Resumo: Este artigo tem como o objetivo precípuo traçar um breve estudo acerca dos institutos jurídicos da herança jacente e da usucapião. Objetiva, ademais, elucidar a possibilidade de usucapir bens que compõem acervo jacente, garantindo proteção legal e segurança jurídica para o possuidor que viu completado em seu favor o prazo da prescrição aquisitiva antes da prolação da sentença de declaração de vacância, demonstrando que o acervo jacente só é transferido para o domínio público com a prolação da referida sentença.
Palavras-chave: Herança jacente. Herança vacante. Usucapião. Bem imóvel.
Abstract: This paper has as main objective to trace a brief study on the legal institutions of the estate in abeyance and prescription. Objective, in addition, to elucidate the possibility of usucapir assets comprising collections abeyance, ensuring legal protection and legal certainty for the owner who saw completed in its favor the term adverse possession before the delivery of the judgment declaring the vacancy, demonstrating that the acquis abeyance is only transferred to the public domain with the delivery of that judgment.
Keywords: Inheritance abeyance. Unclaimed inheritances. Prescription. Property.
Sumário: Introdução. 1 – Usucapião. 1.1 Conceito. 1.2 Modalidades. 2 – Herança Jacente. 2.1 Conceito. 2.2 Natureza Jurídica. 3 – Usucapião de bens imóveis do acervo hereditário jacente – Entendimento jurisprudencial. Considerações Conclusivas. Referências.
INTRODUÇÃO
É de sabença geral que, em nosso ordenamento jurídico, o evento que determina a abertura da sucessão é a morte do autor da herança. Isso porque o Código Civil de 2002 adotou o princípio droit de saisine. Segundo os ditames desse princípio, o domínio e a posse dos bens que compõem o acervo hereditário transmitem-se aos herdeiros imediatamente após a morte do autor da herança, independentemente de quaisquer outras formalidades ou trâmites legais.
Nesse passo, Flávio Tartuce (2011, p. 107) leciona de forma concisa, mas muito clara que “o destino da herança, com a abertura da sucessão, é a sua entrega aos herdeiros, que, pelo princípio da saisine, recebem desde logo a propriedade dos bens (art.1784 do CC)”.
Maria Helena Diniz (2009, p.39), com o brilhantismo de sempre, define herança como sendo “[…] o patrimônio do falecido, ou seja, o conjunto de bens materiais, direitos e obrigações (CC, arts. 91 e 943) que se transmitem aos herdeiros legítimos ou testamentários”.
Impende destacar que o direito à herança foi alavancado à condição de direito fundamental em nosso ordenamento jurídico, conforme expressamente previsto no art. 5º, inciso XXX, da Constituição Federal de 1988, que prevê que “é garantido o direito de herança”.
No entanto, há casos em que o falecido não deixou herdeiros legítimos ou testamentários certos e determinados, não se tem notícias da existência de algum herdeiro e até mesmo casos em que todos os herdeiros repudiaram a herança que lhes foi deixada. Nesses casos, ter-se-á o que a doutrina chama de herança jacente.
Nesses casos, conforme comando imperativo do art. 1.819 do CC/02, “os bens da herança, depois de arrecadados, ficarão sob a guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância”.
Uma vez declarada a vacância dos bens e sem que haja a habilitação de herdeiros, esses bens, destaque-se, passam para o domínio dos municípios e/ou do DF ou ainda da União, dependendo de onde estiverem localizados esses bens.
É de grande valia ressaltar a abalizada lição de Maria Helena Diniz (2009, p. 88) sobre o tema. Vejamos:
“Deveras, nessas hipóteses a herança não tem dono aparente. Como não há ninguém que alegue a titularidade do acervo hereditário, o Estado, com o escopo de impedir o perecimento ou ruína da riqueza representada por aquele espólio, arrecada-o, para conservá-lo com o intuito de entregá-lo aos herdeiros legítimos ou testamentários que aparecerem e provarem sua qualidade de herdeiro, ou então para declará-lo vacante, se não se apresentar qualquer herdeiro, com o fim de transferi-lo para o patrimônio do poder público”.
