Resumo: O presente estudo visa analisar a amplitude dos efeitos da sanção administrativa de suspensão temporária do direito de licitar e contratar, prevista no art. 87, inciso III, da Lei Federal nº. 8.666/93. Essa punição tem enorme relevância jurídica e social, pois se caracteriza pela retirada do direito do particular de participar de licitações e contratações com o governo, sendo assim inegavelmente é uma sanção dura. Ademais, cristalino perceber que as sanções administrativas são prerrogativas das cláusulas exorbitantes e são derivadas do poder disciplinar emanado da Administração Pública, em razão da necessidade de buscar a consolidação da supremacia e indisponibilidade do interesse público em detrimento do interesse privado. Além disso, insta ressaltar que a problemática da interpretação da amplitude dos efeitos dessa sanção origina-se da previsão legal que diferencia “administração” e a “Administração Pública”. O legislador, em seguida, previu que a suspensão temporária restringe-se ao âmbito da administração, enquanto que a declaração de inidoneidade afeta toda Administração Pública. Atualmente o Poder Judiciário comunga da doutrina que concede à penalidade de suspensão prevista no inciso III, do art. 87, da Lei Federal nº. 8.666/93 a amplitude extensiva de seus efeitos, ou seja, após estar suspenso o administrado não pode celebrar contratos administrativos com nenhum órgão do Poder Público no âmbito nacional, em virtude da indivisibilidade da Administração Pública brasileira. Por outro lado o Tribunal de Contas da União e a Advocacia-Geral da União, que controlam as realizações dos certames licitatórios, entendem que a suspensão só é válida para o órgão ou ente que impôs a sanção, em razão da interpretação literal da vontade do legislador responsável pela edição da lei de licitações e contratos administrativos. Nessa senda, o particular não tem segurança de qual entendimento irá prevalecer, além disso, em razão do princípio do acesso a justiça e da inafastabilidade da jurisdição, sempre que esse assunto for questionado perante o Poder Judiciário os atos administrativos sancionados pelo TCU e pela AGU serão revistos. Sendo assim, imperiosa a realização de uma análise doutrinária e jurisprudencial para a correta sedimentação do tema. Ademais, nem sempre o TCU e a AGU foram defensores da amplitude restritiva dos efeitos da suspensão temporária e até hoje há quem defenda a desnecessidade de ampliar os efeitos da referida sanção. É certo, porém, que a Lei Federal nº 8.666/93 possui lacunas que precisam ser revistas, não podendo deixar essa tarefa a cargo apenas dos princípios gerais do direito administrativo. [1]
Palavras-chave: Direito Administrativo. Licitações e Contratos Administrativos. Sanções Administrativas. Suspensão Temporária. Amplitude.
Abstract: The present study aims to analyze the magnitude of the effects of the administrative sanction of temporary suspension of the right to bid and contract, foreseen in art. 87, subsection III, of Federal Law nº. 8,666/93. This punishment has enormous juridical and social relevance, since it is characterized by the withdrawal of the individual's right to participate in bids and contracting with the government, thus undeniably a harsh sanction. In addition, it is crystal clear that administrative sanctions are prerogative of exorbitant clauses and are derived from the disciplinary power emanated from the Public Administration, due to the need to seek the consolidation of supremacy and unavailability of the public interest to the detriment of private interest. In addition, it stresses that the problem of interpreting the magnitude of the effects of this sanction arises from the legal provision that differentiates "administration" and "Public Administration". The legislature then provided that the temporary suspension is restricted to the scope of the administration, while the declaration of unfairness affects all Public Administration. Currently, the Judiciary is in communion with the doctrine it grants to the suspension penalty set forth in subsection III of art. 87, of Federal Law nº. 8.666/93, it is not possible to conclude administrative contracts with any government body at the national level, due to the indivisibility of the Brazilian Public Administration. On the other hand, the Court of Auditors of the Union and the Attorney General of the Union, who control the achievements of the bidding events, understand that the suspension is only valid for the body or entity that imposed the sanction, due to the literal interpretation of the will of the Legislator responsible for the edition of the law of licitations and administrative contracts. In this way, the private individual is not sure which understanding will prevail, in addition, due to the principle of access to justice and the inafasability of the jurisdiction, whenever this matter is challenged before the Judiciary Power the administrative acts sanctioned by the Court of Auditors (TCU) and the Advocacy General of the Union (AGU) Will be reviewed. Therefore, it is imperative to carry out a doctrinal and jurisprudential analysis for the correct sedimentation of the theme. In addition, TCU and AGU have not always been advocates of the restrictive extent of the effects of the temporary suspension and to this day there are those who argue that there is no need to extend the effects of this sanction. It is certain, however, that Federal Law nº. 8.666/93 has gaps that need to be revised, and can not leave this task to the general principles of administrative law alone.Keywords: Administrative law. Tenders and Administrative Contracts. Administrative sanctions. Temporary Suspension. AmplitudeSumário: (1) A Prerrogativa Exorbitante da Administração Pública. 1.1.Origem Histórica. 1.2.Análise Principiológica. 1.3.Cláusulas Exorbitantes. (2) A Suspensão Temporária no Direito Administrativo. 2.1.Conceito e Natureza Jurídica das Sanções Administrativas. 2.2.O Regimento Legal das Sanções Administrativas. 2.3.As Sanções Administrativas em Espécie. 2.3.1.a advertência. 2.3.2.a multa. 2.3.3.a declaração de inidoneidade. 2.3.4.o impedimento. 2.3.5.a suspensão temporária. (3) A Interpretação jurisprudencial da amplitude dos efeitos da Suspensão Temporária. 3.1.A Suspensão de Licitar e Contratar com o Poder Público 3.2.A Suspensão de Licitar e Contratar com o órgão punidor. 3.3.A Suspensão de Licitar e Contratar com a esfera do Governo Sancionador. Considerações Finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como título “A suspensão temporária prevista na lei federal nº. 8.666/93 e a extensão dos seus efeitos jurídicos”.
Trata-se de um tema de Direito Administrativo, que envolve o estudo jurídico- dogmático da sanção administrativa de suspensão temporária do direito de participar de licitações e contratos, seu conceito, suas características, sua relação com os demais mecanismos sancionadores. Todavia, debruçando-se, principalmente, na temática da amplitude de seus efeitos na administração pública.
A suspensão temporária da participação de licitações e o impedimento de contratar com a Administração objetiva punir o administrado que tenha inexecutado total ou parcialmente os termos do contrato administrativo. É, portanto, uma modalidade de sanção administrativa, possuidora de cunho repressor, derivada das prerrogativas contratuais exorbitantes da Administração, com origem no poder disciplinar do Estado.
A referida sanção é objeto de intensa discussão doutrinária e jurisprudencial, a controvérsia do tema recai na amplitude dos efeitos da suspensão em razão de o legislador ter distinguido os conceitos de Administração e Administração pública. Além disso, a problemática aflora em razão existir previsão, nos incisos III e IV do Art. 87 da lei de Licitações, de que a suspensão ocorre no âmbito da Administração e que a declaração de inidoneidade atinge toda a Administração Pública.
O Superior Tribunal de Justiça filia-se ao entendimento de que não existe distinção entre os dois termos, pugnando por uma amplitude igualitária para ambas as sanções. Já o Tribunal de Contas da União e a Advocacia-Geral da União firmaram entendimento de que existe uma diferença entre os termos empregados pelo legislador. Essa divergência causa grande insegurança jurídica, na medida em que o administrado não sabe qual posicionamento será adotado nas licitações e se esse posicionamento irá ser revisto no âmbito jurisdicional.
O objetivo principal do presente trabalho reside nesse ponto: investigar a atual interpretação que é concedida à amplitude da punição em comento no âmbito do Poder Judiciário e dos órgãos de controle administrativo, quais sejam o Tribunal de Contas da União e a Advocacia-Geral da União. Para tanto, é necessário recorrer à história da relação de intervenção da Administração na vida dos administrados, além de abordar os principais princípios norteadores do presente estudo, com o fito de identificar a doutrina que vem sendo mais bem utilizada para descrever os efeitos da referida sanção.
Nesse toar, inegável perceber a relevância acadêmica e social do tema, que abarca a intensa relação econômica dos contratos administrativos celebrados entre a Administração Pública e os particulares. Foi em decorrência de tal relação que o legislador estabeleceu mecanismos de proteção do Estado, quando esse se relaciona economicamente com os administrados, quais sejam as sanções administrativas.
O método de abordagem utilizado foi o dedutivo, pois a pesquisa partiu do exame dos princípios administrativos e da interpretação doutrinária atual para conseguir concluir qual a interpretação é a mais indicada para a amplitude dos efeitos da suspensão temporária.
Os métodos de procedimento utilizados foram o comparativo e o estudo do casuístico, além disso, para realizar a pesquisa foram utilizadas as técnicas de: coleta, fichamento do material, documentação escrita de todos os argumentos encontrados, com o objetivo de confrontá-los; exame de julgados exarados pelos Tribunais Superiores, Tribunal de Contas da União e de pareceres da Advocacia-Geral da União.
Em relação à estruturação do Trabalho, serão estudados, primeiramente, os princípios norteadores do regramento jurídico do direito administrativo, que possuem extrema relevância com o tema, em virtude da utilização de interpretações da lei à luz dos princípios administrativos com o fito de delimitar a intenção do legislador na concessão da amplitude dos efeitos da suspensão temporária.
A Segunda Seção cuidará das bases jurídicas que possibilitam a aplicação de sanções administrativas, visando atingir o interesse público, nos contratos em que a Administração celebra com os administrados. O segundo capítulo irá abordar também as demais espécies de sanções administrativas, delimitando e localizando a graduação da suspensão temporária.
Por fim, a Terceira Seção tratará da questão específica da interpretação da amplitude da dos efeitos da punição no âmbito do Poder Judiciário, da Advocacia-Geral da União e do Tribunal de Contas da União. Atingindo, consequentemente, o objetivo do trabalho, qual seja a verificação de qual a doutrina é mais bem utilizada e se existe a necessidade de uma inovação interpretativa e legislativa do tema.
1. A PRERROGATIVA EXORBITANTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
O Direito, por ser um fenômeno social, está sujeito às constantes transformações da sociedade, que podem ter caráter político, cultural, econômico, dentre outros. Assim, nenhum instituto jurídico nasce acabado e permanece puro por muito tempo. Na verdade, todos os elementos do Direito são frutos de uma evolução histórica e nunca estão completamente prontos, se encontram sempre em processo de aperfeiçoamento, adaptando-se aos valores cultuados pela sociedade vigente.
A sanção administrativa de suspensão do direito de licitar segue o mesmo raciocínio. Criada como mais um mecanismo de defesa do interesse público, percebe-se que sua interpretação não é uniforme, causando dificuldades jurídicas que impulsionam a sociedade a clamar por uma segurança jurídica e consequentemente mudança de entendimento.
1.1. ORIGEM HISTÓRICA
Nesse introito, indispensável a abordagem, ainda que de forma superficial, da evolução acerca da relação entre o Estado e seus administrados, da organização política do Estado Moderno, pois é a partir da análise das mudanças que ocorreram no decorrer histórico, da referida interação, que se percebe a razão de a Administração utilizar-se de institutos jurídicos, em especial a aplicação de sanções administrativas aos administrados que de alguma maneira descumprem os regramentos jurídicos, para assegurar a estabilidade social.
É justamente no âmbito da necessidade da manutenção da estabilidade social que se inicia a pequena análise das mudanças históricas desencadeadas no percurso da relação supramencionada, pois, conforme serão observadas, as transformações que ocorreram forma de o Estado atuar foram desencadeadas e inspiradas a partir dos descontentamentos sociais.
Inicialmente, insta ressaltar que o foco da presente análise não será apontar a origem da organização Estatal, mas sim fazer uma apanhado genérico das mudanças governamentais que ocorreram a partir do governo monárquico, que se baseava em um poder totalitário e absoluto, nesse período histórico que ficou amplamente conhecido como a era absolutista, o modelo de governabilidade estava focado nos poderes de um monarca que assumia a personalidade do Estado e comandava todos os administrados com fulcro na sua vontade[2].
Percebe-se que, durante este período, não existiam regramentos basilares que regulamentassem as relações entre o Estado e os particulares. Essa insegurança e as constantes ações desarrazoadas do Rei levaram a população, insatisfeita com as desigualdades, a um ponto de descontentamento tão elevado que resultou nas revoltas que acarretaram na retirada do poder do monarca.
Buscava-se, naquele momento, uma autonomia em relação aos mandamentos do rei, o objetivo da população insatisfeita era a diminuição dos poderes do governante. Um exemplo clássico de tamanho poder foi o Rei Luís XIV, o “rei-sol”, que proferiu a famosa frase “O Estado sou eu”.
Ademais, nesse período de libertação o ideal liberal-democrático foi amplamente divulgado, que resultou na necessidade de se elaborar uma codificação que disciplinasse as estruturas do poder do Estado, ou seja, ficou consagrado neste momento de revolução, e saída do domínio monárquico, a necessidade de controlar os poderes da Administração Pública[3].
Nesta senda, foi idealizada a tripartição das responsabilidades estatais, como forma de diminuir a concentração de poderes. Consagrou-se, também, o sistema de freios e contrapesos em virtude dessa tripartição de atribuições. Além disso, pode-se destacar que as regras basilares, responsáveis por delimitar a convivência humana, emanavam dos representantes do povo e consubstanciavam-se na pequena intervenção do Estado na vida particular, reflexo das atrocidades realizadas em nome do monarca[4].
Entretanto, em meio a mais descontentamentos sociais, dessa vez oriundos da insegurança social advinda da inatividade do Estado, que deixou os particulares livres e sem o devido suporte estatal, os administrados se rebelaram contra aqueles que detinham o poder, pois a burguesia dominadora explorava de forma desumana o proletariado, em decorrência da liberdade mercantil.[5]
Mais uma vez, percebe-se que o descontentamento social dá causa ao clamor por mudanças na relação do Estado para com seus administrados. A classe trabalhadora, então, protestou por mudanças e pela intervenção do Estado, para que este atuasse com maior vigor para a proteção dos administrados mais necessitados, zelando pelo bem estar social. Entretanto, ao contrário do período absolutista, a intervenção Estatal não se deu de forma agressiva, mas sim ocorreu em pontos chaves, capazes de garantir a dignidade humana para todos, transformando, assim, o Estado em um mero zelador da sociedade, com obrigações de intervir apenas quando necessário[6].
É a partir dessa concepção que se deve analisar as sanções administrativas, pois essa nova realidade estatal trouxe a necessidade da existência de serviços básicos que devem ser ofertados pelo Estado.
1.2. ANÁLISE PRINCIPIOLÓGICA
Evoluindo no estudo do instituto jurídico da sanção administrativa de suspensão temporária do direito de licitar, imprescindível o estudo do regramento normativo da administração pública, ou seja, antes de adentrar na temática das sanções, demonstra-se necessário observar o regime jurídico que dá o aporte para a aplicação no caso concreto das sanções disciplinares.
