideração dos interesses envolvidos, levando em conta a vulnerabilidade do grupo em questão.


Recomenda-se, preferencialmente, a não realização de pesquisas em comunidades de índios isolados. Em casos especiais devem ser apresentadas justificativas detalhadas.


Será considerado eticamente inaceitável o patenteamento por outrem de produtos químicos e material biológico de qualquer natureza obtidos a partir de pesquisas com povos indígenas.


A formação de bancos de DNA, de linhagens de células ou de quaisquer outros materiais biológicos relacionados aos povos indígenas, não é admitida sem a expressa concordância da comunidade envolvida, sem a apresentação detalhada da proposta no protocolo de pesquisa a ser submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), para que se obtenha a formal aprovação dos referidos comitê e comissão.


A não observância a qualquer um dos itens acima deverá ser comunicada ao CEP institucional e à CONEP do Conselho Nacional de Saúde, para as providências cabíveis.


4 O protocolo da pesquisa


O protocolo a ser submetido à avaliação ética deverá atender ao item VI da Resolução 196/96, acrescentando-se o compromisso de obtenção da anuência das comunidades envolvidas tal como previsto no item III § 2 desta norma, descrevendo-se o processo de obtenção da anuência.


É exigido também, a descrição do processo de obtenção e de registro do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assegurada a adequação às peculiaridades culturais e linguísticas dos envolvidos.


4.1 Proteção


A realização da pesquisa poderá a qualquer tempo ser suspensa, obedecido ao disposto no item III.3.z da Resolução 196/96, desde que seja solicitada a sua interrupção pela comunidade indígena em estudo, caso a pesquisa em desenvolvimento venha a gerar conflitos e/ou qualquer tipo de mal estar dentro da comunidade ou haja violação nas formas de organização e sobrevivência da comunidade indígena, relacionadas principalmente à vida dos sujeitos, aos recursos humanos, aos recursos fitogenéticos, ao conhecimento das propriedades do solo, do subsolo, da fauna e flora, às tradições orais e a todas as expressões artísticas daquela comunidade.


4.2 Atribuições da CONEP


Dentro das atribuições previstas no item VIII.4.c.6 da Resolução CNS


196/96 cabe à CONEP, após a aprovação do CEP institucional, apreciar as pesquisas enquadradas nessa área temática, ainda que simultaneamente enquadradas em outra. Ainda, prevê o parecer da Comissão Intersetorial de Saúde do Índio (CISI), quando necessária consultoria, poderá ser solicitado pela CONEP.


Os casos omissos referentes aos aspectos éticos da pesquisa, serão resolvidos pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.


Temos ainda em proteção ao povo indígena o presidente da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI), que no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo Estatuto aprovado pelo Decreto nº564, de 08 de julho de 1992, tendo em vista o que consta do Processo FUNAI/BsB/2105/92, resolve:


Art. 1º Aprovar as normas que disciplinam o ingresso em Terras Indígenas com finalidade de desenvolver Pesquisa Científica, conforme documento em anexo.


Art. 2º Esta Instrução Normativa entra em vigor na data de sua publicação.


Art. 3º Revoga-se a Instrução Normativa Nº 001/PRESI/94 de 08 de abril de 1994, como qualquer outro dispositivo em contrário.


Art. 4º Todo e qualquer pesquisador nacional ou estrangeiro que pretenda ingressar em terras indígenas, para desenvolver projeto de pesquisa científica, deverá encaminhar sua solicitação à Presidência da FUNAI, e no caso de requerimento coletivo, deverá ser subscrito por um dos membros do grupo, como seu responsável.


Art. 5º O pesquisador ou pesquisadores deverão anexar ao pedido do que trata o Art. 1º a seguinte documentação:


I. Carta de apresentação da Instituição a que o pesquisador está vinculado e no caso de estudantes de graduação e pós-graduação, carta de apresentação do orientador responsável;


II. Projeto de pesquisa, em português, detalhando a(s) terra(s) indígena(s) na(s) qual(is) pretende ingressar e cronograma;


III. curriculum vitae do(s) pesquisador(es) redigido em português;


IV. cópia autenticada da Carteira de Identidade ou Passaporte, quando se tratar de nacionalidade estrangeira;


V. atestado individual de vacina contra moléstia endêmica na área; VI. atestado  médico de não portador de moléstia contagiosa;


VII. quando se tratar de pesquisador(es) de nacionalidade estrangeira, exigir-se-á para a efetivação de seu ingresso na terra indígena a obtenção de seu respectivo visto temporário, como prevê o artigo 22, do decreto nº 86.715 de 10 de dezembro de 1981, além do cumprimento do disposto no decreto nº 98.830, de 15 de janeiro de 1990. Art. 6º O Pesquisador deverá encaminhar diretamente ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, o Projeto de Pesquisa e curriculum vitae.


