A violação do artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 às garantias constitucionais no Processo Administrativo Tributário

Resumo: O trabalho explora a inconstitucionalidade da alteração promovida pelo artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 no artigo 74 da Lei nº 9.430/1996. Através do estudo das garantias dos contribuintes no processo administrativo, aponta os obstáculos criados pela indiferença das autoridades fiscais às manifestações de inconformidade regularmente protocoladas pelos sujeitos passivos, com destaque para as ofensas aos direitos constitucionais de petição e da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. O trabalho defende ainda a violação do artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 ao princípio da distribuição funcional das normas, dada a suspensão preceituada pelo artigo 151, inciso III do Código Tributário Nacional no tocante às reclamações e aos recursos administrativos.


Palavras-chave: Processo Administrativo, Manifestação de Inconformidade, Devido Processo Legal, Compensação.


Abstract: The paper explores the unconstitutionality of the alteration promoted by article 4 of Law n. 11.051/2004 to article 74 of Law n. 9.430/1996. Through study of the guarantees of taxpayers in the administrative process, it points out the obstacles created by the indifference of the tax authorities to the regularly filed inconformity pleas by taxpayers, with special regard to offenses to the constitutional right of petition and ample defese, contradictory procedure and due process of law. The paper also states the violation of article 4 of Law n. 11.051/2004 to the principle of functional distribution of norms, given the suspension prescribed by article 151, incise III of the National Tax Code in regard to administrative complaints and appeals.


Keywords: Administrative Procedure, Inconformity Plea, Due Process of Law, Compensation.


Sumário: Introdução. 1. A ofensa do artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 ao direito de petição aos poderes públicos. 2. Às garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. 2.1 Os precedentes da Súmula nº 460 do Superior Tribunal de Justiça. 2.2 A possibilidade de utilização do mandado de segurança para compelir a autoridade fiscal a apreciar o recurso administrativo interposto. 3. A ofensa do artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 ao princípio constitucional da distribuição funcional das normas. Conclusão.


Introdução


Em seu artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “b”, a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988c) nos informa que os contribuintes têm o direito de obtenção de certidões que lhes esclareçam o status de adimplemento das obrigações tributárias a que estão submetidos. Tais certidões são objeto dos artigos 205 e 206 do Código Tributário Nacional (BRASIL, 1966).


Com efeito, a certidão se presta a sinalizar “a idoneidade do contribuinte perante terceiros” (MELO, 2004, p. 330). Os artigos da Lei nº 5.172/1966 tratam de duas certidões, contudo: a certidão negativa de débitos tributários (CND) e a certidão positiva de débitos tributários, porém com efeitos negativos (CPD-EN). Nos dizeres de Hugo de Brito Machado (2007, pp. 281/282):


Vale como certidão negativa aquela certidão da qual conste a existência de crédito (a) não vencido; (b) em curso de cobrança executiva em que tenha sido efetivada a penhora; e (c) cuja exigibilidade esteja suspensa (CTN, art. 206). Tanto uma certidão negativa, isto é, dizendo que eu nada estou devendo ao Fisco, como uma outra dizendo que eu devo, mas que o crédito do Fisco contra mim se encontra em uma das três situações mencionadas, produzem o mesmo efeito, porque:


a) se o crédito não está vencido, não se pode dizer que sou inadimplente;


b) se o crédito se encontra em processo de execução, com penhora já efetivada, está com sua extinção garantida, de sorte que o Fisco não tem interesse em denegar a certidão;


c) se está o crédito com sua exigibilidade suspensa, o fundamento da suspensão justifica também o fornecimento da certidão.”


