Carolline Leal Ribas[1]
Karine Fernandes Martins[2]
RESUMO
O presente artigo aborda o princípio da dignidade da pessoa humana, como uma garantia e direito fundamental de toda e qualquer pessoa, estando positivado na Constituição Federal do Brasil de 1988, inclusive tendo um status internacional, visto sob a óptica da literatura, a qual o coloca sob uma óptica ficta e real. Este estudo é de suma importância para a ciência social aplicada, uma vez que transcende normas positivas concentrando-se em problemas de interpretação que embasam doutrinas e jurisprudências, uma vez que a dignidade da pessoa humana não pode ser visualizada como uma mera norma ética ou relacionada aos ditames de boa-fé, mas sim como parâmetro que deve acompanhar as relações sociais, razão pela qual encontra proteção em vários dispositivos constitucionais pelo mundo, a fim de propiciar um direito mais humano. Serão expostas as visões de renomados autores sobre o tema, assim como as evoluções históricas que contribuíram para o surgimento da dignidade. Para tanto, enfatizou-se o estudo do princípio da dignidade da pessoa humana sob a óptica dos escritos literários Herta Müller (2011) e Primo Levi (1988), os quais trabalham com o processo de luta de sobrevivência como modo de fundamentar e conservar a sua dignidade como pessoa humana. O questionamento envolve a possibilidade deste princípio existir além da questão formal, a fim de se materializar no plano fático, tendo como impasses ou justificativas de mudanças as próprias alterações no ambiente sociocultural.
Palavras chave: Dignidade da Pessoa Humana; Evoluções; Surgimento; Literatura.
ABSTRACT
This article deals with the principle of the dignity of the human person, as a guarantee and fundamental right of every person, being positivado in the Federal Constitution of Brazil, including having an international status, seen from the perspective of literature. This study is of paramount importance to applied social science, since it transcends positive norms by focusing on problems of interpretation that underlie doctrines and jurisprudence, since the dignity of the human person can not be seen as a mere ethical or related norm to dictates in good faith, but rather as a parameter that should accompany social relations, which is why it finds protection in various constitutional devices throughout the world, in order to provide a more human right. The visions of renowned authors on the subject will be exposed, as well as the historical evolutions that have contributed to the emergence of dignity. In order to do so, the study emphasized the principle of the dignity of the human person from the perspective of the literary authors Herta Müller (2011) and Primo Levi (1988), who work with the process of survival struggle as a way of founding and preserving the dignity as a human person. The questioning involves the possibility of this principle to exist beyond the formal question, in order to be materialized in the factual plan, having as impasses or justifications for changes the very changes in the sociocultural environment.
Keywords: Dignity of the Human Person; Evolution; Emergence; Literature.
1 INTRODUÇÃO
As mudanças sociais e a evolução histórica contribuíram de forma significativa para o surgimento da idéia de dignidade humana. Vivemos em uma época em que existe um parâmetro mínimo para se ter uma vida considerada digna, conforme, inclusive, já fora delimitado por nossa Suprema Corte, mas tais conquistas são sinônimas de uma luta antiga que ainda existe e persiste, seja de forma coletiva, seja no interior de cada ser humano.
A dignidade da pessoa humana possui características próprias e distintas, e atualmente está inserida na Carta Magna de 1988, embasando o Estado Democrático de Direito, especialmente no contexto pós ditatura. A dignidade da pessoa humana atualmente está positivada no texto Constitucional de 1988, no artigo 1°, inciso III, e muito se tem discutido acerca dessa temática e sua aplicabilidade na vida cotidiana. Nesse sentido, o estudo sobre a dignidade da pessoa se faz pertinente porque todos sabem da sua existência e positivação na Constituição, seja na Constituição do Brasil, seja na de outros países. Cabe ressaltar que “a dignidade é essencialmente um atributo da pessoa humana pelo simples fato de alguém ‘ser humano’, se tornando automaticamente merecedor de respeito e proteção, não importando sua origem, raça, sexo, idade, estado civil ou condição socioeconômica (sic)” (MOTTA, 2013).
