Da platitude do distinguishing aos óbices do overruling.
Vinícius Andrade
Sumário
RESUMO
O Novo Código de Processo Civil trouxe, como sua maior mudança, a proposta de implantação de determinados conceitos da common law e do stare decisis, adotando, assim, um sistema de precedentes judiciais que busca oferecer soluções uniformes para casos concretos idênticos e decisões semelhantes para demandas pautadas no mesmo fundamento jurídico, trazendo, por conseguinte, uma maior segurança jurídica e eficiência na prestação jurisdicional, valendo-se de mecanismos de comparação, aplicação e superação dos precedentes vinculantes. O objeto do presente trabalho, portanto, é identificar os mencionados mecanismos, entender seu conceito e aplicação, e, levando em conta a função social do direito, verificar os riscos de engessamento do direito ante sua aplicação displicente.
PALAVRAS-CHAVE: Novo Código de Processo Civil. Sistema de Precedentes. Mecanismos de comparação, aplicação e superação. Riscos.
ABSTRACT
The new Code of civil lawsuit brought the proposal for the implementation of certain concepts of common law and stare decisis, and thus adopted a system of judicial precedents that seeks to offer uniform solutions to similar concrete cases and similar decisions to demands based on the same legal basis, bringing, therefore, greater legal certainty and efficiency in the judicial provision, using mechanisms of comparison, application and overcoming of binding precedents. The object of the present work, therefore, is to identify the aforementioned mechanisms, to understand their concept and application, and to verify the risks of the right’s plastering before its non-compliant application.
KEYWORDS: New Code of Civil Lawsuit. System of Precedents. Mechanisms of comparison, application and overcoming. Scratchs.
“Ex nihilo nihil fit.” [1]
O projeto inicial de alteração do Código de Processo Civil de 1973 foi apresentado em 2010, criado por comissão composta por juristas renomados, entre eles Elpídio Donizete Nunes e Humberto Theodoro Júnior e presidida pelo Ministro do STJ, Luiz Fux, que, já em 2009destacava que os principais desafios da comissão seria a criação de um codex capaz de acelerar a prestação jurisdicional, buscando atender o princípio da razoável duração do processo:
Na época da elaboração do atual Código,1973, a maioria das demandas era individual, enquanto hoje existem na Justiça inúmeras demandas coletivas. Se uma única sentença der uma resposta judicial a todos os jurisdicionados num determinado assunto, conseguiremos acelerar bastante o andamento dos processos. Isso já existe em leis esparsas, mas não no atual CPC. A regra que pretendemos adotar é a da legitimação coletiva. (FUX, 2009). [ 2].
Em 2012, o professor Fredie Didier Jr., no artigo jurídico “Razões para um novo CPC. Confiteor.” [3], retratou seu posicionamento de 2008, quando afirmara ser desnecessário um novo código e destacou que o projeto de alteração seria possivelmente o mais importante em trâmite na Câmara dos Deputados.
O professor explicou que as a quantidade de leis que até então haviam alterado o referido codex haviam-no transformado em uma “colcha de retalhos”, perdendo a essência que se espera de um código.
Na mesma ocasião, salientou as alterações sofridas pela ciência jurídica brasileira, seja no âmbito tecnológico – com a, então nova, realidade do processo eletrônico, seja pelas mudanças sociais e aumento exponencial, quantitativo e qualitativo, dos conflitos levados ao poder judiciário E por fim, concluiu pela necessária reforma do código de processo civil, inclusive, retratando-se – objetivo do referido editorial.
Assim, permeado por uma calorosa discussão no âmbito jurídico e por ampla expectativa, em março de 2015, a então Presidente Dilma Rousseff sancionou o Código de Processo de 2015, sob a premissa de ajuste das normas processuais à realidade brasileira.
Noutro giro, basta uma retrospectiva cuidadosa para que se perceba que a constante evolução e complexidade das relações sociais muitas vezes apresentam demandas conflitantes com as normas até então consolidadas, evidenciando o caráter obsoleto do ordenamento jurídico que não consegue acompanhar e decidir de maneira justa e adequada.
