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A racionalização do Direito: uma discussão sobre uma prova inusitada, a carta psicografada

Resumo: Este artigo busca discutir a racionalidade no Direito a partir da aceitação da prova por meio de carta psicografada no Direito brasileiro. Afasta-se a concepção de um Direito racional, para adotar um Direito entendido como instituição imaginária da sociedade.


Palavras-chave: prova judiciária, racionalidade no direito, direito como instituição imaginária da sociedade


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Sumário: Introdução, 1. A racionalização, 2. A racionalização do Direito, 3. Provas Inusitadas: carta psicografada, 4. Caso de cartas psicografadas utilizadas no judiciário, 5. O escrito e o falado: diferenças nas valorações da prova e relação com a racionalidade, 6. Discussão sobre os argumentos a favor e contra a utilização dessa prova, Considerações Finais, Bibliografia


A humanidade emerge do Caos, do Abismo, do Sem-fundo. (Castoriadis)

Introdução


As cartas psicografadas foram aceitas em alguns casos como prova no Direito brasileiro. Essa aceitação levou a uma intensificação das discussões sobre o caráter racional que o direito deve ter, segundo o posicionamento dominante. Por outro lado, as cartas psicografadas são respaldadas por grande parte da sociedade brasileira, que entende que as informações presentes nessas cartas são verdadeiras.


O direito entendido como o direito racional não pode aceitar as cartas psicografadas no judiciário. Porém, essas cartas foram aceitas. O objetivo principal do artigo é discutir a questão da racionalidade do Direito, pelo ângulo de um Direito como instituição imaginária da sociedade. O objeto de estudo são as provas por cartas psicografadas aceitas no judiciário brasileiro. Entender o porquê elas foram aceitas, ou pelo menos delinear algumas hipóteses é um dos objetivos desse artigo. O método utilizado é uma abordagem pela Filosofia do Direito, em especial a partir dos conceitos de Cornelius Castoriadis, que definem o Direito como uma instituição imaginária da sociedade.


1. A racionalização


“Há vinte e cinco séculos, o pensamento Greco-ocidental se constitui, se elabora se amplia e se aprimora sobre esta tese: ser é ser algo de determinado (enai ti), dizer é dizer algo de determinado (ti legein); e, obviamente, dizer verdadeiramente é determinar o dizer e o que se diz pelo dizer e, finalmente constatar que uma das e outras são a mesma coisa. Esta evolução, trazida pelas exigências de uma dimensão do dizer equivalente ao domínio e à automização desta dimensão, não foi nem acidental nem inevitável; foi a instituição pelo Ocidente, do pensamento como Razão”[1].


O predomínio da razão no mundo ocidental não é algo natural, mas sim construído, formulado por uma sociedade que em um tempo e espaço entendeu que a principal característica do homem era a razão. Esta razão passou a diferenciar o homem de todos os outros animais terrenos, que tinham sentimentos e conhecimentos instintivos. A parte animal do homem como um animal que também tinha sentimentos e instintos, era desconsiderada por uns ou mesmo admitidas com certo constrangimento por outros. A dimensão cultural dos aprendizados e modos humanos sempre foi considerada para seu afastamento e diferenciação frente aos outros animais. É nesse entender a afirmação de Aristóteles de que o homem é um animal político, ou seja, um animal que vive na cidade, um animal social.


O pensar começa a ser privilegiado na sociedade ocidental, que entende o homem como um ser pensante, racional. Descartes afirma que o homem pode se enganar sobre tudo, só não pode se enganar a respeito do fato que o homem é um ser pensante. A razão passa a ser entendida como a esfera de interação do homem com o mundo. Hegel irá afirmar que tudo o que é real é racional. O domínio do mito, do caos, do abismo ficou sem espaço. Porém, essa dimensão da racionalidade é uma dimensão que foi instituída por uma sociedade, é a dimensão de uma lógica conjuntista/identitária, no entender de Castoriadis[2]. A essa lógica que é a lógica racional se opõe a lógica dos magmas, que leva em conta a significação. A lógica dos magmas não é uma superação da lógica identitária, mas sim uma outra dimensão que agregada àquela, permite compreender aspectos do mundo que ficam encobertos. Castoriadis define como magma:


“aquilo de onde se podem extrair (ou: em que se podem construir) organizações conjuntistas em número indefinido, mas que não pode jamais ser reconstituído (idealmente) por uma composição conjuntista (finita ou infinita) dessas organizações”[3].


Admitindo essa dimensão da lógica dos magmas leva as instituições imaginárias da sociedade, que materizaliza esse magma de significações imaginárias sociais. Dentre as diversas instituições imaginárias da sociedade encontra-se o Direito e a religião. Essas instituições não são coisas supra ou infra-sociais, mas são elas mesmo a sociedade, pois elas definem o modo de viver, os valores, os conceitos aceitos pelas pessoas de uma dada sociedade e fazem com que estas pessoas possam criar o novo, destruindo o que foi instituído socialmente e criando novas instituições.


2. A racionalização do Direito


O Direito nem sempre se pretendeu racional, como é definido por diversos jusfilósofos e juristas da atualidade. O direito ao longo da história foi entendido como manifestação do sagrado, como arte retórica, como dogma, etc. A busca do Direito por um status de científico é recente na história do Direito, porém é essa a visão hegemônica na atualidade. O direito pretendendo ser ciência moderna efetivou a ruptura entre objeto e sujeito do conhecimento, estabeleceu métodos para seu conhecimento e teve grandes dificuldades de figurar como uma ciência humana nos padrões de uma ciência positivista. Foi principalmente ao afastar o sujeito do conhecimento que o Direito passa a ser dito como um Direito racional. Há autores que identificam esse direito racional no positivismo jurídico moderno, mas também no jusnaturalismo, denomimando o período racional do jusnaturalismo de jusracionalismo[4]. Outros autores, como Weber, apontam o desenvolvimento do Direito racional somente no capitalismo[5].


A ligação entre o capitalismo e o Direito atual que se diz racional é evidente. O que parece particular na sociedade atual é que a racionalidade é utilizada para legitimar quase tudo e isso faz parte de uma das ideologias do capitalismo, como aponta Castoriadis:


“O capitalismo é o primeiro regime social que produz uma ideologia segundo a qual ele mesmo seria ‘racional’. A legitimação dos outros tipos de instituição da sociedade era mítica, religiosa ou tradicional. No presente caso, pretende-se que exista uma legitimidade ‘racional’. Sem dúvida, esse critério, ser racional (…), foi propriamente instituído pelo capitalismo; e tudo passa como se tal coisa, ter sido instituído tão recentemente, ao invés de relativizá-lo, o tornasse indiscutível”[6].


Para ser tido como legítimo o que quer que seja deve ter o status de racional, inclusive o Direito. O racional é colocado como oposto àquilo que é do âmbito da crendice, da religiosidade, da ignorância e que tem como objetivo um bem, que se dá por um cálculo que identifica o bem com o máximo econômico[7]. Assim, o Direito racional é também aquele que privilegia esse máximo econômico. Porém, apesar do econômico ser uma esfera importante da sociedade capitalista, ela não pode ser tomada como explicação para todos os fenômenos da vida humana atual.


Um direito racional que se utiliza de uma ideologia da racionalidade, leva a uma racionalização vazia, uma vez que não é explicitado à que visa à racionalização ao mesmo tempo em que há uma busca desenfreada por mais racionalidade. Dessa forma a racionalidade, que não está à serviço de nenhum senhor específico, passa a ser considerada como uma técnica neutra. O Direito pretensamente neutro passa a ser utilizado para justificar decisões e escolhas que são políticas, e que levam em conta à valoração daqueles que puderam fazer parte do processo político. O direito aparece como uma forma e não como um conteúdo, o que gera a impressão de que o direito racional não tem conteúdo específico e que todo conteúdo é possível, dando a impressão de liberdade em uma sociedade heterônoma. É nesse sentido a fala de Castoriadis:


“O que se dá como racionalidade da sociedade moderna, é simplesmente a forma, as conexões exteriormente necessárias, o domínio perpétuo do silogismo. Mas nesses silogismos da vida moderna, as premissas tomam seu conteúdo do imaginário; é a prevalência do silogismo como tal, a obsessão da racionalidade separada do resto, constitui um imaginário em segundo grau. A pseudo-racionalidade moderna é uma das formas históricas do imaginário; ela é arbitrária em seus fins últimos na medida em que eles não dependem de nenhuma razão, e é arbitrária quando se coloca como fim, visando uma ´racionalização´ formal e vazia. Nesse aspecto de sua existência, o mundo moderno é atormentado por um delírio sistemático – do qual a automização da técnica desencadeada, e que não está ´a serviço´ de nenhum fim determinável, é a forma mais imediatamente perceptível e mais diretamente ameaçadora”[8].