O presente trabalho tem como objetivo analisar o princípio da dignidade da pessoa humana no contexto de mudanças sociais e evolução histórica. Por meio deste estudo, mostra-se possível compreender a necessidade da existência de um parâmetro mínimo para se ter uma vida considerada digna. Acontece que esse parâmetro mínimo é resultado de conquistas pela dignidade da pessoa, fruto de uma luta antiga que ainda existe, seja de forma coletiva seja no interior de cada ser humano.
É possível estudar a dignidade da pessoa humana sob dois aspectos, um realista baseado no relato autobiográfico de Levi (1988) e um fictício, baseado na obra de Müller (2011). Para assim visualizar e compreender que são apenas visões diferentes do mesmo tema, pois, em certa medida, realidade e ficção se fundem e formam a sociedade presente. Uma sociedade excludente, ainda sem saber o que é dignidade para além do que está previsto em um texto, uma sociedade que se baseia em história e sofrimento.
Optou-se por uma pesquisa qualitativa, com enfoque em reflexões teóricas e discussões acadêmicas e científicas, uma vez que é possível estudar a dignidade sob dois aspectos, um realista e um fictício, para assim visualizar e compreender que são apenas visões diferentes do mesmo tema, pois em certa medida realidade e ficção se chocam e formam a sociedade em que vivemos. Uma sociedade ainda excludente, ainda sem saber o que é dignidade para além do que estar prevista em um texto, uma sociedade que se baseia em história e sofrimento.
Desse modo, torna-se importante desenvolver um estudo sobre este princípio, bem como demonstrar a existência ou ausência de preceitos mínimos existentes, suas formalidades e características, uma vez que a dignidade permeia as decisões jurídicas e acompanha as relações sociais, sendo assegurada em várias constituições pelo mundo. Assim, o presente trabalho encontra-se divido em duas partes. A primeira parte tem por escopo desenvolver a fundamentação teórica concernente à dignidade da pessoa humana, no qual se inclui aspectos gerais, evolução histórica, um estudo sobre o que vem a ser a dignidade da pessoa humana na sociedade. Na segundo parte, apresenta-se uma análise das obras do escritor italiano Levi (1988) e da escritora romena Müller (2011), obras estas que relatam a luta pela sobrevivência, por respeito e principalmente por reconhecimento, bem como acompanha a construção da dignidade da pessoa humana na sociedade e seus reflexos no tema objeto de estudo.
2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: uma breve reconstrução histórica
Desvendar segundo o dicionário (DICIO, 2016) é “retirar a faixa de pano que cobre os olhos”, o que equivale afirmar que para ser possível entender o que vem a ser a dignidade da pessoa humana propriamente dita, faz-se necessário entender o contexto de sua criação e demais aspectos. Destarte, a dignidade da pessoa humana é um tema que gera muito debate, uma vez que durante a história, a dignidade foi se consolidando e evoluindo, não para se tornar algo inalcançável e de conceito fechado, pelo contrário, para se consolidar como sendo inerente à pessoa sem nenhuma distinção.
Para Comparato (2015, p.24), quando se criam conceitos ligados à essência do ser humano ocorre, ao mesmo tempo, uma redução da condição inerente à própria pessoa. Não obstante, o mesmo autor reconhece a importância da conceituação que possibilitou o início da positivação dos direitos interligados ao conceito preexistente.
Diante deste panorama “Kant foi o primeiro a reconhecer que ao homem não se pode atribuir valor (preço), devendo ser considerado como um fim em si mesmo e em função da sua autonomia enquanto ser racional” (QUEIROZ, 2005, p.1). Com efeito, fica evidente que a dignidade da pessoa humana é capaz de envolver os valores de uma sociedade, ou levar a questionamentos essenciais quando ausente.
Tudo gira, assim, em torno do homem e de sua eminente posição no mundo. Mas em que consiste afinal a dignidade humana? A resposta a essa indagação fundamental foi dada, sucessivamente, no campo da religião, da filosofia e da ciência. A justificativa religiosa da preeminência do ser humano no mundo surgiu com a afirmação da Fé monoteísta. (COMPARATO, 2015, p.13)
Comparato (2015, p. 24) esclarece que “a ideia de que os indivíduos e grupos humanos podem ser reduzidos a um conceito ou categoria geral, que a todos engloba, é de elaboração recente na História”. Ainda, o autor analisa que “a oposição ética entre pessoas e coisas, sustentada por Kant, alarga e aprofunda a tradicional dicotomia, herdada do direito romano, entre personae e res.” (2015, p. 34).