A evidente dificuldade da aplicação do direito em casos atuais e polêmicos, no atual ordenamento jurídico, sem que sequer implantada a nova proposta de uniformização jurisdicional, faz nascer a preocupação da dificuldade de superação de precedentes firmados quando das próximas mudanças, avanços ou retrocessos apresentados pela sociedade.
Com efeito, não pode o Direito, fonte legitimada de regulação da vida humana em sociedade, se distanciar dessa realidade, atuando como mero expectador das mudanças.
Vale dizer, a passividade do Direito tem como principal reflexo sua incongruência com a realidade social. Estabelecer uma sistemática de precedentes pode, ainda que propiciando maior celeridade ao poder judiciário, dificultar a própria quebra de paradigmas, trazendo assim um possível engessamento ao direito.
Devido a essas alterações – e em especial para esse último desiderato – o estudo do precedente judicial obrigatório ganhou relevância para os acadêmicos, bem como para os profissionais da área jurídica em geral, pois afetará consideravelmente todo o cotidiano forense. Considerando ser novidade sem paralelo em nosso sistema processual, achamos pertinente analisar a questão à luz de nossa realidade jurisdicional e jurisprudencial, observando eventuais falhas a se apresentarem.
Portanto, o objeto de estudo do presente trabalho é discutir a relação entre o dever de fundamentação das decisões judiciais prolatadas pelos magistrados e a efetiva aplicação da sistemática de precedentes no ordenamento jurídico brasileiro, bem como os obstáculos excessivos decorrentes da banalização dos mecanismos de criação e superação dos precedentes judiciais na prática.
O Novo Código de Processo Civil trouxe mudanças consideráveis, destacando-se a criação do Incidente de Assunção de Competência (IAC – art. 947) e do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR – arts. 976-987). [4]
O primeiro prevê que, diante do julgamento de relevante questão de direito, com grande repercussão social e ausente a múltipla repetição, possa o relator propor assunção de competência para que seja julgado por órgão colegiado definido em regimento interno. Já o segundo – IRDR – será aplicado de maneira obrigatória a todos os casos que tratem da tese decidida e que tramitem naquela jurisdição.
Ambos os institutos são a perfeita ilustrações dos objetivos por trás do novo código – a uniformização jurisprudencial e a celeridade necessária ao judiciário.
Porém, não obstante todas as alterações de institutos pré-existentes, e da exclusão ou criação de novos mecanismos e dispositivos, talvez a maior e mais notável mudança trazida seja aquela mais diretamente ligada a nova maneira de se pensar o processo civil no atual ordenamento jurídico: A busca por uma uniformização de jurisprudência e a sistemática de precedentes vinculantes.
Assim, o NCPC assimila a teoria do stare decisis – sistema da força obrigatória dos precedentes, importada da common law adotando uma sistemática de precedentes, [5] pautada principalmente na busca pela segurança jurídica, isonomia e eficiência.
Como já aludido, mostrou-se necessária uma busca pela superação das incertezas decorrentes de decisões conflitantes e heterogêneas em situações idênticas, frutos de um sistema judiciário sobrecarregado e moroso.
Segundo o professor Fredie Didier Jr. o precedente é composto pelas circunstâncias de fato que embasam a controvérsia, ou seja, os acontecimentos e relações a construírem o contexto do conflito a ser julgado; a tese ou princípio jurídico assentado na motivação (ratio deciendi) [6] ou seja, a norma a se extrair de determinada decisão e que será utilizada na criação do precedente a vir ser aplicado posteriormente.
Porém, segundo o ilustre professor, em sentido estrito, precedente seria tão somente a própria ratio deciendi, ou seja, a essência da decisão tomada.
Nesta senda, Didier explica que:
(…) ao decidir um caso, o magistrado cria (reconstrói), necessariamente, duas normas jurídicas. A primeira, de caráter geral, é fruto de sua interpretação/compreensão dos fatos envolvidos na causa e da sua conformação ao direito positivo: Constituição, leis, etc. A segunda de caráter individual, constitui a sua decisão para aquela situação específica que se lhe põe para análise (DIDIER, 2016, pag.456.).
Assim, podemos entender precedente como uma decisão judicial prolatada em um caso concreto que possua o condão de influir em decisões futuras tomadas em situações de matéria fática semelhante.
