Introdução.
Erigida a postulado constitucional, disposta no art. 5º, XXXII, da Constituição Federal, a defesa do consumidor ganhou relativa importância na atual sistemática legislativa brasileira, proporcionando uma verdadeira revolução nas relações contratuais e extracontratuais.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8078/90) define o que é consumidor, os sujeitos da relação de consumo, suas qualidades (objetiva e subjetiva), seus direitos e estabelece uma série de critérios para a defesa desses direitos, destacando-se a proteção contratual.
As relações de consumo, na atualidade, requereram modificações legislativas, mudança de pontos de vista doutrinários e julgamentos mais consentâneos com a nova realidade, proporcionando flagrante reviravolta na análise dos direitos e obrigações e também na teoria dos contratos.
O ato de consumo tem a ver com a efetiva fruição do bem, a retirada de sua utilidade final. Já a relação de consumo é uma expressão mais ampla que envolve partes interessadas e que engloba não só o ato de consumo em si considerado, como também todos aqueles atos adjacentes que contribuem para a feitura do contrato. Inclui, então, o ato de consumo stricto sensu e, ainda, os atos como a oferta e a publicidade, quando essas também vêm compor a relação contratual.
Pode-se, pois, entender a relação de consumo como o elo entre a pessoa física ou jurídica que fornece, em caráter profissional, produtos ou serviços a uma outra pessoa, também física ou jurídica, esta como destinatária final do bem ou do serviço prestado.
A preocupação com o presente estudo será estabelecer parâmetros entre os aspectos tradicionais da responsabilidade civil do Estado e os novos conceitos e teorias, erigidos sob o manto das relações contratuais de consumo, tão presentes na atualidade.
A partir dessa preocupação, procuraremos enfocar, à luz do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade do Estado como ente responsável, através de seus órgãos, agentes ou prepostos, pela correta postura no fornecimento eventual de produtos, mas, principalmente como fornecedor inserido no mercado de serviços.
Transportes, energia elétrica, gás, telefone, serviços de saúde e segurança, formam uma gama variada de oportunidades nas quais o Estado se relaciona com os seus cidadãos ou entidades organizadas, na qualidade de fornecedor. E não é o ente da Administração Pública, nos dias de hoje, aquele leviatã que só era acionado quando se provava a culpa de seus funcionários. Na era moderna, com a evolução da responsabilidade civil para a teoria objetiva, o Estado passou a ser também responsabilizado como qualquer fornecedor do mercado de consumo, independentemente da comprovação da culpa.
O Estado deve ser um ente dotado de responsabilidade pela segurança dos seus administrados, mas também uma personalidade jurídica que não possa cometer erros e ocasionar danos a quem dele dependa. Para isso, terá de escolher bem os seus agentes e funcionários, para que não cometam deslizes nas suas relações diárias de prestação de serviços.
Nos dois primeiros capítulos, procuraremos enfocar os aspectos dessa responsabilidade dos órgãos do Estado e a evolução que se processou, desde as primeiras teorias que centralizavam a responsabilidade na culpa, até os dias atuais, quando se observa a objetivação dessa responsabilidade, com possibilidades de reparação mais segura e eficaz.
Não poderia faltar no presente trabalho uma análise da responsabilidade no Código de Defesa do Consumidor, instrumento legislativo moderno, que procurou equilibrar as relações contratuais de consumo entre os poderosos fornecedores e os consumidores, dotados de menor potencial.
O presente trabalho procurará, ainda, analisar a responsabilidade estatal perante o Código de Defesa do Consumidor, em todos os aspectos nos quais seja necessário enfocar a atuação dos entes estatais em confronto com os que se utilizam de produtos e serviços no pujante e velocíssimo setor das relações jurídicas de consumo.
II. A responsabilidade civil do Estado
Muitos embates jurídicos já foram travados sobre a expressão responsabilidade civil do Estado, entendendo alguns que seria perfeitamente dispensável a locução civil, tendo em vista que, quanto ao Estado, só se há de cogitar de responsabilidade civil, nunca penal. Mas a responsabilidade do Estado tanto pode significar aquela de Direito Internacional Público, como a de Direito Público interno, ou seja, a reparabilidade de danos causados aos seus próprios subordinados ou administrados.
Mas o que importa no presente trabalho é a tentativa de se compreender os vários ângulos da atuação do Estado como ente responsável pela correta e segura administração, isenta de erros ou falhas que venham ocasionar prejuízos a terceiros. Geralmente, a responsabilidade civil do Estado é entendida como a imposição de uma obrigação legal ao ente estatal de ressarcir os danos e prejuízos causados a terceiros, quando da realização de suas atividades.
No modelo tradicional, essa responsabilidade compreendia apenas a reparação dos atos ilícitos em sentido amplo, não contemplando, para efeito de indenização, os danos causados pela atividade legítima do Poder Público, como nos casos de desapropriação, requisição ou repressão.