Nesse diapasão, a partir do estudo doutrinário, pode-se afirmar que as sanções estão inseridas no regime jurídico do direito administrativo que possui normas e princípios específicos do âmbito de atuação da administração. Celso A. B. de Mello[7] enuncia em sua obra que o regime jurídico do direito administrativo, inserto no direito público, se construiu em função de dois princípios principais, que dão base para os demais princípios relativos à administração pública, quais sejam o Princípio da Supremacia do Interesse Público e o Princípio da Indisponibilidade do Interesse Público.
Preliminarmente, faz-se necessário destacar o posicionamento de José Afonso da Silva[8] que conceitua os princípios como sendo expressões que exprimem a noção de ‘mandamento nuclear de um sistema’. O referido doutrinador aponta, ainda, a possibilidade de os princípios comporem o regramento jurídico positivamente, ou seja, explicitamente inclusos no texto legal.
Entretanto, embora não faça parte do rol dos princípios explícitos, a supremacia do interesse público é entendida como sendo o princípio norteador de todo o sistema administrativo, por isso, diz-se que todos os atos do agente público devem carregar o objetivo finalístico de consagrar o interesse público e caso o administrador atue com interesses obscuros que não se coadunem com o cerne do princípio desse postulado, pode-se considerar que aqueles atos são inválidos.
No entanto, ressalte-se que apesar de possuir tamanha importância, não se pode identificar a incidência direta deste princípio em todos os atos da administração, Marcelo Alexandrino[9] ensina que o mencionado princípio apresenta-se com maior clareza, somente, quando a Administração atua utilizando-se do poder de império, ou seja, quando o Estado utiliza-se de sua posição dominante para criar imposições e restrições à atividade particular.
Nesse toar, pode-se afirmar, preliminarmente, que a supremacia do interesse público é um dos principais argumentos que corroboram para a existência das sanções administrativas, dentre elas a suspensão temporária do direito de licitar.
Pode-se assegurar, portanto, que esse princípio do direito administrativo justifica a posição de superioridade que o Estado possui em relação a seus administrados em razão da necessidade de alguma força, superior ao interesse particular, existir para manter o interesse coletivo – o bem maior. Inegável perceber, também, a relação que este princípio possui com os princípios expressos do regime jurídico-administrativo, pois a impessoalidade, a eficiência, a legalidade, a moralidade e a publicidade estão intimamente ligadas à finalidade da Administração Pública, qual seja o bem comum dos administrados.
Lucas Rocha Furtado[10] ensina que a posição de superioridade do interesse público caracteriza-se como sendo o “exercício das prerrogativas públicas, prerrogativas que afastam ou prevalecem sobre outros interesses.”
Em contrapartida, imperioso destacar que apesar de a supremacia do interesse público primar pelo bem estar coletivo, o interesse dos administrados não pode ser interpretado como o interesse de somente um particular, conforme será visto adiante, através do estudo do princípio da impessoalidade. Existe uma enorme diferença entre o interesse de particular e o interesse público, nas palavras de Celso A. B. de Mello[11] o interesse público se apresenta como sendo a plenitude dos “interesses de cada indivíduo enquanto partícipe da Sociedade”.
Ademais, contrariando a opinião majoritária da doutrina administrativa, faz-se mister explicitar o posicionamento do doutrinador Gustavo Binenbjom[12] que opina no sentido de que o interesse público não pode ser interpretado como um princípio supremo que justifica a posição de superioridade do Estado. Para o referido pensador, não se pode colocar a supremacia do interesse público acima do direito do individual, que constitui a coletividade democrática formadora da nação.
Entretanto, o presente trabalho monográfico corrobora com o entendimento de que o Estado precisa intervir no âmbito particular para garantir o bem estar social, conforme se interpreta na leitura do apanhado histórico da evolução da relação entre o Estado e os administrados. Por isso, faz-se necessário utilizar-se do princípio da superioridade do interesse público para justificar as ações da Administração.
Além disso, não há o que se falar em conflito do princípio da supremacia com os princípios fundamentais da Constituição, pois apesar de existirem casos em que aparentemente os princípios estejam em conflito, conforme acertadamente ensina Gilmar Mendes[13], não existe embate ideológico entre os princípios, mas sim um momentâneo choque hermenêutico, conforme trecho que segue:
“não se faz necessária a formulação de regras de colisão, porque essas espécies normativas – por sua própria natureza, finalidade e formulação – parece não se prestarem a provocar conflitos, criando apenas momentâneos estados de tensão ou de mal-estar hermenêutico, que o operador jurídico prima facie verifica serem passageiros e plenamente superáveis no curso do processo de aplicação do direito”
De outra banda, os principais doutrinadores administrativos lecionam que o interesse público é dividido em duas facetas, o interesse primário e o secundário. De acordo com os ensinamentos do doutrinador italiano Alessi[14], o primeiro caracteriza-se pela atuação do estado visando assegurar o interesse da coletividade, ou seja, o interesse público propriamente dito que seria alcançado pelo estrito cumprimento da lei.
Enquanto que o segundo perfaz-se quando a administração atua, em nome próprio, com interesses privados, desde que essa atuação não vá de encontro aos interesses da sociedade[15]. Essa possibilidade de o administrador atuar de acordo com interesses privados sofre limitações em decorrência do princípio da legalidade.
Evoluindo na análise do sistema jurídico-administrativo, o segundo princípio apontado por Celso A. B. de Mello, base do regime jurídico da administração, é o princípio da indisponibilidade do interesse público.
Essa indisponibilidade pode ser externada, mais uma vez, no princípio da impessoalidade, pois o administrador não possui capacidade legal para dispor, sem a indicação legal, dos interesses públicos. Ou seja, o administrador, que atua como gestor do maquinário público, representa os interesses dos particulares no momento em que comanda e dá personalidade aos órgãos públicos. Pode-se exemplificar tal indisponibilidade com a impossibilidade de bens públicos serem dispendidos ao bel-prazer do administrador.
A doutrinadora Maria Di Pietro[16] esclarece que essa indisponibilidade traduz-se em forma de poder-dever, haja vista a impossibilidade de se olvidar do interesse público no momento das concretizações dos atos administrativos, ou seja, o administrador não pode deixar de realizar determinado ato que se caracterize como sendo indispensável para o interesse público. Consequentemente, a Administração, por intermédio do agente público, não pode deixar de punir o particular que descumprir as condições estabelecidas no contrato.
Vencidos os princípios norteadores do regime jurídico-administrativo, destaca-se os princípios básicos que se encontram expressos no texto constitucional que, além de constituírem as orientações interpretativas do regramento jurídico-administrativo, também possuem o condão de suplementar as lacunas existentes no ordenamento jurídico.
Destarte, utilizando-se dos ensinamentos do Doutrinador Alexandrino[17], pode-se afirmar que os princípios estabelecem diretrizes e dão sentido racional ao sistema jurídico, possibilitando uma compreensão lógica do arcabouço jurídico.
Nesta senda, são conferidas aos princípios características que possibilitam a determinação do alcance da norma daquele sistema. Pois, a produção de novos regramentos, o preenchimento de lacunas e as soluções de conflitos entre normas devem ser realizados de acordo com os ditames daqueles ideais principiológicos.
Por isso, assevera-se que os princípios oferecem parâmetros para a interpretação de determinado sistema jurídico, assim entende Lucas Rocha Furtado[18], cujo ensinamento indicou a utilização dos princípios sempre que se identificar o choque normativo.
Ademais, os princípios possibilitam a utilização dos regramentos principiológicos para preencher as lacunas normativas existentes, em virtude da incapacidade natural de o legislador antever, no momento da edição de leis, todas as possíveis situações fáticas que irão ocorrer e que necessitarão da regulação legislativa para a solução do fato, em razão das transformações e evoluções sociais que ocorrem a todo o momento.
Por isso, inegável perceber que no momento em que os regramentos positivados se mostrarem insuficientes, para determinar a melhor solução para o caso concreto, recorrer-se-á aos princípios para dirimir os problemas. Essa capacidade de preencher lacunas é essencial para atuação dos agentes públicos, uma vez que é obrigação do administrador atuar conforme os ditames legais e sempre que deparar-se com situação não contemplada pela norma positivada poderá se valer dos princípios para fundamentar suas decisões.
Os princípios explícitos do direito administrativo são encontrados no texto constitucional a partir da Constituição Federal de 1988[19]. Tal regramento estabeleceu que a administração pública direta e indireta, de todas as esferas da Administração, deve sempre observar e aplicar os princípios da Legalidade, da Impessoalidade, da Moralidade, da Publicidade e da Eficiência.
Ressalte-se que os princípios possuem, além das facetas já mencionadas, a capacidade de limitar a atuação do Estado, ou seja, eles estabelecem os parâmetros normativos que não podem ser olvidados para a atuação da Administração.[20]
Nesse toar, o Princípio da Legalidade pode ser interpretado como sendo aquele que exige a submissão dos atos do administrador à norma posta, ou seja, esse princípio, também conhecido como reserva de lei, exige que toda a ação do agente público seja pautada no que está estabelecido no texto legal.
A Constituição Federal indica que, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (Art. 5º, inciso II, da Constituição Federal)[21]. Assim, no direito privado o particular pode fazer tudo que não for proibido pelo regramento jurídico. Por outro lado, o princípio indica que para aqueles que detêm o controle da máquina estatal, seus atos são limitados pela existência de regramento permissivo.[22]
Ou seja, com base no direito administrativo as ações do administrador são limitadas e moldadas pela subordinação de seus atos ao que está estabelecido em Lei. O administrador atua, portanto, secundum legem[23].
Assim, no momento em que o administrador atua subordinando seus atos ao texto legal, pode-se afirmar que o princípio da legalidade foi interpretado estritamente – resquícios da proteção dos administrados contra o governo tirano absolutista – onde todo o ato do administrador deve estar positivado. Entretanto, insta ressaltar que nem sempre o ato que foi cumprido de acordo com os ditames legais pode ser considerado válido, haja vista a possibilidade de práticas não razoáveis.
Portanto, a interpretação do princípio da legalidade evoluiu para abarcar mais duas características básicas. A legalidade, portanto, evolveu para ser entendida em um primeiro momento como legitimidade, onde as ações do Estado não estão pautadas somente de acordo com o texto legal, mas também visando garantir a consolidação dos princípios da moralidade e a finalidade pública. Em seguida, a legalidade englobou a ideia de juridicidade, na qual se considera legal o ato administrativo que se vincula à lei e a todo o ordenamento jurídico.[24]
Outro importante princípio, abalizador das atividades da administração, é o da Impessoalidade, que possui diversas formas de interpretação. O doutrinador Lucas Rocha Furtado[25] indica que são 3 (três) os aspectos do princípio, quais sejam o aspecto da isonomia, o aspecto do interesse público e o aspecto da imputação do ato.
Destarte, pode-se afirmar que o princípio do direito administrativo da impessoalidade indica que os atos do Estado não podem objetivar conceder privilégios a um particular ou a um grupo específico. Pois, deduz-se do princípio da isonomia que todos são iguais perante a lei. A impessoalidade, portanto, atua como um instrumento deste poder isonômico que visa impedir o tratamento diferenciado que pode ser concedido a alguns particulares.
Outro prisma da interpretação do referido postulado é identificado no interesse público do ato administrativo, já que o administrador não pode atuar de acordo com seus interesses pessoais e todo ato administrativo necessita concretizar e obedecer aos ditames do princípio da supremacia do interesse público.
Por fim, retira-se do princípio da impessoalidade a possibilidade de ofertar proteção ao agente público, na medida em que os atos administrativos não são vinculados ao agente público, mas sim identificados por terem sido emanados do órgão da administração. Essa imputação do ato administrativo à Administração evita com que o agente público deixe de realizar suas funções, com receios de imputação direta de responsabilidade por seus atos ou por perseguições em razão do que fora realizado.
Insta ressaltar que não obstante a impessoalidade e a não imputação do ato ao agente, caso este venha a cometer uma infração ou em decorrência de suas ações e omissões algo aconteça que caiba punição, o agente poderá sofrer uma ação regressiva por parte da administração.
De outra banda, o referido princípio tem o escopo de evitar a autopromoção do agente público através das realizações do Estado que foram concretizados por ele[26]. Outrossim, Maria Sylvia de Pietro indica que o referido princípio assegura, também, a validade do ato administrativo, mesmo que este tenha sido realizado por autoridade “irregularmente investido no cargo ou função”.[27]
Por outro lado, percebe-se a intenção do legislador, ao afirmar expressamente a moralidade como um princípio norteador da administração pública, de complementar os princípios da legalidade e da impessoalidade. Pois, não basta somente que o ato administrativo seja impessoal ou que esteja dentro da legalidade estrita, a administração deve atuar respeitando o ordenamento jurídico como um todo.
O princípio da moralidade administrativa não pode ser encarado de igual maneira à moralidade comum que emana dos administrados, que foca na dicotomia bem x mal, o princípio da moralidade administrativa remete ao sentido de moralidade jurídica[28], que é observada no momento em que o ordenamento jurídico é corretamente obedecido. Além disso, o que é moralmente correto para o particular não significa ser moralmente correto para os agentes públicos. Portanto, a moralidade administrativa está intimamente ligada ao gerenciamento do Poder Público e à atividade do agente púbico no exercício de suas funções.
Coadunando-se com o entendimento ao norte, o professor Marcelo Alexandrino28 aponta que “o princípio da moralidade torna jurídica a exigência de atuação ética dos agentes da Administração Pública”.
Ainda de acordo com os ensinamentos do referido doutrinador, é possível invalidar (tornar nulo) os atos administrativos que porventura venham a ferir a moral jurídico- administrativa. A exigência da moralidade administrativa nos atos realizados pelos agentes públicos está ligada à ideia da necessidade de o Estado – na pessoa do agente público, que confere personalidade aos componentes da Administração – possuir em seus atos administrativos vinculação à probidade administrativa e à boa-fé.
Acerca do princípio da publicidade, destaca-se a necessidade de os atos da administração serem cristalinos e públicos. Ou seja, o poder público deve ser transparente e oferecer meios acessíveis para sociedade fiscalizar as ações do Estado. Esse princípio pode ser ligado à necessidade de a população possuir meios de controle sob o Estado, em decorrência dos abusos de poder que foram cometidos durante o período absolutista.
Além disso, o Princípio da publicidade está intimamente ligado com o princípio democrático. Lucas Rocha ensina que é direito da população e dever do estado divulgar ou oferecer mecanismos para que o administrado obtenha toda e qualquer informação, ressalvados os casos de sigilo necessário[29].
Ele aponta, ainda, duas conclusões oriundas da interpretação do texto constitucional que foi abaixo transcrito, quais sejam a impossibilidade de o agente público identificar com precisão qual informação é sigilosa e qual informação pode ser acessada[30]. Pois, a prerrogativa de declarar que determinada informação possui conteúdo sigiloso é oriunda da Lei. Além disso, o sigilo só pode ser declarado para proteger informações sensíveis que possam afetar a segurança da sociedade e do Estado, que afetem a intimidade de um particular e aquelas vão de encontro ao interesse social.