Conforme dispõe o professor da Universidade Federal do Ceará, deve ser emitida a certidão positiva de débitos tributários com efeitos negativos (CPD-EN) quando estiver suspensa a exigibilidade do crédito junto à Administração Fiscal. O próprio Código Tributário Nacional, no exercício da competência que lhe confere o artigo 146, inciso III, alínea “b”, da Carta da República (no tocante à normatização do crédito tributário), estabelece em seu artigo 151 o seguinte:


“Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário: […]


III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo; […]”


Segundo Paulsen (2009, p. 1055), reclamações ou recursos são as “impugnações ou defesas através das quais o contribuinte se insurge contra o lançamento e/ou aplicação de penalidade e os respectivos recursos interpostos contra as decisões tomadas pelos órgãos administrativos julgadores”. Tais expedientes são mecanismos de defesa, frutos da irresignação dos sujeitos passivos ante a cobrança de tributos que entendem indevidos.


Uma das reclamações albergadas pela definição de Paulsen é a manifestação de inconformidade, intentada pelo contribuinte contra a não-homologação pela Administração Fiscal de pleito compensatório formulado. Assim determina o artigo 74 da Lei nº 9.430/1996 (BRASIL, 1996):


“Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão.


§ 1o A compensação de que trata o caput será efetuada mediante a entrega, pelo sujeito passivo, de declaração na qual constarão informações relativas aos créditos utilizados e aos respectivos débitos compensados.


§ 2o A compensação declarada à Secretaria da Receita Federal extingue o crédito tributário, sob condição resolutória de sua ulterior homologação. […]


§ 7o Não homologada a compensação, a autoridade administrativa deverá cientificar o sujeito passivo e intimá-lo a efetuar, no prazo de 30 (trinta) dias, contado da ciência do ato que não a homologou, o pagamento dos débitos indevidamente compensados.


§ 8o Não efetuado o pagamento no prazo previsto no § 7o, o débito será encaminhado à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional para inscrição em Dívida Ativa da União, ressalvado o disposto no § 9o.


§ 9o É facultado ao sujeito passivo, no prazo referido no § 7o, apresentar manifestação de inconformidade contra a não-homologação da compensação.


§ 10. Da decisão que julgar improcedente a manifestação de inconformidade caberá recurso ao Conselho de Contribuintes.


§ 11. A manifestação de inconformidade e o recurso de que tratam os §§ 9o e 10 obedecerão ao rito processual do Decreto no 70.235, de 6 de março de 1972, e enquadram-se no disposto no inciso III do art. 151 da Lei no 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, relativamente ao débito objeto da compensação. […]”


A determinação do § 11 é categórica: protocolada, a manifestação de inconformidade tem o condão de tornar suspenso o débito objeto do pleito compensatório. De acordo com o Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2010b):


“TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. “MANIFESTAÇÃO DE INCONFORMIDADE”. APLICAÇÃO DA LEGISLAÇÃO VIGENTE NO MOMENTO DO ENCONTRO DE CONTAS. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO. PRECEDENTES.


1. O processamento da compensação subordina-se à legislação vigente no momento do encontro de contas, sendo vedada a apreciação de eventual “pedido de compensação” ou “declaração de compensação” com fundamento em legislação superveniente. Precedente: EREsp 488.992/MG, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, DJU de 07.06.04


2. Em consequência, o marco a ser considerado na definição das normas aplicáveis na regência do “recurso de inconformidade” é a data em que protocolizado o pedido de compensação de crédito com débito de terceiros, o que, na hipótese, deu-se em 15 de fevereiro de 2001 e 14 de março de 2001.


3. A “manifestação de inconformidade” foi prevista, pela primeira vez, como meio impugnativo da decisão que não homologa a compensação, na Instrução Normativa SRF 210, de 30 de setembro de 2002, passando a ser normatizada legalmente a partir da Lei 10.833/03 – conversão da MP 135/03 (cf. REsp 781.990/RJ, Rel. Min. Denise Arruda).


4. A Primeira Seção, ao julgar o EREsp 850.332/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, examinando a matéria à luz da redação original do art. 74 da Lei 9.430/96, portanto, sem as alterações estabelecidas pelas Leis 10.637/02, 10.833/03 e 11.051/04, concluiu que o pedido de compensação e o recurso interposto contra o seu indeferimento suspendem a exigibilidade do crédito tributário, já que a situação enquadra-se na hipótese do art. 151, III, do CTN. Precedentes.