No entanto, após essas considerações, é indispensável destacar que o direito à moradia digna e adequada é um direito social assegurado pela nossa Carta Magna, nos termos do seu art. 6º, erigido à categoria de direito fundamental do ser humano pelos tratados ratificados pelo Brasil, bem como cabe destacar que a segurança jurídica é um dos pilares de nosso Estado democrático de direito.
Dentre os institutos jurídicos e medidas cabíveis contidos no ordenamento jurídico brasileiro para a concretização e proteção desse direito à moradia está a aquisição da propriedade por usucapião.
Na prática, o que vemos é que há ocasiões em confrontam-se os interesses daqueles que são possuidores de imóveis que, porventura, componham a herança jacente, com os interesses do poder público, que objetiva integrar esses bens ao seu próprio patrimônio.
A usucapião, por sua vez, relembre-se, também está prevista e bem delineada no Texto Maior.
Surgem, pois, desse conflito de normas e institutos insculpidos no texto da Constituição Federal de 1988, dúvidas quanto a possibilidade de usucapir bens imóveis que compõem o acervo hereditário e quanto a extensão da proteção conferida aos possuidores desses imóveis.
Até que momento corre o prazo da prescrição aquisitiva? Em que momento esses bens passam para o domínio do poder público?
Este trabalho tem como objetivo responder a esses questionamentos de forma clara e elucidativa, saneando possíveis controvérsias, com base na melhor doutrina e na jurisprudência pátria mais moderna.
O método de abordagem teórica deste trabalho será o da abordagem dedutiva, traçando-se um panorama geral sobre a matéria em comento e daí partindo para o assunto específico.
Esta pesquisa se justifica por questões de ordem social e jurídica, ambas do ponto de vista prático e teórico, uma vez que estão em confronto princípios e garantias constitucionais tão importantes para nossa sociedade que merecem ser analisadas mais a fundo e que repercutem tanto no mundo fático como nos debates acadêmicos.
1 USUCAPIÃO
1.1 Conceito
Para Fábio Ulhoa (2011, pp. 96-97):
“Há três grandes modos de aquisição da propriedade imóvel. Em primeiro lugar, a usucapião, consistente no exercício de posse durante certo tempo do bem, atendidas as condições da lei (subitem 3.1). Em segundo, o registro do título, que corresponde ao modo mais usual na atualidade (subitem 3.2). Por fim, a aquisição por acessão, que deriva de fatos jurídicos relacionados à transformação física do bem imóvel. A acessão pode derivar de fatores naturais (subitem 3.3) ou de ação humana (subitem 3.4 e 3.5)”.
Segundo tese esposada por Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 256), usucapião “é modo de aquisição da propriedade e de outros direitos reais suscetíveis de exercício continuado (entre eles as servidões e o usufruto) pela posse prolongada no tempo, acompanhada de certos requisitos exigidos pela lei”.
À nosso modo, de maneira bem simplista, podemos definir a usucapião como uma das formas de aquisição originária da propriedade previstas em nosso ordenamento jurídico, que exige o exercício prolongado da posse e o cumprimento de outros requisitos legais estabelecidos para cada modalidade de usucapião.
1.2 MODALIDADES
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e o advento do Código Civil de 2002, o ordenamento jurídico brasileiro passou a comportar três modalidades de usucapião de bens imóveis, que é o que interessa para este trabalho, a saber: a usucapião extraordinária, a ordinária e a especial. Quanto a essa última modalidade, podemos dividi-la em duas subespécies: rural e urbana. Mais uma vez, podemos ainda dividir essa última subespécie em usucapião especial urbana individual e usucapião especial urbana coletiva. Há ainda uma modalidade especial de usucapião, a indígena. Por fim, há de se falar na modalidade de usucapião conhecida como familiar, que é cerne deste trabalho.