Art. 7º A solicitação do ingresso em terra indígena por parte de pesquisadores nacionais ou estrangeiros será objeto de análise pela Coordenadoria Geral de Estudos e Pesquisas – CGEP, uma vez instruído o processo com o parecer favorável do CNPq quanto ao mérito da pesquisa proposta e após ouvidas as lideranças indígenas.


Parágrafo Único – A consulta às lideranças indígenas será realizada pela FUNAI, com a presença e participação do pesquisador, podendo este em caso de resposta positiva permanecer na terra indígena com autorização provisória até a emissão de uma definitiva.


Art. 8º No caso de negativa das lideranças indígenas quanto ao pleito do ingresso ou quaisquer outros entraves levantados no decorrer da análise do processo ou em qualquer outra etapa de desenvolvimento da pesquisa, a CGEP encaminhará a questão ao Conselho Indigenista através da Presidência do Órgão. Art. 9º Quando se tratar de pesquisa em espaço territorial de ocupação tradicional de índios isolados, o pedido será ainda, objeto de exame e parecer prévio específico por parte do departamento de Índios Isolados – DII/FUNAI.


Art. 10º A presidência da FUNAI poderá suspender a qualquer tempo, as autorizações concedidas de acordo com as presentes normas desde que:


 I.  seja solicitada a sua interrupção por parte da comunidade indígena em questão;


II. a pesquisa em desenvolvimento venha a gerar conflitos dentro da terra indígena;


III. a ocorrência de situações epidêmicas agudas ou conflitos graves envolvendo índios e não índios.


Parágrafo Único – Fica automaticamente prorrogada a autorização pelo prazo que a terra indígena objeto do Projeto estiver interditada, pelos motivos apontados no Art. 10, inciso III.


Art. 11º Todos os pesquisadores estrangeiros ou nacionais que tiverem


autorizações concedidas para ingresso em terras indígenas, obrigar-se-ão:


I. cumprir todos os preceitos legais vigentes, notadamente os previstos na Lei nº 6.001 de 19.12.73;


II. remeter à FUNAI, relatório dos Trabalhos de campo, em português, até 6 (seis) meses após o término da pesquisa, onde poderão constar sugestões práticas que possam trazer benefícios para as comunidades indígenas que poderão ser consideradas pela FUNAI nas definições de sua política;


III. remeter à FUNAI, 2 (dois) exemplares de publicações, artigos, teses e outras produções intelectuais oriundas das referidas pesquisas.


Art. 12º Nos casos de solicitação de prorrogação do prazo para continuidade do projeto de pesquisa científica na mesma terra indígena, caberá a Coordenação Geral de Estudos e Pesquisas – CGEP, os seguintes procedimentos:


I. notificar junto ao setor competente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico- CNPq, a solicitação:


II. consultar as lideranças quanto ao retorno do pesquisador na terra indígena;


III. observar cumprimento do Art. 8º por parte do pesquisador interessado.”


5. O atual quadro acerca da fundamentação legal


O ordenamento jurídico nacional não possui um diploma legal emanado do Poder Legislativo que regule as pesquisas com os seres humanos, tampouco com os grupos vulneráveis, contudo há uma série de regulamentações de origem internacional e nacional, bem como disposições esparsas em textos legais diferentes. O presente tem por objetivo enumerar e destacar as mais importantes e relevantes segundo nossa perspectiva.


5.1. Código de Nuremberg


O Código de Nuremberg pode ser descrito como o ponto primordial para a implementação dos preceitos da bioética no concernente à pesquisa com seres humanos.


O Código data de 1947, quando, após a queda do regime nazista diversos cientistas foram processados pelo Tribunal Militar Internacional por terem realizados experimentos em prisioneiros nos campos de concentração. A decisão do tribunal incluiu o que se convencionou denominar de Código de Nuremberg, um ato declaratório que serviria de cerne ético para todo e qualquer experimento médico com participantes humanos.


A declaração não abordou explicitamente os grupos vulneráveis, mas tratou de dispor sobre a inafastabilidade do consentimento informado e, de forma reflexa, ao preceituar sobre a necessidade de qualidade e efetividade do consentimento, ressaltou a importância de se valer de indivíduos capazes de expressar suas vontades.