Neste sentido, o Novo Código de Processo Civil tem sua estrutura firmada em um fenômeno de uniformização jurisprudencial, ou, pelo menos, uma tendência a se buscar a mesma, materializada no instituto do precedente judicial que evidencia-se com os arts. 926 e 927, doCPC15. [7]
O texto do art. 296 deixa clara a preocupação do novo código com a uniformização da jurisprudência, destacando que além de uniforme, deve ser integra e coerente, podendo ler, aqui, integridade no sentido de estabilidade.
Trata-se não da tentativa de se transformar o ordenamento jurídico em uma nova common law, mas sim de uma “legalização” do precedente.
Apesar de ser um dos principais pilares fundamentais – se não o principal – da reforma do Código de Processo Civil, por óbvio, o precedente não poderá se sobrepor ao texto da lei, não poderá tornar-se fonte de direito mais expressiva, porém se espera que contribua para afastar a ideia de que a cada caso concreto julgado, interpreta-se e aplica-se a lei de maneira isolada, sem que observado um histórico, sem que levado em conta a necessidade de comunicação entre as decisões.
Surgiu então, já à época de elaboração do texto, especulações e discussões calorosas quanto a uma questão pontual ao se pensar no precedente judicial: Até que ponto a implementação de uma uniformização jurisprudencial permitirá ao magistrado o livre exercício de sua autonomia para decidir e fundamentar?
A partir de 2007, já se vislumbrava grandes debates quando ao futuro da magistratura diante das mudanças cogitadas e parte do âmbito jurídico brasileiro se mostrou contra, ou pelo menos receoso, de que o Novo Código de Processo Civil forma de minar a independência dos magistrados ou de violar o princípio da persuasão racional.
Entretanto, apesar dos argumentos a favor ou contra da mudança, sob palio da referida discussão, apresentados ao longo dos anos, este trabalho se pauta no entendimento de que esta contenda não merece prosperar, muito ao contrário, a desnecessidade do receio por parte daqueles que temiam com a imperatividade exacerbada a ser eventualmente imposta esbarra com o tema problema a ser apresentado à frente, afinal, até que ponto depender do comprometimento dos magistrados permite ao novo codex atingir sua finalidade?
Para esclarecer tal dúvida, ressalte-se que o dispositivo do art. 927, do Novo Código de Processo Civil [8] explicita que “os juízes observarão”, não se tratando de faculdade e sim de imperatividade.
Não se deve, entretanto, entender tal imperatividade como uma forma de minar a independência dos magistrados ou de violar o princípio da persuasão racional, até porque em nada se difere a aplicação da lei ou do precedente, senão quanto aos seus elementos de concretude.
Por opção política a Constituição Federal (art. 93, IX) [9] alçou à condição de princípio a exigência de fundamentação das decisões judiciais e, afastando qualquer, dúvida, à inteligência do art. 489, do NCPC [10], evidencia-se de maneira inequívoca, a obrigatoriedade da fundamentação de todas as decisões judiciais prolatadas.
Afinal, como muito bem lecionado por Gajardoni:
(…)O fato de haver no Novo CPC regra expressa estabelecendo o dever de respeito aos precedentes (art. 927 do CPC/ 2015) também não impacta no livre convencimento. Além de a disposição não trazer nada de muito novo -visto que o Judiciário é um poder verticalizado, em que as instâncias inferiores devem, como regra, aplicar a lei tal como interpretada pelas cortes superiores (vide arts. 103A da CF e arts. 543 A e 543-C, doCPC/ 1973) -, a novel regra é de interpretação da lei, não de valoração da prova (que continua sendo Livre). (GAJARDONI – O Livre convencimento motivado não acabou nonovo CPC, 2016) [ 11].
Ainda, nas palavras de Donizetti:
(…) Tal como no sistema positivado, tambémno stare decisis o livre convencimento motivado do juiz incide sobre a definição da norma a ser aplicada – aqui por meio doconfronto da ratio deciendi extraída doparadigma com os fundamentos do caso sob julgamento – , sobre a valoração das provas e finalmente sobre a valoração dos fatos pelo paradigma escolhido, levando-se em conta as circunstâncias peculiares da hipótese sobre julgamento. (DONIZETTI, Curso de Direito Processual Civil, 2017, pag. 20.).