Antes de adentramos no estudo das peculiaridades de cada modalidade de usucapião, nos utilizamos da brilhante lição de Fábio Ulhoa (2011, p.98) para demonstrarmos suas similaridades:
Em todas as espécies de usucapião, há três elementos comuns à posse: continuidade, inexistência de oposição e a intenção de dono do possuidor. São elementos que, aliados aos requisitos próprios de cada espécie (subitem 3.1.2), caracterizam a posse que dá ensejo à aquisição do imóvel por usucapião: a chamada posse ad usucapionem.
Passamos, então, a traçar uma análise desses “requisitos próprios”.
Na usucapião extraordinária, o possuidor que pretende adquirir a propriedade do imóvel usucapiendo, adquire-lhe em prazo mais longo que o exigido nas demais modalidades e prescinde de justo título e boa-fé. Nessa modalidade, os requisitos restringem-se à posse mansa, pacífica e ininterrupta, durante um grande período de tempo e ainda que o possuidor manifeste o animus domini. Para Carlos Roberto Gonçalves (2012, p.260), “o usucapiente não necessita de justo título nem de boa-fé, que sequer são presumidos: simplesmente não são requisitos exigidos. O título, se existir, será apenas reforço de prova, nada mais”.
Conforme prescrição do art. 1.238 do CC/02, exige-se o decurso do prazo de 15 anos para que o possuidor adquira a propriedade do bem imóvel através da usucapião extraordinária. Vejamos:
“Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.”
No entanto, conforme permissivo contido no parágrafo único do supracitado artigo, se aquele possuidor que não detém justo título nem boa-fé e pretende adquirir a propriedade do imóvel usucapiendo tiver estabelecido nesse imóvel sua moradia e de sua família ou que tenha realizado nele obras e/ou serviços produtivos, com uma finalidade econômica útil, o prazo para usucapir será reduzido para 10 anos.
“Art. 1.238, Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.”
Na usucapião ordinária, com previsão normativa extraída do art. 1.242 do Código Civil, os requisitos são o justo título e a boa-fé somados à posse de 10 anos, exercida com animus domini, de forma mansa, pacífica e ininterrupta.
Sobre o justo título, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 343) dizem:
“O justo título pode se concretizar em uma escritura de compra venda, formal de partilha, carta de arrematação, enfim, um instrumento extrinsecamente adequado à aquisição do bem por modo derivado. Importa que contenha aparência de legítimo e válido, com potencialidade de transferir direito real, a ponto de induzir qualquer pessoa normalmente cautelosa a incidir em equívoco sobre a sua real situação jurídica perante a coisa”.
Nessa modalidade de usucapião, o legislador também privilegiou o possuidor que estabeleceu no imóvel usucapido sua moradia ou nele realizou obras ou serviços produtivos, diminuindo, nesses casos, para 05 anos o prazo para usucapião.
“Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.”
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.
Além das duas modalidades de usucapião já citados, nosso ordenamento jurídico prevê ainda a usucapião especial, inserida em nosso ordenamento pela Constituição Federal de 1988.
Essa modalidade de usucapião, chamada pela doutrina de especial, pode ser dividida em especial rural e especial urbana e consagra-se como reflexo do desenvolvimento do conceito de propriedade como integrante da ideia de função social.
A usucapião especial rural encontra previsão normativa no art. 191 da CF/88, cujo texto foi reproduzido tal qual encontra-se no Texto Maior pelo legislador infraconstitucional no art. 1.239 do CC/02. Vejamos:
“Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.”
Como vemos, a usucapião especial rural não exige justo título nem boa-fé, mas, em contrapartida, exige a ocupação produtiva do bem imóvel, devendo o possuidor ali morar e trabalhar, haja visto que seu objetivo é o de fixar o homem na terra, no campo.
A usucapião especial urbana, por seu turno, está regulamentada no art. 183 da CF/88, que abaixo transcrevemos:
“Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1º – O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2º – Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.[…]”
Da mesma forma que ocorreu com a usucapião especial rural, o legislador infraconstitucional, ao editar o CC/02, tão somente transcreveu o teor do dispositivo constitucional acima exposto no art. 1.240 do citado Código Civil de 2002.