Da total irresponsabilidade do Estado, evoluímos para a responsabilidade decorrente da culpa e depois chegamos à consolidação, pelo direito moderno, da teoria da realidade técnica ou jurídica das pessoas jurídicas. Daí passamos para a teoria do risco integral e em seguida para a responsabilidade objetiva. As pessoas jurídicas, pois, passaram a ser entendidas como entidades criadas pelo homem para suprimento de várias de suas necessidades, mas operando perfeitamente no mundo jurídico como sujeitos de direitos e de obrigações.
Para a realização de suas atividades, o Estado desdobra-se em órgãos e organismos, estruturado sob uma aparelhagem burocrática complexa, onde se enxergam institutos de direito público e de direito privado e a conjugação de vários ramos do direito aplicados, separada ou conjuntamente. Entretanto, o Estado jamais pode prescindir do seu elemento mais importante: o ser humano. O elemento humano (pessoa física) é quem representa a pessoa jurídica, seja como agente, funcionário, servidor, preposto ou dirigente.
A Administração Pública só pode realizar as atividades a que se propõe se dispuser de agentes ou organismos vivos (funcionários e servidores), de tal modo que qualquer ato dessa Administração, agindo como ente estatal, se traduz em atos de seus funcionários.
Acontece que esses agentes, dirigentes ou servidores, investidos que são na qualidade de representantes da Administração Pública, podem, eventualmente, praticar algum ato que se traduza em dano ou prejuízo para os administrados. Sejam danos ou prejuízos de natureza moral, sejam de natureza patrimonial.
Se no direito privado qualquer atitude de natureza ilícita que provoque dano, proporciona ao prejudicado a competente ação reparatória, nada mais sensato do que responsabilizar-se também o Estado por danos causados a terceiros.
Surgiram, assim, as várias discussões que atravessaram os séculos XVIII a XX, sobre a responsabilidade civil do Estado pelo ressarcimento dos danos causados por seus agentes a terceiros. Evoluiu-se muito sobre o assunto, porém, não estão esgotadas as discussões, tendo em vista a complexidade e a evolução rapidíssima das relações entre administradores e administrados, entre fornecedores e consumidores.
O direito brasileiro jamais criou obstáculos à adoção das várias correntes evolutivas sobre a responsabilidade do Estado. Desde a Constituição de 1891 observa-se a preocupação com os abusos e omissões dos funcionários públicos no exercício de suas funções. Observa, entretanto, Juary Silva[1] que no âmbito constitucional, só em 1934 é que a responsabilidade do Estado veio a ser prevista, após o impulso renovador iniciado com a Constituição germânica de Weimar, de 1919, a qual incorporou ao Direito Constitucional, além de preceitos relativos à ordem econômica e social, a disciplina jurídica dos funcionários públicos.
Do artigo 15 do Código Civil às Cartas de 1946 e 1969, já se delineou o que hoje está consolidado: a responsabilidade objetiva do Estado. A CF de 1988, através do § 6.º, do artigo 37, consagrou que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa”.
Muito diferente, pois, o posicionamento do legislador constituinte das teorias antigas sobre a responsabilidade em matéria de direito público. O risco integral é o que se aproxima mais da teoria objetiva. As teorias anteriores da culpa administrativa, do acidente administrativo ou irregular funcionamento do serviço não encontram mais guarida nos dias atuais, principalmente depois que o Código de Defesa do Consumidor, amparado pela CF de 1988, instituiu novas modalidades de apuração da responsabilidade nas chamadas relações de consumo.
Assim, igualmente à definição da responsabilidade civil do cidadão, para que se consolide a pretensão ressarcitória contra o ente estatal, é necessária a presença dos seguintes pressupostos: 1) o evento danoso; 2) o nexo de causalidade; 3) a qualidade de funcionário público na prática do ato.
Segundo Cahali[2], é de direito comum o princípio segundo o qual o dano insere-se como pressuposto da responsabilidade civil, tanto no âmbito contratual, como no extracontratual. Não se pode, efetivamente, no plano da responsabilidade civil do Estado, prescindir da definição do evento danoso, seja decorrente de culpa ou dolo, seja apenas injusto para com o particular.
O nexo de causalidade é aquele liame que se pode estabelecer entre o fato danoso e o prejuízo causado, ou seja, entre a atitude (lícita ou ilícita) do agente público e as conseqüências prejudiciais advindas ao terceiro. Estabelecido esse liame causal, a decorrência do dano em virtude de atividade ou omissão da Administração Pública, ou de seus funcionários, exsurge daí o dever de indenizar.
Sobre a qualidade de funcionário, como praticante do ato e causador do dano, doutrina e jurisprudência estão em perfeita sintonia sobre essa definição. Não importa o grau ou a importância do servidor. O que interessa é que ele esteja ali como representante do Poder Público, seja na qualidade de integrante dos seus quadros, seja como mero colaborador ou executor de uma atividade pública.
Na realidade, o que mais se perquire para a vinculação da responsabilidade do órgão administrativo é o fato dessa oportunidade para a pratica de ato ilícito ter surgido em decorrência da condição de funcionário ou de representante do órgão da Administração Pública.
