Matheus Vinícius Quaresma Florêncio – Advogado, formado pela Universidade Tabosa de Almeida, Asces-Unita, Pós-graduando em Processo Civil pela Escola Superior da Advocacia – ESA Nacional. E-mail: quaresmaflorencio.adv@gmail.com.
Resumo: A Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), que entrou em vigor no Ordenamento Jurídico Brasileiro no ano de 2016, trouxe diversas alterações dentro do âmbito da capacidade civil, sobretudo dentro do instituto da Curatela. Com a entrada em vigor da nova norma, passou a ter a Curatela características diferenciadas, de uma forma flexibilizada, devendo ser aplicada nos limites da deficiência do curatelado, e tendo como principal foco à proteção de seu patrimônio. Ainda dentro das mudanças trazidas, surge a autocuratela, em que aquele que não tenha completa capacidade civil poderá propor ação judicial para proteger sua própria condição jurídica. Tal possibilidade, a princípio, foi revogada pelo Código de Processo Civil de 2015, porém a doutrina entende que continua em vigor, em razão da função principal de igualdade, esculpida no EPD. Outra grande mudança trazida no âmbito do direito pátrio, se refere ao instituto da Tomada de Decisão Apoiada, que, na prática, funciona como uma espécie de assistência, ou seja, pessoas escolhidas pelo portador de necessidades especiais para ajudá-lo a gerir os atos da vida civil. Pretende-se, através desse estudo, identificar a utilização desses institutos, aplicando o método dedutivo, pois partirá da abstração da Lei, bem como, em uma abordagem qualitativa, mostrar como funcionam esses institutos, tomando como base, principalmente, o estudo de artigos sobre o tema e análises de julgados que tratam acerca do assunto, com o objetivo de traçar um panorama de como esses institutos estão sendo visualizados dentro do arcabouço jurídico brasileiro.
Palavras-Chave: Estatuto da Pessoa com Deficiência; Curatela; patrimônio; autocuratela; Tomada de Decisão Apoiada.
Abstract: The Law number 13.146 from July 6th of 2015 (Brazilian Law on the Inclusion of Handicapped People), also known as Handicapped People Statute, which came into force in the brazilian legal system at the year of 2016, brought several changes in the legal capacity range, mainly in the Curatorship Institute. With the entry into force of the new law, it started to have different characteristics, in a flexible way, with the must to be applied within the limits of the curated handicapping, with its patrimony protection being the main objective. Still within the brought changes, comes up the self-curatorship, in which that one who doesn’t have full civil capacibility, will be able to file legal action to protect its own legal status. This possibility was originally revoked by the Brazilian Civil Procedure Rules from 2015, although the legal literature considers that it remains in force, because of the main equality function, carved in the handicapped people statute. Another brought big change in the brazilian laws, refers to the Supported Decision Institute, which in practice works like an assist, in other words, chosen people by the person with disabilities to help it on administering the acts of the civil life. It is intended, through this study, to identify the use of these institutes, applying the deductive method, because it will come up from the abstraction of the law, such as, in a qualitative approach, to show how these institutes work, taking as a reference, mainly, the articles study about the subjects and the judgeds analysis that deal with this subject, with the objective of drawing a panorama of how these institutes are being watched within the system of the brazilian law.
Keywords: Handicapped People Statute; Curatorship; patrimony; self-curatorship; Supported Decision Institute.
Sumário: Introdução, 1. Curatela e Tomada de Decisão Apoiada: origem histórica, 2. A Curatela na Nova Lei de Inclusão, 3. A Autocuratela, 4. A Tomada de Decisão Apoiada dentro do Direito Brasileiro, 5. Conclusão, 6. Referências, 7.
Introdução
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), entrou em vigor no ano de 2016, e com ela vieram também diversas modificações dentro do universo jurídico brasileiro, principalmente no tocante à curatela.
Com as recentes alterações trazidas a efeito pela nova norma, a maneira como a sociedade trata aqueles que tem capacidade civil reduzida deve ser mudada de forma bastante revolucionária, afinal, o conceito anterior de presunção de incapacidade mostra-se bastante ultrapassado.