A necessidade de explicações teóricas no Direito surge a todo o momento, inclusive nos casos das provas por cartas psicografadas. Estas cartas são consideradas por alguns como racionais, devido a sua forma escrita ou mesmo devido ao caráter racionalizante da doutrina espírita. O mesmo se dá com a conduta dos magistrados que julgaram esses casos com admissão de provas por cartas psicografadas. Em três casos em que os magistrados ou mesmo o júri frente às afirmações das cartas inocentam os réus, mesmo não existindo outras provas para isso, dá-se uma explicação racional. Alguns juristas que comentam esses casos defendem que os magistrados aplicaram outra teoria e por isso absolveram os réus. Trata-se da teoria da alemã da imputação objetiva, em que entende que quando a vítima se coloca em perigo, ou seja, sua conduta aumenta o risco existente ou juridicamente tolerado, levando a uma não consideração ou menor consideração da conduta do réu[9]. Esta teoria é recentíssima e desenvolvida na Alemanha, não tendo seguidores fortes no Brasil. Trata-se de uma explicação correta, entre a adequação da conduta dos magistrados frente aos fatos, porém explicitamente anacrônica. É relevante o fato dessa teoria ainda não ser amplamente aceita no Brasil e de que ela não existia quando foi feito o julgamento. A necessidade de explicações teóricas e de se encontrar uma racionalidade nas decisões dos magistrados é tamanha no Direito, que muitos não percebem o anacronismo.


O direito não tem somente uma dimensão do racional, mas também do simbólico. O direito como uma instituição imaginária da sociedade tem um magma de significações que o definem como esse direito e não outro. Uma dessas significações do direito atual é a racionalidade, que é um dos princípios categoriais que organizam o mundo contemporâneo. Quem não participa dessa categoria de explicação do mundo, simplesmente é colocado para fora, tido como um louco. Isso é o que ocorre com alguns juristas que ousam não se utilizar dessa significação imaginária do direito chamada racionalidade.


O direito entendido como uma instituição imaginária da sociedade define e é definido por essa sociedade. Nesse sentido o direito é criação e auto-criação, em um ser que não se cristaliza, pois é sempre um vir a ser. Esse direito é um direito que sempre se altera e é alterado, não despreza a dimensão do ser que é caótica porque pressupõe criação radical. O direito como instituição imaginária da sociedade não tem uma relação com a sociedade, mas ele é a sociedade. Esse direito não esboça somente a lógica identitária-conjuntista, que é a lógica da ‘racionalidade’.


“É precisamente porque o imaginário social moderno não possui carne própria, é porque ele toma uma substância do racional, a um momento do racional que ele transforma assim em pseudo-racional, que ele contém uma antinomia radical, que está fadado à crise e à usura, e que a sociedade moderna contém a possibilidade objetiva de uma transformação do que foi até aqui o papel imaginário na história”[10].


Porém, não é somente o direito que é considerado uma instituição imaginária social, ou seja: “uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações variáveis um componente funcional e um componente imaginário”[11]. A religião, como o direito, também é uma instituição imaginária socialmente sancionada, que possui regras limitadoras da sociedade ao mesmo tempo em que exprime as crenças dessa mesma sociedade. A religião como instituição também pretende explicar o mundo, em especial a sua origem, e o faz, por meio de explicações ditas “racionais”, como aponta Castoriadis:


“E mesmo na sociedade moderna (capitalista tradicional, ou capitalista burocrática), que pretende instituir-se afastada da religião, a persistência de uma dimensão quase-religiosa ou pseudo-religiosa da instituição enuncia-se e denuncia-se do mesmo modo: a origem do mundo e a origem da sociedade – o funcionamento de um e de outra – estão entrelaçados no interior e por meio da ‘racionalidade’, das ‘leis da natureza’ e das ‘leis da história’”[12].


A religião como instituição imaginária não se resume a uma explicação ou justificação, pois ela é a própria organização da sociedade[13]. Entender esses magmas de significações que formam as instituições é ao mesmo tempo entender a sociedade. As crenças, os ídolos, os tabus de uma religião, não dizem somente a respeito de uma religião, mas também da sociedade em que existe essa religião. A sociedade por sua vez também se organiza com base nessas crenças, ídolos e tabus, que devem ser considerados para entendê-la. Nesse movimento contínuo é que se intercalam as instituições sociais religião e direito, uma vez que elas figuram em uma mesma sociedade.


2. Provas Inusitadas: carta psicografada


As provas são instrumentos para levar ao magistrado a um convencimento para que possa deliberar. Essas provas são produzidas pelas partes (por meio de documentos, oitiva de testemunhas, perícias, etc.) para o magistrado. Provar é parte importante do processo, uma vez que o magistrado não pode conhecer do caso ou saber de suas peculiaridades se as partes ou pessoas interessadas não produzirem informações para que ele possa determinar sua sentença.


Parte-se do princípio aqui que o magistrado não tem poderes transcendentes para conhecer da vida, dos fatos das pessoas e que não pode saber o que realmente aconteceu. Ao magistrado somente chega o falado, o escrito que passou por um filtro de um outro homem (interessado ou não na ação ou lide). Se o magistrado tivesse o conhecimento do presente, passado, futuro e tudo pudesse conhecer não necessitaria das provas. Somente a prova das confissões de Santo Agostinho isso pode acontecer, uma vez que a prova é dita como produzida para Deus, mas lhe sendo inútil, na verdade é produzida para servir de exemplo aos homens. Provas produzidas para os homens-magistrados não são assim.


Se a prova é produzida para que o convencimento do outro seja formado, o elemento retórico é fundamental na produção da prova. Mesmo em casos em que a produção da prova se dá através de análises ou perícias técnicas e com pouca utilização do recurso da retórica, ela está presente na valoração que se dá ao discurso técnico e ao saber especializado. Porém, a prova não tem a ver somente com a questão do convencimento do outro por meio da retórica, mas também tem a ver com o que o outro entende, valoriza, ou seja, suas percepções de mundo. A questão da comunicação é importante, portanto, no Direito, porém não menos importante é entender essas percepções de mundo daquele que está recebendo a informação que é formada pelo imaginário social. Assim, o magistrado não é só psique, mas sim mônada que se confrontou com o social, absorveu valores, conceitos, modos de pensar e entender o mundo. Portanto, as provas são produto de um imaginário social e somente são admitidas nessa mesma sociedade que produziu esse imaginário social. O direito atual produziu a racionalidade como instituição imaginária da sociedade e é ela que é geralmente admitida.


Como a prova somente pode ser prova em uma dada sociedade, que não se pode desconsiderar sua dimensão histórica, a sua produção tem de se encaixar com os padrões do Direito, existentes naquela sociedade. As ordálias eram admitidas como provas na Europa medieval, pois naquela sociedade acreditava-se que o transcendental podia-se manifestar e traria a verdade, que seria atestada pelo magistrado. Os índios brasileiros no período colonial no Brasil utilizavam de meios de prova transcendentais, muitas vezes nem produzidos pelos interessados, mas pelo próprio decididor. Quando uma sociedade admite a prova pelo transcendente, está admitindo em última instância que não se precisa realmente provar, pois há uma verdade que deve ser manifestada. Porém, a dogmática jurídica não costuma tratar do transcendente e é isso que torna a prova por carta psicografada inusitada.