III. A responsabilidade civil objetiva
Para se falar em responsabilidade do Estado, teríamos forçosamente que nos reportar a alguns aspectos históricos, doutrinários e jurisprudenciais desse importante ramo do Direito, principalmente no que diz respeito às relações de consumo. É sabido que qualquer das formas de atuação humana implica, forçosamente, na possibilidade de se responsabilizar alguém por algum fato. Isso decorre dos registros históricos que apontam o surgimento da responsabilidade com o próprio nascimento da civilização.
Se responsabilidade é a obrigação de reparar dano resultante de um fato de que se é autor, direto ou indireto, a responsabilidade civil, na ótica do francês René Savatier,[3] “é a obrigação que pode incumbir a uma pessoa de reparar o prejuízo causado a outrem por fato seu, ou pelo fato das pessoas ou das coisas dela dependentes”.
No problema da responsabilidade civil se refletem as atividades humanas, individuais e contratuais. Estudar esse problema é imergir no exame do próprio comportamento humano, no espírito que permeia a atuação da vítima, sendo, portanto, importantíssimo definir a responsabilidade profissional.
Se analisarmos as várias facetas da atividade humana, verificaremos como é diferente a responsabilidade civil de um indivíduo em situações distintas: como membro de uma sociedade, como profissional ou como agente público.
No Direito Romano observa-se a criação de princípios genéricos que embasariam, séculos depois, a responsabilidade civil. Se antes predominava a vingança privada, praticada de forma selvagem, evoluiu para uma forma de repressão do dano sob o domínio do direito, com intervenção do poder público, quando necessária.
Da pena de Talião passou-se à composição voluntária e à composição tarifada, prevista na Lei das XII Tábuas, que fixava, para cada caso concreto, o valor da pena a ser pago pelo ofensor.
No ano 468 adveio a Lei Aquília, secundada pela Lei Cornélia. Mas foi na primeira que se delineou o marco inicial da responsabilidade civil, formulando-se um conceito de culpa e estabelecendo-se as regras da reparação do dano. Foi por essa época que se verificaram os primeiros rudimentos da responsabilidade médica, prevendo a pena de morte ou deportação para o médico considerado culpado. Nas obras de Plínio e de Ulpiano, portanto há mais de 1500 anos, já se cogitava da imperícia, da imprudência, da negligência e de sua conseqüente responsabilidade.
O Professor João Batista Lopes[4] assinala que no antigo direito francês, não havia distinção entre a responsabilidade civil e a penal, pois o autor do dano era castigado com uma pena privada. Posteriormente, a idéia de pena foi substituída pela de indenização, consolidando-se assim um princípio geral de responsabilidade civil.
Com o Código de Napoleão (artigo 1.382), a doutrina da culpa assumiu toda a sua pujança, fato que influenciou sobremaneira o contido no artigo 159 do nosso Código Civil.
Uma obra do jurista francês Gaston Morin, em 1945[5] teve importância fundamental para a consolidação da doutrina objetiva (responsabilidade sem culpa). No citado livro, o conhecido jurista expõe a desagregação do direito do contrato, discute as concepções doutrinárias opostas ao individualismo da propriedade e indica um caminho na direção da organização da responsabilidade. O primeiro processo apontado pelo autor francês foi a substituição, em certos casos, da responsabilidade delitual pela responsabilidade contratual.
Segundo se pode apurar da leitura do texto citado, a teoria da culpa sofreu inicialmente ataques no campo do direito criminal (século passado) e, depois, no século atual, com os argumentos arrojados de dois outros juristas franceses: Saleilles e Josserand. O primeiro, a partir de nova interpretação do próprio Código Civil Francês, engendra a base da teoria objetivista. O segundo, aproveitando os artigos 1.384, 1.385 e 1.386 do Código de Napoleão, envereda pelo estudo da responsabilidade pelo fato das coisas, proclamando a importância da evolução da jurisprudência francesa em matéria de responsabilidade.
Passando de relance sobre a Lei das XII Tábuas, o Código de Hamurabi, a Lex Aquilia, os juristas franceses Domat e Potier, e tantos outros, tentaremos enxergar os primeiros passos da reparação civil entre nós. O sempre lembrado Caio Mário da Silva Pereira, reportando-se ao nosso direito pré-codificado, dividiu em três fases o surgimento da responsabilidade civil entre nós: as Ordenações do Reino, o Código Criminal de 1830 e os trabalhos de Teixeira de Freitas. Na primeira, vê-se a presença marcante do direito romano, embasado na Lei da Boa Razão, de 1769; na segunda, a idéia de ressarcimento estava esboçada no instituto da satisfação, que recebeu constantes elogios de José Aguiar Dias, na sua conhecida obra Da Responsabilidade Civil; e, na terceira fase, sobressai a genialidade de Teixeira de Freitas, já àquela época insurgindo-se contra a junção das responsabilidades civil e criminal[6].