5.2 A Declaração de Helsinque


Datada de 1964, e revista diversas vezes, a Declaração de Helsinque é considerada a primeira medida internacional efetiva realizada com vistas à padronização da pesquisa no campo da biomedicina em nível mundial. É o marco inicial para o reconhecimento da vulnerabilidade e da necessidade de proteção diferenciada para os indivíduos assim considerados.


As alterações no texto da Declaração de Helsinque, no que tange aos grupos vulneráveis, alternaram o nível de proteção a esses indivíduos, para em 1989 retomarem o caráter mais protetivo.


Na obtenção de consentimento informado para projeto de pesquisa, o médico deve ser particularmente cuidadoso com o indivíduo que, de alguma forma, dependa dele ou possa ter concordado sob pressão. Nesse caso, o consentimento informado deve ser obtido por um médico que não esteja envolvido na pesquisa e que seja completamente independente nesse relacionamento oficial.


No caso de incapacidade legal, o consentimento informado deve ser dado pelo responsável, estabelecido segundo a legislação do país. Se a capacidade física e mental tornar impossível obter consentimento informado ou se o participante for menor de idade, a permissão dada por um parente responsável substitui a do participante, de acordo com a legislação de cada país.


Sempre que a criança for de fato capaz de dar seu consentimento, este deve ser obtido em acréscimo àquele fornecido pelo seu guardião legal. Em 1975, os incisos supra foram modificados e passaram a ter a seguinte redação:


10. Ao receber o consentimento para o projeto de pesquisa, o médico deve tomar cuidado especial, caso o indivíduo esteja em relação de dependência para com ele, ou que o mesmo dê seu consentimento sob coação. Neste caso, o consentimento formal deve ser obtido por um médico que não esteja envolvido na investigação e que seja completamente independente deste relacionamento oficial. (Grifo nosso)


11. No caso de incapacidade jurídica, o consentimento formal deve ser obtido do tutor legal, segundo a legislação nacional.


Nos casos em que incapacidade física ou mental torne impossível a obtenção do consentimento formal, ou quando o indivíduo for menor, a permissão de um parente substitui a do próprio indivíduo, de conformidade com a legislação nacional.”


As alterações se seguem e, em 1983, os incisos passaram a dispor que (grifo nosso):


10. Na obtenção de consentimento informado para projeto de pesquisa, o médico deve ser particularmente cuidadoso com o indivíduo que, de alguma forma, dependa dele ou possa ter concordado sob pressão. Nesse caso, o consentimento informado deve ser obtido por um médico que não esteja envolvido na pesquisa e que seja completamente independente nesse relacionamento oficial.


11. No caso de incompetência legal, o consentimento informado deve ser dado pelo responsável, estabelecido segundo a legislação do país. Se a capacidade física e mental tornar impossível obter consentimento informado ou se o participante for menor de idade, a permissão dada por um parente responsável substitui a do participante, de acordo com a legislação de cada país. Sempre que a criança for de fato capaz de dar seu consentimento, este deve ser obtido em acréscimo àquele fornecido pelo seu guardião legal.”


Por fim, em 1989, as alterações nos incisos em tela lhes atribuiu o seguinte conteúdo (grifos nossos):


10. Na obtenção de consentimento informado para projeto  pesquisa, o médico deve ser particularmente cuidadoso com o indivíduo que, de alguma forma, dependa dele ou possa ter concordado sob pressão. Nesse caso, o consentimento informado deve ser obtido por um médico que não esteja envolvido na pesquisa e que seja completamente independente nesse relacionamento oficial.


11. No caso de incompetência legal, o consentimento informado deve ser dado pelo responsável, estabelecido segundo a legislação do país. Se a capacidade física e mental tornar impossível obter consentimento informado ou se o participante for menor de idade, a permissão dada por um parente responsável substitui a do participante, de acordo com a legislação de cada país. Sempre que a criança for de fato capaz de dar seu consentimento, este deve ser obtido em acréscimo àquele fornecido pelo seu guardião legal.”


O que se pode extrair das transcrições acima, é que a reunião de 1975 foi excessivamente transformadora, e suavizou demais os limites éticos descaracterizando relativamente o caráter protetivo da Declaração no concernente aos vulneráveis.


É nítida, no texto de 1975, a ideia de que um parente sem ser realmente o responsável poderia consentir pelo incapaz, se a legislação nacional assim dispusesse. E pior, foi extraída do inciso 11 a possibilidade de se acrescer ao consentimento do representante o consentimento do paciente. A boa técnica induz ao raciocínio de que as declarações internacionais não podem partir do predicado de que as legislações nacionais serão suficientemente protetivas e garantidoras da dignidade da pessoa humana, por isso as redações posteriores se mostram mais adequadas.