As provas são parte integrante do processo judiciário, que tem regulação especial em quase todos os ramos do Direito. Tratam sobre as provas, por exemplo:  art. 332-443 no Código de Processo Civil, art. 212-232 no Código Civil, e art. 155-250 no Código de Processo Penal. Há uma imensa discussão sobre as provas, que produziram uma rica doutrina sobre o tema. Além disso, existe uma grande jurisprudência sobre o tema, que regula muitas vezes aspectos que a legislação não abordou, restringindo a interpretação da norma. A legislação brasileira cuida da admissão, produção e valoração da prova, estabelecendo ainda parâmetros de apreciação dessas provas pelo juiz.


Apesar de extensa regulamentação das provas, a legislação nacional nada diz sobre provas inusitadas como as cartas psicografadas, levando a uma grande discussão dos doutrinadores a respeito de sua admissão. A possibilidade da carta psicografada no judiciário se dá pela não restrição das provas, que tem estipulação no artigo 332 do Código de Processo Civil, e diz: “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa”. Os doutrinadores entendem que a relação das provas que a legislação apresenta, como a do artigo 212 do Código Civil, não é restrita, mas exemplificativa, podendo ser alargada. Essa interpretação leva a uma discussão se tudo é admitido em termos de prova, desde que a legislação não proíba. 


As cartas psicografadas são consideradas aqui como provas inusitadas, uma vez que dificilmente acontecem e apresentam o fato inusitado de serem consideradas como cartas ditadas a uma pessoa, por um suposto espírito de uma pessoa já morta, porém que conhecia ou tinha alguma relação com a lide discutida no judiciário. São provas inusitadas porque no imaginário do mundo moderno os assuntos dos homens são discutidos em uma justiça dos homens, sem haver ligação com o transcendente. O inusitado geralmente não é o que mais acontece, porém levou a um frenesi nos estudos jurídicos. O que é raro geralmente encanta, é mágico.


Quanto às provas há uma estipulação do artigo 335 do Código de processo civil diz: “Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras da experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece (…)”.  Porém, as cartas psicografadas não podem ser consideradas algo do ordinário, mas do extraordinário, do inusitado e seu estudo podem levar a entender porque há um fascínio dos estudiosos por esse tema e uma grande aceitação pela população brasileira.


Primeiramente deve-se diferenciar o que é meio de prova e o que é fonte de prova. Muitas vezes o legislador fala em prova, quando na verdade o termo mais apropriado é fonte de prova. Entende-se como fonte de prova, informações que são levadas em consideração pelo apreciador das provas, magistrado, para formar sua convicção ou que levem a uma busca por novas provas. Este é o caso dos testemunhos e dos documentos públicos e particulares. Meio de prova é o instrumento pelo qual as provas são demonstradas e explicadas. As confissões e as perícias podem ser entendidas como meios de prova.


Cabe ressaltar que há uma hierarquia valorativa na legislação sobre a importância das provas, ou seja, há provas que são mais robustas, pois tem fé pública ou são de mais difícil impugnação, como os documentos públicos. Outras provas são mais frágeis, como as provas testemunhais. Nesse caso há uma série de restrições e regras para admissão de uma prova testemunhal, dependendo da sua produção e de quem testemunha. Geralmente as provas escritas costumam ser consideradas como aquelas que têm mais peso do que as provas obtidas por oitiva de testemunhas, porém isso também pode ser relativizado, uma vez que se trata de uma presunção da tradição. No caso de documentos particulares escritos, há uma discussão sobre a sua condição de prova, pois podem conter informações incorretas ou mesmo inverídicas.


A carta psicografada pode ter sido admitida mais facilmente no judiciário devido à algumas semelhanças com outros tipos de provas. Primeiro, a carta psicografada é semelhante à uma carta, que é um documento escrito particular. Esse documento particular pode conter uma declaração de vontade ou mesmo declarar um fato. Esses documentos seguem as regras do artigo 368 do CPC, que diz: “As declarações constantes do documento particular, escrito e assinado, ou somente assinado, presumem-se verdadeiras em relação ao signatário”.


Esses documentos particulares devem conter indicação daquele que declarou a vontade, seja escrevendo a carta e assinando ou quando uma outra pessoa redija a carta e o declarante assine. Não é raro as cartas com assinatura e não só com a menção implícita daquele que a escreveu. Trata-se de um documento importante, que tem sua relevância para a prova, porém o legislador restringe sua abrangência, declarando no parágrafo único do artigo 368 do CPC, que: “Quando, todavia, contiver declaração de ciência relativa a determinado fato, o documento particular prova a declaração, mas não o declarado, competindo ao interessado em sua veracidade o ônus de provar o fato”.


Segundo, a carta psicografada por ser escrita, pode ser anexada no processo judicial. Isso permite que haja formalização de um suposto testemunho transcendente, em um documento escrito, que pode ser lido por todos e que pode ser apreciado pelo magistrado. Não se trata de uma manifestação do transcendente somente, mas uma manifestação que é transformada em uma escrita conhecida pelos leitores, que possui uma concatenação de idéias e informações passíveis de ser compreendidas. Não são manifestações de símbolos esparsos ou mesmo que precisem de um especialista do transcendente para interpretá-los. Essas cartas psicografadas também permitem que o transcendente seja racionalizado, buscando uma conformidade com a racionalização do processo judicial e também do Direito.


 Há um processo de discussão dessas provas no judiciário, porém também há um processo de adaptação dessas provas de cartas psicografadas às provas existentes e já longamente admitidas. Esse é o caso, por exemplo, da existência de assinaturas para comprovar a autoria do declarante. Essa exigência é estipulada para o caso de documentos particulares, porém passou a ser utilizadas por aqueles que defendem a admissão da carta psicografada como prova, como sinal da declaração legitima do transcendente, que quando supostamente tinha existência terrena e humana, assinava de uma determinada forma.


Por esses e outros fatores, juristas e doutrinadores começaram a discutir sobre a admissão da prova por carta psicografada no processo judicial brasileiro. A questão da admissão ou não dessa prova, não parece menor do que uma infinidade de questões que surgem, como por exemplo: É admissível o transcendente como prova no processo judiciário? Porque pensar que a carta psicográfica é prova? Que fatores sociais levam a legitimidade dessa prova? Porque religiosidade e direito se unem nesse fato? Essas questões levam a uma outra abordagem que pode gerar o esclarecimento de algumas questões, que ultrapassam a questão da fé.


Além da estipulação das provas nos códigos, também há um regramento a respeito de como o magistrado deve apreciar essas provas. A história do Direito aponta para diversos modelos de apreciação de provas, dentre eles: modelo de apreciação empírico da prova; modelo de apreciação da prova legal ou certeza moral ou modelo da verdade legal ou formal; modelo da íntima convicção ou prova livre e modelo do livre convencimento, da verdade real ou do convencimento motivado[14]. O Código de processo penal em seu artigo 157 aponta expressamente que a convicção do juiz será formada pela livre apreciação da prova. Este é o mesmo entendimento do artigo 131 do Código de processo civil. Este tipo de modelo de apreciação das provas é considerado atualmente como hegemônico e também é curiosamente chamado de “sistema do convencimento racional”. O direito processual penal também admite o modelo da “íntima convicção” da prova ou da prova livre. Porém, somente é admitido nos casos que vão para júri popular, ou seja, decisão sobre crimes dolosos. Nesse caso o jurado não precisa fundamentar sua decisão com as provas apresentadas.


Assim, o magistrado deve apreciar as provas formando seu convencimento sobre os fatos ocorridos e fundamentá-los de uma maneira racional. Esta denominação racional se contrapõe aqui a um convencimento dado pela emoção ou mesmo por convicções religiosas do magistrado. A padronização do julgamento é um dos pontos do chamado “direito racional”, que segundo Weber, buscava um domínio do Estado sobre os seus funcionários[15]. Aceitar um modelo de apreciação de prova que se denomina como racional é próprio de um direito que quer afastar o julgamento que leva em conta convicções pessoais do magistrado e formar com isso modelos restritos de respostas dos magistrados em uma ação, conseguindo com isso uma maior previsibilidade de resultados.