Inúmeras obras doutrinárias vêm explorando o assunto há décadas, sobressaindo-se o estudo de duas grandes teorias sobre a responsabilidade civil: a doutrina subjetiva, basicamente fundamentada na culpa; e a doutrina objetiva que, através de uma abstração da culpa, envereda mais para a existência do risco.
A doutrina subjetiva, ou teoria da culpa, bem delineada no Código de Napoleão, teve, no direito brasileiro, como dito acima, enorme influência do direito francês, a exemplo do art. 159 do nosso Código Civil, que estabeleceu distinção entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual. Aqui sobressai a figura do ato ilícito, isto é, um fato danoso resultante de uma conduta irregular do agente causador do dano.
Já a doutrina objetiva, que recebeu seu maior impulso após o estabelecimento da sociedade industrial, no princípio deste século, adquiriu estabilidade após a verificação de que, em várias situações, tornava-se praticamente impossível à vítima demonstrar a culpa do agente danoso. A presunção da culpa, aliada à inversão do ônus da prova, proporcionaram, principalmente através dos estudos do eminente José Aguiar Dias, que se fossem estabelecendo critérios de apuração da responsabilidade civil, a partir do nexo causal entre o dano e a autoria.
Atualmente, tem-se imprimido maior dose de contestação à teoria subjetiva da responsabilidade, por vários motivos: a imprecisão no conceito de culpa, já que, decorridas tantas décadas de sua consolidação, ainda se teoriza muito a respeito e não há uma caracterização precisa dos seus elementos intrínsecos; o surgimento e a evolução da responsabilidade sem culpa; a massificação das relações negociais e a socialização do direito moderno.
Percebe-se que pouco a pouco se vai banindo do ordenamento jurídico a imaterialização da culpa. Para se punir o responsável por uma ocorrência danosa, basta que existam o prejuízo e a relação de causalidade entre o ato e o dano. Não é necessário se cogitar da existência da culpabilidade do agente. Para a comprovação do nexo causal, basta que se aponte ter o dano sido proveniente de um ato ou de sua omissão. Foi assim que a idéia do risco assumiu posição superior, exatamente pela diluição da noção de culpa.
Os ventos que trouxeram a responsabilidade objetiva, não buscaram, como querem muitos, a vingança privada, a lei de Talião ou a facilitação da punição. Não, não se cogitou de represálias ou de vinditas, mas de equidade, de solidariedade e de equilíbrio nas relações negociais e de justiça nas relações extranegociais.
Indenizar um prejuízo, sem que se necessite provar a culpa do seu causador, constitui-se muito mais numa garantia do que em responsabilidade. Busca-se mais recompor a moral social, a solidariedade humanista, porque nunca a indenização, por maior que seja, suplantará o dano, que deixa seqüelas imensuráveis e indeléveis.
O direito moderno, na ótica de Genival Veloso de França[7], procura fugir do subjetivismo dos velhos conceitos filosóficos, tentando aproximar-se dos fatos por uma busca do ideal de igualdade. É chegado o momento de se dar um basta nas desigualdades étnicas, políticas, econômicas, sociais e, até mesmo, geográficas.
Os Códigos Civis francês e brasileiro preocuparam-se mais com a teoria da culpa, tendo o primeiro (Código de Napoleão, de 1804) influenciado sobremaneira, não só o direito brasileiro, mas vários códigos da modernidade, no que toca à construção de um modelo de responsabilidade civil. A esse respeito, salienta José Aguiar Dias [8], que no Código Civil francês tem a legislação moderna o seu modelo e inspiração. Antes, porém, que surgisse esse monumento jurídico, o direito francês já exercia sensível influência nos outros povos.
A responsabilidade civil consiste, no entendimento do já citado Caio Mário da Silva Pereira, na efetivação da reparabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica que se forma. Assim, tanto a reparação quanto o sujeito passivo compõem o binômio da responsabilidade civil, que então se enuncia como o princípio que subordina a reparação à sua incidência na pessoa do causador do dano.
Para a maioria dos nossos doutrinadores, hoje já libertos daquela fixação inicial no cerne de uma das correntes teóricas mais festejadas, não importa se o fundamento é a culpa ou se independe desta. Importa, sim, a constatação da existência de um fato danoso e a subordinação de um sujeito passivo ao dever de ressarcir. Aí, sim, estará consolidada a responsabilidade civil.
Mas, no direito positivo brasileiro, os novos ventos encontraram forte resistência. O Código Civil, timidamente, inseriu em alguns verbetes disposições cuja exegese aponta para uma aproximação com a doutrina do risco. Os artigos 1519, 1520, parágrafo único, 1528 e 1529 denotam forte tendência objetiva.
Na legislação especial, até chegarmos ao CDC, surgiram várias disposições consagradoras da responsabilidade objetiva. Só a título de referência, é de bom alvitre citar-se a legislação que trata dos acidentes do trabalho, das aeronaves, dos automóveis, das minas e das estradas de ferro, além da que trata dos acidentes por eletricidade.
