Resumo: Em sede de Direito Civil brasileiro, construído em cima de tradições européias, mas profundamente transformado pelo trabalho de juristas do período entre a segunda metade do século XIX e o primeiro quarto do século XX, a pesquisa histórica é fundamental para identificar e corrigir falhas sistêmicas, o que será demonstrado aqui por meio da breve análise de um exemplo.
Palavras-chave: Direito Civil. História. Teixeira de Freitas. Codificação. Incapacidade absoluta. Incapacidade relativa.
Sumário: 1. Introdução; 2. A distinção entre incapacidade absoluta e incapacidade relativa; 3. Conclusão; Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
A Ciência do Direito tem uma particularidade que não pode jamais ser esquecida por aqueles que com ela lidam: trata-se de uma construção puramente humana, e realizada a muitas mãos. Afinal, o que se entende por Ciência do Direito é no mínimo o produto do trabalho dos especialistas – denominados doutrina – e do povo, por meio de seus representantes legisladores. Por essa razão, a pesquisa histórica, no campo do Direito, tem relevância não apenas investigativa, mas, também, pragmática, como se pretende brevemente demonstrar neste trabalho.
Em ordenamentos de sistema anglo-saxão, como o norte-americano, essa constatação é lugar-comum. Por se tratar de um Direito construído por grande influência das decisões das cortes superiores, por meio dos precedentes, que entre nós são denominados jurisprudência, naquele sistema não se olvida da importância de realizar uma pesquisa acerca dos fatos envolvidos no surgimento da norma. E é justamente quando se tem em mãos o resultado de tal pesquisa que se torna possível “derrubar” o precedente, demonstrando sua falta de fundamento ou sua incompatibilidade com o momento presente.
Já nos ordenamentos de sistema romano-germânico, no entanto, essa constatação não ocorre com facilidade aos estudiosos do Direito e aos profissionais que atuam na área jurídica. As pesquisas históricas costumam ser vistas como saudosistas, desnecessárias e sem importância prática. Por conseguinte, diversas falhas da Ciência do Direito que poderiam ser enfrentadas e corrigidas acabam por ser perpetuadas, por não serem sequer notadas.
No caso específico do Direito Civil brasileiro, a pesquisa histórica é fundamental, e deve ser incentivada. Isso porque trata-se de um Direito de construção bastante peculiar. É que o Direito Civil brasileiro é fruto do Direito Civil português, permeado pelo Direito Romano e pelo Direito Canônico, sob forte influência do Direito Civil francês e germânico, adaptado ao Brasil por juristas do período basicamente compreendido entre a segunda metade do século XIX e o primeiro quarto do século XX. Entre esses juristas destaca-se, sobretudo, Augusto Teixeira de Freitas, o brilhante jurisconsulto do Império, como o apelida seu maio biógrafo, Silvio Meira.
Para que se visualize o papel de Freitas na construção do Direito Civil pátrio, veja-se, por exemplo, que, enquanto o Direito Civil europeu debate complicadas normas para determinar a ordem da morte de pessoas falecidas no mesmo desastre, no Direito brasileiro a regra é simples: não sendo possível determinar a ordem em que morreram, presumem-se todas simultaneamente mortas (art. 8º do CC 2002 e art. 11 do CC 1916). O preceito, tão corriqueiro para o brasileiro, surge no Direito pátrio no trabalho de Teixeira de Freitas, no art. 243 do Esboço de Código Civil de 1860.
Pois bem. Feitas essas considerações, passemos a uma breve análise de um exemplo com o intuito de demonstrar a relevância da pesquisa histórica em Direito Civil.
3 A DISTINÇÃO ENTRE INCAPACIDADE ABSOLUTA E INCAPACIDADE RELATIVA
Os Códigos Civis brasileiros mencionam, na disciplina da capacidade jurídica, pessoas absolutamente incapazes e pessoas relativamente incapazes. Segundo o texto legal, haveria pessoas “absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil” (art. 3º do CC 2002 e art. 5º do CC 1916) e pessoas “incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer” (art. 4º do CC 2002 e art. 6º do CC 1916). Pergunta-se, então: quais são os atos vedados a essas pessoas incapazes apenas relativamente a certos atos, e de que maneira não podem exercê-los?