No entendimento de Sarlet (2007), a dignidade da pessoa humana já passou por várias fases históricas e devido a tal fato evoluiu. Barroso (2010, p.8) reforça essa linha argumentativa ao alegar “como intuitivo, que a noção de dignidade humana varia no tempo e no espaço, sofrendo o impacto da história e da cultura de cada povo, bem como de circunstâncias políticas e ideológicas”. Boff e Bortolanza (2010, p. 257) alegam que “o conceito de dignidade da pessoa é algo ainda muito discutido na sociedade contemporânea, sendo difícil encontrar uma única definição de tal princípio em razão de sua amplitude, caracterizado por sua “ambiguidade e porosidade.”
Sarlet (2007, p. 364) reconhece, no entanto, que “não restam dúvidas de que a dignidade é algo real”. Neste sentido, de reconhecimento da dignidade, Barroso (2010, p. 4) adverte que “a despeito de sua relativa proeminência na história das ideias, foi somente no final da segunda década do século XX que a dignidade humana passou a figurar em documentos jurídicos, a começar pelas Constituições do México (1917) e da Alemanha de Weimar (1919)”. No entanto, “foi durante o período axial da História, como se acaba de assinalar, que despontou a ideia de uma igualdade essencial entre todos os homens” (COMPARATO, 2015, p.24).
No sentido de existir respeito aos Direito Humanos, Piovesan (2003, p.30) ensina ainda que:
Em face do regime de terror, no qual imperava a lógica da destruição e no qual as pessoas eram consideradas descartáveis, ou seja, em face do flagelo da Segunda Guerra Mundial, emerge a necessidade de reconstrução do valor dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional.
Assim, em um período histórico baseado em lutas e questionamentos, a conceituação do que vem a ser dignidade da pessoa humana ainda encontra muita divergência na doutrina. Assim surgiram justificativas religiosas e políticas, tendo alguns autores gregos desenvolvido uma justificativa que englobava função social do ser humano. A dignidade da pessoa humana foi positivada de forma diferente em cada Constituição, levando-se em consideração o contexto histórico e os anseios da sociedade.
A Constituição da Alemanha, ao ser promulgada, atribuiu o status de república para a Alemanha, e foi votada em um contexto de lutas e golpes políticos. Destaca-se, que, “apesar das fraquezas e ambiguidades assinaladas, e malgrado a sua breve vigência, a Constituição de Weimar exerceu decisiva influência sobre a evolução das instituições políticas em todo Ocidente” (COMPARATO, 2015, p.204-205). Diante desse quadro de formação histórica, como esclarecido por Comparato (2015, p.205), afirmou-se ao tempo que “a estrutura da Constituição de Weimar é claramente dualista”, porque, ao mesmo tempo em que continha formas organizacionais, possuía um rol de direitos e liberdades.
Nesse mesmo sentido, a Constituição do México representou a consolidação do Estado de bem-estar social no sentido de se viabilizar a vida em coletividade cedendo lugar a uma cultura mais solidária. Mesmo que reconhecida historicamente por direitos trabalhistas, a Constituição Mexicana trouxe direitos de segunda geração ou dimensão, que seriam os direitos sociais inerentes à pessoa, e, implicitamente, o início da dignidade da pessoa humana. Contudo, Comparato (2015, p.192) evidencia que “na Constituição Mexicana de 1917 não se fazem as exclusões sociais próprias do marxismo: o povo mexicano não é reduzido unicamente à classe trabalhadora”.
Pinheiro (2006) entende que a Constituição da Alemanha e a Constituição do México representam um marco na forma de pensar e exteriorizar o pensamento por meio de manifestações essenciais para história como um todo. Porém, alerta para o fato de que a importância desses diplomas está além do texto e seus efeitos.
Na seara internacional global, cabe citar ainda a Declaração Universal dos Direitos Humanos. No final de 1945, período pós guerra mundial, os líderes das nações do mundo reuniram-se em São Francisco para formar a Organização das Nações Unidas, com o escopo de se promover por meio de uma única organização um foro definitivo para tratar de assuntos referentes à paz mundial.