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LX – A lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem;”
Por fim, o princípio da eficiência, inserido no regramento constitucional através da Emenda Constitucional nº 19/98, consagra o entendimento de que o administrador deve atuar de forma eficiente, ou seja, com presteza, perfeição e rendimento funcional, de forma a consolidar a concepção de Administração Pública Gerencial.
A concepção da Administração Pública Gerencial é abordada na obra de Marcelo Alexandrino[31] como um aspecto da doutrina do estado mínimo, que se caracteriza pela mínima intervenção do estado na sociedade. Uma vez que, apesar de se primar pela mínima intervenção estatal, conforme identificado no introito deste trabalho, ela se faz necessária. Por isso, o princípio da eficiência aduz que essa intervenção mínima deve atingir o maior grau de eficiência possível, concretizando, assim, o objetivo da Administração Pública Gerencial, qual seja a aproximação do modelo de administração do Estado do modelo das organizações privadas.
Impossível não identificar que, não obstante o intuito de proteger o interesse público, o modelo de gestão da administração pública possui uma enorme gama de burocracia e contratempos que resultam em um engessamento do serviço público. O princípio da Eficiência tem o escopo de reduzir os entraves da burocracia, sem olvidar a legalidade, a impessoalidade e os demais princípios e regramentos do regime jurídico.
A doutrinadora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[32] leciona que o princípio da eficiência possui duas características principais, que derivam do Plano Diretor da Reforma do Estado que foi elaborado em 1995.
A primeira interpretação deste princípio, no direito administrativo, diz respeito à maneira com que o administrador deve exercer suas atividades, pois à luz do referido princípio, espera-se que o agente público atue e desempenhe suas funções da melhor maneira possível, com o intuito de maximizar os resultados dos atos almejados em decorrência de sua função.
O segundo aspecto deste princípio é percebido no próprio maquinário estatal, em sua forma organizacional e estrutural, pois se exige do Estado uma organização capaz de contribuir positivamente na consolidação dos serviços públicos. Assim, os objetivos – interesse público – do Estado poderão ser alcançados de maneira mais eficaz.
O doutrinador constitucional Alexandre de Moraes[33] define o princípio da eficiência da seguinte maneira:
“aquele que impõe à administração publica direta e indireta e aos agentes a persecução do bem comum, por meio de exercício de suas competências de forma imparcial, neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia, e sempre em busca de qualidade, primando pela adoção de critérios legais e morais necessários para a melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdícios e garantir-se uma maior rentabilidade social.”
Dessa forma, conclui-se que o princípio da eficiência visa à máxima efetividade dentro do reduzido grau de intervenção do estado, com o intuito de atingir os objetivos estatais de maneira mais rápida, simples e econômica. Possibilitando, assim, o atingimento do melhor custo benefício nas mais diversas operações realizadas pela administração.
Além disso, a eficiência reflete-se na atuação e organização do estado, na medida em que o resultado final da atuação estatal deve estar sempre relacionado à busca da qualidade atingida através da menor utilização possível do tempo e do dinheiro público.
Neste toar, excetuando-se os princípios anteriormente mencionados, que se caracterizavam por estarem positivados no texto constitucional e serem oriundos dos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, faz-se necessário mencionar que existem diversos outros princípios norteadores do direito administrativo brasileiro. Entretanto, faz-se menção especial aos princípios a seguir: Segurança Jurídica; Razoabilidade; Contraditório/ampla defesa; e a Igualdade.
Embora em um primeiro momento o princípio da Igualdade possa ser confundido com o princípio da impessoalidade, o primeiro difere do último no sentido que aquele tem como característica principal a igualdade isonômica de todos, conforme a máxima “todos são iguais perante a lei”. Pois bem, a igualdade isonômica refere-se à igualdade nas mesmas condições, refletindo, assim, no tratamento desigual em virtude do grau de desigualdade. Pode-se afirmar, portanto, que não existe confusão com o princípio da impessoalidade que, por sua vez, consagra a ideia de que o Estado não atua com o intuito, seja de prejudicar ou beneficiar particulares, que não represente o interesse público.
O princípio da razoabilidade, por sua vez, é mais um princípio com enorme relevância para o presente estudo, haja vista a crescente cobrança jurisprudencial do respeito aos princípios administrativos que coíbe principalmente os excessos na prática de atos administrativos, inclusive os atos realizados no âmbito do direito administrativo sancionador. Ressalte-se que o Supremo Tribunal Federal utiliza-se abertamente do princípio da razoabilidade, conforme será visto no decorrer do presente trabalho, para o controle de constitucionalidade das leis.
O professor Lucas Rocha Furtado[34] leciona que este princípio tem o fito de verificar a legitimidade dos atos realizados pelos administradores, pois “a razoabilidade se apresenta como mecanismo de controle da discricionariedade administrativa e pode ser representada pela seguinte expressão: adequação entre meios e fins”.
Assim como a moralidade, a razoabilidade busca controlar as ações do Estado, no caso concreto, utilizando-se do plano abstrato dos princípios da moralidade, da razoabilidade e da proporcionalidade. Essa última, segundo a maioria da doutrina, apresenta-se como um aspecto do princípio da razoabilidade[35].
Ademais, no tocante ao princípio da Segurança Jurídica, destaca-se que o intuito do princípio recai sobre a necessidade de se existir certa previsibilidade dos atos administrativos, sem a preocupação com mudanças que deixem o particular, e até mesmo os próprios agentes públicos, sem segurança de que o que está sendo realizado irá perdurar e não será alterado.
Nesse quesito, Di Pietro[36] afirma que a inclusão do presente princípio no ordenamento se deu em virtude da necessidade de proteção dos particulares contra a aplicação retroativa de leis posteriores ao acontecimento do fato. Ou seja, impede-se que seja aplicado entendimento que surgiu após o ato administrativo ter se desencadeado.
De outra banda, outro princípio intrinsicamente relacionado com o tema do presente trabalho monográfico são os princípios do contraditório e da ampla defesa, que se encontram positivados na Constituição Federal no inciso LV do artigo 5º, quando afirma o legislador, ser direito do acusado, em sede de processo administrativo, a possibilidade de se defender com os meios e recursos cabíveis Enquanto que o contraditório apresenta-se como a igualdade que as partes possuem na possibilidade de responderem aos “ataques” da parte contrária.
Isto posto, inegável que as sanções administrativas, em especial a suspensão temporária, só poderão ser impostas após todo o decurso do devido processo legal que garanta a ampla defesa e o contraditório.
1.3. CLÁUSULAS EXORBITANTES
Com base no exposto, acerca da necessidade de o Estado continuar a intervir na vida da coletividade e dos princípios administrativos que darão luz ao tema em tela, adentra-se nos mecanismos utilizados pela Administração que possibilitarão a utilização das sanções. Para tanto, faz-se necessário começar o percurso com o conceito de serviço público.
Através da leitura do artigo 175, da Constituição Federal de 1988[37], percebe-se que seu caput indica a necessidade de o Estado ofertar o serviço público para a coletividade, in verbis:
Art. 175. Incube ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
Insta ressaltar que não há disposição legal que conceitue o serviço público, por isso não se encontra na doutrina um conceito pacificado. Porém, grande parte dos doutrinadores busca definir o serviço público através do critério formal, que identifica o serviço público em razão do regime jurídico que dá sustentação à atividade[38], assim, os serviços públicos podem ser conceituados como sendo aqueles que são ofertados obedecendo aos regramentos inclusos no direito público.
De outra banda, nota-se que em decorrência da teoria da intervenção mínima, da impossibilidade do Estado estar sempre presente em todo território nacional ou da necessidade de fomentar a economia de determinada região, nem sempre a máquina pública pode estar presente na linha de frente, atuando na coletividade. Acarretando em uma deficiência no fornecimento dos serviços públicos normalmente ofertados pela Administração e que são necessários à vida digna do ser humano.
Essa insuficiência, ou melhor, a não onipresença da mão do Estado, relaciona-se com a necessidade de contratar, com os próprios administrados, pessoas capazes de, em nome do Poder Estatal, fornecer o suporte necessário aos serviços públicos.
Ou seja, sempre que o serviço público não puder ser ofertado pelo Estado diretamente, ou quando este achar conveniente abster-se de participar diretamente do fornecimento de algum serviço público, a Administração realiza operações legais para contratar um particular, através de permissões e concessões, que irá atuar no lugar do Estado ofertando algum tipo de serviço.
Entretanto, essa contratação não pode ocorrer de qualquer forma, a Administração deve obedecer aos princípios administrativos anteriormente mencionados, principalmente o princípio da legalidade e da impessoalidade. Dessa forma, o Estado organiza um certame com fulcro de identificar o administrado capaz de fornecer o melhor serviço, em nome da Administração, concretizando sempre a supremacia do interesse público.
Esse certame, fase anterior e necessária à contratação, é chamado de Processo Licitatório. Cristalino perceber que a licitação não ocorre somente nos casos anteriormente mencionados (para a contratação de particular que irá fornecer um serviço), mas deve ocorrer, via de regra, sempre que a Administração Pública for exercer alguma atividade com cunho econômico para manter em funcionamento o maquinário público.
A doutrina identifica como sendo objetos do certame licitatório as obras, os serviços, as compras, as vendas, as concessões, as permissões e as locações de bens públicos. Consoante com o Art. 2º da Lei Federal nº 8.666/93, in verbis:
Art. 2º. As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.
O procedimento licitatório foi concebido com base em um sistema sob a égide dos princípios basilares do direito administrativo, capaz de conduzir a Administração a realizar a melhor contratação possível, utilizando-se, portanto, dos princípios anteriormente citados para obter o particular mais apto a oferecer a melhor proposta, capaz de consolidar o princípio da eficiência, que, consequentemente, irá atingir os interesses públicos em questão. Esse objetivo finalístico é evidenciado no texto do art. 3º da Lei nº 8.666/93, in verbis:
“Art. 3º. A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos”. (grifo nosso)
Di Pietro[39] indica que a licitação é um procedimento administrativo, portanto, possui atos preparatórios únicos que juntos formam a licitação.
De igual maneira, Celso A. B. de Mello[40] divide o procedimento administrativo licitatório. Ele ensina que o certame possui duas fases, a interna e a externa. A primeira fase caracteriza-se por trazer elementos que irão dar as delimitações e regramentos da competição. Ou seja, é nessa fase que serão realizados os atos que irão ditar as regras e condições do instrumento convocatório. Como, por exemplo, a solicitação à autoridade competente, à confecção de projeto básico ou termo de referência, estimativa de preços e outros.
Em contrapartida, na segunda fase, que se caracteriza por ser a fase externa, o procedimento administrativo tem como ponto de partida a aprovação da fase interna pelo órgão de assessoria jurídica e se caracteriza por ser o certame propriamente dito, onde serão utilizados os critérios pré-estabelecidos para a escolha da melhor proposta.
Em seguida, após a escolha da melhor proposta, de acordo com a modalidade e o tipo de licitação, a administração iniciará o processo de contratação do particular que se sagrou vencedor do certame.
Entretanto, insta ressaltar que nem sempre é preciso utilizar-se do processo licitatório para o início do processo de contratação. Existe a possibilidade de a administração dispensar a utilização da licitação, nos casos previstos em Lei que possibilitam a não utilização da licitação, quais sejam quando a licitação é inexigível, dispensada ou dispensável. Todavia, apesar de não ser necessário passar pelo crivo licitatório, a administração precisa apresentar o pleito ao órgão de assessoria jurídica para confirmar que o caso apreciado coaduna-se com as exceções legais.
Esses contratos realizados com a Administração diferem dos contratos comuns – entre particulares –, em razão de aqueles estarem insertos no regime jurídico-administrativo, portanto, salvaguardados pelo direito administrativo e normas do direito público. Porém, ressalta-se que eles continuam possuindo características afins, como por exemplo, o conceito de que ambos são acordos de vontades com formação bilateral, não se fala em uma imposição do Estado para que o particular aceite o contrato.
Imperioso destacar que, em virtude dos princípios da legalidade e da indisponibilidade do interesse público, os contratos administrativos devem estar de acordo com a legislação vigente e possuir objetos lícitos e possíveis.
Outrossim, nem todos os contratos celebrados pela Administração Pública são envoltos pelo regime jurídico-administrativo. A doutrina[41] dissocia os contratos administrativos dos contratos da administração. Aquele tipo possui regência no direito público e é firmado quando a Administração atua como Estado, em posição de superioridade ao particular. Possuindo, portanto, o objetivo finalístico de atender aos interesses públicos.
O segundo tipo, os contratos da administração, caracterizam-se pela atuação do Estado como um particular qualquer, sem fazer jus a sua posição de superioridade. Esses tipos de contrato são, consequentemente, regidos pelo direito privado.
De outra banda, não obstante a todo o arcabouço protecionista existente para que a Administração contrate um particular – licitação –, o Estado não pode deixar de manter um rígido controle em relação ao contrato celebrado.
Nesta senda, incontroverso perceber que, alicerçado nos princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público, o Estado utiliza-se de prerrogativas especiais para exercer um controle contratual mais eficiente, com o fito de garantir com que o contrato consiga atingir seu objetivo, sem ensejar prejuízos à Administração.
Essas prerrogativas especiais são chamadas de cláusulas exorbitantes, pois dão poderes à Administração que normalmente não existem nas relações contratuais entre particulares[42]. Ou seja, o Estado utiliza-se de sua posição de superioridade para garantir a supremacia do interesse público na execução do contrato.
No entendimento da doutrinadora Maria Sylvia Di Pietro[43], essas prerrogativas extraordinárias caracterizam-se por serem:
Aquelas que não seriam comuns ou que seriam ilícitas em contrato celebrado entre particulares, por conferirem prerrogativas a uma das partes (a Administração) em relação à outra; elas colocam a Administração em posição de supremacia sobre o contratado.
Portanto, pode-se perceber que o legislador conferiu à Administração poderes especiais para serem utilizados na proteção dos interesses públicos primários, durante a execução de contratos administrativos com os particulares, quando elaborou o artigo 58 da Lei nº 8.666/93, in verbis:
“Art. 58. O regime jurídico dos contratos administrativos instituído por esta Lei confere à Administração, em relação a eles, a prerrogativa de:
I- modificá-los, unilateralmente, para melhor adequação às finalidades de interesse público, respeitados os direitos do contratado;
II- rescindi-los, unilateralmente, nos casos especificados no inciso I do art. 79 desta Lei;
III- fiscalizar-lhes a execução;
IV- aplicar sanções motivadas pela inexecução total ou parcial do ajuste;
V- nos casos de serviços essenciais, ocupar provisoriamente bens móveis, imóveis, pessoal e serviços vinculados ao objeto do contrato, na hipótese da necessidade de acautelar apuração administrativa de faltas contratuais pelo contratado, bem como na hipótese de rescisão do contrato administrativo.
§ 1o As cláusulas econômico-financeiras e monetárias dos contratos administrativos não poderão ser alteradas sem prévia concordância do contratado.