Porém, esse modelo do “direito racional” que engessa possibilidades de mudança, que inibe a criatividade do magistrado na apreciação da ação e em especial da prova, algumas vezes não consegue seu feito. Magistrados utilizando-se de seu imaginário radical criam um novo direito ao proporem outras possibilidades de interpretação, ou quando se posicionam contra a lei ou se utilizam de instrumentos, meios ou provas que a legislação não regulamenta.


As concepções de direito atualmente hegemônicas não permitem ou desestimulam as posturas dos magistrados que se utilizam do imaginário radical, negando o caráter dessas criações como direito. O argumento mais utilizado é que as decisões advindas do imaginário radical dos magistrados, não é “racional”, ou em outras palavras, não se adéqua aos padrões do direito hegemônico. As cartas psicografadas como provas judiciais surgem como um exemplo paradigmático, que não se encaixam nesse “direito racional”. Longe de negar o seu caráter como uma prova do Direito, uma vez que em alguns casos foram aceitas no judiciário brasileiro e ajudaram a formar a convicção de magistrados, busca-se entender essa prova a partir de uma outra concepção de direito, não de um “direito racional”, mas um direito como instituição imaginária da sociedade.  


3. Casos de cartas psicografadas utilizadas no judiciário


As cartas psicografadas são tidas como fenômenos do espiritismo, no qual espíritos no além se comunicam com pessoas na terra por meio de médiuns que escrevem. Estas cartas geralmente são pessoais, escritas pelo médium em sessões. Porém, há casos em que essas cartas foram utilizadas como provas em processos judiciais. Aceitas por alguns magistrados, essas cartas causaram polêmica entre juristas e foram assunto de discussão entre a população. As principais discussões não estavam no plano da fé, ou seja, na crença sobre a possibilidade do fenômeno, mas se restringiam  a questão da veracidade da prova. Não é marcada uma oposição entre a racionalidade exigida no direito e a questão da prova pela fé. A questão que se coloca é porque isso não acontece?


Não é apenas o espiritismo que afirma existir a comunicação entre mortos e vivos. Existem diversas religiões no Brasil que admitem essa possibilidade, como por exemplo, a umbanda. Porém, não há registro de as manifestações da umbanda sejam aceitas pelo judiciário. Uma das hipóteses levantadas para essa diferença é que o espiritismo apresenta uma manifestação dos espíritos via carta de uma forma racionalizada e escrita, que permite sua utilização em um direito que também tem por base a racionalidade e o procedimento escrito.


A questão da racionalidade parece fundamental para entender porque as cartas psicografadas são aceitas no judiciário brasileiro. Primeiramente é preciso notar que o espiritismo surge na sua formulação de Allan Kardec com a possibilidade de ser ao mesmo tempo uma religião, uma ciência e uma filosofia. A manifestação de espíritos em “mesas de girar” surge no século XIX e uma de suas primeiras sistematizações surge com os escritos de Kardec. Baseado em estudos de magnetismo, o espiritismo busca explicar o que não é visto, mas é sentido pelos homens. Diversas explicações do invisível surgem em uma época em que há uma maior crença no científico e a religiosidade se transforma.


A busca de Kardec por uma explicação racional e científica de diversos fenômenos da vida cotidiana, inclusive da religião cristã, encontrou aceitação entre aristocratas e burgueses do século XIX na Europa e no Brasil. A versão do espiritismo de Kardec é anticlerical, não transcendental e muito mais científica do que religiosa. O espiritismo kardecista entende que todos os fenômenos são fenômenos humanos, alguns dos homens na terra, outros fenômenos dos homens sem corpo. Kardec reforça a separação entre corpo e alma e propõe uma diferente maneira de ver a morte, que segundo sua concepção é o desaparecimento do corpo. A alma, também chamada de espírito por muitos filósofos, ainda tem predominância sobre o corpo, que é considerado como perene. A manutenção dos conhecimentos e informações com a alma, mesmo após a morte, permite a comunicação entre vivos e mortos, ou melhor, entre aqueles que são corpo e alma e aqueles que somente são alma. A questão da reencarnação é um dos pontos fundamentais dessa corrente do espiritismo. Segundo ela a alma se altera em corpos diversos ao longo da história da humanidade, em ciclos, que levam em conta o merecimento que se dá através das ações humanas. Há uma lei fundamental para isso, que é a lei da ação e reação. Semelhante às leis da física, o espiritismo kardecista prega que dado uma ação tem-se uma reação, seja ela no plano dos homens, seja no plano dos espíritos. Afasta-se a concepção de graça, pregada no cristianismo, acentuando-se a questão da igualdade entre os homens. Afasta-se a concepção de deuses superiores aos homens e a necessidade de mediadores religiosos para se alcançar o divino. Todas essas explicações do espiritismo kardecista têm forte conotação cientificista e racionalizantes, ao se basearem nas explicações correntes de ciência da época, seja ela o magnetismo, a divisão corpo e alma, ou mesmo nas leis da física mecânica.


No Brasil as idéias de Kardec foram abraçadas pelas altas camadas da população brasileira, que tinham acesso as suas obras. No início do século XX no Brasil são difundidas uma série de idéias e modas francesas que são consumidas pelas elites, entre elas está o espiritismo de Kardec. As idéias de Kardec são incorporadas como explicações com um cunho científico e racionalista, não existindo um conflito entre essas idéias e a religião católica. Políticos, advogados, médicos, funcionários públicos passam a ler as obras de Kardec no Brasil, formando os primeiros adeptos do espiritismo[16].


Apesar de um início extremamente ligado à ciência e a racionalidade, não foi essa a versão do espiritismo vencedora no Brasil. A vertente que ganhou as disputas e que pode definir o que era espiritismo, é uma vertente do espiritismo religioso. Não é propriamente a versão de Kardec, mas a de Jean-Batiste Rousteing, que é entendida como espiritismo brasileiro. Esse espiritismo incorpora diversos dogmas do cristianismo, especialmente o católico, deixando de lado a questão da racionalidade. Aceita-se a diferenciação entre deuses e homens, sendo os primeiros superiores, a existência da graça divina, de destino, entre outras. O espiritismo rousteingiano é essencialmente cristão. A oposição entre espíritas e católicos, com a dominância do espritismo routeinguiano se formou e o espiritismo passou a ser visto no Brasil, essencialmente como religião[17]


A questão do caráter científico praticamente desaparece na questão do espiritismo brasileiro. Na discussão sobre a legitimidade das cartas psicográficas como prova no judiciário a questão do caráter científico do espiritismo é uma das raras vezes que a vertente inicial do espiritismo é retomada. Porém, não é apenas a cientificidade que dá respaldo a essas cartas, uma vez que se torna central a confiabilidade no médium, dada por uma legitimação social. O espiritismo brasileiro tem outro caráter particular que é o foco na questão da cura, propiciando a população brasileira um conforto médico e espiritual, com médiuns que prescrevem remédios homeopáticos ou realizam cirurgias e com médiuns que buscam uma cura do espírito, seja por aconselhamentos ou por cartas de parentes mortos aos vivos. O espiritismo supre com isso uma falta patente na sociedade brasileira, em especial, a médica e conquista a simpatia não só dos adeptos do espiritismo.


Os médiuns que não eram figuras centrais no espiritismo kardecista, passam a ser, no espiritismo à brasileira. Entre um dos principais médiuns brasileiros está Chico Xavier, que tem como característica ser um médium que psicografa cartas e livros. Sua dedicação ao atendimento de pessoas enfermas e espiritualmente abaladas, suas obras assistenciais, conjuntamente com sua vida monástica, levaram Chico Xavier ao status de um “homem santo” por grande parte da população brasileira. Esta legitimidade e confiança na figura de Chico Xavier fizeram com que três cartas psicografadas por ele fossem utilizadas como provas no judiciário. Não se tem uma estatística de quantas ações pretenderam utilizar dessas provas, nem sobre os médiuns. Porém, não se pode negar que a figura de Chico Xavier e sua legitimidade pela população brasileira, fizeram com que as cartas psicografadas fossem discutidas como provas que poderiam ir ao judiciário.