Já no que tange ao inciso 10, a questão cerne das controvérsias foi admitir que o paciente em relação de dependência do médico poderia ser coagido a participar das pesquisas. Ora, há grande diferenciação entre pressão e coação, sendo a primeira qualquer tipo de situação que invocasse um dever de participar ou um sentimento de obrigatoriedade.


Já por coação, entende-se a efetiva ação de obrigar o indivíduo a se submeter à pesquisa. Portanto, a utilização do termo pressão abrange uma gama maior de possíveis ações e se mostra mais adequada à finalidade protetiva da Declaração de Helsinque.


A redação atual da declaração em estudo, desloca para o inciso 9 as disposições referentes à vulnerabilidade, e mantém de forma sintética o disposto anteriormente nos incisos 10 e 11, hoje com redações totalmente diferentes.


 A investigação médica está sujeita à normas éticas que promovam o respeito a todos os seres humanos e protejam a sua saúde e seus direitos. Algumas populações alvos de pesquisas são particularmente vulneráveis e necessitam de uma proteção especial. Estes incluem aqueles que não podem dar ou recusar o seu consentimento por si e aqueles que podem ser vulneráveis à coação ou a influência indevida. As alterações supra se mostraram as mais relevantes ao longo dos anos sob a ótica dos grupos vulneráveis, mas não foram as únicas.


Anualmente, a Associação Médica Mundial (WMA no original, ou AMM em português) realiza reuniões que discutem o cenário médico mundial, desde novos tratamentos e pesquisas até mesmo questões éticas. Na reunião de 1997, a delegação dos Estados Unidos iniciou um movimento com a pretensão de alterar alguns preceitos da Declaração de Helsinque, cuja decisão a respeito foi postergada para a reunião de 2000. Dentre as várias propostas de alteração uma delas refletia diretamente sobre os grupos vulneráveis; a instituição do duplo padrão. Os Estados Unidos pretendiam alterar o disposto no item 2, do II inciso da Declaração o qual estabelece que, mesmo diante da falta de métodos diagnósticos ou terapêuticos no local onde os participantes da pesquisa residem, esses têm direito que lhes sejam fornecidos os melhores métodos referidos comprovados.


Sutilmente, pretendiam os norte-americanos, membros da Associação Médica, alterar a redação do citado dispositivo. Sua intenção era que os participantes da pesquisa tivessem garantido apenas os métodos diagnósticos ou terapêuticos que lhes sejam acessíveis, ou seja, disponíveis no país em que residem. Embora tênue, a diferença entre ‘melhores métodos diagnósticos ou terapêuticos comprovados e melhor método diagnóstico, profilático, ou terapêutico que em qualquer outra situação estaria disponível’, o que se propõe é a estipulação de duplo padrão de pesquisa: um para ser aplicado em países periféricos e outros em países centrais, na medida em que nos primeiros, em grande parte, não há qualquer tratamento disponível.


As pretensões dos EUA foram definitivamente sepultadas em 2004, quando a AMM declarou não ser condizente com a essência da Declaração de Helsinque a instituição do duplo padrão. Como resultado, os EUA abandonaram a referida declaração como seu norte ético.


As reuniões de 2002 e 2004 da AMM não resultaram em alterações, mas sim em notas esclarecedoras aos incisos 29 e 30, ambos concernentes às questões metodológicas dos estudos, como o uso do placebo e das melhores técnicas existentes.


Recentemente, em outubro do corrente ano, em Seul, foi realizada uma nova reunião da AMM, a qual resultou em alterações substanciais, as quais refletem diretamente na essência da Declaração, pois passou a permitir a utilização de placebo mesmo havendo tratamento adequado para a condição. Vários países, como o Brasil, foram contra tal alteração e passaram a não aplicar internamente o entendimento esboçado pela nova redação da declaração.


5.3 Diretrizes Éticas Internacionais para a Pesquisa Envolvendo Seres Humanos


O Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas (CIOMS) é uma organização voltada para a implementação dos princípios constantes da Declaração de Helsinque, especialmente nos países em desenvolvimento. Em 1993, baseadas nos três princípios éticos fundamentais para a realização de pesquisas com seres humanos, OLIVEIRA, Aline Albuquerque S. em Perspectivas epistemológicas da bioética brasileira a partir da teoria de Thomas Kuhn, elaborou e divulgou as Diretrizes Éticas Internacionais para Pesquisa Biomédica envolvendo Sujeitos Humanos. O documento consiste em tópicos comentados de extrema importância para os grupos vulneráveis, os principais pontos serão tratados a seguir quando do estudo dos grupos propriamente ditos.