§ 2o Na hipótese do inciso I deste artigo, as cláusulas econômico-financeiras do
contrato deverão ser revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual”. (grifo nosso)
Ademais, cristalino identificar, após a leitura do artigo retro, que não seria razoável o Estado se utilizar de sua superioridade, nem do argumento do interesse público, para alterar unilateralmente contratos de cunho econômico-financeiros, como assim assevera o doutrinador Marcelo Alexandrino[44].
Dentre as cláusulas exorbitantes, também conhecidas como cláusulas derrogatórias, faz-se necessário focar na possibilidade de aplicação de sanções em decorrência da inexecução total ou parcial do contrato administrativo. Essa punição independe de decisão judicial, sendo obrigatório, entretanto, que o procedimento administrativo concretize os princípios da ampla defesa e do contraditório.
É nesse contexto que o presente trabalho mergulha na análise das sanções administrativas, oriundas das cláusulas exorbitantes, e essenciais para a manutenção da moralidade durante a execução do contrato administrativo. A Administração, então, utiliza-se das sanções, dentre elas a suspensão temporária de licitar e contratar com a Administração, com o intuito de infligir sanções em detrimento da inexecução total ou parcial do contrato firmado.
2. A SUSPENSÃO TEMPORÁRIA NO DIREITO ADMINISTRATIVO
Após realizar a análise da origem da intervenção estatal e dos princípios basilares do direito administrativo, que é pressuposto da prerrogativa extraordinária da administração nos contratos administrativos, é importante verificar a maneira pela qual a sanção administrativa de suspensão temporária é inserta no regime jurídico do direito administrativo.
Além disso, vale estudar as demais sanções administrativas com o intuito de compará-las à sanção em comento, para que se possa identificar a correta amplitude dos efeitos da suspensão.
2.1. CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS
As sanções administrativas são maneiras coercitivas pela qual o Estado se utiliza para manter a ordem e o bem estar social.
Conforme os apontamentos anteriores, o Estado é regido pelo regime jurídico- administrativo, uma espécie de codificação jurídica específica para dar norte às ações de governabilidade. Assim, pode-se frisar que as sanções administrativas emanam deste regramento jurídico.
Isso posto, cristalino perceber que o Direito Sancionador Administrativo origina-se em razão da necessidade de supervisionar a relação entre o Estado e o particular. Marcelo Alexandrino indica que “toda e qualquer pessoa está sujeita ao poder punitivo do Estado”[45].
Não obstante defender em sua obra que as punições administrativas oriundas da regulação contratual não se classificam como sanções administrativas, Fabio Medina Osório[46] define, utilizando-se da relação entre o Estado e o administrado, a sanção administrativa de forma genérica, englobando todos os tipos sancionatórios emanados do Poder Estatal:
“[…] um mal ou castigo, porque tem efeitos aflitivos, com alcance geral e potencialmente pro futuro, imposto pela Administração Pública, materialmente considerada, pelo Judiciário ou por corporações de direito público, a um administrado, jurisdicionado, agente público, pessoa física ou jurídica, sujeitos ou não a especiais relações de sujeição com o Estado, como consequência de uma conduta ilegal, tipificada em norma proibitiva, com finalidade repressora ou disciplinar, no âmbito de aplicação formal e material do Direito Administrativo.
Fábio defende que as sanções, objeto do presente trabalho monográfico, não são consideradas sanções administrativas, em razão de considerar que o intuito desse tipo de sanção reside, somente, na desconstituição da “situação jurídico-administrativa que havia se formado em favor do particular”[47]. Entretanto, tal entendimento não deve prosperar. Pois, inegável perceber que as sanções administrativas, presentes nas cláusulas contratuais e nos demais instrumentos licitatórios, são insertas no regime jurídico-administrativo e emanam da necessidade de o Estado punir o particular que descumpra as cláusulas contratuais. Dessa forma, a não realização do acordado contratualmente pode prejudicar a consolidação do interesse público.
Ademais, reproduzindo o pensamento de Fábio Medina Osório[48], essa prerrogativa punitiva não é exclusiva à Administração. Pois, o Poder Judiciário pode “de igual modo, aplicar essas medidas punitivas, desde que outorgada, por lei, a respectiva competência repressiva, na tutela de valores protegidos pelo Direito Administrativo”.
A partir de tal entendimento, pode-se fazer um contraponto ao pensamento do referido autor, quando este não reconhece as sanções, oriundas das cláusulas contratuais, como sendo um tipo de sanção administrativa. O último ensinamento do doutrinador evidenciou que são várias as medidas punitivas do Estado. Não sendo desarrazoado entender que as sanções oriundas das cláusulas exorbitantes são, de fato, sanções administrativas.
Pode-se identificar, ainda, que a raiz de tais instrumentos administrativos é o Poder Disciplinar do Estado. Marcelo Alexandrino ensina que o referido poder dá condições de a Administração Pública utilizar-se de maneiras coercitivas para punir os administrados que possuem algum vínculo com a administração – no estudo em comento, pode-se identificar esse vínculo como sendo o contrato (ou instrumento convocatório) firmado entre o particular e a Administração[49].
Outrossim, Alexandrino corretamente ensina que as sanções administrativas derivadas do Poder Disciplinar não são oriundas das sanções que são impostas aos agentes públicos, em decorrência da subordinação hierárquica. Ele indica que, embora possa existir sanção administrativa disciplinar em virtude do Poder Hierárquico, a sanção administrativa configurada como cláusula exorbitante – é vinculada ao Poder Disciplinar em virtude da existência do vínculo jurídico, entre o Estado e o particular, que precisa ser resguardado[50].
Por outro lado, não obstante estarem inseridas no âmbito do Direito Administrativo e, por esse motivo, vinculadas às regras e aos princípios norteadores da esfera administrativa, as sanções administrativas possuem uma estreita ligação com o Direito Público Punitivo. Conforme aponta Marçal Justen Filho[51]:
“Nenhum crime pode ser reconhecido e nenhuma penalidade pode ser imposta senão em virtude de lei. A Legalidade é instituto fundamental tanto do Direito Penal como do Direito Administrativo. Logo, não poderia deixar de reconhecer-se que também o Direito Administrativo Repressivo se submete ao dito princípio. Não se pode imaginar um Estado Democrático de Direito sem o princípio da legalidade das infrações e sanções.”
Desse trecho, pode-se entender que, além da necessidade da submissão do Direito Administrativo Sancionador ao princípio da Legalidade, esse instituto do regramento jurídico do direito está intimamente relacionado ao Direito Penal.
Corroborando com esse entendimento de Marçal Justen Filho, deve-se destacar o ensinamento de Edmir Netto[52] no momento em que ele afirmou que “a administração não pode ‘inventar’ penalidades, sendo lícito impor apenas aquelas que constam nas normas legais de regência dos contratos administrativos, como as acima citadas, em virtude do princípio constitucional da legalidade”.
Em contrapartida, Alexandrino[53] indica que existe uma diferença entre o poder disciplinar e o poder punitivo do Estado. Ou seja, apesar de estarem relacionadas, não se pode afirmar que as sanções penais são iguais às sanções administrativas. A primeira diferença é facilmente identificada, na medida em que cada uma está inserida em um regramento jurídico diferente. Além disso, a primeira é imposta por um órgão do Poder Judiciário.
Enquanto que a última, objeto de estudo do presente trabalho, é aplicada sem a necessidade de decisão judicial. Entretanto, em virtude da necessidade de observância aos princípios do acesso à justiça e da inafastabilidade da jurisdição, inegável que o Poder Judiciário pode rever as punições impostas no âmbito da Administração.
Imperioso destacar, de igual maneira, a necessidade de observância dos princípios do contraditório e da ampla defesa no momento da imposição da pena, sendo necessário, por conseguinte, a realização de um processo administrativo.[54]
Maysa Abrahão Tavares Verzola[55] indica outro fator característico que distancia a sanção administrativa do direito penal. A referida doutrinadora explicita que a sanção administrativa não é derivada de um fato típico de conduta antijurídica. Assim, enquanto que a sanção penal pune um delito penal, a punição administrativa tem por característica fundamental punir uma infração cometida no âmbito administrativo.
Ou seja, as sanções administrativas não são punições que visam cercear a liberdade do administrado, na medida em que possuem o propósito de punir, na esfera administrativa, a conduta reprovável do administrado que descumpriu total ou parcialmente o disposto no contrato anteriormente firmado, ou instrumento convocatório.
Insta ressaltar que essa diferenciação reflete na possibilidade de o administrado, ou o gestor público, sofrer repreensões nas 3 (três) esferas, quais sejam a Penal, a Administrativa e a Civil.[56] Além disso, outro fator que evidencia a diferença dos regramentos jurídicos é a impossibilidade de utilizar-se do remédio constitucional – mandado de segurança – para desconstituir uma sanção administrativa que foi concedida dentro dos limites legais e obedecendo o devido processo administrativo, conforme aduz o julgamento do Mandado de Segurança[57].
2.2. O REGIMENTO LEGAL DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS
Imperioso destacar que as sanções administrativas devem estar previstas em Lei[58]. Aliás, é tema pacífico na doutrina brasileira que o Poder Público só pode valer-se das sanções administrativas quando estas estiverem presentes nos instrumentos editalícios e nas cláusulas contratuais. Coadunando-se com o entendimento ao norte que indica a necessidade de submissão da aplicação das sanções ao princípio da Legalidade anteriormente abordado. Ou seja, é defeso ao gestor público criar sanções ou utilizar-se de sanções existentes, mas que não foram previstas nos regramentos editalícios e contratuais, para punir o particular que não honrou com o compromisso acordado.
No mesmo sentido podem ser encontradas decisões nos tribunais brasileiros, a exemplo da decisão da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça[59]que proferiu o seguinte acórdão:
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 282/STF. ITENS DO EDITAL. INVIABILIDADE DE EXAME. SÚMULA 05/STJ. LICITAÇÃO. RECUSA DE ASSINAR O CONTRATO ADMINISTRATIVO. MULTA. INVIABILIDADE DA APLICAÇÃO À FALTA DE PREVISÃO NO EDITAL. Não viola o artigo 535 do CPC, nem importa negativa de prestação jurisdicional, o acórdão que adota fundamentação suficiente para decidir de modo integral a controvérsia posta. A ausência de debate, na instância recorrida, sobre a matéria tratada nos dispositivos legais cuja violação se alega no recurso especial atrai, por analogia, a incidência da Súmula 282 do STF. A interpretação de cláusula de edital de licitação não enseja recurso especial. Aplicação analógica da Súmula 05/STJ. 4. Inviável a aplicação de penalidade ao adjudicatário que se recusa a assinar o contrato (Lei 8.666/93, art. 81) sem que ela tenha sido prevista no edital (art. 40, III, do referido diploma legal). 5. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, improvido” (grifo nosso).
Nesse toar, faz-se necessário abordar as espécies de sanções administrativas oriundas das cláusulas exorbitantes. Esses instrumentos punitivos estão positivados através dos artigos 86 e 87 da Lei Federal nº 8.666/1993[60] (a Lei de Licitações) e do artigo 7º da Lei Federal nº 10.520/2002[61] (a Lei de Pregões). São quatro as espécies de sanções administrativas da Lei de licitações, quais sejam a advertência, a multa, a suspensão temporária e a declaração de inidoneidade, conforme aduz o art. 87 do referido regramento, a seguir:
“Art. 87. Pela inexecução total ou parcial do contrato a Administração poderá, garantida a prévia defesa, aplicar ao contratado as seguintes sanções:
I- advertência;
II- multa, na forma prevista no instrumento convocatório ou no contrato;
II- suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV- declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior.”
Além dessas sanções do artigo 87, Marçal Justen indica que a rescisão unilateral do contrato firmado e a multa, em decorrência do atraso injustificado na realização das atividades contratuais, do artigo 86, ambas da Lei de Licitações, são tipos de sanção administrativa[62].
Acerca da Lei de Licitações, Ronny Charles indica que, apesar de o texto legal não prever objetivamente os critérios para a adoção das sanções administrativas, não se pode fugir da submissão aos princípios reguladores da atividade administrativa (legalidade como juridicidade) [63].
Nesse sentido, opinou o Superior Tribunal de Justiça – STJ no julgamento do Recurso Especial nº 914087/RJ[64], conforme trecho que se segue:
“DIREITO ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. INADIMPLEMENTO. RESPONSABILIDADE ADMINISTRATIVA. ART. 87, LEI 8.666/93. MANDADO DE SEGURANÇA. RAZOABILIDADE. Cuida-se de mandado de segurança impetrado contra ato de autoridade militar que aplicou a penalidade de suspensão temporária de participação em licitação devido ao atraso no cumprimento da prestação de fornecer os produtos contratados. O art. 87, da Lei nº 8.666/93, não estabelece critérios claros e objetivos acerca das sanções decorrentes do descumprimento do contrato, mas por óbvio existe uma gradação acerca das penalidades previstas nos quatro incisos do dispositivo legal. Na contemporaneidade, os valores e princípios constitucionais relacionados à igualdade substancial, justiça social e solidariedade, fundamentam mudanças de paradigmas antigos em matéria de contrato, inclusive no campo do contrato administrativo que, desse modo, sem perder suas características e atributos do período anterior, passa a ser informado pela noção de boa-fé objetiva, transparência e razoabilidade no campo pré-contratual, durante o contrato e pós-contratual. Assim deve ser analisada a questão referente à possível penalidade aplicada ao contratado pela Administração Pública, e desse modo, o art. 87, da Lei nº 8.666/93, somente pode ser interpretado com base na razoabilidade, adotando, entre outros critérios, a própria gravidade do descumprimento do contrato, a noção de adimplemento substancial, e a proporcionalidade. Apelação e Remessa necessária conhecidas e improvidas.”
De outra banda, imperioso destacar que o caput do artigo 87 utiliza-se da expressão “poderá aplicar”, para indicar a possibilidade de imposição de sanção. Entretanto, entende-se que a Administração não atua discricionariamente na imposição de punição, mas sim na escolha casuística de qual utilizar-se.
O doutrinador Ronny Torres ensina que “Embora o dispositivo fale em ‘poderá’, não se trata necessariamente de uma livre faculdade do administrador. Em virtude de a Administração ter o poder-dever de apurar eventuais práticas sancionáveis e aplicar as punições exigíveis, no interesse do serviço público”[65].
Outro doutrinador que corrobora com tal entendimento é Edmir Netto[66], que também se utilizada da expressão “poder-dever” para indicar a vinculação do agente público à necessidade de aplicação da sanção administrativa. Percebe-se, concretamente, essa indispensabilidade ao analisar os modelos em anexo, quais sejam, o modelo de Edital, de Termo de Referência e de Contrato administrativo.