Não há nenhuma menção nem a esses atos, nem a tais maneiras, nem no Código de 2002, nem do de 1916. Na verdade, desde a promulgação do Código de 1916 vige no Direito brasileiro a ideia de que a diferença entre a incapacidade absoluta e a incapacidade relativa está não na abrangência (incapacidade de exercer pessoalmente qualquer ato ou apenas alguns específicos), mas sim na consequência prevista para o ato praticado por incapaz: nulidade se o incapaz o era absolutamente e anulabilidade se ele o era apenas relativamente (arts. 166, I e 171, I do CC 2002 e arts. 145, I e 147, I do CC 1916). Ora, mas essa consequência não basta para justificar a técnica legislativa, pois em ambos os casos as pessoas acabam sendo absolutamente incapazes (em termos de abrangência da capacidade). As diferentes sanções poderiam ser aplicadas às diferentes hipóteses de incapacidade sem que fosse necessário pretender graduar o nível de incapacidade.
A explicação para essa falha está na história da codificação. A ideia de distinguir entre pessoas absolutamente incapazes e pessoas incapazes apenas relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer surge no Esboço de Código Civil de Teixeira de Freitas, de 1860, o qual continha um complexo mas perfeito sistema de capacidades. Nos projetos subsequentes aparecem excertos do Esboço sem, contudo, manter-se a sistematicidade original. E é assim que a distinção aparece nos trabalhos do Congresso acerca do Projeto Beviláqua não mais com relação à abrangência da incapacidade, como sugere a redação (transladada do Esboço), mas apenas para distinguir entre as sanções previstas a diferentes hipóteses de incapacidade. Veja-se, no entanto, a terrível falha epistemológica gerada: no sistema de Freitas, algumas pessoas não podiam pessoalmente praticar ato algum da vida civil, enquanto outras não podiam sem assistência praticar apenas certos atos, ou de certas maneiras. Não obstante, a gravidade da prática de um ato por quem se considera incapaz de praticá-lo era sempre a mesma, pois com relação a um ato específico a incapacidade seria sempre total, daí o sistema prever sempre a mesma sanção, de nulidade. Já no sistema enfim adotado pelo Código de 1916 e mantido pelo de 2002, a incapacidade relativa deixa de ser relativa (a certos atos ou à maneira de os exercer) e passa a ser parcial. O relativamente incapaz torna-se absolutamente incapaz, parcialmente. Ou seja, sua incapacidade não mais se refere a atos específicos, ou à maneira de exercê-los, mas se estende a todo e qualquer ato, porém apenas parcialmente, porquanto se admite a convalidação dos atos praticados.
O curioso é que há quase cem anos da promulgação do primeiro Código Civil brasileiro a Ciência do Direito ainda não atentou para essa falha, e continua cuidando da disciplina da incapacidade como a pensaram os autores do texto respectivo no Código de 1916 no Congresso. Quando as críticas vêm, e têm vindo, no que toca à disciplina da incapacidade, a discussão acaba perdendo, por não se levarem em conta esses dados.
3 CONCLUSÃO
O propósito deste curto trabalho é simplesmente o de chamar a atenção do leitor ou do profissional da área jurídica para a relevância da pesquisa histórica em Direito Civil. Fica o convite para a pesquisa e para o debate.
Coautor do Curso Didático de Direito Civil com Elpídio Donizetti. Professor titular de Direito Civil dos cursos de pós-graduação do IUNIB professor convidado de Direito Civil do curso de pós-graduação da Anhanguera e professor voluntário de Direito Civil da FD UFMG. Mestrando em Direito e Justiça na UFMG. Consultor jurídico e advogado.
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