Pode-se concluir dos artigos referidos que o magistrado se limitará a invocar o precedente tão-somente quando inexistirem dúvidas quanto a seu alcance.
Entretanto, havendo manifestação das partes quando a sua aplicação ou rejeição, e diante dos argumentos e contra-argumentos apresentados, não pode o julgador meramente optar pela aplicação ou não do precedente, nem limitar sua fundamentação à simples concordância ou discordância.
Assim, conclui-se que, ausente controvérsias quanto a aplicação do precedente, mesmo tendo o julgador um posicionamento diverso da matéria sub judice, o magistrado não se da a possibilidade de escolher outro parâmetro de apreciação do direito. Entretanto, a vinculação se restringe à regra contida na ratio deciendi, deixando livre o contido no obter dictum [12], e fazendo-o por meio de ferramentas de aplicação e superação de precedente.
O legislador, ao elaborar o texto do Código de Processo Civil não se limitou a introduzir a teoria dos precedentes entre seus dispositivos.
Indo além, ele trouxe mecanismos específicos objetivando que a teoria não fosse aplicada de maneira aleatória e técnicas de alteração de precedentes, talvez também antecipando os riscos que serão abordados mais a frente, neste trabalho.
Entre as referidas técnicas, a que mais se destaca é a Distinguishing.
Neste sentido, Luiz Guilherme Marinoni leciona:
O distinguishing expressa a distinção entre os casos para o efeito de se subordinar, ou não o caso sob julgamento ao precedente. Assim, é necessário delimitar a ratio decidendi, considerando-se os fatos materiais do primeiro caso, ou seja, os fatos que foram tomados em consideração no raciocício judicial como relevantes ao encontro da decisão. O distinguishing revela a demonstração entre as diferenças fáticas entre os casos ou a demonstração de que a ratio do precedente não se amoldo ao caso sob julgamento, uma vez que os fatos de um e outro são diversos. (MARINONI, 2016, pag.203.)
Na visão de Fredie Didier Jr.:
Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, algumas peculiaridades no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente. (DIDIER, 2016, pag .504.).
Trata-se pois, de uma técnica de confronto, onde o magistrado ira verificar até que ponto existe similitude entre o precedente firmado e o caso concreto, cabendo ao magistrado decidir, frente as distinções percebidas, se é mais correto aplicar à ratio deciendi uma interpretação restritiva ou estender a aplicação do precedente.
O entendimento de tal técnica se faz essencial para a discussão do tema problema a ser apresentado, visto que na prática, a aplicação destes precedentes dependerá da postura adotada pelos próprios julgadores e a boa vontade com que irão recepcionar as mudanças trazidas pelo novo código.
Não obstante conceituar a técnica de confronto para aplicação dos precedentes – distinguishing -, para compreender os riscos do engessamento do direito é igualmente essencial analisar as técnicas de superação do precedente, principalmente pelo fato de que os eventuais óbices para tal são exatamente o ponto central da problemática a ser discutida.
Tratam-se basicamente de duas técnicas: A overruling e a overrriding.
Nas palavras de Didier:
(…)Overruling é a técnica através da qual um precedente perde sua força vinculante e é substituí do por outro precedente. O próprio tribunal que firmou o precedente pode abandoná-lo em julgamento futuro, caracterizando o overrruling. (DIDIER, 2016, pag.508.).
Marinoni destaca:
Um precedente deixa de corresponder aos padrões de congruência social quando passa a negar proposições morais, políticas e de experiência. Essas proposições aparecem no raciocínio do common law exatamente quando se mostram relevantes para a elaboração ou para a revogação de um precedente. É possível dizer que as proposições morais determinam uma conduta como certa ou errada a partir do consenso moral geral da comunidade, as proposições políticas caracterizam uma situação como boa ou má em face do bem-estar geral e as proposições de experiência dizem respeito ao modo como o mundo funciona, sendo que a maior classe dessas últimas proposições descreve as tendências de condutas seguidas por subgrupos sociais. (MARINONI, 2016 pag.252).
É, portanto, em linguagem simplista, a superação de um precedente vinculante, e deve ser expressa.