O Tribunal de Contas da União – TCU já acordou no sentido de exigir que os agentes públicos obrigatoriamente apliquem as sanções administrativas. O referido Tribunal censurou aqueles que não efetuaram a devida apuração e consequente punição (TCU – Acórdão nº 2.470/2006 – 1º Câmara)[67]
Ademais, faz-se mister indicar que o texto legal do artigo 88, da Lei de Licitações, reproduz ações reprováveis pela administração, que não estão vinculadas à execução das cláusulas contratuais. Entretanto, importante ressaltar que, apesar de não serem sanções aplicadas à inexecução contratual, a previsão de se aplicar a suspensão temporária e a declaração de inidoneidade, nas hipóteses previstas no artigo 88, deve estar precedida da existência de um vínculo jurídico especial entre a Administração e os administrados[68].
Outrossim, outro tópico que merece atenção é a possibilidade, concedida pelo §2º do artigo 87 da lei de licitações, de as sanções de advertência, suspensão temporária e declaração de inidoneidade serem aplicadas conjuntamente com a aplicação da multa do inciso II do referido artigo. Além dessa possibilidade, está previsto no artigo 7º, da lei de pregão, a igual possibilidade de cumulação com a multa do artigo 87.
A concretização dos princípios da ampla defesa e do contraditório possibilita identificar outro ponto de convergência entre as espécies de sanção administrativa. Na medida em que os particulares, insatisfeitos com a imposição das punições, podem interpor recurso no prazo de 5 (cinco) dias úteis para todos os casos de sanção administrativa, exceto a declaração de inidoneidade. Ressalte-se que esse recurso deve ser encaminhado à autoridade superior, daquela que aplicou a pena[69].
2.3. AS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS EM ESPÉCIE
Por fim, cabe realçar o entendimento de que o legislador, responsável pela edição da lei de licitações, tinha por objetivo atingir a graduação das sanções. Ou seja, as sanções por ele positivadas, possuem uma “hierarquização”. Pois, é cristalino perceber que a advertência tem efeito reduzido em relação com a multa, que por sua vez é mais branda que a suspensão temporária que deve ser mais amena que a declaração de inidoneidade. Coadunando com tal entendimento, pode-se citar o ensinamento de Ronny Charles[70] ao indicar que será utilizado o princípio da proporcionalidade para a aplicação da pena.
De mesmo modo ensinou Marçal Justen Filho[71] ao frisar que “não é possível colocar em um mesmo patamar a sanção de advertência e a declaração de inidoneidade”. Assim, imperioso destacar as sanções administrativas em espécie com o fulcro de perceber esse caráter gradual da sanção administrativa.
2.3.1. A ADVERTÊNCIA
Partindo do pressuposto de que o legislador, no momento da criação da Lei de licitações, primou pela escala de gravidade das penalidades, cristalino notar que a sanção administrativa de advertência, positivada no inciso I do artigo supra, é a punição que possui menor grau de intervenção do Estado.
Marçal Justen Filho[72] indica que a sanção de advertência, embora branda, possui um grande importância. Pois, em razão do descumprimento contratual, o gestor contratual passará a fiscalizar o cumprimento obrigacional de maneira mais atenta e minuciosa.
De outra banda, Marçal Filho ao criticar a lacuna legislativa existente na Lei 8.666/93, indica que a advertência deveria possuir outra característica básica, qual seja a punição reincidente. Isto é, a advertência deveria vir acompanhada de uma notificação ao administrado acerca da impossibilidade de agir da mesma maneira, sob pena de aplicação de sanção mais gravosa. Entretanto, insta ressaltar que a Lei é silente quanto ao procedimento a ser prosseguido no momento de reincidência do particular.
2.3.2. A MULTA
Acerca da sanção prevista no inciso II do artigo 87 da Lei federal nº 8.666/93, pode-se frisar que é permitida sua aplicação concomitantemente com as demais sanções, conforme aduziu o parágrafo segundo do referido artigo.
Além do mais, no tocante à falta de indicação normativa acerca das condutas ensejadoras da sanção de multa, faz-se mister destacar que, embora seja um critério discricionário da administração, as multas devem estar previstas nos instrumentos do certame. Acentua-se que essa discricionariedade limita-se à escolha da sanção que será aplicada no caso concreto.
Essa compreensão acerca da necessidade de previsão da multa, nos instrumentos contratuais e norteadores da licitação é compartilhada por Ronny Charles Lopes que indica, ao comentar a Lei de licitações, que a ausência da previsão impede a imposição da sanção[73].
De outra banda, frise-se que a multa prevista no artigo 87 da Lei de Licitações difere da multa regulamentada no artigo 86, do mesmo diploma legal, em virtude desta última estar associada à demora no cumprimento contratual. Não olvidando da necessidade de estar, igualmente, prevista nos instrumentos convocatórios.
Sobre o tema, Marçal Justen[74] afirma que a primeira sanção imposta ao particular que atrasar injustificadamente a prestação contratual, deve ser a multa do artigo 86. No mesmo trecho, Marçal expõe que além da necessidade de previsão no instrumento contratual a sanção deve estar igualmente prevista no instrumento convocatório, com fito de delinear as condições de cobrança da multa.
Ademais, a título de curiosidade, a aplicação da multa moratória do artigo 86, não impede que a administração rescinda o contrato em decorrência do atraso injustificado.
Por outro lado, o §2 do artigo 86 indica que o montante a ser cobrado em virtude da multa deverá ser retirado, primeiramente, da garantia apresentada na assinatura contratual. Sendo defeso a aplicação de multa através do desconto dos valores ainda devidos ao contratado. Todavia, insta acentuar que Marçal Justen discorda desse entendimento[75]. Utilizando-se do art. 80 da lei de licitações para justificação, ele interpreta que o texto legal do inciso IV, do artigo supracitado, indica que a execução da garantia só irá ocorrer depois de descontados os valores devidos pela Administração. Dessa forma, somente utiliza-se do exarado no inciso III, do artigo 80 da lei 8.666/93, após a retenção dos valores devidos pela administração após a retirada da garantia.
Ressalte-se que a utilização da garantia para pagamento das multas não se dá instantaneamente. Caso seja necessária a utilização da garantia, um processo judicial deverá ser instaurado. Além disso, as disposições contratuais que indicam a possibilidade de execução da garantia não são consideradas títulos executivos extrajudiciais – instrumentos que proporcionariam a execução direta – para os entes da Administração pública indireta[76].
Marçal Filho indica, ainda, que deverá ser instaurado um processo comum para que a sentença deste configure um título executivo judicial para que em seguida, durante a fase de execução, a garantia real possa ser executada. Todavia, caso o contrato tenha sido firmado com órgão da Administração direta, o processo já irá iniciar na fase de execução. Pois, nesses casos, o instrumento contratual equivale a um título executivo extrajudicial.
Na escala gradual de aplicação das sanções administrativas, a ordem lógica das sanções indicaria a análise da Suspensão temporária. Entretanto, em razão do aprofundamento necessário no tema da amplitude dos efeitos da sanção de suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, será abordado, a seguir, a Declaração de inidoneidade (punição mais severa que a prevista no inciso III, art. 87, da lei de licitação) e o impedimento de licitar e contratar com a Administração (oriunda da Lei de Pregão).
2.3.3. A DECLARAÇÃO DE INIDONEIDADE
Considerada a punição mais gravosa contra os particulares que não executem total ou parcialmente qualquer das obrigações contratuais, a declaração de inidoneidade é utilizada para as atitudes mais reprováveis. Mais uma vez, frisa-se que não há disposição legal acerca de qual descumprimento contratual ensejará a aplicação desta sanção.
A respeito da declaração, Edmir de Araújo ensina que a “declaração de inidoneidade terá como consequência a exclusão, in limine, de licitantes cuja folha de serviços revele terem praticado atos dolosos ou de má-fé, quando trataram com autoridades administrativas” [77]
Imperioso destacar que a competência para emitir a declaração de inidoneidade, ao contrário da suspensão temporária, é exclusiva do Ministro de Estado, Secretário Estadual ou Municipal. Percebe-se, nesse requisito, a intenção do legislador de conceder tal poder somente à autoridade superior, com o fulcro de evitar que a declaração de inidoneidade seja aplicada sem uma análise mais minuciosa[78].
A declaração de que o particular é inidôneo tem validade indeterminada. O texto legal, Inciso IV do artigo 87 da Lei nº 8.666/93, indica que ela se manterá válida “enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a administração”.
A doutrinadora Di Pietro[79] afirma que, embora não possua validade determinada, os efeitos da declaração perduram-se enquanto as irregularidades que motivaram a punição continuarem a existir. Além disso, a declaração de inidoneidade só poderá ser retirada após o decurso do período mínimo de 2 (dois) anos caso o particular reabilite-se ou ressarça a administração, conforme o exposto no final do dispositivo legal que remete a duração da suspensão temporária.
“Art. 87.[…]
III- suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a 2 (dois) anos;
IV- declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública enquanto perdurarem os motivos determinantes da punição ou até que seja promovida a reabilitação perante a própria autoridade que aplicou a penalidade, que será concedida sempre que o contratado ressarcir a Administração pelos prejuízos resultantes e após decorrido o prazo da sanção aplicada com base no inciso anterior”. (grifo nosso)
Por fim, ainda de acordo com a referida doutrinadora[80], o particular que, insatisfeito com a aplicação da sanção, desejar recorrer, precisa utilizar-se do pedido de reconsideração à autoridade que aplicou a pena dentro do prazo de 10 dias úteis contados a partir da intimação do ato, consonante com o inciso III do art. 109 da Legislação em análise, a seguir reproduzido:
“Art. 109. Dos atos da Administração decorrentes da aplicação desta Lei cabem:
III – pedido de reconsideração, de decisão de Ministro de Estado, ou Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso, na hipótese do § 4o do art. 87 desta Lei, no prazo de 10 (dez) dias úteis da intimação do ato”.
2.3.4. O IMPEDIMENTO
Preliminarmente, faz-se necessário identificar as particularidades do pregão para que, em seguida, seja analisada a sanção de impedimento da lei de Pregão. Nas palavras de Maria Sylvia[81], o pregão caracteriza-se por ser a modalidade de licitação que visa adquirir bens e serviços comuns, conforme o trecho a seguir reproduzido:
“Pregão é a modalidade de licitação para aquisição de bens e serviços comuns, qualquer que seja o valor estimado da contratação, em que a disputa pelo fornecimento é feita por meio de propostas e lances em sessão pública. O §1º do artigo 2º da Lei nº 10.520/2002 permite que o pregão seja realizado por meio da utilização de recursos de tecnologia de informação, nos termos de regulamentação específica. Essa regulamentação consta do Decreto nº 5.450, de 31-5-2005.”
Insta ressaltar que conforme indicado pela doutrinadora ao norte, a Lei federal nº 10.520/02 possibilita a existência de uma modalidade eletrônica que é regulamentada pelo Decreto nº 5.450/05[82]. Por outro lado, a modalidade de pregão presencial é regulamentada pelo Decreto nº 3.555/00[83]. Curiosamente, este Decreto foi editado em data anterior à Lei federal que estabelece a existência do pregão. Pois, o pregão já era previsto através de Medidas Provisórias[84].
Vale dizer que a utilização de tal modalidade só pode ocorrer quando a licitação tiver por objetivo a aquisição de bens e a contratação de serviços comuns. Ambos possuem definição apontada no §1 do art. 2º do Decreto nº 5.450/05, in verbis:
§ 1o. Consideram-se bens e serviços comuns, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais do mercado.
De outra banda, a Lei nº 10.520/02 indicou, através de sua ementa, que a licitação na modalidade pregão poderá ser utilizada por todos os entes da União. Ronny Charles explica que os entes federativos devem regulamentar os conteúdos especiais, obedecendo aos regramentos gerais impostos nacionalmente[85].
A Constituição Federal de 1988[86] indica a competência para legislar sobre matérias de licitação, conforme os textos a seguir. Percebe-se, portanto, que a Lei de pregão é base geral para os demais entes federados que quiserem especificadamente e nos limites da lei geral, regulamentar o Pregão.
“Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: […]
XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1°, III;
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
§ 2º – A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.”
Por outro lado, Marcelo Alexandrino indica que “o pregão pode ser usado para qualquer valor de contrato, sendo a licitação sempre do tipo menor preço”[87]. Coadunando com esse entendimento, Ronny Charles indica que a modalidade de pregão tem objetivo de concretizar o binômio “Vantagem e Isonomia”[88].
Nesse toar, faz-se necessário analisar o texto positivado da sanção de impedimento, que possui previsão no artigo 7º da Lei Federal 10.520/2002 e possui a seguinte redação:
“Art. 7º. Quem, convocado dentro do prazo de validade de sua proposta, não celebrar o contrato, deixar de entregar ou apresentar documentação falsa exigida para o certame, ensejar o retardamento da execução de seu objeto, não mantiver a proposta, falhar ou fraudar na execução do contrato, comportar-se de modo inidôneo ou cometer fraude fiscal, ficará impedido de licitar e contratar com a União, Estados, Distrito Federal ou Municípios e, será descredenciado no Siaf, ou nos sistemas de cadastramento de fornecedores a que se refere o inciso XIV do art. 4º desta Lei, pelo prazo de até 5 (cinco) anos, sem prejuízo das multas previstas em edital e no contrato e demais cominações legais.” (grifo nosso)
Após a leitura do artigo ao norte, inegável perceber as evoluções legislativas trazidas pela edição da lei de pregão para a prática do direito administrativo sancionador. Ao contrário do regramento federal de 1993 (Lei federal nº 8.666), a Lei de Pregão previu, no próprio dispositivo que positiva a sanção, os atos que ensejam a punição de impedimento de licitar e contratar.
Outra característica única da sanção de impedimento de contratar e licitar da lei de pregão é o período de validade desse impedimento. Ao contrário da declaração de inidoneidade, que possui lapso temporal indefinido e perdurará enquanto irregularidades continuem a existir – com período mínimo de 2 (dois) anos –, e a suspensão temporária, que possui validade de 2 (dois) anos, o impedimento do artigo 7º da lei 10.520/02 possui lapso temporal de 5 (cinco) anos.
Ainda sobre a modalidade de licitação em comento, imperioso apontar que a Lei nº 10.520/02, embora tenha inovado, deixou o administrador com a possibilidade de escolher outra punição, existente na Lei de Licitações, que não configure causa de Impedimento do Art. 7º. Ou seja, o gestor público pode aplicar sanção da lei 8.666/93, desde que o ato ensejador da sanção administrativa não esteja prevista no rol do artigo 7º. Isso decorre da aplicação subsidiária da Lei de Licitações, conforme o texto que se segue:
“Art. 9º. Aplicam-se subsidiariamente, para a modalidade de pregão, as normas da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993.”
Contudo, insta destacar a opinião do doutrinador Ronny Charles[89] ao ensinar que, apesar de existir previsão para a aplicação subsidiária da lei de licitação, o intuito do legislador que editou a lei de pregão, foi o de afastar a aplicação das demais penalidades da lei de licitações, em razão de ter previsto somente a aplicação da multa da Lei nº 8.666/93. Indica, ainda, que “deve-se lembrar que a alusão às ‘demais cominações legais’ é comumente usada para deixa claro que a verificação de uma infração administrativa não impede que sejam tomadas medidas necessárias para a responsabilização nas áreas civil e penal”.