Hoje, existe a presunção de capacidade, com conceitos novos como a “tomada de decisão apoiada” que, na prática, se assemelha à figura de um assistente; pessoas que são escolhidas por ele para ajudar na tomada de decisões dos atos da vida civil, mas que não tem poder de decisão, servindo como uma espécie de conselheiro.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, incluiu o art. 1783-A no Código Civil de 2002, definindo bem esse instituto:
“Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.”
O grande mérito desse novel instituto é que, os que antes eram considerados como plenamente incapazes, poderão agora reger seus próprios atos civis, de acordo com suas convicções pessoais, sociais e morais.
Registre-se então, que essa nova lei, em termos humanistas, é digna de louvor e aplausos, por inovar na inclusão daquele que por qualquer motivo tenha algum tipo de discernimento incompleto ou reduzido. Porém, do ponto de vista do Direito é que nasce o grande problema: com as recentes alterações trazidas pela hodierna lei, como ficam as novas ações que buscam a curatela? Como ficará a relação entre esses dois institutos que, na prática, funcionam como “limitadores” de capacidade?
Bem, essa não é uma tarefa simples, pois, o Brasil viveu durante vários séculos, um regime jurídico de “proteção” à figura do incapaz. Portanto, o presente estudo, tem como finalidade analisar as mudanças trazidas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, fazendo uma análise crítica, principalmente acerca do modus operandi entre a Curatela e a Tomada de Decisão Apoiada.
Em primeiro lugar, cumpre registrar que o tema abordado no presente estudo é algo novo no ordenamento jurídico brasileiro, por isso, a pesquisa realizada se baseia quase em sua totalidade em artigos científicos publicados em sites e revistas jurídicas que tratam acerca do tema. Para a concretização deste, se faz necessário aplicar o tipo de pesquisa descritivo, pois os institutos em análise já estão em voga no Brasil. Por essa razão é necessário que se faça uma pesquisa, sobretudo para identificar sua utilização dentro do universo do direito, a partir principalmente de estudos doutrinários.
O método de pesquisa aplicado ao projeto será o dedutivo, pois partirá da abstração da Lei (Estatuto da Pessoa com Deficiência) e, a partir desta abstração, observar como estão sendo aplicados, ou como deveriam estar sendo aplicados, os institutos “limitadores da capacidade civil”, observando-se também as mudanças que foram implementadas no Código Civil, principalmente no que tange aos absolutamente incapazes.
A abordagem da pesquisa dar-se-á de forma qualitativa, através de procedimentos que compreendam a consultas de textos, artigos, livros, leis, julgados, jurisprudências, bem como outros elementos que possam ser utilizados com o intuito de incrementar e desenvolver de uma forma mais completa esse trabalho.
Para entender o funcionamento da Curatela, bem como, da Tomada de Decisão Apoiada, dentro do âmbito da Nova Norma de Inclusão da Pessoa com Deficiência, é necessário fazer uma análise histórica acerca do surgimento de ambos os institutos e seus objetivos iniciais dentro do universo jurídico.
A Ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Fátima Nancy Andrighi (2005, p. 3), em palestra proferida no seminário sobre Interdição realizado no próprio órgão jurisdicional, fez um breve comentário acerca do surgimento do instituto da curatela, remetendo ao direito romano, que instituiu normas e condições em relação àqueles que poderiam ser interditados:
“A origem do instituto da Interdição está, como a de tantos outros, no direito romano. A Lei das XII Tábuas já estabelecia normas sobre a incapacidade de portadores de doença mental, surdez e invalidades permanentes, além de prodigalidade. (grifou-se).”
A Lei das XII Tábuas, conforme preleciona Dalmir Teixeira Rolim (2016), foi um importante documento elaborado dentro do seio do Direito Romano:
“a Lei das Doze Tábuas constituía uma antiga legislação que está na origem do direito romano. Foi uma das primeiras leis que ditavam normas eliminando as diferenças de classes, atribuindo a tais um grande valor, uma vez que as leis do período monárquico não se adaptaram à nova forma de governo, ou seja, à República, assim essa nova legislação trouxe igualdade entre a população romana, o que foi muito importante. A Lei das Doze Tábuas foi um importante documento não apenas da História de Roma, mas para toda a posteridade, sendo o primeiro documento legal escrito do direito romano, início onde se basearam praticamente todos os corpos jurídicos do Ocidente.”