Essa modalidade encontra regulamentação ainda na Lei nº 10.257/01 (Estatuto das Cidades), que, em seu artigo 9º, regula a usucapião especial urbana individual, e em seu artigo 10º, que regula a usucapião especial urbana coletiva.
In verbis:
“Art. 9o Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2o O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.
§ 3o Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão.
Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.
§ 3o Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 4o O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.
§ 5o As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.”
No tocante a usucapião especial urbana, é indispensável que se diga que essa modalidade de usucapião não se aplica à posse de terreno urbano em que não haja edificação, pois um dos requisitos é que o possuidor tenha ali estabelecido sua moradia. Ademais, devido a essa exigência, somente pessoa física pode valer-se desse instituto. Vemos ainda que, como nos casos de usucapião especial rural, na usucapião especial urbana não há exigência de justo título nem de boa-fé.
É mister frisar que, por tratar-se de inovação jurídica, a usucapião especial urbana somente se aplica aos casos que porventura ocorram após a entrada em vigor da lei que a estabeleceu.
Cumpre ressaltar que, na usucapião especial urbana individual, o tamanho da propriedade estipulado em lei, qual seja, 250m², é o limite máximo, enquanto que na usucapião especial urbana coletiva é limite mínimo.
Em todos os casos de usucapião especial, o prazo é de 05 anos e é imprescindível que o possuidor ou os possuidores, no caso de usucapião especial urbana coletiva, não possuam outros imóveis, sejam urbanos ou rurais.
Essa modalidade especial de usucapião, chamada de usucapião indígena, foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio através do art. 33 da Lei nº. 6.011/73 (Estatuto do Índio), que assim dispõe:
Segundo Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 259), “as terras objeto dessa espécie de usucapião são rurais e particulares, observando-se, na ação, o rito do art.941 do Código de Processo Civil”.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, pp. 373-374) criticam a manutenção dessa modalidade de usucapião no ordenamento jurídico nos seguintes termos:
“Vê-se que, à época em que foi concebida, a usucapião indígena dispunha de operabilidade. Porém, de 1973 para cá, a criação de novas modalidades de usucapião e repaginação do requisito temporal do modelo tradicional culminaram por subtrair a efetividade de uma norma cuja prioridade era propiciar ao vulnerável uma tratamento diferenciado em função de sua posição de exclusão social”.
Por fim, chegamos à modalidade de usucapião mais recente em nosso ordenamento jurídico, a usucapião chamada de familiar.
A Lei nº. 12.424/2011, que instituiu e regulamenta o programa de governo Minha Casa Minha Vida, inseriu no ordenamento jurídico pátrio, através do recém-criado art. 1.240-A do Código Civil, uma nova modalidade de usucapião, chamada pelos doutrinadores de usucapião familiar, conjugal ou pró-moradia.
Vejamos o teor do citado art. 1.240-A do Código Civil de 2002:
“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. “
Trata-se, pois, de uma nova espécie de usucapião especial urbana, com requisitos muito semelhantes aos das demais espécies dessa modalidade de usucapião, haja visto que a Lei nº 12.424/2011 trata da usucapião familiar nos mesmos termos em que o artigo 183 da CF/88 trata da usucapião especial urbana, exceto no que diz respeito ao exíguo prazo para usucapir, que nessa modalidade é de tão somente 02 anos e também na exigência de que o usucapiente divida a propriedade do imóvel com seu ex-cônjuge ou ex-companheiro e que este tenha abandonado o lar de maneira voluntária e injustificada.
2 HERANÇA JACENTE
2.1 Conceito
O Código Civil de 2002 assim prevê:
“Art. 1.819. Falecendo alguém sem deixar testamento nem herdeiro legítimo notoriamente conhecido, os bens da herança, depois de arrecadados, ficarão sob a guarda e administração de um curador, até a sua entrega ao sucessor devidamente habilitado ou à declaração de sua vacância.”
Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 133) define herança jacente nos seguintes termos: Quando se abre a sucessão sem que o de cujus tenha deixado testamento, e não há conhecimento da existência de algum herdeiro, diz-se que a herança é jacente (CC, art. 1.819).