Ou seja, Ronny Charles acredita que a Lei de Pregão só possibilitou a aplicação da sanção de impedimento juntamente com a multa da lei de licitação, não dando espaço para a aplicação de outro tipo de sanção administrativa deste último regramento.
Essa tese levantada pelo doutrinador ao norte já foi vencida no âmbito da Advocacia- Geral da União – AGU. Pois, este órgão, ao realizar o controle interno do certame licitatório, prevê, através do modelo de edital e seus anexos disponibilizados no sítio eletrônico da AGU, os quais foram anexados ao presente trabalho para ilustração, a possibilidade de aplicação das sanções dos dois regramentos nas licitações realizadas na modalidade Pregão. Conforme o anexo I do presente trabalho monográfico.
De outra banda, imperioso destacar que esse tipo de sanção administrativa possui um ponto de interrogação causador de conflitos doutrinários. Em virtude da utilização do vocábulo “ou” no texto legal, quando o legislador aponta a amplitude dos efeitos da sanção, o criador do dispositivo legal deu margem à divergência interpretativa.
Uma parte da doutrina acredita que o impedimento tem efeito por toda a Administração pública, englobando a União, os Estados e os Municípios. Enquanto que o restante da doutrina defende que o legislador escolheu utilizar a conjunção “ou”, ao invés da conjunção “e”, com o fito de delimitar os efeitos da sanção, restringindo a punição ao ente jurídico que aplicou a punição.
Nessa senda, conclui-se que o impedimento da lei de sanções pode ser considerado uma evolução instrumental da legislação e que o Legislador, em norma mais recente – Lei de Pregão –, criou uma nova modalidade de sanção administrativa que possui efeitos mais brandos que a declaração de inidoneidade e mais severos que a suspensão temporária.
2.3.5. A SUSPENSÃO TEMPORÁRIA
Evoluindo na análise das espécies de punições impostas pelo Estado ao particular, chega-se, finalmente, ao estudo da sanção administrativa de suspensão temporária do direito de licitar e impedimento de contratar com a administração. Cristalino perceber que esta espécie punitiva possui o segundo maior poderio das sanções da Lei de Licitações. Essa sanção tem por objetivo punir mais rigorosamente, que a multa e a advertência, os particulares que deixem de executar suas obrigações contratuais.
Conforme já evidenciado, em razão da superficialidade da legislação norteadora do direito administrativo sancionador, nos contratos administrativos, não é possível identificar um critério específico, capaz de relacionar as ações realizadas pelo particular e a devida sanção administrativa que deve ser utilizada. Consequentemente, tal escolha acaba ficando a critério do agente público.
Além disso, ressalta-se que é de fácil identificação o caráter temporário da presente sanção. Pois, o próprio texto legal afirma que o prazo máximo para vigência dos efeitos da suspensão é de 2 (dois) anos.
Observa-se que, assim como as demais sanções administrativas anteriormente abordadas, a suspensão temporária deve também deve obedecer aos princípios administrativos anteriormente abordados.
Ademais, Celso de Mello indica que a suspensão temporária do direito de participar das licitações realizadas pela a Administração, e a declaração de inidoneidade devem ser utilizadas somente quando o ato punível possa ser considerado crime à luz da Lei nº 8.666/93. Esse entendimento é uma clara tentativa de amenizar os defeitos legais, oriundos da não regulamentação legal acerca da especificação que relaciona o ato à punição cabível.
Nessa senda, pode-se identificar que as divergências doutrinárias e jurisprudenciais, que culminaram na necessidade de realização do presente estudo, residem na tentativa de identificação da correta amplitude da aplicação da suspensão temporária de licitar e contratar com a Administração.
Por um lado, a primeira corrente doutrinária afirma que o legislador desejou limitar a amplitude da penalidade do inciso III, em razão da utilização do vocábulo Administração. Note-se, que em seguida, no inciso IV, o legislador recorreu à expressão Administração Pública para delimitar o âmbito dos efeitos da declaração de inidoneidade. Essa aparente diferenciação seria confirmada, no entendimento dos defensores dessa hipótese, através da leitura das definições positivadas nos incisos XI e XII do artigo 6º, in verbis:
“Art. 6o Para os fins desta Lei, considera-se:
XI- Administração Pública – a administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, abrangendo inclusive as entidades com personalidade jurídica de direito privado sob controle do poder público e das fundações por ele instituídas ou mantidas;
XII- Administração – órgão, entidade ou unidade administrativa pela qual a Administração Pública opera e atua concretamente;”
Nessa senda, a corrente doutrinária que defende a reduzida amplitude dos efeitos da sanção de suspensão utiliza-se da ideia de que o legislador não iria se utilizar de palavras inúteis para a edição de uma lei. No sentido de que existe uma diferenciação entre os conceitos de administração pública e de administração. Não cabendo, por conseguinte, ao intérprete da lei ampliar a aplicação da sanção. Pois, este, estaria indo de encontro ao pensamento do legislador.
Portanto, para os defensores desta doutrina, a sanção do inciso III limita-se ao órgão que aplicou a penalidade, enquanto que a declaração de inidoneidade tem seus efeitos implantados perante todas as licitações e contratos da Administração Pública. Isto é, a declaração de inidoneidade tem eficácia para todo o Poder Público.
Um dos doutrinadores que se filiam a este entendimento é o professor Toshio Mukai[90] que indica em sua obra o Novo Estatuto Jurídico das Licitações e Contratos Administrativos que:
A sanção prevista no inc. III valerá para o âmbito do órgão que a decretar e será justificada, regra geral, nos casos em que o infrator prejudicar o procedimento licitatório ou a execução do contrato por fatos de gravidade relativa. Já aquela (sanção) prevista no inc. IV valerá para o âmbito geral, abrangendo a entidade política que a aplicou, e será justificada se o infrator age com dolo ou se a infração é de natureza grave, dentro do procedimento licitatório ou na execução do contrato.
De outra banda, imperioso destacar o posicionamento doutrinário contrário, qual seja de que não existe diferença entre os termos: Administração e Administração Pública. Um dos argumentos utilizados por seus militantes recai na ideia de que a Administração Pública é una, portanto, indivisível. Além disso, opinam pela defesa da moralidade pública, indicando que uma empresa suspensa não pode estar livre para contratar com outro órgão da Administração.
Coadunando com esse entendimento, o ilustre doutrinador Marçal Justen Filho[91]argumenta que:
Se o agente apresenta desvios de conduta que o inabilitam para contratar com um determinado sujeito administrativo, os efeitos dessa ilicitude teriam de se estender a toda a Administração Pública. Assim se passa porque a prática do ato reprovável, que fundamentou a imposição da sanção de suspensão do direito de licitar e contratar, evidencia que o infrator não é merecedor de confiança.
Comunga com a opinião acima, Edmir Netto[92] ao declarar que, embora a suspensão seja geralmente entendida como uma sanção aplicada somente no âmbito do órgão contratante, tanto a suspensão como a declaração de inidoneidade são aplicadas pelo órgão contratante e com efeitos para toda a Administração, cabendo, ainda, ao particular suspenso ou declarado inidôneo comunicar às demais entidades da administração.
Assim, esse entendimento resulta em uma aparente igualdade nos efeitos da amplitude das sanções de declaração de inidoneidade e de suspensão do direito de licitar.
Ante o exposto, imperioso realizar uma análise mais aprofundada da amplitude desta sanção administrativa, relacionando os posicionamentos doutrinários aos julgados do Tribunal de Contas da União, do Superior Tribunal de Justiça, além dos posicionamentos flutuantes da Advocacia-Geral da União.
3. A INTERPRETAÇÃO JURISPRUDÊNCIAL DA AMPLITUDE DOS EFEITOS DA SUSPENSÃO TEMPORÁRIA
Conforme demonstrado no capítulo anterior, nem a jurisprudência nem a doutrina brasileira chegaram a um denominador comum acerca da amplitude dos efeitos da sanção administrativa de suspensão temporária do direito de licitar e contratar. De um lado pode-se identificar que o Tribunal de Contas da União – TCU e a Advocacia-Geral da União – AGU defendem a teoria mais restritiva da amplitude da punição, embora, esse nem sempre foi o posicionamento dominante.
No outro extremo da balança, o Superior Tribunal de Justiça guia o Poder Judiciário na consolidação da teoria que concede um efeito mais alargado para a amplitude da suspensão.
3.1. A SUSPENSÃO DE LICITAR E CONTRATAR COM O PODER PÚBLICO
Primeiramente, cabe frisar que todos os três órgãos citados anteriormente defenderam, em algum momento, a teoria em cotejo, qual seja a amplitude da suspensão temporária que atinge a todo o Poder Público. Podem ser encontradas, com facilidade, decisões nesse sentido nas jurisprudências do Poder Judiciário. Além disso, apesar de atualmente defenderem posicionamento contrário, tanto a AGU como o TCU já se filiaram à corrente defensora da amplitude mais alargada da suspensão temporária.
Nessa senda, inicia-se a presente análise da amplitude da sanção prevista no inc. III do art. 87 da lei de licitações através dos julgados do Superior Tribunal de Justiça, instância que tem por obrigação zelar pelas leis infraconstitucionais por meio da uniformização da interpretação das leis federais.
Já no ano de 2001, a ministra do STJ, Laurita Vaz, atuando no julgamento do RMS nº 9.707-PR[93], decidiu que a Administração Pública possui uma única natureza executiva, tendo atribuições delegadas e descentralizadas com o intuito de melhor atingir o interesse público nos mais variados locais do território nacional. Iniciou, assim, o entendimento do Superior tribunal de Justiça de que a administração pública é uma só.
No ano de 2003, a Segunda Turma do STJ, através do julgamento do Recurso Especial nº 151.567/RJ[94], indicou que não havia distinção, para o poder judiciário, entre a conceituação de Administração e de Administração Pública. Conforme o trecho a seguir:
“ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA – LICITAÇÃO – SUSPENSÃO TEMPORÁRIA – DISTINÇÃO ENTRE ADMINISTRAÇÃO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – INEXISTÊNCIA – IMPOSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO DE LICITAÇÃO PÚBLICA – LEGALIDADE – LEI 8.666/93, ART. 87, INC. III. É irrelevante a distinção entre os termos Administração Pública e Administração, por isso que ambas as figuras (suspensão temporária de participar em licitação (inc. III) e declaração de inidoneidade (inc. IV) acarretam ao licitante a não-participação em licitações e contratações futuras.
A Administração Pública é una, sendo descentralizadas as suas funções, para melhor atender ao bem comum. A limitação dos efeitos da “suspensão de participação de licitação” não pode ficar restrita a um órgão do poder público, pois os efeitos do desvio de conduta que inabilita o sujeito para contratar com a Administração se estendem a qualquer órgão da Administração Pública.
Recurso especial não conhecido”. (grifo nosso)
Em seu voto, o Ministro relator Francisco Peçanha Martins afirmou que a distinção “é irrelevante e juridicamente risível”[95]. Bem como utilizou-se da boa doutrina de Marçal Justen para asseverar tal entendimento:
"11) A Suspensão Temporária e a Declaração de inidoneidade As sanções dos incs. III e IV são extremamente graves e pressupõem a prática de condutas igualmente sérias.[..]
11.2) Distinção entre as figuras dos incs. III e IV
A lei que regulamentar as figuras deverá distinguir a suspensão temporária de participar em licitação (inc. III) da declaração de inidoneidade (inc. IV). Ambas as figuras acarretam consequências similares. Nos dois casos, veda-se ao particular a participação em licitações e contratações futuras. Seria possível estabelecer uma distinção de amplitude entre as duas figuras. Aquela do inc. III produziria efeitos no âmbito da entidade administrativa que a aplicasse; aquela do inc. IV abarcaria todos os órgãos da Administração Pública. Essa interpretação deriva da redação legislativa, pois o inc. III utiliza apenas o vocábulo 'Administração', enquanto o inc. IV contém 'Administração Pública'. No entanto, essa interpretação não apresenta maior consistência, ao menos enquanto não houver regramento mais detalhado. Aliás, não haveria sentido em circunscrever os efeitos da 'suspensão de participação de licitação' a apenas um órgão específico. Se um determinado sujeito apresenta desvios de conduta que o inabilitam para contratar com a Administração Pública, os efeitos dessa ilicitude se estendem a qualquer órgão. Nenhum órgão da Administração Pública pode contratar com aquele que teve seu direito de licitar 'suspenso'. A menos que lei posterior atribua contornos distintos à figura do inc. III essa é a conclusão que se extrai da atual disciplina legislativa".
O Referido tribunal, no ano de 2004, posicionou-se a favor da extensão mais ampla, a ser concedida para a suspensão temporária, conforme defende o Ministro Castro Meira no Julgamento do Recurso Especial nº 174.274/SP[96], in verbis:
“ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DE PARTICIPAÇÃO EM LICITAÇÕES. MANDADO DE SEGURANÇA. ENTES OU ÓRGÃOS DIVERSOS. EXTENSÃO DA PUNIÇÃO PARA TODA A ADMINISTRAÇÃO. A punição prevista no inciso III do artigo 87 da Lei nº 8.666/93 não produz efeitos somente em relação ao órgão ou ente federado que determinou a punição, mas a toda a Administração Pública, pois, caso contrário, permitir-se- ia que empresa suspensa contratasse novamente durante o período de suspensão, tirando desta a eficácia necessária. Recurso especial provido.” (grifo nosso)
Percebe-se, que em sua decisão, o Ministro Relator[97] apontou que a eficácia da sanção administrativa seria consideravelmente reduzida, caso fosse permitido que uma empresa suspensa, em decorrência de uma falta grave na execução de um contrato, pudesse participar de certames licitatórios e firmar contratos com o Poder Público. Ainda segundo o Ministro[98]:
“O entendimento do Tribunal a quo, no sentido de que a suspensão imposta por um órgão administrativo ou um ente federado não se estende aos demais, não se harmoniza com o objetivo da Lei nº 8.666/93, de tornar o processo licitatório transparente e evitar prejuízos e fraudes ao erário, inclusive impondo sanções àqueles que adotarem comportamento impróprio ao contrato firmado ou mesmo ao procedimento de escolha de propostas. Há, portanto, que se interpretar os dispositivos legais estendendo a força da punição a toda a Administração, e não restringindo as sanções aos órgãos ou entes que as aplicarem. De outra maneira, permitir-se-ia que uma empresa, que já se comportara de maneira inadequada, outrora pudesse contratar novamente com a Administração durante o período em que estivesse suspensa, tornando esta suspensão desprovida de sentido.” (grifo nosso)
De fácil compreensão que o referido julgado apontou outro fundamento utilizado pela doutrina defensora da amplitude mais alargada para a suspensão, qual seja o princípio da eficiência e a necessidade de consolidação da supremacia do interesse público. Pois, a amplitude reduzida da sanção não se coaduna com a finalidade da punição, que tem por fundamento punir os administrados que não executem o contrato total ou parcialmente ao realizar ações mais gravosas.