Apesar de muito de comentar sobre as cartas psicografadas e da doutrina discutir a sua validade como prova, não são muitos os casos em que se tem notícia da utilização da prova de carta psicografada. Sabe-se de apenas cinco casos em que essas provas foram utilizadas e geralmente na área do Direito Penal. Há diversas particularidades entre esses casos: a) tratar-se de casos de homicídio, b) a carta psicografada tem como autor a vítima do crime inocentando o réu, c) trata-se de homicídio com arma de fogo em que a carta psicografada afirma que o tiro foi acidental ou não foi realizado pela pessoa indicada como réu. Três das cinco provas psicografadas aceitas no judiciário brasileiro tem como médium a figura de Chico Xavier, considerado um dos maiores e mais respeitados médiuns brasileiro. Dois dos processos em que a prova por carta psicografada foi aceita, tiveram o mesmo magistrado.


Três dessas histórias (caso 1, 2 e 3) se tornaram pequenos filmes que fizeram parte de uma trilogia chamada “As cartas de Chico Xavier”, apresentadas primeiramente em um programa de jornalismo policial na Rede Globo de televisões, chamado de “Linha Direita”. Reunidos esses três episódios que tratam de cartas psicografadas no judiciário, formaram um DVD com distribuição nacional. O programa apresenta os casos a partir de reconstrução de cenas e diálogos com atores, que se misturam com os depoimentos de pessoas envolvidas no caso ou que tiveram conhecimento do assunto à época. A veiculação do programa em rede nacional em uma das emissoras de televisão com mais audiência, ajudou a difundir a existência da carta psicografada como prova no processo judiciário brasileiro. Porém, os episódios do programa “Linha Direta” que tratavam sobre o tema das cartas psicografadas foram ao ar em novembro de 2004, enquanto que a primeira sentença é de 1976. Durante os episódios das cartas psicografadas, o jornalismo deu ampla cobertura aos casos, que eram constantemente abordados nos jornais televisivos.


É importante ressaltar que esses episódios vinculados na televisão e que depois foram reunidos em uma minissérie, não se discute a admissão das cartas psicografadas como prova no judiciário. O foco dos episódios é explicar os casos, como esses foram apresentados nos processo e fornecer uma conclusão que é dada pela carta psicografada. Ao médium responsável pela psicografia das cartas, parte importante do processo de absolvição dos réus no processo, é dado um papel fundamental. Sua idoneidade não é discutida, nem é questionado seu papel de médium entre o transcendente e o terreno. Há uma exaltação do papel do médium como uma pessoa que evita injustiças, que está além da justiça dos homens. 


Não se pode negar a grande importância da vinculação dessas histórias na televisão, através de um formato de jornalismo policial com reconstituições. Frente a um descrédito da população em geral a um judiciário, que dificilmente chega à grande população, o papel do médium é exaltado ao trazer a justiça divina para a justiça humana. A mídia de massas tem um papel importante na formação da opinião, em especial na sociedade brasileira. As cartas psicografadas puderam sair dos processos juridiciais em que poucos têm o conhecimento das provas, e estas puderam ser conhecidas por um público amplo, que dificilmente tem acesso às decisões judiciais. Os casos em que essas provas de cartas psicografadas foram aceitas, também passaram a tomar uma formatação pela apresentação proposta pelo veículo de televisão. Os fatos passaram a ser aqueles que foram apresentados nas cartas psicografadas, não sendo apresentada ao público nenhuma outra versão. Assim, os fatos se estabelecem e se legitima esse instrumento de prova que é a carta psicografada.


É interessante ressaltar a participação do juiz Orimar de Bastos, nesses episódios que foram vinculados na televisão, falando sobre seu convencimento da aceitação da prova de carta psicografada e de uma experiência de uma sentença psicografada em que o juiz serviu de médium. No segundo caso em que o juiz Orimar atua, ele recebe uma carta psicografada por Chico Xavier de um suposto espírito de um juiz, que quando vivo era muito conhecido na localidade, dizendo para que não ficasse preocupado com suas decisões. O juiz Orimar de Bastos participa de dois dos casos em que são aceitas as provas psicografadas, um como juiz singular e outro como juiz no tribunal do júri. Nos dois casos o magistrado adota um posicionamento, que não é justificado como tal, mas pode ser entendido, da teoria da imputação objetiva. Essa não é a teoria adotada no Brasil nos casos de crime. O juiz Orimar é hoje um dos magistrados participantes da Abrame – Associação Brasileira de Magistrados Espíritas, posicionando-se a favor das provas por carta psicografadas.


A mídia televisiva é um importante meio de formação da opinião popular e com isso institui significações imaginárias sociais, que são heterônomas. Essas significações não são realmente palco de discussão da população, em que se poderia decidir se a sociedade aceita ou não a prova psicografada no judiciário. Como instituição heterônoma a prova de carta psicografada, causa uma série de problemas, uma vez que não ocorreu discussão sobre sua aceitação.


Apresenta-se abaixo sucintamente os casos em que as cartas psicografadas foram aceitas, levando em conta o local o réu, o magistrado, as vítimas, o médium e a conclusão do caso.


Caso 1:


Crime de homicídio


Local: Goiânia, 10 fev 1976


Magistrado: Orimar de Barros


Réu: João Batista França


Vítima: Henrique Emmanuel Gregoris


Médium: Chico Xavier


Resumo: Réu confesso França mata Gregoris em uma brincadeira de roleta russa em um motel em que se divertiam com mulheres e álcool. França alega que não teve a intenção de matar, só de assustar, pois tinha retirado as balas do revólver, porém sobra uma. Discute-se o tiro acidental e a questão de ser homicídio culposo ou doloso. O juiz analisa o caso e inocenta o réu. Processo é retirado pela mãe do rapaz, que recebe a visita do médium, com carta do suposto filho morto dizendo que o processo impedia o crescimento espiritual do filho.


Conclusão: autor do crime absolvido


Caso 2:


Crime de homicídio


Local: Goiânia de Campina, Goiás, em maio de 1976


Magistrado: Orimar de Bastos


Réu: José Divino Gomes (18 anos)


vítima: Maurício Garcez Henriques (16 anos)


Médium: Chico Xavier


Resumo: O réu diz que acidentalmente disparou a arma, quando sintonizava o rádio com uma mão e segurava o revólver com a outra. O réu e a vítima brincavam com o revólver do pai do réu. A carta psicografada é atribuída à vítima que inocenta o amigo.


Conclusão: réu é absolvido no tribunal do júri


Caso 3:


Crime de homicídio


Local: Campo Grande, Mato Grosso do Sul, em março de 1980


Magistrado: Armando de Lima (1 julgamento), Nildo de Carvalho (2 julgamento)


Réu: João Francisco Marcondes de Deus, bancário


Vítima: Gleide Dutra de Deus, ex-miss Campo Grande, e esposa do réu


Médium: Chico Xavier


Resumo: Vítima morre com um tiro no pescoço depois de ser vista entrando na casa com o réu e discutindo com ele, depois de uma festa. O réu argumenta que pegou a arma no criado mudo para colocar na cintura e esta disparou. Carta de Cleide isenta o marido de culpa, dizendo que o disparo foi acidental.


Conclusão: réu é absolvido em um julgamento e tem sua pena tida como prescrita em outro


Caso 4:


Crime de homicídio


Local: Viamã, região metropolitana de Porto Alegre, 2006


Magistrado: Des. Manuel José Martinez Lucas, Relator. Des. Marcel Esquivel Hoppe, Revisor e Redator.