Quanto ao overriding, diz Diddier:
Há overriding quando o tribunal apenas limita o âmbito de incidência de um precedente, em função da superveniência de uma regra ou princípio legal. No overriding, portanto, não há superação total doprecedente, mas apenas uma superação parcial. É uma espécie de revogação parcial. (DIDIER, 2010, pag.397).
Marinoni leciona:
Outra técnica utilizada nos Estados Unidos é chamada de overriding. Essa igualmente não se confunde com overruling. Também nada tem a ver com a sinalização e com a transformation. Basicamente pela razão de que, mediante o seu uso, não se revoga o precedente (overruling), não se anuncia a sua iminente revogação (sinalização) nem se faz a reconstrução do precedente, isto é, não se consideram como fatos relevantes ou materiais aqueles que, no precedente, foram considerados de passagem, atribuindo-se-lhe, diante disso, nova configuração (transformation). O overriding apenas limita ou restringe a incidência do precedente, aproximando-se, nesse sentido, de uma revogação parcial. Mas no overriding não há propriamente revogação, nem mesmo parcial,do precedente, embora o resultado da decisão com ele tomada não seja compatível com a totalidade do precedente. Mediante este expediente, a Corte deixa de adotar precedente em princípio aplicável, liberando-se da sua incidência. Assim, a sua aproximação é maior em relação ao distinguishing. O overriding se baseia na necessidade de compatibilização doprecedente com o entendimento posteriormente formado. A distinção que se faz, para se deixar de aplicar o precedente em virtude do novo entendimento, é consistente com as razões que estiveram à base da decisão que deu origem ao precedente. Como explica Eisenberg, em teoria o overriding poderia ser visto apenas como um caso especial de desvinculação (hiving off) mediante distinções consistentes, quando a Corte lida com um tipo de situação que não estava envolvida nos precedentes que deram origem ao entendimento anterior e conclui que, dadas asproposições sociais que fundamentam aquele entendimento anterior, a situação em questão deveria ser desvinculada para ser tratada de acordo com o entendimento mais recente. (MARINONI, 2016 pag. 245-246).
Após todo o conteúdo explanado, não resta se não concluir que o Novo Código de Processo Civil foi elaborado numa tentativa de buscar celeridade e segurança jurídica, trazendo uma efetividade maior aos julgamentos e assim, solucionar a urgente situação de “abarrotamento” do Poder Judiciário.
Entretanto, quando os Magistrados se mostravam receosos quanto a uma possível restrição de sua liberdade de fundamentação, o código trouxe na verdade um risco sério, ao fazer exatamente o contrário.
Temos uma sistemática em que, após firmado o precedente, o Magistrado se valerá da Distinguishing, e aqui utilizará toda sua autonomia para fundamentar quanto a sua percepção, de similitude ou não, durante esta fase de confrontamento. E ainda, valerá de seu livre convencimento motivado quando estiver diante de uma situação e que perceba ser determinado precedente obsoleto ou ultrapassado ou passível de afastamento, por meio da Overruling e Overriding.
E aqui incorremos no grande risco de engessamento do direito, objeto do presente artigo.
Dworkin cria um juiz imaginário, inspirado na mitologia do Hércules, como uma espécie de modelo a ser seguido pelos juízes (common law) na tarefa de decidir questões jurídicas. Em sua teoria, Dworkin apresenta Hércules como um juiz que, na tarefa de realizar a interpretação construtivista do direito, é guiado pelo princípio da integridade e da equidade, cuja tradição e historicidade serão notas presentes para a decisão no direito vigente, na forma de um modelo hermenêutico, isto é, que reconstrói e critica a forma da decisão judicial, retroalimentando-a, sem transformar o direito em aplicação de um método ou técnica. (BITENCOURT e SOBRINHO, 2011).
Resgatando a Teoria da Integridade, proposta por Dworkin, que exige em seu livro O Império do Direito, uma “responsabilidade política” dos juízes.
Dworkin elucida:
Os juízes devem impor apenas convicções políticas que acreditam, de boa -fé, poder figurar numa interpretação geral da cultura jurídica e política da comunidade. Naturalmente, os juristas podem, razoavelmente, discordar sobre quando essa condição é satisfeita, e convicções muito diferentes, até mesmo contraditórias podem passar pelo teste. Mas algumas não. Um juiz que aceita esse limite e cujas convicções são marxistas ou anarquistas, ou tiradas de alguma convicção religiosa excêntrica- não pode impor essas convicções à comunidade com o título de Direito, por mais nobres ou iluminadas que acredite que sejam, pois elas não se podem prestar à interpretação geral coerente de que ele necessita ( DWORKIN, 2005, p. IX).