A supracitada norma, trazia de forma expressa recomendações acerca de como se daria o processo de interdição, dizendo que “se alguém se torna louco ou pródigo e não tem tutor, que a sua pessoa e seus bens sejam confiados à curatela dos agnados e, se não há agnados, à dos gentis” (2011), ou seja, os parentes ou pessoas próximas/da mesma região. Além disso, seus objetivos eram bastante definidos, na medida em que tinham como principal foco a proteção do patrimônio e do interesse dos herdeiros.
Acerca do tema, Joyceane Bezerra de Menezes e Jáder de Figueiredo Correia Neto (2017, p. 990), de acordo com os ensinamentos de Moreira Alves, prelecionam que a origem do instituto teve como principal foco a proteção do patrimônio e do interesse dos herdeiros, deixando de lado a proteção da figura do incapaz:
“(…) observa-se que a origem do instituto não está na proteção da pessoa do incapaz. O principal foco estaria na proteção do patrimônio e do interesse dos herdeiros. Veja que, desde o direito romano, confiava-se a curatela ao parente mais próximo, notadamente aos herdeiros para que estes, na qualidade de curadores velassem o patrimônio que seria deles. (grifou-se).”
Ainda conforme as precisas lições de Joyceane Bezerra de Menezes e Jáder de Figueiredo Correia Neto (2017, p. 991), no que concerne ao direito brasileiro, a curatela se apresenta com as Ordenações Filipinas, que foi o sistema jurídico vigente durante todo o período do Brasil Colonial.
“A interdição e a curatela se fizeram presentes na legislação brasileira desde os tempos coloniais, notadamente, com as Ordenações Filipinas, cuja vigência se estendeu de 1603 até a promulgação do Código Civil de 1916. (grifou-se).”
Enquanto a curatela mostra-se como um instrumento que apareceu em terras brasileiras desde os tempos coloniais, não se pode falar o mesmo da tomada de decisão apoiada, que só estreou no direito pátrio com a entrada em vigor do novel instituto.
Atenta-se ao fato de que esse, assim como a curatela, foi criado com a função de resguardar direitos daqueles que, a priori, não tem discernimento completo para gerir todos os atos da vida civil e por isso, necessitam de apoio.
Nesse ponto, em especial, ocorre uma pequena diferenciação com relação àqueles que podem ser apoiados, isso porque, na tomada de decisão, a pessoa com deficiência escolhe até 02 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos, com o intuito de que possam ajudá-lo a exercer sua capacidade, dentre outras atribuições. Assunto que será melhor explanado mais à frente, em tópico específico.
O que inicialmente cabe ressaltar é que tal instituto não se apresenta como algo pioneiro da legislação brasileira. O legislador, influenciado pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, colocou em prática o que disciplina o art. 12.3 do Decreto 6.949/09, que tem a seguinte redação: “Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.”
Outra legislação alienígena que influenciou fortemente a criação do Novo Estatuto da Pessoa com Deficiência e, consequentemente a tomada de decisão apoiada, foi sem sombra de dúvidas a italiana, nas precisas lições do professor de Direito Civil Nelson Rosenvald (2015):
“O novo modelo jurídico também se inspira no legislador italiano, que através da Lei n. 6/2004 introduziu no Código Civil (arts. 404 a 413) a figura do amministratore di sostegno, ou seja, o administrador de apoio, e ingressa no Brasil por meio do Estatuto da Pessoa com Deficiência quase que simultaneamente com a sua introdução no art. 43 do Código Civil da Argentina, com vigência programada para 2016. (grifou-se).”
Ex positis, vislumbra-se que os institutos da curatela e da tomada de decisão, expressos no Código Civil, bem como, no Estatuto da Pessoa com Deficiência, não são originários do Direito Brasileiro. A legislação pátria bebeu, conforme demonstrado dentro deste tópico, da fonte de diversos ordenamentos jurídicos, sobretudo do Direito Italiano, principal influenciador do Código Civil elaborado em 2002 e, que até hoje continua em vigor.
Antes de começar a falar da curatela propriamente dita, é importante refletir um pouco sobre a figura do incapaz, principalmente no que tange àquele que é portador de algum tipo de deficiência mental, que antes da entrada da Nova Norma de Inclusão da Pessoa com Deficiência, era juntamente com os menores de 16 anos, tratados pelo Código Civil de 2002, como absolutamente incapazes de gerir os atos da vida civil, conforme art. 3°, II e III:
“Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I- os menores de dezesseis anos;
II- os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III- os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. (grifou-se).”