Réu: Iara Barcelos (Lara?, esposa da vítima), Leandro Rocha Almeida (caseiro da vítima)


Vítima: Ercy da Silva Cardoso tabelião de 61 anos


Médium: Jorge José Santa Maria, da Sociedade Beneficente Espírita Amor e Luz


Resumo: Carta psicografada de autoria não expressa, mas supostamente do espírito da vítima, diz não ser Iara culpada de sua morte.


Conclusão:  A ré Iara é absolvida do crime em dois julgamentos


Caso 5:


Crime de homicídio


Local: Mandaguari, Paraná, no dia 21 de outubro de 1982


Magistrado: Miguel Tomás Pessoa Filho


Réu: José Aparecido Branco, policial


Vítima: Heitor Alencar Furtado, deputado federal


Médium: Chico Xavier


Resumo: disparo acidental do tiro que mata o deputado. Carta psicografada do espírito do deputado busca livrar o réu da prisão, dizendo que o disparo foi acidental.


Conclusão: prova de carta psicográfica admitida, porém réu condenado a 8 anos de prisão como culpado da morte do deputado.


5. O escrito e o falado: diferenças nas valorações da prova e relação com a racionalidade


A carta psicografada é aceita por alguns magistrados como prova no judiciário, por ser semelhante a outras provas escritas, que são amplamente aceitas. A particularidade dessa prova ser escrita não pode ser desconsiderada, uma vez que não se conhece a admissão de provas de testemunhos do transcendente de outras religiões no Brasil, que se utilizam da forma oral. O falado e o escrito são diferentes em uma sociedade que privilegia o escrito em detrimento do falado. A legislação não faz diferenciação entre uma prova escrita e outra falada, porém essa diferenciação existe na sociedade brasileira. Escrever pressupõe uma educação formal e toda uma adequação do humano a uma cultura existente. Não são todos ainda que podem se comunicar através da escrita, tendo esta se tornado forma de diferenciação entre ricos e pobres, pois estes últimos tinham maior dificuldade no acesso à educação e, portanto, à escrita.


A prova escrita é aquela que se coloca maior índice de veracidade pela sociedade brasileira. Quando se quer expressar que não há dúvidas sobre a situação, fala-se que estava tudo “preto no branco”, em referência à cor da tinta preta na folha branca. A escrita pressupõe uma formalização e a possibilidade maior daquele documento escrito vir a ser prova no judiciário. O que é escrito fica cristalizado e com isso garante uma imutabilidade, que gera segurança.


A carta psicografada é um dos muitos documentos produzidos pelo espiritismo, que tem como uma das principais características ser uma religião de letrados. A doutrina espírita tem como um de seus principais meios de comunicação a escrita. Milhares de livros espíritas são produzidos, seja de doutrina, epístolas, mensagens dos espíritos ou mesmo romances psicografados. O mercado editorial desses livros tem um grande peso em um país como o Brasil, que pouco consome livros. Apesar de grande parte dessa literatura escrita em linguagem simples e acessível ao grande público, no início o espiritismo somente era possível de ser conhecido por algumas pessoas que sabiam ler e que conheciam o francês, língua original dos escritos de Kardec. Diferente de outras religiões o espiritismo tem como foco a escrita, seja desses livros espíritas, seja a bíblia ou outras comunicações entre os fiéis. Aquele que não sabe ler ou tem dificuldades na leitura de livros, dificilmente consegue se inserir como um fiel na doutrina espírita.


“Não é à toa que ainda hoje se pode apontar como um traço notório dessa religião, o elevado grau de escolaridade de seus adeptos. Pois pelo fato mesmo de ser religião letrada, uma religião livresca, que se pretende acima de tudo, racional e positiva, ela exige de seus seguidores um habitus correspondente, um trato maior com as letras e certa familiaridade com um tipo de pensamento mais sutil”[18].


As cartas psicografadas têm outra característica importante, pois além de serem escritas, possuem um conteúdo expresso de forma racional. Segundo o espiritismo as cartas psicografadas são manifestações de espíritos, que apresentam um grau de evolução maior, se comparado à espíritos que se manifestam por via oral, que são considerados como espíritos inferiores ou “obssessores”. A manifestação oral não tem como diferença somente o fato de ser oral, mas é uma manifestação não racionalizada, tida como confusa. As manifestações que ocorrem pela psicografia, são manifestações que são entendidas pelo espiritismo como tendo uma racionalidade presente no próprio espírito, que de acordo com a doutrina é mais evoluído espiritualmente, tem mais compreensão dos fenômenos e se expressa de uma forma mais culta.


Porém, não se pode desconsiderar o médium também como um filtro de edição, que racionaliza as informações na carta[19]. Também não se pode desconsiderar o papel das pessoas que reescrevem, “passam a limpo”, as cartas escritas na letra do médium, muitas vezes de difícil compreensão. Conscientemente ou não, essas pessoas podem alterar algumas informações presentes na escrita original, não sendo possível um controle preciso do que é alterado. É muito provável que essas pessoas atuem como filtros, tornando mais compreensível uma informação que não teria tanta racionalidade assim.


Juntamente com essa necessidade de racionalização, há também uma forte presença da retórica nos escritos espíritas, inclusive nas cartas psicografadas. A retórica é um instrumento que é muito utilizado para o convencimento, em especial na fala. Utiliza-se uma série de instrumentos retóricos, para que a fala seja compreendida, para que seja levada em consideração devido à sua beleza e elegância ou devido à fundamentação em pensamentos de outras pessoas. A escrita atualmente não se utiliza de muitos instrumentos da retórica, que foram abandonados, em busca de uma linguagem mais sintética e fluida. Apesar de buscar uma racionalidade e uma aproximação com o cientificismo, o espiritismo brasileiro consagrou-se por uma doutrina em que a escrita é muitas vezes excessivamente elaborada, com muita adjetivação, escrita não raras vezes em terceira pessoa do plural. Longe de ser uma contradição, a necessidade de uma escrita sofisticada, parece ter sido uma forma de se legitimar a religião.


“Outra característica corrente nos escritos espíritas, e isso também até os dias de hoje, é o uso de uma linguagem excessivamente empolada, afetada, carregada de adjetivos os mais inusitados, conformando um linguajar dominado por uma cultura que se pretende sofisticada, mas é apenas bacharelesca, tamanha a necessidade de demonstrar no modo de escrever um status adquirido de escolaridade superior à maioria dos brasileiros; quem sabe, tamanha a necessidade de apresentar algo intelectualmente elevado, que se possa reconhecer como digno de respeito e consideração. Afinal de contas, o que estava em jogo (e dá para dizer que sempre parece estar) no caso do espiritismo no Brasil é a busca de aceitação e respeito também pela ‘boa apresentação’ e ‘boa aparência’ do seu discurso escrito, da sua literatura de vulgarização (…)”[20].


Esta mesma característica está presente no judiciário brasileiro, que por muitas vezes utiliza-se de uma linguagem escrita pretensamente sofisticada e técnica, para legitimar seu discurso e para se diferenciar dos leigos. Em ambos os casos a linguagem é uma forma de demonstrar poder. Através do domínio culto e formal da linguagem as pessoas apontam para uma posição superior de poder frente a pessoas que não tem esse domínio.


Há uma oposição entre os pares: escrito/falado, racional/emocional. A questão da razão no Direito é tão valorizada, que nos documentos que tem informações que precisam ser cristalizadas, há a materialização dessas informações em papéis. O escrito é ligado ao racional, enquanto que a fala é ligado ao emocional. Falar é menos importante do que escrever, uma vez que a escrita pode fornecer um meio de prova, que dificilmente ocorre na fala (a não ser quando essa é gravada ou filmada e mesmo assim há uma grande discussão sobre sua utilização). Ao escrito imputa-se o caráter de pensado em um período de tempo, ao que não é momentâneo, ao que não é emotivo. Esta oposição racional e emocional está presente inclusive na legislação, em que o emocional é considerado como um elemento atenuante, como no caso de crime cometido por forte emoção e o racional como uma agravante, quando o crime é premeditado. O que o Direito considera é que o estado comum do homem é o racional, e que a emoção está ligada ao descontrole e é um estado incomum. Quando há um documento escrito presume-se que este é mais racional do que um depoimento falado, e por ser mais ‘racional’ é mais digno de valor.  A cultura do judiciário brasileira também privilegia o escrito em detrimento do falado, ao entender que o processo deve ser escrito e comunicações orais devem ser reduzidas a termo, além de ter de ser assinadas no caso de depoimento de testemunhas.