Dworkin apresenta três virtudes políticas essenciais, quais sejam, equidade, justiça devido processo legal:
A justiça diz respeito ao resultado correto do sistema político: a distribuição correta de bens, oportunidades e outros recursos. A equidade é uma questão da estrutura correta para esse sistema, a estrutura que distribui a influência sobre as decisões políticas da maneira adequada. O devido processo legal adjetivo é uma questão dos procedimentos corretos para a aplicação de regras e regulamentos que o sistema produziu. A supremacia legislativa que obriga Hércules a aplicar as leis, mesmo quando produz uma incoerência substantiva, é uma questão de equidade porque protege o poder da maioria de fazer o direito que quer. As doutrinas rigorosas do precedente, as práticas da história legislativa e a prioridade local são em grande parte, embora de maneira distintas, questões de processo legal adjetivo, porque estimulam os cidadãos a confiar em suposições e pronunciamentos doutrinários que seria errado trair ao julgá-los depois do fato (dworkin 2007, p. 483).
Para ele, no entanto, há ainda outro ideal mais importante, muitas vezes confundido com o princípio de tratar os casos semelhantes de forma parecida. Entretanto, esse ideal que ele propõe não se resume ao princípio de igualdade, sendo mais complexo e ambicioso. É justamente a essa concepção ideal a que dará o nome de integridade.
Inspirado no exemplo de Dworkin, no panorama apresentado pelo Novo Código de Processo Civil, em que a efetividade do sistema de precedentes fica quase refém do comprometimento da magistratura como um todo, é possível pensar em três cenários hipotéticos.
Como primeira situação, é possível fazer uma projeção de atuação daqueles magistrados que abraçarão o código sem ressalvas, aplicando como responsabilidade seu papel enquanto aplicador e avaliador dos precedentes pré-existentes, aplicando com afinco e respeito as ferramentas da Distinguishing, Overruling e Overriding.
Não há se falar em um Poder Judiciário sólido, consistente e funcional, quando não pautado na confiança dos jurisdicionados e operadores do direito.
Entretanto, não pode se prestar, nenhum jurista, a meramente se acomodar no conforto da competência de nossos ilustres julgadores.
Assim, mais do que possível, é necessária a análise de duas outras condutas passiveis de adoção e que poderão trazer riscos gravíssimos à aplicação do Novo Código de Processo Civil e ao próprio ordenamento jurídico.
Se mostra necessário pensar no cenário hipotético – e aqui ressalto não se tratar de um questionamento quanto à dedicação e zelo dos magistrados em geral, mas sim uma preocupação quanto à possibilidade de sua ocorrência – em que, ainda que não se opondo à sistemática de precedentes, o julgador, valendo-se de uma Distinguishing apressada, simplesmente aplique o precedente por ser mais prático, sem um critério de confrontamento sério, ou o cenário em que, movido talvez por ego ou intolerância com as mudanças apresentadas, insista em encontrar motivos e subterfúgios à diferenciar o caso prático do precedente vinculante e assim forçar a aplicação de seu entendimento.
Em ambos os casos, a platitude da Distinguishing apresenta sérios problemas ao ordenamento jurídico, pelos obstáculos que traz à aplicação dos métodos de superação do precedente.
Como entendido pelo próprio Dworking (2007), Direito nada mais é do que um produto coletivo de uma determinada sociedade em permanente construção.
O Novo Código de Processo Civil foi elaborado se propondo a trazer mais segurança e celeridade, importando a sistemática de precedentes, proveniente da common law, adaptando-a ao ordenamento jurídico brasileiro.
Entretanto, a eficiência da aplicação da referida sistemática se encontra irremediavelmente relacionada a postura dos Magistrados brasileiros – os mesmos que antes se preocupavam com a restrição de sua liberdade de fundamentação – diante de seu poder de confrontamento e aplicação dos precedentes.