Para a maioria dos estudiosos, entre eles Sílvio Luís Ferreira da Rocha [9], foram os franceses que sistematizaram a teoria objetiva, destacando-se ali as idéias de Saleilles e Jossserand. Deu-se, a princípio, a interpretação objetiva da palavra faute (art. 1382 do Código Civil Francês), para, em seguida, entender-se que a responsabilidade decorre de nossos próprios atos, desde que se configure a existência de um dano injusto, anormal.
Segundo Roberto Norris[10], foi através da aceitação da teoria da presunção de culpa que se abriu o caminho para a implementação da teoria objetiva no nosso sistema de responsabilidade civil. Não obstante a tese da presunção de culpa implicar o entendimento de que o conceito genérico de culpa apresenta-se como fundamento da responsabilidade civil, nele se observa um distanciamento da teoria subjetivista, no instante em que apresenta significativas alterações, principalmente no que atine ao ônus da prova.
De acordo com Oscar Ivan Prux[11], o direito brasileiro não foi precursor de nenhuma das duas correntes doutrinárias predominantes (a subjetiva e a objetiva); recebeu-as das legislações mais avançadas. Num breve retrospecto histórico, o citado autor salienta que, no período da dominação portuguesa, fomos orientados pelo contido no direito português. Isso era feito através das ordenações, leis, regulamentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas pelos reis de Portugal, até que se organizasse um novo código, o que vigorou até 1821.
Numa rápida observação que faz, a partir das Ordenações (Afonsinas, Manoelinas e Filipinas) até o Código Civil, verifica o citado autor que predominou entre nós, com muito vigor, a teoria subjetivista da reparação de danos. A teoria da culpa reinou absoluta no direito brasileiro até metade deste século, a partir de quando começaram a ocupar espaço as teorias objetivistas. Mas, de acordo com vários doutrinadores brasileiros, um Alvará datado de 1668 já dava sinais de entendimento da separação da responsabilidade contratual da extracontratual.
O Código Civil brasileiro adotou, em quase sua totalidade, a teoria subjetiva, especialmente em seus artigos 159 e 1.545 , incumbindo à vítima provar o dolo ou a culpa stricto sensu do agente, a fim de postular e obter a reparação do dano.
Para Silvio Rodrigues[12], quando emitimos conceitos sobre responsabilidade objetiva e subjetiva, não podemos vislumbrar espécies diferentes de responsabilidade, mas sim maneiras diferentes de encarar a obrigação de reparar o dano. Afere-se, de todos os estudos sobre o tema, que subjetiva é a responsabilidade inspirada na idéia de culpa e objetiva, quando esteada na teoria do risco.
A doutrina subjetiva, mesmo com toda a evolução das teorias da responsabilidade, ainda é a doutrina legal brasileira, pois, mesmo com as inovações do Código de Defesa do Consumidor, ainda vige entre nós o vetusto Código Civil.
O Novo Código Civil direcionou-se para a responsabilização objetiva. Inspirado nos Códigos Alemão e Suíço, o Projeto declara reparável o dano decorrente da violação da lei, assim como o resultante de procedimentos contrários aos bons costumes e às relações sociais.
Mas, pode-se constatar, como já mencionado alhures, mesmo com a consagração da teoria do risco e com a existência profícua do CDC, que no nosso sistema jurídico, ainda convivem as duas teorias: a subjetiva, como norma geral, e a objetiva, como partícula especial. Assim, conforme já previam Caio Mário e Aguiar Dias (citados no presente trabalho), as duas teorias ainda conviverão por muito tempo, até que a jurisprudência lhes estabeleça limites e fixe parâmetros claros de sua aplicação.
IV. A responsabilidade civil no CDC
O Código de Defesa do Consumidor (Lei n.º 8.078, de 1990), que entrou em vigor no início de 1991, é de uma abrangência tal e teve tanta repercussão no sistema contratual brasileiro, que demorará alguns anos para ser definitivamente estudado e para ter delineada sua correta aplicação, principalmente pelos órgãos julgadores.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves[13], importante papel caberá, nesse particular, à jurisprudência, tendo em vista que muitos dos dispositivos do novo Código são polêmicos e não poderão ter uma interpretação literal, sob pena de conduzirem a situações absurdas e inaceitáveis. Conclui ele que uma interpretação lógica, sistemática e razoável de nossos juízes e tribunais poderá transformar os novos dispositivos que regem as relações de consumo, num instrumento de efetiva proteção aos consumidores, sem dificultar ou impedir o nosso desenvolvimento econômico.
Interessa mais para o nosso estudo os aspectos inerentes ao fornecimento de serviços pelos entes da Administração Pública, que caracterizem relação de consumo. O conceito de fornecedor, segundo ainda o citado autor, está intimamente ligado à idéia de atividade empresarial, contínua, não esporádica. Quando não se revestir desse caráter habitual, a atividade do fornecedor (incluído aí o Estado) será regida pelo Código Civil, como relação contratual, sem caracterizar relação de consumo.