Aprovada em 10 de dezembro de 1948, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, trouxe um enfoque político aos direitos humanos e aos princípios de igualdade e não discriminação. Já em seu preâmbulo e em seu artigo 1° nota-se uma preocupação em se enfatizar a promoção do princípio da dignidade da pessoa humana, como um dever mínimo a ser garantido pelo Estado.
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.
Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla
Artigo 1° Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade (NAÇÕES UNIDAS, 1948).
Por fim, no contexto brasileiro o princípio da dignidade da pessoa humana constituiu-se sob o enfoque do Estado Democrático de Direito, o qual tem como fundamentos soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como pluralismo político (BRASIL, 1988), deve comportar espaço para as diversas visões da comunidade política, bem como de dar voz e participação a todos os membros da coletividade.
A Constituição da República Federativa do Brasil adotou uma série de princípios com o intuito de se garantir os preceitos democráticos que possam assegurar a paz social e a dignidade da pessoa humana. Dentre eles, pode-se citar o princípio da igualdade, da legalidade, da vedação à tortura, da liberdade, dentre outros, em consonância, por exemplo, com os valores já estampados na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A compreensão das normas que efetivamente positivaram o princípio da dignidade da pessoa humana, tanto na esfera internacional quanto no Brasil, faz-se relevante para se compreender o quão recente este assunto é tratado em âmbito acadêmico, e que o significado de dignidade pode variar conforme o contexto e de jurisdição para jurisdição. Contudo, a palavra dignidade nos fornece uma linguagem adequada para adotarmos interpretações de garantias de direitos humanos fundamentais que podem, inclusive, manipular processos para luta por reconhecimento de um mínimo de dignidade.
Sob esse aspecto, faz-se possível uma análise da dignidade da pessoa humana sob a óptica da literatura, tendo com vertente as obras de Herta Müller (2011) e Primo Levi (1988), no intuito de se verificar como que a dignidade pode contribuir para interpretação e julgamento dos direitos humanos, cumprindo com seu papel fundamental positivado no ordenamento jurídico, o que será desenvolvido a seguir.
Entendendo ser possível estudar o Direito sobre os pilares da literatura, os autores, Thomé; Araújo, (2005 p.104) entendem que a literatura é a concretização do exercício da comunicação.
Se a literatura de uma nação entra em declínio a nação se atrofia e decai. O legislador não pode legislar para o bem público, o comandante não pode comandar o povo (se se tratar de um país democrático) não pode instruir os seus representantes a não ser através da linguagem.
Ao Direito é permitido fazer comparações através de obras literárias ou relatos, porque somente “a literatura possibilita a análise de temas ou assuntos por meio de trama que engendra. Ela, por meio da sensibilidade e argúcia do escritor, nos permite perscrutar os interstícios de uma gama indefinida de situações” (THOMÉ; ARAÚJO, 2005 p.104)
Pretende-se, portanto, fazer uma análise da obra É isto o homem? do renomado autor Levi (1988), e da obra Tudo o que tenho levo comigo de Muller (2011), voltadas para a ótica jurídica com contornos no tema da dignidade da pessoa humana, porque somente a junção de direito e literatura é que
permite-nos imiscuirmos nos labirintos mentais de uma personagem, insondáveis no plano exterior de sua existência, até colocar- nos em face de dramas sociais, políticos e religiosos, que são bem parecidos e ‘vivenciados’ ,quando nos são revelados pelas lentes da Literatura (THOMÉ; ARAÚJO, 2005 p.104)
Conceição (2013, p. 31) tece algumas considerações sobre a importância da obra de Levi (1988) e afirma que “oscila a lacuna entre a necessidade premente de narrar o que se viveu e a busca pouco frutífera de termos de uma língua capazes de descrever os fatos, reforçando o limite entre ficção e realidade”.
é um livro de relatos que buscaria, em um primeiro momento, sua pessoal libertação interior, sendo o texto audacioso na transmissão de uma mensagem quanto à liberdade de expressão das lembranças que descrevem o terror dos cativos de Auschwitz, uma busca que percorreria dois caminhos: o alívio da carga traumática da memória da testemunha e a memória no sentido de armazenamento de dados. (CONCEIÇÃO, 2013, p. 32).
Igualmente ocorre com a obra de Müller (2011), Tudo o que tenho levo comigo.