Ademais, relembrando a boa doutrina de Celso de Mello[99], a suspensão e a declaração de inidoneidade somente deveriam ser impostas aos administrados que incorressem nos crimes previstos na Lei de Licitações. Em razão disso, indaga-se: qual seria a finalidade de punir, mesmo que temporariamente, o administrado que cometeu falta tão grave somente no âmbito do órgão que impôs a sanção? Inegável que não foi esse o intuito do legislador.
Outrossim, pode-se indicar que o STJ continua defendendo tal posicionamento, em razão de continuar julgando casos semelhantes aplicando, no âmbito da jurisdição do poder judiciário, a amplitude alargada da sanção administrativa. Conforme se percebe na análise das decisões mais recentes do Superior Tribunal de Justiça, como por exemplo, o julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 32.628/SP[100]:
“ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. HABILITAÇÃO SOMENTE DA MATRIZ. REALIZAÇÃO DO CONTRATO POR FILIAL. IMPOSSIBILIDADE. DESCUMPRIMENTO DO CONTRATO. SANÇÕES. PROPORCIONALIDADE. ADMINISTRAÇÃO X ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. DISTINÇÃO. AUSÊNCIA. […]
10. Por fim, não é demais destacar que neste Tribunal já se pontuou a ausência de distinção entre os termos Administração e Administração Pública, razão pela qual a sanção de impedimento de contratar estende-se a qualquer órgão ou entidade daquela. Precedentes.”
Além desses Julgados do Superior Tribunal, destaca-se que os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais de Justiça estaduais mantem o entendimento externado pela instância superior, conforme os julgados: Reexame Necessário nº 2004.34.00.043802-3[101], Reexame Necessário n.º 2008.36.00.009788-0/MT[102], Apelação Cível nº. 533906/PE[103], Apelação em
Mandado de Segurança nº. 2001.34.00.001228-5/DF[104], Mandado de Segurança nº 51843- 4/PR[105] e do Reexame necessário nº 0034032-40.2009.8.26.0576[106].Ademais, conforme já apontado, o Tribunal de Contas da União e a Advocacia-Geral da União já foram defensores da teoria doutrinária que concede à suspensão administrativa uma amplitude mais alargada.
A AGU, através do Parecer nº 087/2011/DECOR/CGU/AGU[107], orientou a Consultoria Jurídica de Pernambuco a utilizar-se do posicionamento do STJ, afastando a participação dos particulares que foram punidos com a suspensão temporária de todas as licitações e contratos da Administração Pública. O advogado da união, responsável pelo referido parecer, indicou que:
“Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça em algumas oportunidades já atestou o despropósito da distinção entre Administração Pública e Administração constante dos incisos XI e XII do art. 6.º da Lei n.º 8.666/93. Desse modo, entendeu o referido Tribunal, que é o guardião maior da legislação infraconstitucional no sistema jurídico pátrio, pelo alcance amplo da suspensão temporária de licitar e contratar, irradiando os seus efeitos a todos os órgãos da Administração Pública.” (grifo nosso)
Além de atestar que o STJ é o legítimo guardião da legislação infraconstitucional e apontar que o referido tribunal já decidiu pela inexistência de distinção entre Administração e Administração Pública, O Advogado da União recorreu, também, à doutrina de Marçal Justen Filho e de José dos Santos Carvalho Filho para consolidar o entendimento do STJ. Apontou, ainda, que o fundamento da unicidade da Administração encontra-se o art. 1º, caput, da Constituição Federal de 1988[108].
Dessa forma, faz-se necessário expor o pensamento do professor José dos Santos Carvalho Filho[109], que apontou inexistir diferença na conceituação realizada pelo legislador na concepção do art. 6º da Lei nº 8.666/93. Para o ilustre doutrinador a administração e administração pública possuem natureza idêntica, haja vista que a Administração Pública é una.
“Destarte, o Advogado da União apontou que:
18. Sem dúvida alguma, as penalidades previstas nos incisos III e IV do art. 87 da Lei n.º 8.666/93 são distintas. Porém, isso não significa dizer que todas as suas consequências devam ser diversas.
Afirma-se aqui que os alcançados pelas penalidades há pouco mencionadas devem ser afastados das licitações e contratações de toda a Administração Pública. Os efeitos subjetivos serão os mesmos, abandonando-se, dessa forma, com apoio na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a absurda distinção legal entre Administração e Administração Pública.
19. A questão da dosimetria das penalidades administrativas levantada por muitos como um argumento contrário à interpretação aqui defendida não faz sentido, posto que a sanção prevista no inciso III do art. 87 da Lei n.º 8.666/93 é imposta “por prazo não superior a 2 (dois) anos’, o que permite uma gradação absolutamente diversa da declaração de inidoneidade constante do inciso IV do art. 87 do referido diploma. O administrador, a depender da gravidade da conduta da empresa infratora, pode impor curtas e médias punições, por exemplo.
20. Outro argumento manejado diz respeito ao art. 97 da Lei n.º 8.666/93, que só classifica como crime a prática de “admitir à licitação ou celebrar contrato com empresa ou profissional declarado inidôneo’, nada dizendo sobre a suspensão temporária. Ora, tal previsão legal só comprova que, de fato, a declaração de inidoneidade é punição mais grave que a suspensão temporária do direito de licitar e contratar. Isso não é questionado. Concorda-se com tal afirmativa. O que se diz é que a diferença de gravidade entre as sanções não determina automaticamente alcances subjetivos diversos.” (grifo nosso)[110]
Nessa senda, não resta dúvidas de que a AGU posicionou-se a favor da concessão de uma amplitude mais alargada para a suspensão temporária, capaz de evitar com que os administrados, punidos por um determinado ente ou órgão da administração, possam participar de contendas licitatórias e celebrar contratos com outro órgão da administração pública.
Outrossim, insta mencionar que Tribunal de Contas da União seguia para uma mudança de entendimento acerca da amplitude da punição em comento, atribuindo à suspensão a amplitude defendida pelo STJ e pelo parecer da AGU ao norte, todavia, vale dizer que tal mudança não prosperou. Imperioso ressaltar, entretanto, os argumentos utilizados nas decisões do ano de 2011, quais sejam o Acórdão nº 2218/2011[111] e o Acórdão nº 3757/2011[112], dando especial atenção àquele acórdão.
No acórdão nº 2218/2011, interessante observar que, preliminarmente, o Ministro Relator José Múcio Monteiro decidiu continuar adotando o entendimento do TCU, opinando em seu voto inicial por restringir os efeitos da punição em comento ao âmbito do órgão concedente. Entretanto, após a intervenção do Ministro Revisor Walton Alencar Rodrigues, o relator mudou seu entendimento para abarcar a possibilidade de a suspensão temporária do direito de licitar ter sua eficácia ampliada para todo o Poder Público.
Em seu voto, o Ministro Walton Rodrigues indicou a doutrina de Marçal Justen e os julgados do STJ para reforçar sua convicção de que, em defesa da moralidade administrativa e do interesse público, a penalidade do inciso III do art. 87 da lei 8.666/93[113]deve ter efeitos que alcancem e resguardem toda a administração Pública.
O Ministro apontou, ainda, no momento em que indicou a possibilidade de desconsideração de personalidade jurídica para aplicação de sanção para outra pessoa jurídica com quadro diretor semelhante àquela punida, que o Estado da Bahia, utilizando-se da faculdade de legislar sobre matéria especial, editou a Lei Estadual nº 9.433/2005[114] que traz, em seu artigo 200, a ideia de que o administrado que esteja suspenso não pode participar das licitações e contratações da Administração Pública, in verbis:
“Art. 200. Fica impedida de participar de licitação e de contratar com a Administração Pública a pessoa jurídica constituída por membros de sociedade que, em data anterior à sua criação, haja sofrido penalidade de suspensão do direito de licitar e contratar com a Administração ou tenha sido declarada inidônea para licitar e contratar e que tenha objeto similar ao da empresa punida.” (grifo nosso)
Além disso, apontou a existência de um Projeto de Lei Federal (PL nº 7.709/2009[115]), que indica a impossibilidade de particulares, punidos pelas sanções de suspensão e declaração de inidoneidade, participarem de licitações e contratos com o Poder Público. O Projeto teria como objetivo inserir no artigo 28 da Lei Federal nº 8.666/93 o seguinte parágrafo único:
“Parágrafo único. Não poderá licitar nem contratar com a Administração Pública pessoa jurídica cujos diretores, gerentes ou representantes, inclusive quando provenientes de outra pessoa jurídica, tenham sido punidos na forma do § 4º do art. 87 desta Lei, nos limites das sanções dos incisos III e IV do mesmo artigo, enquanto perdurar a sanção.” (grifo nosso)
Apesar de indicar que esse impedimento irá obedecer aos limites das sanções positivadas nos incisos III e IV, é certo subsumir que a intenção do legislador foi indicar que a atribuição da sanção deve estar vinculada ao limite temporal enunciado naqueles dispositivos. Pois, o início do parágrafo único proposto é taxativo ao estabelecer que ficarão impedidos de contratar e licitar com a Administração Pública aqueles que estão sob os efeitos das punições indicadas.
Nesse ponto é importante apontar os ensinamentos de Marçal Justen Filho que foram amplamente utilizados para fundamentar os julgados anteriormente abordados. Marçal[116] inicia sua análise frisando, mais uma vez, que a problemática acerca da amplitude dos efeitos da suspensão temporária deriva das lacunas legais existentes na Lei nº 8.666/93.
Ele reconhece que o intuito do legislador foi o de instituir 4 (quatro) sanções distintas e gradualmente divididas, assim, ele inicia sua explicação, acerca da amplitude da suspensão, apontando as diferenças básicas entre as duas últimas sanções previstas na Lei de Licitações.
A primeira diferença apontada por Justen Filho foi o prazo de duração dos efeitos da sanção de suspensão e de declaração de inidoneidade. Embora tenha afirmado que essa diferença pouco importa para a caracterização das sanções, faz-se necessário discordar de tal entendimento, em razão deste configurar-se como sendo uma grande característica diferenciadora das sanções. Pois, vale dizer que o prazo de duração é um dos pressupostos utilizados para discordar daqueles que defendem a ideia de que a amplitude alargada para a suspensão transformá-la-ia em uma sanção idêntica a declaração de inidoneidade.
Em seguida, Marçal aponta a diferença na competência para a imposição das sanções, enquanto que a suspensão temporária pode ser imposta pela autoridade responsável pela gestão do contrato, a declaração de inidoneidade pressupõe que a punição seja decretada por uma autoridade de maior hierarquia.
Destaca-se que essa diferenciação da competência dá munição para os defensores da doutrina que entende que a amplitude da suspensão deve ser reduzida. Isso porque a possibilidade de aplicar uma sanção que abrangesse toda a administração pública seria prejudicial aos particulares, que poderiam sofrer com sanções impostas incorretamente.
Além disso, o doutrinador ao norte, defensor da amplitude mais alargada para a punição, critica a corrente doutrinária que pleiteia pela amplitude reduzida, pois, segundo ele, “a prática do ato reprovável, que fundamentou a imposição da sanção de suspensão do direito de licitar e contratar, evidencia que o infrator não é merecedor de confiança”[117].
Ante o exposto, pode-se inferir que essa primeira corrente doutrinária defende a amplitude extensiva dos efeitos da sanção em comento em razão da indivisibilidade da administração pública, da defesa dos princípios norteadores do direito administrativo – em especial o da moralidade – e em virtude dos objetivos e eficácia da sanção.
3.2. A SUSPENSÃO DE LICITAR E CONTRATAR COM O ÓRGÃO PUNIDOR
Conforme já mencionado, o Tribunal de Contas da União e a Advocacia-Geral da União vão de encontro ao posicionamento do STJ, defendendo a necessidade de conceder interpretação mais reduzida para a amplitude dos efeitos da suspensão temporária.
No ano de 2005, após os primeiros julgados do STJ, que concederam uma interpretação extensiva para a punição em comento, os ministros do Tribunal de Contas, reunidos em sessão plenária para julgar um caso concreto, acordaram de forma unânime que a FUNASA deveria evitar dispor sobre a impossibilidade da participação nos procedimentos licitatórios e contratuais das empresas suspensas temporariamente. Exceto quando a própria FUNASA tivesse imposto a punição[118].
No ano seguinte, a primeira câmara do TCU[119], mais uma vez, decidiu ser impossível incluir vedação da participação de empresas suspensas temporariamente, ressalvados os casos em que o próprio órgão tenha aplicado a sanção. O acórdão foi proferido quando realizaram a análise dos autos oriundos do relatório da auditoria realizada pela Secretaria de Controle Externo na Paraíba – SECEX-PB –, com o intuito de verificar a existência de irregularidades nas licitações e contratações pactuadas pela Superintendência Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária na Paraíba.
A referida câmara da corte de contas da União decidiu, a partir do caso acima, ser impossível impedir a participação dos particulares que estejam sob efeito da penalidade de suspensão temporária, decretada por órgão da administração pública diverso, em razão da inexistência de amparo legal para tal vedação.
Ademais, a primeira câmara do Tribunal de Contas da União apontou, no acórdão 538/2009[120], julgados anteriores que indicavam o posicionamento da corte de contas em relação à amplitude da suspensão temporária de licitar e contratar com a administração, quais sejam o acórdão nº 1533/2006[121], a decisão n.º 52/99[122] e a decisão nº 302/2001[123].
Outrossim, o TCU vem consolidando o entendimento acima exposto, abafando por completo os indícios de mudança jurisprudencial, acerca da amplitude da sanção em comento iniciadas na primeira câmara no ano de 2011.
Após os julgamentos que se filiaram às decisões do STJ, o plenário da corte de contas vem reiteradamente decidindo pela interpretação restritiva dos efeitos da suspensão, como é percebido nos acórdãos nº 3243/2012[124], nº 3439/2012[125] e nº 1017/2013[126].
Insta destacar as divergências de entendimento entre os ministros, no momento da realização do julgamento que deu causa ao proferimento do primeiro Acórdão mencionado. O caso refere-se a uma representação de uma empresa que foi excluída de um certame licitatório, realizado pela prefeitura do município de Cambé/PR, em virtude de estar, à época, cumprindo as punições de suspensão temporária (da lei de licitações) e de impedimento de licitar (da lei de pregão), impostas pelos municípios de Piracicaba/SP, Valinhos/SP e, também, imposta pela Fundação Desenvolvimento Médico Hospitalar de Botucatu.
O Ministro relator, Ubiratan Aguiar, utilizando-se dos acórdãos da primeira câmara do TCU anteriormente abordados, proferiu o seu voto externando entendimento de que a suspensão deveria ter sua amplitude mais larga, capaz de abarcar toda a Administração.
Todavia, o Ministro revisor Raimundo Carreiro entendeu por manter o entendimento, que vinha sendo adotado pelo TCU, que defende a interpretação literal da lei. Consolidou, assim, a linha de raciocínio restritiva que se utiliza da diferenciação dos conceitos previstos no art. 6º da lei de licitações, para destacar a graduação necessária das punições. Ao fim do plenário, o relator foi voto vencido, ocasionado, desse modo, na sedimentação do entendimento, no âmbito do TCU, restritivo da amplitude dos efeitos da suspensão temporária.