O Código de Defesa do Consumidor, na esteira dos novos rumos que adquiriu o instituto da responsabilidade civil (culpa – dano – risco – responsabilidade objetiva), consagrou a responsabilidade objetiva do fornecedor, tanto de produtos como de serviços. A única exceção é com relação aos profissionais liberais, sujeitos que estão, por força de dispositivo legal, ao princípio da culpa, dentro das prescrições do direito comum.
O sistema de responsabilidade civil objetiva pelos danos causados aos consumidores, na conformidade do que foi adotado pelo legislador brasileiro, seguiu os passos de modernas legislações de consumo, a exemplo do que se verifica nos Estados Unidos, na Inglaterra (Consumer Pretection Act, de 1987), na Áustria, na Itália, na Alemanha e em Portugal.
Por outro lado, o mesmo Código, ao explicitar no artigo 6.º os direitos básicos do consumidor, demonstra justificável preocupação, dentre outros assuntos, com os seguintes aspectos: a proteção da vida, saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços; a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva; a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais; a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais e o acesso aos órgãos judiciários e administrativos para proteção e reparação desses danos; a inversão do ônus da prova em favor do consumidor e a adequada e eficaz proteção dos serviços públicos em geral.
Além da previsão constitucional para a indenização, a própria lei estabeleceu a reparabilidade de danos morais decorrentes do sofrimento, da dor, das perturbações emocionais e psíquicas, do constrangimento, da angústia, do desconforto espiritual, provocados por bem ou serviço fornecido, de forma defeituosa ou inadequada.
Ao determinar, no caput do artigo 14, que o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores, por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos, o CDC acolheu, de forma bem clara, os postulados da responsabilidade objetiva, relativamente aos fornecedores. Tal evolução passou a permitir às vítimas o ressarcimento pelos danos provocados, sem que, para tal, fossem obrigadas a provar sempre a culpa do responsável, o que, na maioria absoluta das vezes, obstava a obtenção do ressarcimento.
Quando trata dos direitos básicos do consumidor, o CDC prevê informação adequada e clara sobre serviços oferecidos, inclusive quanto aos “riscos” que possam apresentar, além da inovação importantíssima da inversão do ônus da prova no processo civil, no caso do consumidor hipossuficiente. A rigor, não há cogitação de culpa, pois, presentes os pressupostos da responsabilidade (o defeito, o dano e o nexo causal), dificilmente o responsável se eximirá da reparação, com base na prova de ausência de culpa.
A responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços exsurge cristalina do enunciado do artigo 14, seja por defeito na prestação de serviços, como também por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. No art. 20, essa responsabilidade é complementada pela incidência dos vícios de qualidade decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem. Fornecedor não pode alegar ignorância sobre vícios do serviço, nem pode inserir cláusula contratual que o impossibilite ou o exonere da obrigação de indenizar.
É através da inversão do ônus da prova, em determinadas situações, que se pode presumir o comportamento culposo do agente causador do dano, cabendo a este demonstrar, para eximir-se de responsabilidade, sua ausência no evento culposo.
Assim, através da teoria objetiva, ou teoria do risco, que é a adotada pelo CDC, ao invés de se exigir que o ato seja resultante dos elementos tradicionais (culpa, dano e vínculo causal), a responsabilidade está jungida aos pólos dano e autoria, bastando a comprovação de um determinado evento e seu conseqüente prejuízo.
O direito ou a lei, para representar a vontade democrática do povo, tem de nascer com a participação de toda a coletividade, através de seus órgãos, como sindicatos, associações, entidades e instituições. Se a lei é regra de conduta criada pelo homem para reger suas próprias relações e interesses, não pode ser desvirtuada no nascedouro ou ditada de cima para baixo, verticalmente.
Se a lei nascer da iniciativa e com a participação popular, terá ela campo fértil para prosperar e facilitar a atuação dos intérpretes. E o CDC, com certeza, nasceu democraticamente da luta de interesses dos vários organismos da sociedade. Daí sua grande afinidade com as teorias alternativas do direito e sua fácil aplicabilidade, até por órgãos não estritamente judiciais, como as Curadorias do Consumidor e os PROCONs. Com a introdução e consolidação das legislações de consumo e, em especial, com a implementação de Códigos de Defesa do Consumidor, houve uma verdadeira revolução no sistema contratual do ocidente, estabelecendo-se, na maioria das vezes, um declarado conflito entre a visão contratual dos antigos Códigos Civis (a maioria ainda estruturada pelo Direito Romano) e a visão moderna da legislação protetiva das relações de consumo.
Diante dessas inovações e da rapidez com que passaram a realizar-se as relações contratuais, novos institutos surgiram, novas formas e espécies contratuais apareceram e o consumidor, considerado parte mais fraca na relação do contrato, passou a contar com instrumentos valiosos de proteção e de defesa dessas relações.