A platitude em seu exercício de enquadramento do caso concreto à sistemática de precedentes reflete de maneira direta ao firmamento dos mesmos precedentes no ordenamento jurídico, expondo não somente o destinatário imediato daquele provimento jurisdicional mas sim todos aqueles em situação de similitude.
Se mostra portanto, mais que nunca, mas não de forma inédita, extremamente necessária a responsabilidade social da magistratura.
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NUNES, Dierle; HORTA, André Frederico. Aplicação de precedentes e distinguishing no CPC/2015: Uma breve introdução. DIDIER JR., Fredie;
[1] Nada surge do nada. Latim
[2] http://www.tex.pro.br/index.php/noticias2/187-noticias-out-2009/2082-ministro-luiz-fux-e-empossado-presidente-da-comissao-do-novo-cpc ps://www.jota.info/justica/visao-de-luiz-fux-sobre-o-novo-cpc-07032015
[3] http://www.frediedidier.com.br/editorial/editorial-151/
[4] Lei 13.105, de 16 de março de 2015
“Art. 947. É admissível a assunção de competência quando o julgamento de recurso, de remessa necessária ou de processo de competência originária envolver relevante questão de direito, com grande repercussão social, sem repetição em múltiplos processos. (grifo)
“Art. 976. É cabível a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas quando houver, simultaneamente: (grifo)
[5] Nas palavras de Elpídio Donizetti:
(…) precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos (DONIZETTI, Curso de Direito Processual Civil, 2017, pag. 19.).
[6] Razão de decidir. Latim. Trata-se de um dos conceitos mais importantes no estudo da teoria dos precedentes. Nas palavras de Didier:
(…) a ratio decidenti – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi. ‘A ratio decidendi (…) constitui a essência da tese jurídica suficiente para decidir o caso concreto (rule of law). É importante assentar o seguinte: ao decidir um caso, o magistrado cria (reconstrói), necessariamente, duas normas jurídicas. A primeira, de caráter geral, é fruto da sua interpretação/compreensão dos fatos envolvidos na causa e da sua conformação ao Direito positivo: Constituição, leis, etc. A segunda, de caráter individual, constitui a sua decisão para aquela situação específica que se lhe põe para análise. (…) A decisão judicial é ato jurídico de onde se extrai a solução do caso concreto, encontrável no dispositivo, e o precedente, comumente retirado da fundamentação. A decisão é, pois, conjunto e continente, com no mínimo esse duplo conteúdo (DIDIER, 2016, pag.456.).
[7] Lei 13.105, de 16 de março de 2015
“Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
[8] Lei 13.105, de 16 de março de 2015
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
[9] Constituição Federal 1988
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;
[10] Lei 13.105, de 16 de março de 2015
Art. 489.
V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos;
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
[11] GAJARDONI, Fernando da Fonseca, O Livre convencimento motivado não acabou no novo CPC – in http://jota.uol.com.br/o-livre-convencimento-motivado-nao-acabou-no-novo-cpc – acesso em 10/03/2018, às 16h00.
[12] O obter dictum (obter dicta, no plural), ou simplesmente dictum, é o argumento jurídico, consideração, comentário exposto apenas de passagem na motivação da decisão, que se convola em juízo normativo acessório, provisório, secundário, impressão ou qualquer outro elemento jurídico-hermenêutico que não tenha influência relevante e substancial para a decisão (‘prescindível para o deslinde da controvérsia’).
Trata-se de colocação ou opinião jurídica adicional, paralela e dispensável para a fundamentação e conclusão da decisão. É mencionada pelo juiz “incidentalmente’ ou ‘a propósito’ (“by the way”), mas pode representar um suporte ainda não essencial e prescindível para a construção da motivação edo raciocínio ali exposto. Normalmente é definido de forma negativa: é obter dictum a proposição ou regra jurídica que não compuser a ratio decidendi. (DIDIER, 2016, pag .458.).
Vinícius Andrade
Advogado e Consultor Jurídico. Pós-Graduando em Direito Tributário pela Escola Superior de Advocacia da OAB/MG. Atua nas áreas de Direito Civil, Direito do Consumidor, Direito dos Animais, Direito de Família e Análise Estratégica em Execução Cível.
Fundador da Vinícius Andrade Advocacia e Consultoria.
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