Sabe-se que por mais de 500 anos, os que tinham algum tipo de deficiência mental, transitória ou permanente, sempre foram vistos, até mesmo pelo Direito, como seres humanos que careciam de cuidados, que ficavam por responsabilidade principalmente dos pais.
Esse regime patriarcal em que viveu o Brasil, e que até hoje mostra suas facetas, fez da figura do incapaz alguém a quem se deve zelar, proteger, ser prudente, diligente e tantos quantos sinônimos forem necessários citar para mostrar o quanto se queria protegê-los. Porém, as mudanças trazidas pela nova lei, fazem do instituto da curatela um instrumento bem menos invasivo, com contornos novos, pautados principalmente no princípio da dignidade da pessoa humana.
O professor Ricardo Calderón (2016), em um dos muitos artigos sobre o tema, explica que não mais existe a interdição total:
“(…)a interdição civil completa da pessoa com deficiência não existe mais no novo modelo em vigor. Isso porque a nova legislação prevê que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa e assegura à pessoa com deficiência o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.”
De forma complementar, Ricardo Calderón (2016) também alerta para excepcionalidade dessa medida:
“Para essas situações, o que temos atualmente seria a curatela como medida excepcional. Aspecto relevante é que essa nova curatela fica restrita aos atos de natureza patrimonial e negocial, não afetando a plena capacidade civil da pessoa. Com isso, resta permitido para a pessoa curatelada casar, constituir união estável, exercer direitos sexuais e reprodutivos, dentre outros. Cuida-se de uma curatela muito peculiar. As restrições sempre deverão ser necessárias e justificadas, ajustadas às efetivas necessidades da pessoa envolvida, assegura. (grifou-se).”
Coraci da Silva (2016), retrata à excepcionalidade do regime da curatela:
“pessoas com deficiência mental ou intelectual deixaram de ser consideradas absolutamente incapazes. Todavia, em situações excepcionais, a pessoa com deficiência mental ou intelectual poderá ser submetida a curatela, no seu interesse exclusivo, e não de parentes ou terceiros. Essa curatela, explicou a magistrada, ao contrário da interdição total prevista anteriormente na lei, deve ser, de acordo com o artigo 84 do novo Estatuto, ou seja, proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso. (grifou-se).”
Especialistas no assunto, desde aprovação da nova norma, começaram a escrever e se posicionar acerca do tema e dos seus impactos, sobretudo a respeito da forma como o instituto da interdição, que tem como finalidade principal a busca pela curatela, passa a ser tratado dentro do direito brasileiro.
O professor Maurício Requião (2016, p. 8), também defende a excepcionalidade do regime da curatela:
“A curatela passa a ter o caráter de medida excepcional, extraordinária, a ser adotada somente quando e na medida em que for necessária. Tanto assim que restaram revogados os incisos I, II e IV, do artigo 1.767, do Código Civil, em que se afirmava que os portadores de transtorno mental estariam sujeitos à curatela. Não mais estão; podem estar, e entender o grau de tal mudança é crucial. (grifou-se).”
Também acerca do tema, Pablo Stolze (2016, p. 3), de acordo com os ensinamentos da professora Célia Barbosa Abreu, preleciona que não houve necessariamente o fim da interdição ou curatela, mas sim uma flexibilização: “É o fim, portanto, não do “procedimento de interdição”, mas sim, do standard tradicional da interdição, em virtude do fenômeno da “flexibilização da curatela”.
Em recente decisão, proferida pela Vara de Família e Sucessões da Comarca de Rio Verde-GO, a juíza Coraci Pereira da Silva (2016), entendeu que, com base na Nova Norma de Inclusão, a curatela não poderia ser total, mas sim, dada de forma parcial, nos limites de sua capacidade.