O fato da prova por carta psicografada ser escrita, facilita a sua apreciação por um judiciário que também tem uma tradição escrita. Além disso, o judiciário evita com isso a apreciação de provas com uma manifestação do transcendental ocorridas nos recintos da justiça brasileira, considerado local em que todos devem ter uma atitude corporal e uma fala o mais formal possível. A carta psicografada tem esse caráter de manifestação contida, formal, racionalizada. Não se tem notícias de oitiva de testemunhas através dos médiuns ou mesmo a manifestação de fala do transcendente em salas de audiência, que foram admitidas como provas.


O mundo do transcendente somente é admitido como algo fora do ambiente do judiciário, mesmo assim, com muitas ressalvas. Há uma aceitação de algumas manifestações do transcendente, mas outras não são absolutamente cogitadas. Admitir a oitiva de espíritos falando por meio dos médiuns, não seria tão diferente de admitir a sua suposta fala pela escrita desses mesmos médiuns. Porém, isso não é sequer cogitado na justiça brasileira, o que poderia ser até interessante, para o magistrado que poderia pela oitiva da própria entidade verificar dados, buscar novas provas, etc..


As provas transcendentais produzidas na forma escrita são aceitas pelo judiciário, enquanto que as provas orais não. Isso aponta para a construção da religiosidade brasileira que associou a manifestação oral do transcendente como própria da umbanda, religião afro-brasileira que outrora foi essencialmente uma religião de pessoas pobres e sem instrução formal. Essas e outras religiões afro-brasileiras foram perseguidas, tendo seus líderes e religiosos apontados como criminosos ou contraventores frente às disposições do Direito penal. O espiritismo ficou conhecido como uma religião de letrados e conseguia estabelecer laços com a elite brasileira, na qual era recrutada grande parte dos juristas.


6.  Discussão sobre os argumentos a favor e contra a utilização dessa prova


Há diversos argumentos pró e contra a utilização de provas psicografadas nos processos judiciais, talvez em igual número. Esses argumentos são dados por juristas (magistrados, promotores, advogados e estudiosos) e também por pessoas leigas religiosas ou não. Dificilmente o argumento é dado com base na fé, uma vez que isso dificultaria a discussão. Geralmente os argumentos a favor da utilização das cartas psicografadas podem ter um cunho de crença, porém são racionalizados.  É importante ressaltar que apesar de grande parte da população brasileira se considerar da religião católica, há uma grande aceitação das idéias do espiritismo.


Nem todas as idéias do espiritismo são aceitas por todos, porém há uma grande aceitação na sociedade brasileira da idéia de um mundo transcendente no pós-mortem e da aceitação da comunicação entre vivos e mortos (visões, aparições, sentimento de presença, conversas, troca de cartas). Por essa grande aceitação, muitas das discussões sobre a prova pela carta psicografada não questiona uma série de pontos como a vida após a morte e a possibilidade de comunicação entre vivos e mortos. Mesmo os argumentos que são contra a utilização dessa prova não atingem diretamente esses pontos centrais, mas discutem a validade da prova, entendendo-a como uma prova que não foi dita como produzida pelo transcendente.


Há outros pontos que dificilmente são questionados: a) que o transcendente se manifesta sobre algo que ele sabe do mundo não transcendental (isso pressupõe que o espírito pense), b) que a manifestação do espírito é realmente a fala daquela pessoa quando viva, não se discutindo a existência de um espírito zombeteiro ou enganador, c) que a carta escrita pelo médium não é manifestação do médium (mesmo que inconsciente), mas do transcendente, d) que o transcendente pode conhecer mais do que os humanos, ou seja, que os vivos.


Essas questões que não são discutidas fazem parte do imaginário social constituído brasileiro contemporâneo. Elas pressupõem uma série de magmas de significações que são próprios de um lugar e de um momento histórico. Outras sociedades, como por exemplo, a dos gregos antigos áticos com seus deuses e manifestações furiosas do transcendente, traz um outro tipo de explicação e um outro modo de entender o mundo para seu povo. A não discussão sobre uma série de conteúdos indica parte do que a sociedade é e acredita. Hoje pode-se afirmar que grande parte da população brasileira acredita de alguma forma em espíritos e na possibilidade de manifestação em assuntos e coisas terrenas. Porém, a manifestação aceita geralmente vem da religião espírita, sendo mais questionada essas manifestações em religiões afro-brasileiras.


Uma das grandes discussões sobre a utilização das provas por cartas psicografadas é sobre a sua legalidade ou não. Há vedação constitucional para a utilização de provas ilícitas e muitos doutrinadores entendem que a prova por carta psicográfica é ilícita, logo não pode ser utilizada. Entre os doutrinadores há uma série de definições do que venha a ser prova ilícita, porém todos apontam que esta tem com características ser uma prova obtida contra a lei ou mesmo contra a moral e os costumes. Os que entendem que as cartas psicográficas são ilegais, não afirmam que são contra a lei, mas sim contra os costumes e à moral. Porém, em um mundo pós-moderno é difícil se falar em uma Moral, mas pode-se defender “morais”. A pluralidade de morais levaria a uma maior aceitação de condutas e valores, mesmo que estas sendo minoritárias.


Um dos argumentos utilizados por aqueles que defendem e os que são contra as provas psicografadas é a questão do Estado ser laico. Os que defendem alegam que o Estado por ser laico garante a liberdade religiosa, enquanto os que são contra as cartas psicografadas como prova, entendem que por ser laico o Estado não pode permitir a influência de assuntos que dizem respeito à religião no judiciário. Estes argumentos somente tem sentido, uma vez que o espiritismo é entendido no Brasil principalmente como religião.


Grande parte dos argumentos contra e dos argumentos a favor, discutem a questão da validade dessas provas, entendendo que a carta psicografada como uma prova comum. Os que não defendem a utilização das cartas psicografadas no judiciário como prova levantam argumentos que discutem a dificuldade de se auferir veracidade das informações contidas nessas cartas. O que não se põe na discussão dos que argumentam contra é que a: existência de espíritos, a comunicação desses espíritos com os homens, dessa comunicação ser feita necessariamente pelo médium, entre outras.


Os que defendem a utilização da carta psicografada como prova, apresentam um argumento para validar essas provas, que é a grafologia. Cartas psicografadas são ditas como assinadas pelos supostos espíritos dos mortos, em uma caligrafia semelhante à que tinham em vida. Isso leva àqueles que defendem a utilização dessas cartas no judiciário a garantir a veracidade da identidade do suposto espírito, pois a assinatura feita pelo médium reflete a assinatura do espírito. Carlos Augusto Perandrea escreveu um livro que trata do tema, denominado “A psicografia à luz da grafoscopia”. O autor analisa uma série de assinaturas presentes em documentos e nas cartas psicografadas, para concluir que há semelhança entre elas. O autor é professor na Universidade de Londrina no Paraná e analisou em seu livro mais de 400 assinaturas em cartas psicografadas. A utilização de um método de análise tido como racional e aceito para grande parte da análise de documentação, permite um respaldo das cartas psicografadas.


Porém, mesmo nessa análise não se trata da questão de falsificações que são possíveis, mesmo nos exames grafotécnicos de assinaturas. Não se questiona o fato da grafologia ser um estudo que se coloca como tendo uma alta cientificidade, porém que é eminentemente interpretativo e por isso depende dos sujeitos que estudam essas cartas. Porém, os estudos grafotécnicos pretendem a uma neutralidade daquele que analisa a escrita, no caso as cartas psicografadas. A análise de grafia e sua ligação com a identidade de uma pessoa, somente é possível, pois se convencionou que certas características da grafia pertenciam a uma pessoa e não a outra. É um processo de racionalização de um estudo que se tem uma base de técnica, porém não se restringe ao estudo do objeto, sem considerar o sujeito que vê esse objeto.