Nascida em 1953, numa região de minoria alemã na Romênia, Müller cresceu sentindo o peso do silêncio dos que, por cinco anos, existiram em tais campos. A mãe fora uma dessas pessoas. Em casa, não se falava sobre os acontecimentos nesses tempos sombrios, senão de forma velada, em conversas furtivas com outras pessoas deportadas. A autora não entendia o conteúdo delas, mas percebi o medo. (LOPES, 2012, p.156)
Na obra É isto um homem? do renomado autor italiano Primo Levi (1988), encontra-se o relato considerado mais vívido de toda a história da humanidade que reflete sobre a dignidade, um grito por reconhecimentos. O relato demonstra como é sobreviver sem ser considerado um ser humano. Tal fato é visualizado em vários trechos de sua obra, tal como aquele em que relata: “sofríamos com a sede e o frio; a cada parada, gritávamos pedindo água, ou ao menos um punhado de neve, mas raramente fomos ouvidos; os soldados da escolta afastavam quem tentasse aproximar se do comboio” (LEVI, 1988, p.19).
A luta por sobrevivência se torna uma busca por igualdade. Sobreviver apenas por possuir energias suficientes para seguir e executar ordens não basta. Sobrevive-se para não perder a essência de ser humano. A luta interior é exteriorizada, a força é demonstrada, clama-se por promover a dignidade em seus aspectos materiais, para que aqueles que a ignoram percebam que apenas a formalidade não basta.
O campo é uma grande engrenagem para nos transformar em animais não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este, pode- se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento; e, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar ao menos a estrutura, a forma da civilização. Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso consentimento. (LEVI, 1988, p. 55).
A sociedade ainda desrespeita as minorias. Muitos não possuem voz, muitos são considerados objetos e por mais que a dignidade da pessoa humana esteja positivada em diplomas legais, ainda somos uma sociedade que em muitos aspectos se aproxima do campo de concentração, e na organização dessa sociedade nos tornamos novamente escravos. Saber por quanto tempo ainda seremos uma sociedade representada por uma engrenagem é um ponto importante, mas se há uma resposta, não há como saber. Levi (1988) fez esse questionamento por várias vezes enquanto estava em um campo de concentração. Surpreendentemente, as pessoas a quem ele fazia essa pergunta, na ausência de respostas ou por temerem demais, riam. Ainda hoje quando se pergunta quanto tempo uma situação perdurará é muito provável escutarem-se os mesmos risos.
[…] Até quando? Os velhos habitantes do campo riem desta pergunta: uma pergunta pela qual se conhecem os recém-chegados. Riem, e não respondem: para eles, desde meses e anos o problema longínquo foi se apagando, perdeu toda a intensidade, perante os problemas do futuro imediato. (LEVI, 1988, p.47)
Diante da visão de Levi (1988), somos apresentados a um contexto rico de detalhes, e acompanhamos a passagem de tempo em dias, meses ou anos. Não importa o que acontecia, o autor não se permitia esquecer que ele é um ser humano e mesmo diante da incerteza do medo, e da forma de tratamento destinado, ele era possuidor de direitos e lutava para não se esquecer disso.
Diante do momento vivido e do grito interno, “a obra de Levi é forte o bastante para mostrar toda redução daquela matéria incorpórea e abstrata que faz do homem humano” (VOLTARELLI, 2010). A retirada dos direitos de personalidade, o tratamento que menospreza o ser humano, a supressão dos sonhos e a imposição do silêncio demonstra bem o relato do autor, ao registrar que “somos apenas uns animais cansados” (LEVI, 1988, p.60).
“Procurem não aceitar em seus lares o que aqui nos é imposto” (LEVI, 1988, p.60). Essa frase demonstra que o pensamento, bem como a transformação cultural e social iniciam-se nos lares. Quando se aceita o silêncio mata-se uma parte da humanidade. A fragilidade dos laços humanos gera a dificuldade de reconhecimento, o medo traz a desconsideração da pessoa, o silêncio relativiza práticas que em determinado momento eram consideradas kafkianas. Não mata imediatamente, mas como demonstra o autor, “talvez sobrevivamos às doenças e escapemos às seleções, talvez aguentemos o trabalho e a fome que nos consomem, mas, e depois?” (LEVI, 1988, p.77)
Fato é que desrespeitos, desigualdades, discriminações são inerentes à sociedade humana. Mas a dignidade também precisa ser vista como um aspecto inerente da vida de todos os seres, independente das mudanças sócias, dos contextos históricos e das peculiaridades locais. Permitir que uma pessoa seja objeto é imperdoável, porque “o caráter único e insubstituível de cada ser humano, portador de um valor próprio, veio demonstrar que a dignidade da pessoa existe singularmente em todo indivíduo. (…)” (COMPARATO, 2015, p. 43).