“Com base na fundamentação supra e nos termos do inciso I do art. 487 do Novo Código de Processo Civil, JULGO EXTINTO O PROCESSO COM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, e ACOLHO PARCIALMENTE a pretensão da autora, em consequência NOMEIO P. de F. D. para exercer o encargo de curadora de seu pai J. P. de F. D.. Em recorrência do encargo, deverá representá- lo nos atos que importem na administração de bens e valores, celebração de contratos e outros que exijam maior capacidade intelectual, além dos atos previstos no artigo 1.782, caput, do Código Civil (emprestar, transigir, dar quitação, alienar, hipotecar, demandar ou ser demandado e atos que não sejam de mera administração), na forma do do art. 84, §1º da Lei nº 13.146/2015. (autos nº 1831/2015 – 201502991920; Natureza : Interdição (curatela de interditos); Requerente(s): P. de F. D.; Requerido(s) : J. P. de F. D; TJGO. Comarca de Rio Verde-GO, Vara de Família e Sucessões). (grifou-se).”
No caso supracitado, a requerente entrou com pedido de interdição de seu próprio pai, que estava acometido de Alzheimer e, dessa forma, não teria completo discernimento para gerir os atos próprios da vida civil. A Juíza Coraci Pereira da Silva (2016), seguindo minuciosamente os parâmetros do que estabelece o Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), realizou a entrevista no sentido de apurar o grau de discernimento do requerido, para que dessa forma, a curatela pudesse ser aplicada na medida de sua deficiência e da sua necessidade enquanto cidadão.
“a MM. Juíza passou a interrogar o interditando, que respondeu: que tem conhecimento do pedido de interdição, e concorda que a filha P. de F. D. seja nomeada como sua curadora para administrar seus bens e representá-lo; que os netos não tem interesse na administração do patrimônio; que P. de F. D. é uma pessoa correta, que trabalha e estuda, fala várias línguas; que acha que hoje é quintafeira; que não sabe em que ano estamos, pois após ter sido atacado pela doença não se recorda mais das coisas; que está fazendo tratamento psiquiátrico; que o salário mínimo é R$880,00; que já conheceu o governador pessoalmente porém não se recorda do nome; que não se recorda do nome do prefeito; que já faz tempo que não vota; que durante 60 (sessenta) anos praticou a advocacia e ainda advoga.”
Conforme restou apurado, a juíza entendeu que não era caso de curatela total/absoluta, pois entendeu que, com os avanços trazidos pela Lei Brasileira de Inclusão, deveriam ser observados para quais atos civis o requerido estaria impossibilitado de exercer e dessa forma proferiu sentença de forma detalhada, ponto a ponto acerca das limitações ao qual ele estava sujeito (2016).
“A curatela apenas afetará os negócios jurídicos relacionados aos direitos de natureza patrimonial, não alcança nem restringe os direitos de família (inclusive de se casar, de ter filhos e exercer os direitos da parentalidade), do trabalho, eleitoral (de votar e ser votado), de ser testemunha e de obter documentos oficiais de interesse da pessoa com deficiência. Assim, não há que se falar mais em “interdição”, que, em nosso direito, sempre teve por finalidade vedar o exercício, pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos os atos da vida civil, impondo-se a mediação ou atuação exclusiva de seu curador. Cuidar-se-á, apenas, de curatela específica, para determinados atos. (grifou-se).”
O art. 84, §§ 1° e 3° da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência), deixa claro como a curatela deve ser vista no ordenamento jurídico pátrio.
“Art. 84. A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.
Percebe-se, de acordo com as mudanças implementadas, que a curatela deixou de ser um instrumento tão invasivo quanto antes. Agora, o juiz está adstrito a concedê-la de forma cada vez mais individualizada, sempre observando os limites da deficiência do requerido e, quando necessário, se valendo de equipe multidisciplinar para lhe ajudar a tomar a melhor decisão acerca da ação.
Outra inovação acerca do tema da curatela e que até hoje gera grande debate no cenário jurídico brasileiro, se refere à possibilidade do próprio interessado propor a ação de interdição/curatela, denominada pelo próprio CC/02 de autocuratela.
Tal possibilidade adentrou no ordenamento jurídico pátrio através da Lei 13.146/15, sendo contemplada inicialmente no art. 1768, IV do Código Civil de 2002. Conforme se vê abaixo:
“Art. 1.768. O processo que define os termos da curatela deve ser promovido:
I – pelos pais ou tutores;
II – pelo cônjuge, ou por qualquer parente;
III – pelo Ministério Público.
IV – pela própria pessoa. (grifou-se).”