E continua o ilustre doutrinador: Ainda que haja herdeiro sucessível a herança pode ser jacente, enquanto a sua existência permanecer ignorada.
Por seu turno, Silvio de Salvo Venosa (2011, p. 73), com a percuciência que lhe é comum, assim leciona: Existe jacência, pois, quando, em síntese, não se sabe de herdeiros: ou porque não existem, ou porque não se sabe de sua existência, ou porque os herdeiros eventualmente conhecidos renunciaram à herança.
Ainda reproduzindo os dizeres de Venosa (2011. p. 74):
“Há outros casos de jacência, como a do nascituro, enquanto não ocorre o nascimento, não havendo outro sucessor, e da pessoa jurídica em formação por força de uma deixa testamentária, também não havendo outros sucessores. A situação é a mesma no caso de herdeiro sob condição suspensiva, enquanto não ocorrer o implemento da condição”.
Em brilhante lição, Fábio Ulhoa (2010, p.268) resume com maestria o que importa destacar sobre o conceito e o procedimento da jacência. Vejamos:
“Quando não se apresentam sucessores, legítimos ou testamentários, o patrimônio do falecido é considerado jacente. Quer dizer, ficará sob a guarda e administração de um curador nomeado pelo juiz, à espera de sucessores. No processo de inventário, expedem-se editais, chamando-os. Decorrido um ano sem que apareçam titulares de direito sucessório, declara-se a herança jacente. Também se declara, desde logo, a vacância se todos os herdeiros chamados a suceder renunciarem à herança (CC, arts. 1.819, 1.820 e 1.823)”.
Em resumo, conforme entendimento doutrinário unânime, a herança é considerada jacente quando não há herdeiro certo ou determinado, ou então não se sabe de sua existência, ou ainda quando a herança é repudiada por todos os herdeiros. Trata-se, então, de uma fase do processo que antecede a vacância. Isso ocorre para que o Estado proteja esses bens até que apareça o herdeiro, e, caso não haja herdeiro, esses bens serão incorporados aos bens públicos, nos termos do art. 1.822 do CC/02.
Mister se faz, ainda, diferenciar a herança jacente da herança vacante, sendo aquela tão somente uma fase transitória que conduz a essa última.
Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 133) ensina que:
“A jacência não se confunde com a vacância, é apenas uma fase do processo que antecede esta. A herança jaz enquanto não se apresentam herdeiros do de cujus para reclamá-la, não se sabendo se tais herdeiros existem ou não. O Estado, no intuito de impedir o perecimento da riqueza representada por aquele espólio, ordena sua arrecadação, para o fim de entregá-lo aos herdeiros que aparecerem e demonstrarem tal condição. Somente quando, após as diligências legais, não aparecerem herdeiros, é que a herança, até agora jacente, é declarada vacante, para o fim de incorporação ao patrimônio do Poder Público”.
Por fim, podemos dizer que a herança vacante é aquela devolvida ao Estado por não terem sido localizados nem se habilitado herdeiros no período da jacência, após a realização de todas as diligências legais, obedecido o prazo estabelecido no art. 1.820 ou caso ocorra a circunstância prevista no art. 1.823, ambos do CC/01.
Quanto ao procedimento referente à herança jacente, esse está previsto nos arts. 1.142 a 1.158 do CPC e, podemos dizer, está, basicamente, dividido em três fases: arrecadação dos bens, publicação de editais e entrega dos bens aos herdeiros ou, com a declaração de vacância, ao poder público.
As atribuições do curador são, via de regra, as mesmas de qualquer pessoa que administra bens de outrem, conforme vemos no art. 1.144 do CPC.