Quando se vive em sociedade, constroem-se barreiras mesmo que de forma defensiva, seja por imposição, seja por medo, deixamos de possuir algo denominado autonomia. Diante dessa construção, Barroso (2014, p.81) sustenta que a autonomia é o elemento que permite a criação da concepção de vida boa, ou boa vida, e ao oferecer meios de se buscar essa concepção de vida a autonomia seria
o elemento ético da dignidade humana. É o fundamento do livre arbítrio dos indivíduos, que lhes permite buscar, de sua própria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. A noção central aqui é a autodeterminação: uma pessoa autônoma define as regras que vão reger a sua vida.
Os próprios prisioneiros do campo que exigiam ser tratados não como propriedade começam a perder a razão, e os próprios prisioneiros iniciam um processo de hierarquização. Dentro desse universo construído, em que é possível restringir direitos, e se justifica a ausência de dignidade, “sucumbir é mais fácil: basta executar cada ordem recebida (…)” (LEVI, 1988, p.131). Destruir um comando não é mais a opção de muitos que ali habitam como prisioneiros. Esses internos, que foram tantas vezes humilhados e desrespeitados, montam de forma consciente ou não sua própria cadeia de hierarquização.
Em virtude do relato de Levi (1988), somos levados a acreditar nas questões sociais que perduram na história. Ainda há a dispensa de tratamentos diferenciados às pessoas, permitindo que muitos indivíduos sejam tratados como coisa ou propriedade. Tal fato é perceptível de diferentes formas, por exemplo, pela ausência da dignidade no trabalho, haja vista a impossibilidade de se identificar um ser humano, afinal “o trabalho liberta” (LEVI, 1988, p.25).
Classifica-se tendo por base o valor econômico das pessoas, inexistindo, portanto, o valor comunitário da dignidade. Nessa toada cria-se um discurso de justificação.
Das lições de Levi (1988), percebe-se que para existir a dignidade no plano material, ela deve ser tida como um norte e nunca como supressão da coexistência. Assim, pensar no outro é impossível sem o outro. A configuração dessa relação só se verifica após uma construção social, a vida em alteridade. Dessa forma, o autor em comento apresenta o valor comunitário, como última característica da dignidade.
Herta Müller é uma escritora renomada. Suas obras transcendem as gerações. Müller relata a vida de um ângulo capaz de demonstrar a construção social e individual das pessoas, as mudanças de pensamento, o medo por ser diferente, as perseguições. Na obra “Tudo que tenho levo comigo” (2011), uma ficção inspirada em um relato, é possível encontrar pontos similares com a modernidade.
A obra relata aproximadamente o ano de 1944, quando a Romênia, desiste de lutar contra a Alemanha de Hitler, dentro desse contexto, de necessidade de dominação, imposição, a autora demonstra como é ser Leopold Auberg, homossexual, possuidor de ideias contrárias as que lhe eram impostas, alguém que desejava a liberdade a todo preço. Faz-se necessário citar Sarlet (2007) para quem “é justamente neste sentido que assume particular relevância a constatação de que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais e, no nosso sentir, da comunidade em geral, de todos e de cada um (…)” (SARLET, 2007, p. 378). Em contrapartida ao descrito por Sarlet (2007), Müller (2011, p. 9) confronta essa ideia ao demonstrar em sua obra que quando o Estado rompe com seus limites resta aos cidadãos apenas pensar “que o Estado me encarcerasse como um criminoso e que a família me repudiasse como uma desonra”.
No decorrer da obra percebe-se que o personagem principal, perdido dentro de si mesmo, sente medo não de ir para o campo de concentração trabalhar. De imediato ele deseja a viagem, a fuga, a falsa liberdade, pois dentro da própria família não lhe tratavam como ser humano, mas como um fantoche, e justamente por tal fato e tratamento recebido, em sua mala não havia apenas objetos materiais, existia a esperança de que alguém em algum lugar o visse como ser humano indiferente de suas escolhas ou ações incompatíveis com a época (MÜLLER, 2011). “Eu queria ir para longe da família, mesmo que fosse para o campo de trabalho” (MÜLLER, 2011, p.9).