5.4 Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde.


Principal instrumento regulamentador da atividade científica de pesquisa com seres humanos no âmbito nacional, a Resolução 196/96 do CNS trás em seu corpo a definição de vulnerabilidade, bem como diversos tópicos e considerações acerca dos grupos vulneráveis, bem como todas as etapas procedimentais para a efetivação de pesquisa com quaisquer indivíduos que necessitem de cuidados e atenção especiais. São exemplos de medidas protetivas constantes na resolução em tela:


II.15 – Vulnerabilidade – refere-se a estado de pessoas ou grupos , que por quaisquer razões ou motivos, tenham a sua capacidade de autodeterminação reduzida, sobretudo no que se refere ao consentimento livre e esclarecido.


II.16 – Incapacidade – Refere-se ao possível sujeito da pesquisa que não tenha capacidade civil para dar o seu consentimento livre e esclarecido, devendo ser assistido ou representado, de acordo com a legislação brasileira vigente.


III.1 – A eticidade da pesquisa implica em:


a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes. Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-lo em sua dignidade, respeitá-lo em sua autonomia e defendê-lo em sua vulnerabilidade;


j) ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena.


Indivíduos ou grupos vulneráveis não devem ser sujeitos de pesquisa quando a informação desejada possa ser obtida através de sujeitos com plena autonomia, a menos que a investigação possa trazer benefícios diretos aos vulneráveis.”


Nestes casos, o direito dos indivíduos ou grupos que queiram participar da pesquisa deve ser assegurado, desde que seja garantida a proteção à sua vulnerabilidade e incapacidade legalmente definida;


5.5 Uso do placebo: polêmica oriunda da nova redação da Declaração de Helsinque.


Placebo é conceituado como uma substância inerte ou inativa, a que se atribuem certas propriedades, normalmente de cura de determinada doença, e que, ingerida, pode produzir um efeito que suas propriedades não possuem.


Muitas pessoas que ingerem, por exemplo, uma pílula contendo nada mais do que amido com açúcar, ou um dos dois componentes, revelam melhoras de uma doença, imaginando ter tomado o remédio feito especialmente para essa doença. É uma medida utilizada principalmente em pesquisas, a fim de se verificar o verdadeiro efeito de determinada droga sobre alguma doença.


A Resolução 196/96 do CNS dispõe, acerca do placebo, que sua utilização apenas será admitida quando for o caso, em termos de não maleficência e de necessidade metodológica. Essa era a orientação preponderante, fundada nas primeiras redações da Declaração de Helsinque, as quais dispunham que o placebo não seria utilizado quando houvesse tratamento existente e eficaz.


Contudo, em outubro de 2008, a Declaração de Helsinque teve sua redação sobre o tema alterada, dispondo ser possível a utilização do placebo mesmo quando existirem tratamentos para as doenças que forem objeto de estudo. O novo texto desta ressalta que, isso só poderá ocorrer se a pesquisa feita com placebos não causar sérios problemas à saúde dos participantes do estudo.


O Brasil, assim como Portugal, Espanha, e diversos países africanos e da América Latina foram contrários à mudança. O resultado foi a edição da Resolução 1885/2008 do Conselho Federal de Medicina, que dispõe:


Art. 1º É vedado ao médico vínculo de qualquer natureza com pesquisas médicas envolvendo seres humanos, que utilizem placebo em seus experimentos, quando houver tratamento eficaz e efetivo para a doença pesquisada.


Art. 2º Esta resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogando-se as disposições em contrário.”


De maneira que no concernente às pesquisas em território brasileiro, o entendimento dominante continua sendo de que o placebo só é aceitável quando não existir tratamento para a doença em estudo. Um dos principais fundamentos para tal postura, é o temor da utilização do placebo pois eventualmente ele opera melhora dos sintomas, mas na realidade a doença continua avançando e pode ser fatal.


Episódio recente envolveu a farmacêutica Merck a qual desenvolvia um estudo de larga escala com uma vacina experimental contra o HIV, e foi interrompido em setembro de 2007. Os voluntários participantes foram divididos em dois grupos: num deles, só era administrado um placebo. No outro, a vacina de verdade, baseada num adenovírus que transportava apenas pequenos pedaços do HIV para dentro do corpo, na esperança de conferir imunidade prévia ao indivíduo. O que se observou durante os testes, é que mais pessoas acabaram contaminadas com o HIV no grupo da vacina do que no grupo-controle. Os resultados mostraram 24 casos de infecção pelo HIV entre 741 voluntários que foram vacinados, contra apenas 21 entre os 762 que receberam placebo.