De outra banda, imperioso destacar o Parecer nº 02/2013/GT/Portaria nº 11, de 10 de agosto de 2012[127], do grupo de trabalho da AGU, responsável pela atualização dos modelos de editais de licitação, que, justificando-se nos julgados do TCU, decidiu mudar o entendimento do órgão acerca da amplitude dos efeitos da suspensão temporária. O Grupo de Trabalho utilizou-se dos argumentos já abordados, de que a Lei de licitações expressamente delimita a conceituação de Administração e da Administração Pública, para consolidar o entendimento restritivo da amplitude da sanção.
Além disso, afirmou que essa diferenciação é o pressuposto para a competência da imposição da declaração de inidoneidade recair em uma autoridade de maior hierarquia. A AGU considerou, ainda, que se faz necessário existir uma diferença maior entre as punições do inc. III e IV, em razão de a Lei só considerar crime a contratação com empresa declarada inidônea. Entretanto, conforme anteriormente explicado, isto pode ser utilizado em favor da teoria do alargamento dos efeitos da sanção, pois a igualdade da amplitude não retira ou diminui as outras diferenças existentes entre as sanções.
No mesmo sentido pode-se apontar o Parecer nº. 08/2013/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU[128] através do qual a AGU opinou pela restrição dos efeitos da sanção em apreço. Todavia, vale explicitar que o entendimento do referido parecer não restringiu a amplitude nos mesmos moldes do entendimento do TCU e do parecer anterior da AGU. Os procuradores federais entenderam que a suspensão temporária deve abranger todas as licitações e contratos realizados pelo Ente responsável pelo órgão que aplicou a sanção. Ou seja, utilizando-se da teoria do órgão, o parecerista indicou que não há sentido em punir somente no âmbito do órgão contratante. Pois, em verdade, a amplitude da sanção deve ser estendida para a entidade administrativa que engloba o órgão, em razão de este ser um componente da pessoa jurídica que caracteriza o Ente.
Entretanto, não obstante essa interpretação externar que a amplitude dos efeitos da sanção não pode ser totalmente restringida é de fácil percepção que essa amplitude ainda não se coaduna com o entendimento do Poder Judiciário.
Ante o exposto, inegável que a ideia relacionada à restrição da aplicação da sanção, defendida pelo TCU e pela AGU possui argumentos fortes. O primeiro deles, comungado por todos os defensores da restrição da sanção, é a utilização da literalidade da lei de licitações para diferenciar os termos Administração e Administração Pública, a partir das conceituações que o legislador positivou no artigo 6º da Lei nº 8.666/93.
Outro argumento corriqueiramente utilizado para justificar tal restrição é o da necessidade de graduação das punições. Os defensores de tal doutrina entendem que a utilização de uma amplitude mais alargada transformaria a suspensão temporária em uma punição idêntica à declaração de inidoneidade. Complementando tal diferenciação, é argumentado pelos defensores dessa corrente que a possibilidade de um gestor de um contrato de um município “X” poder suspender, perante toda a União, uma empresa que não executou o contrato firmado, por si só já é capaz de identificar a necessidade de uma restrição da amplitude da punição.
3.3. A SUSPENSÃO DE LICITAR E CONTRATAR COM A ESFERA DO GOVERNO SANCIONADOR
Face o exposto, inquestionável é a insegurança jurídica que emana da interpretação da amplitude da presente sanção administrativa. Pois, os órgãos de Consultoria Jurídica da União nos estados, lastreados pelo entendimento da AGU, bem como o Tribunal de Contas da União, posicionam-se, na seara administrativa, a favor de uma interpretação restritiva da amplitude da suspensão temporária. Assim, no momento da realização, pela administração, da análise interna e externa do procedimento licitatório, o entendimento utilizado será sempre no sentido de possibilitar ao particular, que foi suspenso temporariamente com um órgão ou ente, participar de licitações e contratos com outra entidade – ressalte-se que nem mesmo no âmbito interno da AGU essa amplitude tem interpretação pacificada, em razão da apontada distinção entre os entendimentos emanados dos pareceres nº 08/2013/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU e o nº 02/2013/GT/Portaria nº 11, de 10 de agosto de 2012.
Entretanto, caso o administrado utilize-se da prerrogativa do acesso à justiça e da inafastabilidade da jurisdição, tal amplitude será judicialmente revista. Pois o Poder Judiciário já solidificou o afastamento das empresas punidas dos certames licitatórios realizados por toda a administração.
Ante o exposto, imprescindível sanar essa insegurança jurídica, oriunda da não uniformização de entendimento dos órgãos de controle administrativos e judiciais. Cristalino perceber, portanto, que ambas as teorias de interpretação da amplitude da suspensão temporária possuem pontos positivos e negativos. Enquanto que o posicionamento do Poder Judiciário possui uma característica mais protecionista do Estado, a teoria restritiva, defendida pelo TCU e pela AGU, possui um cunho de proteção mais voltado para o particular.
Após a realização do presente estudo, entende-se que se faz necessário efetuar uma interpretação diferencial das existentes. Deve-se aproximar a suspensão temporária à sanção prevista na Lei de Pregão, que em consonância com o abordado no decorrer deste estudo, mostrou-se uma verdadeira evolução legislativa.
Destarte, com o intuito de continuar a proteger o Estado das ações perigosas dos administrados e de amenizar as consequências da concentração de poder na figura do gestor do contrato, entende-se que a solução desse impasse jurídico poderia ser sanada com a edição de uma Lei Federal, que alterasse os dizeres da Lei de licitações para corrigir as lacunas, tão criticadas, dando maior objetividade às disposições sancionatórias.
Em especial, inclinando-se a conferir uma amplitude situada no meio termo entre as doutrinas existentes. Assim, a suspensão temporária seria entendida como uma punição, delegada pelo gestor contratual, que teria amplitude delimitada pela esfera do órgão ou ente que a impôs, da mesma maneira como ocorre na imposição da sanção de impedimento da lei de pregão. Desse modo, aquelas empresas que por um lapso ou descuido tenham sido suspensas pela administração de um município, continuam com possibilidade de participar de licitações e celebrar contratos com o estado e a União.
Essa interpretação iria conferir característica de maior responsabilidade para aqueles administrados que deixassem de cumprir com alguma cláusula contratual de contratos realizados com a União, em razão da possibilidade de receber uma punição mais gravosa, qual seja a suspensão no âmbito de toda a união. Além do mais, essa amplitude fundada na esfera concederia uma proteção maior aos órgãos municipais que teriam a certeza de que a punição valeria para todo o município.
A própria AGU já emitiu opinião de que a excessiva restrição da amplitude da suspensão temporária não condiz com o objetivo da sanção, conforme o trecho que se segue:
“Portanto, não se pode justificar o atrelamento dos efeitos jurídicos da suspensão temporária ao âmbito restrito do órgão com supedâneo na competência do agente, pois o agente, ao expedir atos administrativos, o faz manifestando a vontade da pessoa jurídica, imputando o ato humano à coletividade organizada em pessoa jurídica”.[129]
Ressalte-se que a doutrinadora Marcia Walquiria Batista dos Santos[130], apesar de defender a interpretação restritiva do alcance da suspensão temporária, explicita, em sua obra, uma amplitude que se coaduna com a teoria aqui defendida, qual seja a punição no âmbito da esfera da União que engloba o órgão ou ente punidor:
“O legislador, por óbvio, quis dar uma abrangência maior para a declaração de inidoneidade, sendo lícito pensar que o contrato inidôneo assim o será perante qualquer órgão público do país. E aquele que for suspenso temporariamente será assim tratado perante os órgãos, entidades e unidades administrativas concernentes ao Poder Público que lhe aplicou a sanção”. (grifo nosso)
Imperioso ressaltar que, na construção de seu voto no Acórdão 3243/2012, o Ministro do TCU José Jorge, na tentativa de combater o entendimento da amplitude mais abrangente da suspensão temporária, externou que a referida punição deve abranger a esfera do órgão ou entidade que impôs a sanção, conforme o trecho que se segue:
“Valendo-me justamente dessa interpretação sistemática oferecida pelo Ministro Walton, afigura-se-me bastante razoável que os efeitos da sanção prevista no art. 87, III, da Lei nº 8.666/93 não se limitem ao órgão/entidade que aplicar a penalidade, mas se estendam para a Administração “da esfera respectiva como um todo”. Significa dizer que se a sanção for imputada por órgão ou entidade da esfera federal, deverá ela ter eficácia perante toda a ‘Administração’ – aqui considerada como expressão concreta da ‘Administração Pública’ – federal. Da mesma forma, caso a sanção venha a ser aplicada por órgão/entidade municipal, a sociedade apenada não poderá participar de licitação, tampouco ser contratada, para a execução de objeto demandado por qualquer ente público do respectivo município.” (grifo nosso)[131]
De outra banda, importante mencionar que não se pode restringir o intuito da sanção em decorrência da possibilidade de estas sanções serem utilizadas de maneira equivocada pelos agentes públicos, haja vista que todo ato administrativo tem presunção de legalidade[132]. Por conseguinte, inegável que a interpretação restritiva da amplitude da suspensão temporária, em decorrência da possibilidade de o gestor de um contrato municipal punir o administrado perante toda a administração pública, não pode prosperar. Pois, não há o que se falar em necessidade de punição gradativa em relação à autoridade competente para impô-la, em virtude de não se poder garantir que o ato lesivo praticado pelo particular terá menor consequência no âmbito municipal. Conforme é percebido na leitura do voto do Ministro revisor do Acórdão ao norte, Walton Alencar Rodrigues, abaixo transcrito:
“Não se trata, absolutamente, de sancionar de acordo com o grau de gravidade da conduta encetada pela empresa. Fraudes intentadas no âmbito municipal podem muito bem ser de lesividade e astúcia infinitamente maior do que qualquer outra praticada no âmbito federal, demonstrando a total incapacidade ética da empresa para atuar no âmbito social ou da Administração, em todas as suas distintas esferas federativas.”
Qualquer distinção que se faça em relação aos efeitos e à abrangência das sanções, aplicadas por entidades da federação, minora e enfraquece o poder da Administração de efetivamente reprovar condutas lesivas de particulares”[133].
Além disso, com o fito de complementar a teoria aqui defendida, e assegurar a devida execução contratual, faz-se necessário estabelecer critérios objetivos para a punição em decorrência da reincidência do particular. Ou seja, um particular que se utiliza da fragilidade dos municípios para celebrar, e não executar, contratos deve sofrer punição mais severa que a suspensão de licitar na esfera municipal, como, por exemplo, a imposição de declaração de inidoneidade.
Nesse diapasão, pode-se indicar o ensinamento do doutrinado Marçal Justen[134] que assevera a existência de uma característica implícita a sanção de advertência, no sentido de que a referida sanção tem o condão de alertar o particular de que a próxima advertência terá consequência mais gravosa. Analogamente, pugna-se, aqui, pela concessão de tal característica para as demais sanções, haja vista que a conduta reprovável não pode ser analisada exclusivamente. As reiteradas inexecuções contratuais mais brandas necessitam, por conseguinte, de uma punição mais contundente, com o fito de proteger o interesse público.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo o que foi exposto, percebe-se a imensa importância da correta delimitação da amplitude dos efeitos da sanção administrativa de suspensão do direito de licitar e contratar.
Conforme o evidenciado, atualmente são duas as correntes doutrinárias que interpretam a amplitude dos efeitos da sanção administrativa prevista no inciso III do artigo 87 da lei de licitações. A primeira conceda uma amplitude extensiva, enquanto que a segunda pugna pela restrição dos efeitos da sanção, em razão do aparente choque com a declaração de inidoneidade, previsto no inciso IV do mesmo artigo.
De um lado o Poder Judiciário entende que independente do órgão ou ente do governo que impôs a sanção de suspensão temporária a um particular, esse último terá sua possibilidade de participar de certames licitatórios e de celebrar contratos administrativos temporariamente suspensos. O Superior Tribunal de Justiça justifica tal entendimento afirmando que não há distinção entre a Administração e a Administração Pública. Além disso, indica que o particular que foi punido por uma inexecução contratual demonstrou que não possui condições de celebrar contratos com a administração, por isso merece sofrer as consequências da suspensão temporária.
Ademais, o Poder Judiciário entende que a restrição da amplitude dos efeitos retira a eficiência da sanção, que visa à proteção da supremacia do interesse público e o resguardo dos princípios norteadores do direito administrativo.
Inegável que tal linha de raciocínio possui acertos, haja vista que até mesmo os órgãos defensores da corrente restritiva já entenderam que a suspensão deve abarcar todo o Poder Público.
Por outro lado, vale dizer que a teoria restritiva também possui suas qualidades, apesar do excessivo apego a literalidade da lei, o Tribunal de Contas da União e a Advocacia-Geral da União apontam que não foi a intenção do legislador dar tamanha amplitude à sanção. Pois, o dispositivo legal, que prevê a aplicação de sanções administrativas para as inexecuções contratuais, corretamente buscou dar certa graduação as punições.
Entretanto, pode-se afirmar que a graduação da sanção, e consequente diferenciação da suspensão e da declaração de inidoneidade, não residem na amplitude de seus efeitos, mas sim nas diferentes competências e temporariedades das sanções.
Essa dualidade de pensamentos ocasiona uma crescente insegurança jurídica, pois, apesar de os órgãos que exercem o controle administrativo pugnarem pela restritividade da amplitude da suspensão, em decorrência da inafastabilidade da jurisdição e do acesso a justiça toda a demanda que for analisada pelo poder judiciário irá rever o posicionamento do TCU e da AGU.
Insta ressaltar que o objetivo principal do presente trabalho foi alcançado, qual seja a constatação de que nenhum dos atuais posicionamentos possui capacidade de atingir a consolidação do interesse público.
Melhor mesmo seria a legislação preencher as lacunas existentes na aplicação das sanções administrativas, de forma exaustiva, para acabar com todas as dúvidas. Além disso, é preciso que o Poder Judiciário consolide de uma vez o tema, através da edição de uma súmula vinculante.
Nesse toar, é necessário que haja uma urgente mudança legislativa, renovando as disposições da Lei nº 8.666 do ano de 1993, aproximando-a dos entendimentos positivados pela lei de pregão, Lei Federal nº 10.520 de 2002.
Por fim, inegável que o Estado precisa proteger de forma mais eficaz a execução dos contratos administrativos, prevendo a punição mais enérgica as reiteradas inexecuções contratuais, haja vista que não há sentido manter disposições que prevejam a punição de um particular se não há uma punição mais dura para a reiteração, pensamento já consolidado no direito penal brasileiro.
Advogado. Assessor Jurídico do Governo do Estado da Paraíba. Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba UFPB com linha de pesquisa em Políticas Públicas. Pós-Graduado em Direito Público pela PUC/MG. Especialista em Gestão e Auditoria Pública IESP
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