Contudo, dentro do campo de concentração, Leopold Auberg, descobre que a liberdade buscada e esperada, na realidade o aprisionou em um ambiente onde não existem pessoas. Ali os prisioneiros são tratados como animais, marcados para o trabalho, escravos de alguns, a realidade do campo se resume a conseguir sobreviver (MÜLLER, 2011). “O fato de não se reconhecer humano, embora humano, gera uma experiência de dor, de fragmentação, de anulação de um sujeito que se encontra à mercê do poder e do controle do outro” (LOPES, 2012, p.157).
Na obra, somente os submissos conseguem sobreviver. Na passagem do tempo é necessário esquecer que a liberdade existe. Não se pensa o poder, a hierarquia, a organização do campo, os privilégios de alguns, como é demonstrado no trecho que segue. Tal cenário não é diferente do presenciado nos tempos hodiernos.
TurPrikulitsch nunca trabalha, em nenhum batalhão, em nenhuma brigada, em nenhum turno. Ele manda, nisso é ágil e depreciador. Quando sorri, trata-se de uma cilada. Se sorrirmos de volta, o que somos obrigados a fazer caímos no ridículo. Ele sorri porque anotou algo novo ao lado do nome na rubrica, algo pior. Entre os alojamentos na rua principal do campo de trabalho, eu me desvio dele, prefiro preservar uma distância que permita manter-me em silêncio. (…) Na barbearia, TurPrikulitsch é superior a mim. Ele diz o que tem vontade, nada é arriscado. Aliás, é até melhor quando nos ofende. Ele sabe que deve manter-nos submissos para que as coisas continuem como estão (MÜLLER, 2001, p. 21).
Dignidade existia apenas em um contexto formal, pois para sua existência no plano fático seria necessário enxergar o outro, as minorias, as maiorias, os seres independentemente de seus ideais, ou de suas escolhas, posto que todos são possuidores da essência humana. O discurso de justificação de sua ausência não pode ser aceito em nenhum contexto, devido ao fato de a dignidade não poder, em nenhum momento, ser confundida com submissão nem tampouco como posse. (SARLET, 2007). Diante das adversidades, das imposições, do absurdo, Leo, repetia em seu interior na tentativa de entender o porquê “nenhum de nós estivera na guerra; mas, para os russos, todos os alemães eram culpados dos crimes de Hitler” (MÜLLER, 2011, p.31)
A sociedade ainda reside na exclusão, como verificado pelo discurso de que a dignidade não é capaz de se materializar. A dignidade necessita do mínimo existencial para ser capaz de atingir o plano fático. Tal ato somente é possível se a interpretação for capaz de incluir e nunca excluir. As minorias se calam quando a dignidade não é materializada, quando os humanos não a querem compreender, gerando, por conseguinte, a falta de dignidade no trabalho, na família, ou em qualquer lugar (BARROSO, 2014).
Nesse cenário, o personagem principal começa a narrar uma espécie de tribunal de exceção. Não existem leis, não existe nada, a razão fica cega, o contexto se reverte, os mais fortes dominam aqueles que não eram vistos como seres humanos.
Ela existe porque o Anjo da Fome também é um ladrão, um ladrão que nos rouba o cérebro. O tribunal do pão não conhece preâmbulos ou perorações: vive apenas o momento presente. Totalmente transparente ou totalmente misterioso. De qualquer forma, a violência do tribunal do pão é diferente da violência sem fome. Não é possível apresentar-se diante dele com a moralidade de todos os dias (MÜLLER, 2011, p.76).
Müller (2011) demonstra que diante dos desafios, da ausência de materialização das leis, do mínimo existencial, o personagem sobrevive. Sua luta interna sobrepõe-se às adversidades, e quando os tratamentos não dignos são transformados em normal, a única coisa a fazer é tentar voltar. Para o personagem desse romance a vida não foi fácil, o trabalho forçado, a humilhação, o reflexo que o aproximava do ser que ele temia e sua transformação. Essa obra demonstra a importância de promover a dignidade em todas as áreas. Porque quando os interpretes não analisam as leis de forma a abarcar as diversas situações as próprias leis podem promover uma espécie de exclusão.