2.2 Natureza Jurídica
Para melhor esclarecer o tema, reproduzimos a abalizada lição do ilustre Itabaiana de Oliveira, citado por Carlos Alberto Gonçalves em sua obra intitulada “Direito Civil Brasileiro”:
“O conceito moderno de herança difere do direito romano; este considerava a herança, embora não adida, pessoa jurídica, que representava a pessoa do defunto e, como tal, era capaz de adquirir direitos e contrair obrigações; modernamente, porém, não há herança jacente neste sentido, porque, de acordo com os novos sistemas jurídicos, o domínio e a posse do de cujus transmitem-se, desde logo, aos herdeiros. Assim, por direito pátrio, a herança é: a) jacente_ quando não há herdeiro certo e determinado, ou quando se não sabe da existência dele, ou, ainda, quando é renunciada; b) vacante_ quando é devolvida à fazenda pública por se ter verificado não haver herdeiros que se habilitassem no período de jacência”. (2012, p. 134).
Nos dizeres do próprio Carlos Roberto Gonçalves:
“A herança jacente não tem personalidade jurídica nem é patrimônio autônomo sem sujeito, dada a força retro-operante que se insere à eventual aceitação da herança. Consiste, em verdade, num acervo de bens, administrado por um curador, sob a fiscalização de autoridade judiciária, até que se habilitem os herdeiros, incertos ou desconhecidos, ou se delcare por sentença a respectiva vacância.
Reconhece-se-lhe, entretanto, legitimação ativa e passiva para comparecer em juízo”. (2012, p.134).
Para Flávio Tartuce:
“Sobre a natureza jurídica da herança jacente e da herança vacante, não se pode afirmar que se tratam de pessoas jurídicas, pois não têm personalidade jurídica. Há, apenas, um conjunto de bens arrecadados. Por isso é que se afirma tratar-se de entes despersonalizados”. (2011, p. 107).
Podemos, então, afirmar, com bastante segurança, que a herança jacente não tem personalidade jurídica, porém lhe é reconhecida a legitimidade ativa e passiva para estar em juízo, quando se fizer necessário, representada por seu curador, sendo considerada como ente despersonalizado ou como pessoa formal. Esse é o entendimento ratificado pela jurisprudência pátria e por doutrinadores de grande quilate.
3 Usucapião de bens imóveis do acervo hereditário jacente – Entendimento jurisprudencial
Acerca da possibilidade ou não de usucapião de bens que compõem a herança jacente, Tartuce esclarece:
“Também aqui duas são as correntes que se formam, como resume de maneira clara Flávio Monteiro de Barros “para uns é possível usucapião de herança jacente se o usucapiente completar o prazo de usucapião antes da sentença de vacância. Argumenta-se que essa sentença de vacância é constitutiva, funcionando como o fato gerador da transmissão da propriedade ao Município (…). Os adeptos desse ponto de vista acrescentam, ainda, que o princípio da saisine não é aplicável ao Município na medida em que este não é herdeiro, mas mero destinatário da herança. Outros sustentam a tese da inadmissibilidade da usucapião. Argumentam que o Município, por força do princípio da saisine, adquire a propriedade da herança desde o momento da abertura da sucessão””. (2011, p. 119).
Ocorre que, há muito tempo, mesmo antes do advento do CC/02, o Superior Tribunal de Justiça já vinha adotando o entendimento, hoje pacífico em nossos tribunais, de que é possível, sim, usucapir bens imóveis que compõem o acervo hereditário jacente, deixando claro a opção pela teoria da natureza constitutiva da sentença que declara a vacância.
É o que deduzimos da leitura dos arestos jurisprudências abaixo colacionados.