Nelson Rosenvald (2017) de forma bastante didática e sintética explica o seu funcionamento:
“A “autocuratela” é um negócio jurídico de eficácia sustida, através do qual a pessoa que se encontra na plenitude de sua integridade psíquica promove a sua autonomia de forma prospectiva, planeando a sua eventual curatela, nas dimensões patrimonial e existencial, a fim de que no período de impossibilidade de autogoverno existam condições financeiras adequadas para a execução de suas deliberações prévias sobre o cuidado que receberá e a sua compatibilização com as suas crenças, valores e afetos. (grifou-se).”
Um ponto que merece observação é que as recentes alterações trazidas à baila pela Lei 13.105/15 (Novo Código de Processo Civil), revogaram de forma expressa tal dispositivo, porém, a doutrina de um modo geral defende a permanência desse instituto, por entender, que ninguém teria mais interesse em ver seu direito tutelado do que o próprio interessado.
É esse o entendimento do advogado Manuelito Reis Júnior (2017), que acredita que o maior interessado em ver o seu direito tutelado é a própria pessoa que necessita da curatela. Dessa forma, sustenta que apesar da revogação, o instituto continua valendo. Conforme se vê abaixo.
“Promovendo uma interpretação sistêmica e finalística, não há qualquer sombra de dúvidas, sequer longínqua, de que a revogação do art. 1.768 do Código Civil pelo novo Código Instrumental não afastou a legitimidade da própria pessoa para requerer a curatela. É o que se chama autocuratela. A justificativa salta aos olhos: ninguém mais do que a própria pessoa tem interesse em sua proteção jurídica. Assim, há de se interpretar que ao revogar o multicitado dispositivo do Código Civil, o Código de Processo Civil de 2015 não poderia ter afastado a legitimidade da própria pessoa para a curatela, o que só veio a ser reconhecido pelo legislador posteriormente, durante a vacatio legis do novo Código de Ritos. A harmonia legislativa é imperativa no caso.”
Também acerca do assunto, a advogada Thaís Câmara Maia Fernandes Coelho (2016), que é membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), afirma que a autocuratela seria sobretudo uma maneira de evitar conflitos, por impedir discussões judiciais.
“a autocuratela é o instrumento que possibilita uma pessoa capaz, mediante um documento apropriado, deixar de forma preestabelecida questões patrimoniais e existenciais de forma personalizada, para serem implementadas em uma eventual incapacidade como, por exemplo, um coma. Segundo ela, a autocuratela é uma forma de evitar conflitos, pois impediria as discussões judiciais entre familiares sobre quem seria o melhor curador para aquele incapaz. (grifou-se).”
Nelson Rosenvald (2017), em recente matéria publicada em seu site nos convida a entender um pouco mais a fundo acerca desse instituto, aduzindo que o melhor instrumento para que a própria pessoa possa ver seu direito de ser curatelado efetivado seria uma declaração de vontade, com determinação do futuro curador.
“Outrossim, a autocuratela poderá ser levada a efeito mesmo de forma autônoma a uma TDA. Ao dispor o §1º do art. 755 do CPC/15 que “A curatela deve ser atribuída a quem melhor possa atender aos interesses do curatelado”, inequivocamente, será o ato de autocuratela o fator preponderante para elucidar qualquer dúvida sobre a pessoa (ou pessoas, em caso de autocuratela conjunta) que possa exercer a assistência após a sentença que decrete a curatela. O instrumento mais prático de autocuratela consiste em uma declaração a ser realizada por instrumento particular ou pela via de escritura pública lavrada em cartório de notas, com determinação do nome do futuro curador e margem de atuação. (grifou-se).”
Percebe-se da leitura da matéria supracitada que, apesar do Novo CPC ter revogado de forma expressa o art. 1768, em sua plenitude, o exercício da curatela propiciada pelo próprio interessado continua como meio eficaz e válido dentro do meio doutrinário.
Por essa razão a doutrina entende pela continuidade desse meio de propor a interdição, apesar de ter sido expressamente revogada com a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil.
A resposta a essas indagações e dúvidas que permeiam o direito brasileiro, saltam aos olhos, no momento em que se começa a analisar a sua razão de existir. Afinal, um Estatuto que garante tantos direitos aos Portadores de Necessidades Especiais não poderia, sob hipótese alguma, tolher direitos daqueles a qual tem o dever legal de tratar com igualdade de condições.