Quanto aos documentos internacionais a dignidade da pessoa pode possuir maior ou menor abrangência jurídica, ou até mesmo não existir de forma positivada. Para Wallestein (2007) a maioria dos países segue uma tendência determinada pela Europa, que pode gerar consequências capazes de afetar a economia, a cultura, os direitos, política e demais interações sociais, o autor reconhece a existência dos países que não seguem tal tendência, como ocorre com os países do oriente, ressalto que o próprio Wallestein (2007) critica o universalismo. Alguns doutrinadores defendem que a dignidade da pessoa humana “tornou-se uma ideia onipresente também no Direito Internacional” (BARROSO, 2014, p.29), e destacam que a dignidade é mencionada em vários tratados como, por exemplo, a “Carta da ONU (1945), a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965)” (BARROSO, 2012, p. 29), cada documento abrangendo e ressaltando a dignidade dentro de suas próprias peculiaridades, fato que gera dentro desse quadro, a existência de “uma discussão complexa sobre a dignidade se deu no caso Ômega, no qual a Corte decidiu que a dignidade humana pode ter diferentes significados e alcances dentro das jurisdições domésticas da União Européia” (BARROSO, 2012, p.12).
4 CONCLUSÃO
A dignidade da pessoa humana é um princípio codificado no ordenamento jurídico brasileiro na Constituição Federal de 1988 como um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Possui também um status internacional, efetivado especialmente com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, a qual já constava uma preocupação, especialmente no contexto internacional pós-guerra, de se trazer um documento que contivesse expressamente direitos fundamentais que embasassem e funcionassem de vetores à garantia de uma vida digna. Contudo, a dignidade não possui um padrão internacional. A comunidade deve portar-se de forma a possibilitar a existência e materialização da dignidade da pessoa humana porque a sociedade ao longo dos tempos sofreu inúmeras transformações que foram influenciadas por questões políticas, sociais e tecnológicas não sendo possível a existência de um padrão social.
Ao longo do presente artigo, optou-se por analisar o princípio da dignidade da pessoa humana não no seu sentido banalizado, como fruto de leis e normas positivadas, mas sob um aspecto crítico que envolve um viés literário. A história demonstra as consequências do olhar diferenciado perante outro ser humano, o tratamento degradante seja físico ou psíquico deixa consequências.
Em Levi (1988) descortina-se a luta interna por se manter um ser humano mesmo diante das barbaridades impostas. Já por meio da leitura da obra de Müller (2011), é possível seguir a história de Leo Auberg, que vivia atormentado por possuir uma orientação sexual diversa da convencional estipulada pelos padrões da sociedade, e teve como punição ter sido levado para trabalho forçado, humilhado, o que o levou a lutar mentalmente para não se transformar nos seus perseguidores e se manter firme em suas escolhas.
Verifica-se que, por meio do estudo de tais obras, é plausível averiguar que o Direito deve efetivar meios para que a dignidade se materialize, porque como demonstrado a dignidade da pessoa humana apenas no plano formal não é uma dignidade plena. A dignidade da pessoa humana se apresenta de forma variada nas leis de cada país, podendo, inclusive, não estar positivada, o que não impede, contudo, sua observância.
Desse modo, a dignidade da pessoa humana é objeto de vários questionamentos em tempos e contextos históricos diferentes, afinal somos todos seres humanos merecedores de um tratamento que considere essa característica essencial de nossa composição. No entanto, muitas vezes, lançamos um olhar diferenciado para com o outro, seja por suas condições financeiras, escolha sexual, ou qualquer outro fator. Nesse sentido, a conceituação do referido objeto se amolda para ser capaz de se materializar no plano fático das mais variadas situações. Assim, a dignidade ganha contornos próprios capazes de se amoldar diante do caso concreto para se efetivar mesmo diante dos obstáculos.
REFERÊNCIAS
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[1] Doutoranda em Humanidades pela UNIGRANRIO. Mestre em Estudos Culturais. Especialista em Direito Público e em Gestão Pública. Analista no Tribunal Eleitoral de Minas Gerais. Professora de Direito na Universidade Estácio de Sá.
[2] Pôs Graduanda em direito administrativo pela Unifemm-Sete Lagoas. Graduada em Direito.
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