6. Acesso ao tratamento pós-investigação


O Brasil mantém, a exemplo do ocorrido com o placebo, o entendimento que já possuía acerca do acesso ao tratamento após a conclusão da pesquisa, apesar de toda a discussão suscitada recentemente na reunião da AMM. A Resolução 196/96 do CNS, sobre o assunto, dispõe:


III.3 – A pesquisa em qualquer área do conhecimento, envolvendo seres humanos deverá observar as seguintes exigências:


m) garantir que as pesquisas em comunidades, sempre que possível, traduzir-se-ão em benefícios cujos efeitos continuem a se fazer sentir após sua conclusão. O projeto deve analisar as necessidades de cada um dos membros da comunidade e analisar as diferenças presentes entre eles, explicitando como será assegurado o respeito às mesmas;


n) garantir o retorno dos benefícios obtidos através das pesquisas para as pessoas e as comunidades onde as mesmas forem realizadas. Quando, no interesse da comunidade, houver benefício real em incentivar ou estimular mudanças de costumes ou comportamentos, o protocolo de pesquisa deve incluir, sempre que possível disposições para comunicar tal benefício às pessoas e/ou comunidades;


p) assegurar aos sujeitos da pesquisa os benefícios resultantes do projeto, seja em termos de retorno social, acesso aos procedimentos, produtos ou agentes da pesquisa;”


Portanto, fundando-se no princípio da dignidade da pessoa humana, e nos demais princípios éticos informadores da atividade de pesquisa, é garantido aos pacientes, continuar a receber o medicamento, no caso de comprovada melhora.


Contudo, existem entendimentos diferenciados sobre quais drogas e tratamentos devem continuar a serem fornecidos; não haveria uma posição única para todos os estudos. Esse entendimento está consubstanciado na diferenciação entre uma patologia que comporta risco de vida e outra que não possui tal risco. No primeiro caso, se o paciente apresenta uma resposta positiva, o pesquisador não poderia retirar esse benefício do paciente. Já no segundo, havendo com tratamentos alternativos de eficácia já comprovada, é indicado que após a triagem o paciente seja encaminhado para um tratamento já existente no mercado, ao invés de mantê-lo em tratamento com uma droga experimental.


Segundo esse entendimento, a ética médica determina a garantia à continuidade do tratamento, o que não significa dar continuidade ao uso da droga experimental.


O entendimento supra não parece exprimir o sentido expresso na Resolução 196/96, cujo dispositivo supramencionado, alínea “p”, é claríssimo ao dispor que o que deve ser assegurado são os benefícios resultantes do projeto realizado, e não tratamentos já existentes. Nesse sentido, há jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado:


AGRAVO DE INSTRUMENTO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. MENOR SUBMETIDO A TRATAMENTO COM MEDICAÇÃO EXPERIMENTAL, EM ESTUDO PROPOSTO POR LABORATÓRIO. APROVAÇÃO DA MEDICAÇÃO PELA ANVISA E ESTUDO ENCERRADO. PROTOCOLO CLÍNICO QUE INDICA A RESPONSABILIDADE DO LABORATÓRIO PELA MANUTENÇÃO DO FORNECIMENTO DA MEDICAÇÃO AO MENOR. RESPONSABILIDADE INSERIDA, TAMBÉM, EM RESOLUÇÃO DO CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE, A PROPÓSITO DOS ASPECTOS ÉTICOS DA PESQUISA.


 “[…] Segundo se verifica da análise dos autos, o menor Kauã, atualmente prestes a completar 4 anos de idade, é portador de ‘Mucopolissacaridose Tipo 1’, enfermidade genética rara e progressiva, resultante da carência da enzima ‘alfa-Liduronidase’. A medicação postulada por Kauã, ‘Aldurazyme’ (nome comercial do laboratório ora agravante), segundo noticiam uma série de documentos acostados aos autos, é indicada como terapia de reposição enzimática, atuando de maneira aparentemente eficaz no tratamento e controle da doença. Ainda de acordo com os documentos existentes nos autos, o laboratório agravante promoveu, em parceria com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre, estudo com pessoas portadoras da supramencionada enfermidade, as quais aderiram de maneira voluntária ao programa proposto, cujo objetivo era determinar a segurança e eficácia do tratamento com ‘Aldurazyme’, com doses diversas daquelas aprovadas pela internacionalmente famosa ‘Food and Drug Administration’ (FDA). Como resultado do estudo, conseguiu o laboratório ora agravante o registro do seu medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo o estudo posteriormente encerrado. O menor Kauã, autor da ação, aderiu ao supramencionado estudo, tendo iniciado o seu tratamento, consistente em 26 infusões semanais, em 01 de fevereiro de 2005. Ao término do estudo, Kauã foi inscrito no Programa Caritativo de Tratamento – ICAP (“Internationat Charithable Access Programme), o qual também restou extinto. Desamparado, ajuizou Kauã ação em desfavor do Estado do Rio Grande do Sul, objetivando continuar a receber a medicação antes fornecida pelo laboratório ora agravante, uma vez que não pode adquiri-la, em face do elevadíssimo custo. O Estado do Rio Grande do Sul, citado, requereu o chamamento ao processo do laboratório Genzyme do Brasil Ltda. que, como destacado, restou acolhido. Em face disso, busca o ora agravante ver reconhecida a impropriedade do chamamento ao processo, com o que não se pode assentir. De acordo com a declaração prestada pelo Chefe do Serviço