A Tomada de Decisão Apoiada, conforme dito alhures, entra no ordenamento jurídico brasileiro como um regime alternativo à Curatela, caracterizando-se como um instrumento em que, aquele que tem algum tipo de deficiência, poderá escolher até 02 (duas) pessoas de sua confiança para ajudá-lo nos atos cotidianos. Tal instituto foi incluído dentro da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, bem como, em seu art. 1783-A no Código Civil de 2002, ambos com a mesma redação legal:
“Art. 1.783-A. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade.”
Vale reforçar que diferente da curatela tal mecanismo de apoio não está adstrito apenas ao portador de algum tipo de deficiência mental, muito pelo contrário, está aberto a todos aqueles que tem algum tipo de dificuldade, e que por isso necessitem de apoio. Esse é o entendimento do professor Maurício Requião (2015), em recente artigo publicado no site do Conjur.
“Note-se que a tomada de decisão apoiada não se relaciona, necessariamente, com o portador de transtorno mental, podendo ser requerida por qualquer sujeito classificável como deficiente nos termos do Estatuto.”
Ainda acerca do tema, Maurício Requião (2015), aduz que um dos grandes méritos desse novel instituto é que se privilegia o exercício da escolha, podendo construir uma rede de pessoas em que confia, para que possam lhe ajudar a resolver os diferentes percalços da vida.
“Privilegia-se, assim, o espaço de escolha do portador de transtorno mental, que pode constituir em torno de si uma rede de sujeitos baseada na confiança que neles tem, para lhe auxiliar nos atos da vida. Justamente o oposto do que podia antes acontecer (e, formalmente, ainda pode!), em algumas situações de curatela fixadas à revelia e contra os interesses do portador de transtornos mentais. (grifou-se).”
Outro ponto que merece destaque, diz respeito a legitimidade ativa para requerer a adoção da tomada de decisão apoiada que, diferente do que acontece na curatela, só poderá ser requerida pelo próprio sujeito que necessita de apoio. Maurício Requião (2015).
“Trata-se de regime que, à semelhança da curatela, se constituirá também pela via judicial. O juiz, antes de decidir, deverá ouvir não apenas o requerente, como também os apoiadores, o Ministério Público e equipe multidisciplinar (artigo 1783-A, §3°). Note-se que a tomada de decisão apoiada é medida cuja legitimidade ativa cabe somente ao sujeito que dela fará uso (artigo 1783-A, §2°), o que reforça o papel da autonomia do portador de transtorno mental. Possuirá apoiadores não porque lhe foram designados, mas porque assim o quis. (grifou-se).”
Também sobre o assunto, Anderson Schreiber (2016) se pronuncia acerca do funcionamento desse instituto, aduzindo que diferente do que preleciona o artigo do EPD que trata da tomada de decisão, esse instrumento não oferece tamanha utilidade, pois trata-se de processo judicial, que se promete longo e burocrático, necessitando inclusive da oitiva do Ministério Público (MP).
“Já em nosso Estatuto da Pessoa com Deficiência, a tomada de decisão apoiada surge como uma espécie de instrumento auxiliar, em benefício do deficiente que já conta, como reconhece o próprio Estatuto, com a possibilidade de uma curatela “proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso” (art. 84, § 3o) – a qual, para alguns autores nacionais, poderia ser concedida preservando-se, inclusive, a plena capacidade da pessoa com deficiência, nos termos do caput do art. 84. Nesse desenho, a tomada de decisão apoiada somente oferecia alguma utilidade se representasse uma via mais simples e informal para o beneficiário, mas não é o que ocorre no Estatuto: trata-se de processo necessariamente judicial, que se promete longo e burocrático, na medida em que, nos termos do § 3o do novo art. 1.783-A, “antes de se pronunciar sobre o pedido de tomada de decisão apoiada, o juiz, assistido por equipe multidisciplinar, após oitiva do Ministério Público, ouvirá pessoalmente o requerente e as pessoas que lhe prestarão apoio. (grifou-se).”
A oitiva do MP também é uma das críticas feitas por Anderson Schreiber (2016), na medida em que segundo o próprio Estatuto, o apoiado é pessoa plenamente capaz, portanto, a oitiva do parquet não encontra fundamento jurídico algum.