Com relação ao Brasil, observa-se que até a edição do Código de Defesa do Consumidor, vigorava a responsabilidade subjetiva decorrente de certo ilícito. Neste caso, o prejudicado pela ocorrência do dano teria de provar não só o nexo causal entre a ocorrência e o resultado, mas teria de esclarecer a culpa do agente, sob pena de não assegurar direito à reparação.
Mas, na atualidade, o direito positivo privado brasileiro engajou-se de corpo e alma na teoria objetiva, acolhendo de modo bastante esclarecedor os postulados da responsabilidade objetiva. Basta à vítima, para obtenção do ressarcimento, provar, como fato constitutivo do seu direito, a existência do dano e o nexo causal entre o mesmo e o produto ou serviço defeituoso.
A conclusão a que se chega, pela já vasta doutrina e ainda incipiente jurisprudência existentes entre nós, é que, desde a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, os contratos que regulam as atividades acima mencionadas passaram a ser orientados pela nova Lei de Consumo, somente se aplicando o Código Civil de forma subsidiária, desde que não contrarie normas da lei nova.
Entendemos que, uma vez comprovado que um determinado tipo de contrato constitua relação de consumo, com a presença de fornecedor de serviços e consumidor, o regime jurídico contratual a ser utilizado é aquele previsto no CDC. Pois já está consolidado que serviço é toda atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração.
Há um sem número de atividades exercidas por profissionais liberais (advogados, médicos, dentistas, engenheiros, psicólogos, farmacêuticos, etc.) que se enquadram exatamente no enunciado da prestação de serviços do Código de Defesa do Consumidor (artigos 2.º, 3.º, 6.º e 14). Para a maioria dos doutrinadores, apoiados no texto legal, somente os serviços decorrentes de relação trabalhista estão fora do elenco do CDC.
V. Código de Defesa do Consumidor.
Para se entender e conceituar a relação de consumo, faz-se necessário o estudo dos seus protagonistas. Dois personagens importantes estão presentes no Código de Defesa do Consumidor e são sujeitos da relação jurídica de consumo: o fornecedor e o consumidor.
De acordo com a Lei n.º 8.078/90, fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços (artigo 3.º). O conceito de consumidor está delineado no artigo 2.º: consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
As definições procuraram ser as mais objetivas possíveis. No que diz respeito ao fornecedor, procurou a lei abarcar o maior número possível de pessoas presentes no mercado de consumo, seja fabricando ou comerciando produtos, seja oferecendo ou fornecendo serviços. O elenco de fornecedores é imenso, a teor dos artigos 12 e 14 do CDC.
Quanto ao consumidor, é aquele partícipe da relação de consumo, seja ativamente, seja quando atingido por suas conseqüências. Por mais que se tenha tentado, através da doutrina, definir especificamente o consumidor, ainda falta alguma coisa para se completar essa conceituação. Entretanto, fugindo um pouco da regra verificada em nossa legislação positiva, o CDC elaborou uma definição, no artigo 2.º, que nos dá, para o momento atual, os requisitos necessários para esse entendimento.
Consumidor seria, assim, aquele que adquire bens e serviços, no sentido de obter a disponibilidade do produto ou do serviço e deles tirar a melhor utilidade, na condição de usuário final. Não precisa que tenha sido o adquirente direto do produto ou do serviço, bastando que deles se tenha utilizado, retirando-lhe a utilidade final.
Para fins de nosso estudo, apenas nos fixaremos na avaliação do Estado como fornecedor de produtos ou de serviços. O Professor Fernando Sacaff [14], em artigo sobre a responsabilidade das instituições médicas, analisa a nova postura introduzida pelo artigo 14, do Código de Defesa do Consumidor e conclui que surgiu uma nova teoria sobre a responsabilidade das pessoas jurídicas em geral.
Segundo o citado autor, o grande mérito desta nova teoria foi permitir a responsabilização não apenas da pessoa física, mas da pessoa jurídica que a contratou para desenvolver aquele serviço. Com o advento da teoria objetiva, foi deixada de lado a exigência de culpa para apuração da responsabilidade, passando a ser exigida apenas a constatação da relação causal entre fato e dano.
Aspecto interessante das definições citadas é a possibilidade de a pessoa jurídica atuar tanto como fornecedor quanto como consumidor. Com a nova lei, apareceram, no dizer dos nossos estudiosos, quatro tipos de consumidores: os efetivos (partícipes ativos da relação de consumo); os potenciais (consoante o artigo 29 do código); os standard (ou padrão) e os bystander (terceiros equiparados em decorrência de prejuízo – artigo 17), além dos coletivamente considerados (§ único do artigo 2.º).
Mas o importante a destacar, nesse estudo sobre os sujeitos da relação de consumo, é a amplitude do conceito e a evolução que se observa nessa passagem de século e de milênio. Relações ou interações antes inimagináveis até para o Direito Civil ou Comercial, hoje são corriqueiras, colocando frente a frente, com uma gama variadíssima de direitos e obrigações, esses novos sujeitos da relação contratual moderna.