Abaixo apresenta-se um resumo dos principais argumentos contra e a favor. Nenhum desses argumentos diz não aceitar a carta psicografada por não ter fé, como se espera de um instrumento de uma religião. O que se discute é o caráter científico das cartas psicografadas.


Argumentos contra:


a. A prova por carta psicografada é prova ilícita, ilegal ou mesmo nula


b. A prova por carta psicografada não está prevista na legislação brasileira


c. Não se pode sancionar o médium que possa ter mentido


d. Não se pode sancionar o espírito que supostamente ditou a carta, por falsidade documental ou falsidade ideológica


e. Não se pode juramentar o espírito em um tribunal


f. o Estado é laico e não pode aceitar uma prova advinda de uma religião


g. posições pessoais do julgador não podem fazer parte do processo


h. o Direito tem o caráter de ciência e não pode basear provas na religião


i. a aceitação da prova por carta psicografada fere a segurança jurídica e o Estado de Direito


j. de acordo com o art. 202 do CPP, toda pessoa pode ser testemunha, porém não há referência à espíritos ou “pessoas desencarnadas”


Argumentos a favor:


a. a prova por carta psicografada não é proibida expressamente pela legislação brasileira


b. a prova por carta psicografada pode ajudar a conhecer fatos e apontar possíveis culpados que não foram levantados até então, possibilitando a construção de novas provas periciais


c. O Estado é laico e permite a multiplicidade de religiões, inclusive a espírita.


d. a declaração mediúnica pode ser utilizada como qualquer coisa declaração, tem de ser confrontada com outras provas


e. A autoria da carta psicografada pode ser determinada cientificamente por exame grafotécnico


f. a carta mediúnica é um documento como outro qualquer, devendo ser analisado na sua validade como qualquer outro


g. o Estado é laico, mas as pessoas não, logo podem ter convicções religiosas e as expressar


h. a doutrina espírita tem a faceta de religião, mas é também uma ciência, segundo seu criador, e a prova por carta psicografada pode ser explicada racionalmente


i. a carta mediúnica é a expressão da vontade e da fala do espírito e pode ser considerado um documento, de acordo com o art. 232 do CPP


j. a Constituição Federal assegura o principio da ampla defesa


l. Ao juiz é assegurado a livre apreciação da prova e principio da livre convicção, podendo apreciar qualquer prova


m. a mensagem mediúnica se refere à pessoa enquanto viva e não de suas experiências após a morte


Considerações Finais


As cartas psicografadas são aceitas no Direito brasileiro e mesmo sendo em pequeno número, sua repercussão é muito grande. Isso porque a carta psicografada aparece como um instrumento de uma religião e coloca em discussão a questão do Direito ser amplamente racional. O direito tem uma racionalidade, porém isso não o define. Há uma outra esfera das instituições imaginárias da sociedade, como é o direito, que é a dimensão do caos, que não é contemplada na lógica conjuntista-identitária que está presente na racionalidade. Essa dimensão que permite o caos e a criação, tem uma outra lógica, que é a lógica dos magmas. É a criação quer permite o juiz introduzir a carta psicografada em um processo.


O que é fundamental e pouco discutido é se a aceitação desse tipo de prova, não contrariaria uma postura democrática. Isso porque, uma vez aceita a prova psicografada seria preciso aceitar outras provas de outras religiões. Essa questão da ampla aceitação é escamoteada, quando se reinvidica um status de ciência e não de fruto de uma religião para as cartas psicografadas. O estatuto neutro da ciência é utilizado para evitar a utilização democrática por todas as religiões, que possuem instrumentos parecidos. A questão não está na religião, mas sim na ciência. É a ciência que tem se colocado como uma instituição imaginária social amplamente heterônoma, de caráter quase que divino, pois não se ousa colocar em dúvida seus postulados e principalmente seu status de direcionador da sociedade.


O direito encarado como ciência busca utilizar-se desse caráter de novo deus, que a ciência adquiriu na sociedade moderna. É a ciência que diz o que é bom ou não para os homens: o que se deve comer, como se deve agir, o que é melhor pensar. Como um novo deus, a ciência direciona os comportamentos humanos e dita o que se deve crer. A questão é que a ciência é feita por homens, que fazem parte de uma sociedade, logo não tem nada de divino e muito de falível. Pretender um status de deus é reivindicar algo que não é de direito.


Os estudos de direito somente poderão tentar esclarecer a questão, quando começarem a encarar o direito como uma instituição imaginária social, e não como uma ciência hermética e pretensamente neutra. É por esse caminho, que se pode realmente discutir se as cartas psicografadas devem ser ou não aceitas pela sociedade brasileira, e se a sociedade crer que devem fazer parte do direito, que elas façam. Porém, isso somente pode ser feito quando o direito for amplamente discutido, quando se tiver um direito realmente autônomo. A sociedade grega ática entendia que os pássaros davam presságios e estes eram respeitados. Isso era entendido pela sociedade como correto. As cartas psicografadas não são muito diferentes desses presságios, como também das teorias físicas, dos mitos ou até das “instituições do direito”, como a segurança jurídica.  O que é necessário é a busca de um direito autonônomo, mais do que um direito dito científico.


 


Bibliografia

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_____. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no espiritismo kardecista. Tese de doutorado em Antropologia social na FFLCH-USP, 2000.

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ROSA, Valter da. Aspectos Éticos e Jurídicos – Parapsicologia : um Novo Modelo.

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Artigos

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LESSA, Thathiana. Psicografia como meio de prova: para além do tecnicismo jurídico.

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MARCÃO, Renato. Psicografia e prova penal. Boletim Jurídico, Uberaba/MG,a.3,nº216. Acesso em: 2  abr. 2007

MOURA, Kátia de Souza. A psicografia como meio de prova. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8941. Acesso em: 11 jun. 2007.

SOARES, André Luís N.. Psicografia como meio de prova: uma análise esposada entre Direito e pesquisa psíquica. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1390, 22 abr. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9764>. Acesso em: 13 nov. 2009.


Notas:

[1] CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. P. 259.

[2] CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. P. 266.

[3] CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. P, 388

[4] WIEACKER, Franz. História do Direito privado moderno.

[5] WEBER, Max. Economia e sociedade. Vol. 2, p 100

[6] CASTORIADIS, Cornelius. Encruzilhadas do labirinto VI . Figuras do pensável. P, 91

[7] CASTORIADIS, Cornelius. Encruzilhadas do labirinto VI . Figuras do pensável. P, 91

[8] CASTORIADIS, C. A Instituição Imaginária da Sociedade. P, 188.

[9] STIVANELLO, Gilbert Uzêda. Teoria da imputação objetiva. R. CEJ, Brasília, n. 22, p. 70-75, jul./set. 2003

[10] CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. P, 192

[11] CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade.  p, 159.

[12] CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto: o domínio do homem. P. 392.

[13] CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto: o domínio do homem. P. 393

[14] Prefere-se aqui a denominação de modelo ao invés de sistema, como é comumente colocada pela doutrina

[15] WEBER, Max. Economia e sociedade. Vol.2 P. 529

[16] Dados obtidos da tese de Célia da Graça Arribas intitulada: Afinal, espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da diversidade religiosa brasileira.

[17] Dados obtidos da tese de Célia da Graça Arribas intitulada: Afinal, espiritismo é religião? A doutrina espírita na formação da diversidade religiosa brasileira.

[18] ARRIBAS, Célia da Graça. É o espiritismo uma religião? P. 160

[19] LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura escrita e oralidade no espiritismo kardecista. P. 45

[20] ARRIBAS, Célia da Graça.    P. 156.

Informações Sobre o Autor

Gisele Mascarelli Salgado

Pós Doutora em Direito pela FD-USP Doutora e Mestre em Direito pela PUC-SP bacharel em História Direito e Filosofia
http://lattes.cnpq.br/7694043009061056


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Equipe Âmbito Jurídico

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