“CIVIL. USUCAPIÃO. HERANÇA JACENTE. O Estado não adquire a propriedade dos bens que integram a herança jacente, até que seja declarada a vacância, de modo que, nesse interregno, estão sujeitos à usucapião. Recurso especial não conhecido.” (STJ – REsp: 36959 SP 1993/0019991-9, Relator: Ministro ARI PARGENDLER, Data de Julgamento: 24/04/2001, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 11/06/2001 p. 196 LEXSTJ vol. 146 p. 85)
“AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. HERANÇA JACENTE. USUCAPIÃO. FALTA DE ARGUMENTOS NOVOS, MANTIDA A DECISÃO ANTERIOR. MATÉRIA JÁ PACIFICADA NESTA CORTE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 83. I – Não tendo a parte apresentado argumentos novos capazes de alterar o julgamento anterior, deve-se manter a decisão recorrida. II – O bem integrante de herança jacente só é devolvido ao Estado com a sentença de declaração da vacância, podendo, até ali, ser possuído ad usucapionem. Incidência da Súmula 83/STJ. Agravo improvido”. (STJ – AgRg no Ag: 1212745 RJ 2009/0188164-0, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 19/10/2010, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/11/2010)
“DIREITO CIVIL E CONSTITUCIONAL. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. POSSE DEVIDAMENTE COMPROVADA DURANTE O LAPSO DE CINCO ANOS. A HERANÇA, ENQUANTO JACENTE, NÃO INTEGRA O PATRIMÔNIO PÚBLICO, PASSANDO A ESTE APENAS QUANDO DO ATO DE ARRECADAÇÃO E DECLARAÇÃO DE VACÂNCIA. DESPROVIMENTO. 1. Recurso do Município do Rio de Janeiro contra sentença de procedência em ação de usucapião especial urbana, no qual sustenta que o imóvel objeto compõe acervo jacente, portanto, bem público insuscetível de ser usucapido, ainda que na ausência de declaração de vacância. 2. Hipótese que se restringe à demonstração da posse durante o lapso de cinco anos, no período compreendido entre a morte do titular do domínio e a arrecadação do imóvel pelo Município, momento a partir do qual o bem passaria ao domínio público. 3. Apelada que já residia com o titular do domínio quando da morte deste, havida em 1990, permanecendo no imóvel até a arrecadação e declaração de vacância, fato que se deu em 2000, portanto, por demais satisfeito o requisito temporal exigido pela CR. 4. A herança, enquanto jacente, não integra o patrimônio público, passando a este apenas quando do ato de arrecadação e declaração de vacância. 5. Apelo improvido”. (TJ-RJ – APL: 653346620068190001 RJ 0065334-66.2006.8.19.0001, Relator: DES. ADOLPHO ANDRADE MELLO, Data de Julgamento: 13/06/2012, DECIMA PRIMEIRA CAMARA CIVEL, Data de Publicação: 01/08/2012)
Analisando esses e outras dezenas de julgados, vemos que não é possível falar em controvérsia sobre a matéria. A jurisprudência é unânime e pacífica.
Desses julgados, podemos inferir, pois, que os bens que compõem a herança jacente só passam para o domínio público após a declaração de vacância desses bens e que, para usucapir, o usucapiente deve comprovar que o prazo da prescrição aquisitiva se completou em seu favor antes da declaração, por sentença, da vacância dos bens. Mesmo sob a égide do Código Civil de 1916, era esse o entendimento.
Dessa forma, não há que se falar em usucapião de bens públicos quando o prazo para aquisição do bem através de ação de usucapião já estiver completo quando da jacência da herança, já que esses bens só passam para o domínio público com a declaração de vacância, sem prejuízo do direito dos herdeiros legítimos.
Considerações Conclusivas
Por fim, podemos concluir que ainda que haja uma lacuna tanto no direito sucessório quanto no direito das coisas no que toca à usucapião de bens jacentes, nossos tribunais, guiados pela jurisprudência pacífica do STJ, vêm trilhando um caminho de respeito aos princípios, direitos e garantias fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana, o direito à moradia e a função social da propriedade.
Ao reconhecerem o direito à usucapião dos bens da herança jacente, ainda que essa já tenha sido declarada vacante, quando o prazo da prescrição aquisitiva já havia se completado, nossos tribunais garantem aos possuidores desses bens o acesso e gozo de garantias fundamentais inerentes à condição de ser humano, insculpidas em nossa Constituição Federal e reafirmadas nos tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, bem como a segurança jurídica de que os bens que construíram, mantiveram e melhoraram, onde estabeleceram, de boa-fé, suas residências e trabalhos, não lhe serão tomados da noite para o dia.
Bacharel em Direito pela Faculdade do Vale do Ipojuca – FAVIP, Advogado, Pós – Graduando em Direito e Processo Civil pela Escola Superior da Advocacia Professor Ruy da Costa Antunes/ ESA-PE
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