Dispensam-se os formalismos, os pré-contratos, os policitantes e os oblatos do direito arcaico. Entram em ação os internautas, os portadores ou titulares de cartões de crédito, os usuários de fax e telefone, os que consomem sem sair da sua casa ou do seu local de trabalho.
Há fornecedores e consumidores que não chegam a se conhecer, não se tocam, mas realizam, pelos vários meios técnicos e eletrônicos à sua disposição, verdadeiros contratos de consumo, com todas as garantias e requisitos presentes.
Uma das grandes novidades trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor diz respeito à inclusão das pessoas jurídicas de direito público entre os fornecedores catalogados nos artigos 3.º: “fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como osa entes despersonalizados….”
No artigo 22, volta a lei de consumo ao tema:
“Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.
Parágrafo único – Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código”.
Para Cláudia Lima Marques[15], o Direito Administrativo já conhecia a faute de service, baseada, porém, na culpa e também no dever de continuidade. Com o CDC, inovou o legislador ao impor a esses órgãos o dever legal de adequação, como a todos os fornecedores, sem exceção.
Como conseqüência do falado artigo 3.º, os contratos firmados entre os consumidores (destinatários finais) e os órgãos públicos e suas empresas também podem, em princípio, ser considerados de consumo. É sabido que o regime dos contratos celebrados com os órgãos da Administração Pública seguem modelo especial, amparados por legislação própria. Aí também se verifica, com frequência, o desequilíbrio contratual, aparecendo o ente estatal como o hipersuficiente e o administrado como o contratante mais fraco.
Foi dentro dessa perspectiva de promover o equilíbrio que andou bem o legislador do CDC. Se na prática essa intenção funciona, só o tempo dirá. Mas é sagrado o princípio de que cabe à Administração Pública o cumprimento das leis. E se o CDC impõe aos órgãos do Poder Público, enquanto fornecedores de serviços e eventualmente de produtos, deveres específicos, com certeza o comportamento estatal irá contribuir para o tão sonhado equilíbrio das partes no contrato.
Os tribunais pátrios têm decidido pelo cumprimento integral da norma do CDC, especialmente no que tange ao fornecimento de energia elétrica, gás, água, transportes e telefone. São decisões geralmente favoráveis ao consumidor, na linha jurídica de que não pode haver interrupção do fornecimento desses serviços para forçar o consumidor ao pagamento de parcelas atrasadas. Está se praticando o reequilíbrio do contrato, dentro das normas do CDC já expostas e apreciadas nos capítulos anteriores.
Vale ressaltar, como bem lembra Cláudia Lima Marques, na obra já mencionada, que somente os serviços fornecidos pelo ente estatal e pagos (mediante remuneração) estarão incluídos na aplicação da norma do CDC (artigo 3.º, § 2.º). Quanto aos outros serviços, prestados de uma maneira geral a todos os cidadãos e decorrentes da aplicação de impostos e taxas deles arrecadados, não tem aplicação a norma do CDC.
Nesse particular, é de se louvar a atuação do Ministério Público brasileiro, além dos organismos de defesa do consumidor (PROCONS, IDEC, etc.), os quais, a par de uma atuação eficiente e em defesa do contratante mais fraco, têm conseguido equilibrar as ações, tornando os usuários de serviços públicos menos vulneráveis à ação organizada dos entes da Administração Pública, que se utilizam, muitas vezes, de Portarias, Atos e até de Medidas Provisórias para tentar fazer valer os seus direitos.
Conclusão.
Das considerações acima traçadas, que não tiveram, nem poderiam, a descabida pretensão de esgotar o assunto, podemos concluir o seguinte:
1. Da total irresponsabilidade do Estado, evoluímos para a responsabilidade decorrente da culpa e chegamos às várias etapas que proporcionaram a consolidação de reparação pelo ente estatal de forma mais consentânea e eficaz.
2. Na esteira da evolução das teorias sobre a responsabilidade do Estado foi-se, pouco a pouco, banindo do nosso ordenamento jurídico, a imaterialização da culpa. Para se punir o responsável pela ocorrência danosa, bastam o prejuízo e a relação de causalidade entre o ato e o dano.
3. O Código de Defesa do Consumidor, na esteira dos novos rumos que adquiriu o instituto da responsabilidade civil, consagrou a responsabilidade objetiva do fornecedor, tanto de produtos, como de serviços, incluindo no catálogo de fornecedores os entes da Administração Pública, desde que se estabeleça entre ela e os administrados uma relação de consumo.
4. O CDC impõe aos órgãos do Poder Público, enquanto fornecedores de serviços e, eventualmente, de produtos, deveres específicos e regras claras. Contratos firmados entre consumidores (destinatários finais) e os órgãos públicos e suas empresas são, em princípio, contratos de consumo, porém somente os serviços prestados mediante remuneração estarão incluídos na aplicação da norma do artigo 3.º, § 2.º.
Mestre e Doutoranda em Ciências Jurídicas pela UFPB. Professora da UFPB e UNIPÊ
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