de Genética do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Dr. Roberto Giugliani, segundo o protocolo clínico aprovado pelo Comitê de Ética do HCPA, o laboratório Genzyme do Brasil Ltda. comprometeu-se a continuar fornecendo o medicamento aos participantes do estudo após o seu término (fls. 120 e 121, grifei), o que de resto ocorreu, com sua inclusão no programa caritativo de tratamento, por que sem condições ao pagamento da medicação, por mais 14 infusões.


É essa a prova mais contundente existente nos autos até o presente momento, e que não conseguiu ser derrocada pela parte agravante.


Não se pode pretender, entretanto, que o laboratório Genzyme do Brasil Ltda. utilize seres humanos como “cobaias” em seus estudos (ainda que voluntária a participação no estudo) e, posteriormente, deixe aquelas pessoas que outrora foram de vital importância, ao efeito de obter um produto economicamente extraordinário, completamente desamparadas, em especial quando comprovou-se melhoras com o uso da medicação, situação que gerou expectativa nos voluntários. De se ver que a Resolução nº 196 do Conselho Nacional de Saúde (“Diretrizes e Normas de Pesquisa em Seres Humanos”), no item III, dos “Aspectos Éticos da Pesquisa envolvendo seres humanos”, alíneas “m”, “n” e “p” escancara a finalidade de garantir aos pacientes participantes de pesquisa o posterior acompanhamento pelo pesquisador e pelo patrocinador, com ênfase para a manutenção dos benefícios recebidos durante o estudo e garantia de acesso ao produto resultante da pesquisa, independentemente da subscrição de qualquer protocolo.” (Agravo de Instrumento nº 70018752733, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Ricardo Raupp Ruschel, Julgado em 25.04.2007) (Grifos nossos.)


Postura, aliás, inserida nos “valores” preconizados pela empresa embargante em seu “site”: “Ética, Excelência, Inovação, Responsabilidade social e ambiental, Competência e Compromisso” (fl. 113).


Ao pretender a empresa agravante a realização do projeto em território nacional, deve submeter-se às regras administrativas específicas, sujeitando-se à observação e fiscalização do Estado. Assim, querendo ou não a empresa agravante, o projeto, ao efeito de propiciar o futuro registro na ANVISA, na espécie, a fixação de dosagem diferenciada, autoriza reconhecer o vínculo com o Estado, a quem compete a obrigação constitucional de fornecer o medicamento, o qual deve ser mantido, em face da responsabilidade ética da empresa, o que autoriza a manutenção do chamamento ao processo.


Assim, na espécie, tendo em vista a excepcionalidade da situação dos autos, o menor Kauã é quem deve, primeiramente, ser protegido, não havendo argumentos que justifiquem, por ora, a exclusão do ora agravante do polo passivo da demanda. Pelo exposto, pois, nego provimento ao recurso.” (Grifos


nossos).


Não há dúvidas, portanto, que em território nacional, o acesso ao tratamento pós-investigação é não apenas necessário, mas obrigatório nos moldes do determinado pela Resolução 196/96.


7 Considerações finais


Fundamentalmente, em relação à concepção e procedimentos éticos no que se refere à pesquisa que envolva seres humanos, independentemente de termos uma normatização bem arquitetada ou não, o que deve nortear o fazer científico é o pressuposto do respeito ao direito a vida e a dignidade humana, algo indisponível, fundando a produção científica em formas razoáveis, que levem em conta os direitos a personalidade em detrimento de outros interesses.