“A oitiva do Ministério Público, aliás, é uma exigência equivocada. Trata-se, aqui, de pessoa que, segundo o próprio Estatuto, é plenamente capaz, de modo que a intervenção do Parquet não encontra fundamento jurídico senão no próprio preconceito que o Estatuto pretendia extirpar: o de se tratar a pessoa com deficiência como alguém inapto a decidir sobre seus próprios rumos. O excessivo controle judicial que o Estatuto impõe ao processo de tomada de decisão apoiada tampouco se justifica, à luz da plena capacidade do beneficiário. Melhor teria sido, neste particular, que o legislador brasileiro tivesse ouvido às críticas que a própria doutrina italiana faz à sua reforma legislativa, mirando menos na amministrazione di sostegno, e mais no instituto do sauvegarde de justice, do direito francês, o qual se instaura por mero provimento administrativo, sem necessidade de processo judicial. (grifou-se).”
Reforça-se, portanto, que apesar do caráter inovador trazido pelo instituto da tomada de decisão apoiada, dentro do âmbito do direito brasileiro, alguns pontos merecem observação e críticas. É o caso por exemplo da forma de judicialização desse instituto que, em um primeiro momento, apesar de representar um mecanismo que visa garantir a efetiva subsunção da norma, na prática pode apresentar efeito reverso.
Em que pese a função do Ministério Público em resguardar direitos daqueles que necessitam de cuidados, o Estatuto da Pessoa com Deficiência falha no momento em que entra em contradição com seus próprios preceitos elencados. Afinal, se a característica da tomada de decisão reside no fato de que o apoiado tem capacidade civil plena, razão pela qual ele é o legitimado ativo para propor a ação, a oitiva do MP mostra-se como medida de exagerada proteção do Estado, na medida em que cria estranheza por interferir em uma relação que na teoria diz respeito apenas ao apoiado e seus apoiadores, ambos plenamente capazes de decidir sobre suas próprias escolhas de vida.
Conclusão
Depreende-se do que foi exposto que o instituto da curatela ganhou uma nova roupagem dentro do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), perdendo, sobremaneira, o seu caráter de “substituto” de capacidade civil.
Tal instituto passa agora a ter contornos mais vanguardistas e menos invasivos, onde o julgador, a partir de uma avaliação biopsicossocial, através de uma equipe multidisciplinar, deverá analisar caso a caso, aplicando a curatela quando necessária, na medida de sua deficiência, dando liberdade ao curatelado, quando não for impedido, poder se relacionar em outras vertentes da vida civil, como por exemplo, casar, constituir união estável, constituir família, dentre outros direitos, o que torna a curatela um instituto cada vez mais restrito e que passa a ter como principal contorno, apesar de não ser a única função, um instrumento de proteção aos bens patrimoniais.
Ainda no que se refere à curatela, um dos pontos trazidos pela nova norma foi a possibilidade de que a própria pessoa possa propor a ação, denominada de autocuratela, possibilidade esta que foi revogada de forma expressa pela Lei 13.105 (CPC/15). Porém, apesar dessa revogação, não há como se falar em falta de possibilidade da pessoa com deficiência de poder propô-la, isso porque, negar o direito de quem por causa transitória ou permanente sofre limitações em sua capacidade, de propor ação de curatela, se configura como uma forma de criar diferenciação e de gerar preconceitos, o que fere de forma bastante clara o preceito trazido pela hodierna lei pela busca de igualdade.
Outra novidade trazida pelo EPD é a tomada de decisão apoiada, que na prática funciona como uma espécie de assistência, onde, aquele que tem algum tipo de deficiência, seja ela física ou mental, será legitimado ativo para propor ação, escolhendo até 02 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos.
Porém, apesar da inovação trazida por esse instituto, alguns pontos merecem observação e críticas, por exemplo, a sua judicialização que apesar de visar garantir a efetiva subsunção da norma ao caso concreto, na prática pode apresentar efeito reverso. Afinal, se a característica da tomada de decisão reside na capacidade civil plena do apoiado, razão não existiria à oitiva do MP, caracterizando-se como medida de exagerada proteção do Estado, criando estranheza por interferir na relação que diz respeito apenas ao apoiado e seus apoiadores.
Referências
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