Acredito que a resposta para a pergunta sobre quem deve ser o titular do poder constituinte é clara para os cidadãos. Entretanto devemos responder a pergunta sobre quem é o titular deste poder nas suas várias manifestações históricas.
Retornando a visão (talvez um pouco romântica) dos clássicos da teoria constitucional, encontramos no revolucionário SIÈYES a afirmação de que a nação existe antes de tudo – é a origem de tudo. Sua vontade é invariavelmente legal – é a própria lei. Uma visão idealista importante como construção do discurso do estado constitucional, mas que obviamente não resiste a uma análise histórica. Podemos mesmo perceber que a construção conceitual da idéia de nação para SIÉYES se constitui numa forma de legitimar a vontade do grupo no poder que atua em nome da vontade da nação. De forma diferente, a idéia de nação como estudada no Tomo II, constitui-se em numa construção histórica recente e não algo que existe antes de tudo, mas uma criação do próprio absolutismo.
Como vimos, foi com SIEYES que surge a idéia de poder constituinte, diferenciando este poder constituído, que não pode, na sua ação autônoma, atingir as leis fundamentais contidas na Constituição, criada por um poder constituinte, que, por sua vez, é produto da vontade da nação.
No Direito Constitucional brasileiro um autor importante é PINTO FERREIRA, que afirma que somente o povo tem a competência para exercer os poderes de soberania. Quando analisa os termos Convenção Constitucional,´Assembléia Constituinte´ e ´Convenção Nacional Constituinte´ afirma que a assembléia constituinte é o corpo representativo escolhido a fim de criar a Constituição. Existem para o autor dois tipos principais de organização do poder constituinte. Um será o modelo da convenção constitucional, que é o tipo primitivo onde existe uma assembléia eleita pelo povo para elaborar a Constituição, e não há necessidade de ratificação popular. O segundo modelo é o sistema popular direto, onde a Constituição é votada pela convenção nacional e posteriormente é submetida à aprovação popular através do referendo. Para o autor, este segundo modelo está mais próximo do espírito democrático. [1]
Na história do Estado constitucional, o sujeito do poder constituinte, o seu titular, pode ser individual ou coletivo, capacitado para criar ou revisar a Constituição. Desta forma encontramos na história distorções graves da teoria democrática, onde o titular é um Rei, um ditador, uma classe, um grupo (o que obvio está por detrás do titular individual), todos em nome do povo ou legitimados por poderes outros que o poder que efetivamente os sustenta. O discurso esconde a real fonte do poder, ou mais, o discurso constitui uma fonte do poder ao disfarçar, encobrir sua origem. Entretanto encontramos também, exemplos que poderes constituintes que de forma diferentes, em graus diferentes, expressam a vontade de parcelas expressivas do povo nacional.
Não há dúvida que a vontade do poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos, que permitam que o processo de elaboração da constituição assim como de sua reforma, seja aberto a ampla participação popular, não apenas através de diálogo com os representantes eleitos, mas através de legitima pressão da sociedade civil organizada.
Este poder será democrático na medida em que o processo constituinte sirva como arena privilegiada de demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, seja possível que as manifestações do jogo de forças sociais seja legitimamente exercido. É fundamental para isto que o poder de manipulação do marketing político, da propaganda, o poder de pressão econômica seja minado ao máximo. Não pode uma minoria nos bastidores se sobrepor a vontade presente nas ruas e no campo.
Finalmente um triste fato reportado pela imprensa nacional levou ao questionamento da legitimidade da Constituição de 1988. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, declarou publicamente que artigos da nossa Constituição foram inseridos no texto sem a observância do processo legislativo adequado. Diante deste fato estranho, principalmente pelo fato de um Ministro confessar publicamente um grave desrespeito ao cidadão brasileiro, devemos nos questionar a importância do processo constituinte, ou melhor, a importância da forma, para a legitimação da Constituição. Entretanto voltamos a pergunta inicial: como fica a legitimidade das constituições diante dos fatos expostos, ou, em outras palavras, qual a relação entre forma, conteúdo e legitimidade democrática.
Embora seja importante a existência de um processo democrático na elaboração do texto, a constituição é muito mais do que texto, e são vários os exemplos históricos, como no caso da Lei Fundamental alemã de 1949, que embora tenha nascido de forma inadequada, passa a ser incorporada pela sociedade, sendo hoje sentida e vivida pela sociedade como uma verdadeira Constituição para os alemães.
A Constituição Federal de 1988[2], embora com problemas formais decorrentes de sua história, foi incorporada pela sociedade, tem em cada brasileiro, na sociedade organizada, nos tribunais e juízos de primeiro grau, em administradores e legisladores, seus interpretes e defensores contra o seu desmonte produzido pelo Congresso nacional e por alguns juízes, inclusive do Supremo, quando estes deixam de aplicar a Constituição para proteger políticas econômicas inconstitucionais ou o primeiro quanto desmonta o texto com emendas constitucionais, muitas inconstitucionais, decorrentes de uma visão equivocada que prioriza a econômico ao Direito, como se o econômico fosse matemático, contra o qual o Direito e a Justiça nada podem. Alguns parlamentares mesmo afirmam ser a Constituição responsável pela crise e pela ingovernabilidade.
Especialista, mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG Professor da graduação, mestrado e doutorado da PUC-MINAS e UFMG.
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