Em termos da normatização existente, o que se observa na resolução 196/96, é que primeiramente está estruturada sob uma ótica que generaliza o fazer científico (enunciado no capítulo III.2), se tratando dos campos científicos, tratando como igual, aquilo que é diferente em sua gênese teórico-metodológica, criando uma situação não dialógica entre o enfoque biocêntrico e antropocêntrico, e o que é pior, bem como observou o professor Cardoso de Oliveira, fundada numa ênfase biocêntrica.


Em segundo lugar, há uma ineficiência quanto ao procedimento fundamental do uso do consentimento livre e esclarecido no caso situacional de uma sociedade marcada pela exclusão social, visto que, há um enraizamento social da ignorância e da pobreza em nossa sociedade.


Ainda, existe uma ambiguidade em relação à questão ao desenvolvimento das pesquisas com indivíduos ou grupos vulneráveis, onde se por um lado, permite desde que se utilize o procedimento do uso do consentimento livre e esclarecido, já no capítulo III.3, alínea j, faz-se a referência de que a pesquisa deva “ser desenvolvida preferencialmente em indivíduos com autonomia plena”, o que, como já vimos anteriormente, no caso dos países pobres torna-se algo complicado de se efetivar.


Finalmente, frente ao quadro social e técnico-jurídico que nos encontramos no nosso entendimento três movimentos se fazem necessários na construção das bases sociais e legais que fossem capazes de desencadear uma evolução da pesquisa no sentido da regulação e do controle social da prática e uso das pesquisas. Sendo estes movimentos de três naturezas sócio educacional, técnico científico e técnico-jurídicos.


Nesse sentido, o atual momento, requer um movimento das instituições e da sociedade fundado na postura de busca da superação dos problemas estruturais da sociedade, a superação dos entraves do campo científico e do estabelecimento de mecanismos jurídicos mais eficazes no controle por parte do Estado nesta matéria. Isso demanda, por um lado, o investimento do estado e da sociedade civil no desenvolvimento de uma educação universalista, formal e informal, baseada pedagogicamente num enfoque crítico-social dos conteúdos. Tendo-se uma totalidade de indivíduos com acesso ao acúmulo intelectual que a humanidade produziu ao longo de sua história, tendo-se com isso, sujeitos capazes de tomar uma decisão livre e esclarecida.


Por outro, requer do campo científico a adoção de uma postura dialógica entre as áreas do conhecimento, no sentido de através da transdisciplinariedade, romper com a dicotomia biocentrismo/antropocentrismo, pois, uma vez que houvesse no estabelecimento a elucidação da pesquisa como um todo se estabelecendo um real diálogo com o indivíduo, convertendo este da condição de objeto/cobaia para de sujeito/construtor do conhecimento, situando no seio da sociedade, concretamente o que se define como controle social.


Outra questão, diz respeito à esfera jurídica, onde a figura do MP na atual conjuntura é elementar. Neste sentido, a resolução 196/96 não traz a obrigatoriedade da convocação do Ministério Público para opinar em casos envolvendo os incapazes. Isso novamente recai sobre a questão do trato em relação à vulnerabilidade e ao controle social, o que passa pela garantia de direitos fundamentais e que no atual momento suscita discussão e amadurecimento de posturas e procedimentos, para que se pratique a ciência tão necessária ao desenvolvimento da humanidade, fundada em princípios que respeitem a vida e a dignidade humana.


 


Referências

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. 168p.

CLOTET, Joaquim. Bioética: uma aproximação. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.

DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. São Paulo: Saraiva 2006.

OLIVEIRA, C. Roberto de. Ensaios Antropológicos sobre Moral e Ética” Edições Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro. 1996, 188 p.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10 ed. rev. atual. ampl.; Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

TINANT, Eduardo Luis. Bioética jurídica, dignidad de la persona y derechos humanos. Editorial Dunken. Buenos Aires, 2007.

Informações Sobre os Autores

Bárbara Neves de Britto

Administradora (CRA/RS 038026), especialista em Responsabilidade Social Corporativa

Jonas Guido Peres

Advogado (OAB/RS 74.392), pós-graduando em Direito Ambiental pela UFPEL

Neilo Márcio da Silva Vaz

Sociólogo. Especializando em Direito Ambiental (interdisciplinar) na Universidade Federal de Pelotas. Atua desde 2005 em consultoria e assessoria social, tendo atuado em projetos relacionados às áreas de Extensão Rural, Educação Ambiental, Habitação de Interesse Social e Monitoramento Social de Políticas Públicas. Colaborador do Instituto Pluris – Pesquisas, Consultoria e Assessoria – Ltda. em Assessoria Social em geral. Membro (discente) do Grupo de Pesquisa “A Efetividade dos Direitos Humanos”,


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