5. Ressalte-se que, neste âmbito judicial, não há emissão de juízo de valor quanto à própria validade da compensação efetuada, mas, tão somente, no que tange à aplicação da jurisprudência do Tribunal em relação aos efeitos em que devem ser recebidas as impugnações apresentadas na esfera administrativa anteriormente à Lei 10.833/03 (conversão da MP 135/03).


6. Embargos de divergência providos.”


O acórdão faz referência a dois outros julgados – REsp 781.990/RJ (BRASIL, 2007c) e EREsp 850.332/SP (BRASIL, 2008b) – para esclarecer que a manifestação de inconformidade, antes mesmo da inclusão por parte da Lei nº 10.833/2003 (BRASIL, 2003) do § 11 no artigo 74 da Lei nº 9.430/1996, já permitia a suspensão do crédito tributário nos termos do artigo 151, inciso III, do CTN. Vejamos o teor da última dessas decisões:


“TRIBUTÁRIO. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. COMPENSAÇÃO. HOMOLOGAÇÃO INDEFERIDA PELA ADMINISTRAÇÃO. RECURSO ADMINISTRATIVO PENDENTE. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO TRIBUTO. FORNECIMENTO DE CERTIDÃO POSITIVA COM EFEITO DE NEGATIVA.


1. As impugnações, na esfera administrativa, a teor do CTN, podem ocorrer na forma de reclamações (defesa em primeiro grau) e de recursos (reapreciação em segundo grau) e, uma vez apresentadas pelo contribuinte, têm o condão de impedir o pagamento do valor até que se resolva a questão em torno da extinção do crédito tributário em razão da compensação.


2. Interpretação do art. 151, III, do CTN, que sugere a suspensão da exigibilidade da exação quando existente uma impugnação do contribuinte à cobrança do tributo, qualquer que seja esta.


3. Nesses casos, em que suspensa a exigibilidade do tributo, o fisco não pode negar a certidão positiva de débitos, com efeito de negativa, de que trata o art. 206 do CTN.


4. Embargos de divergência providos.”


Doravante, protocolada a manifestação de inconformidade, suspenso está o crédito tributário que o contribuinte quer compensar. Meramente à luz do artigo 74, § 11, da Lei nº 9.430/1996 e dos artigos 14, 33 e 45 do Decreto nº 70.235/1972 (BRASIL, 1972) – recepcionado como lei ordinária pela Constituição Federal – , temos que os passos seguintes serão o provimento ou o desprovimento da manifestação (com a possibilidade de recurso administrativo) e, posteriormente, o provimento ou o desprovimento do recurso (com a extinção do crédito tributário discutido ou com a cobrança dos valores devidos, ressalvado o artigo 150, § 4º do Código Tributário Nacional.[1]


Entretanto, a Lei nº 11.051/2004 (BRASIL, 2004) trouxe sutil alteração a este cenário. De acordo com as alterações que operou no artigo 74 da Lei nº 9.430/1996, bem como segundo os acréscimos da Lei nº 11.941/2009 (BRASIL, 2009c):


Art. 74. O sujeito passivo que apurar crédito, inclusive os judiciais com trânsito em julgado, relativo a tributo ou contribuição administrado pela Secretaria da Receita Federal, passível de restituição ou de ressarcimento, poderá utilizá-lo na compensação de débitos próprios relativos a quaisquer tributos e contribuições administrados por aquele Órgão. […]


§ 12. Será considerada não declarada a compensação nas hipóteses:


I – previstas no § 3º deste artigo;


II – em que o crédito:


a) seja de terceiros;


b) refira-se a “crédito-prêmio” instituído pelo art. 1º do Decreto-Lei nº 491, de 5 de março de 1969;


c) refira-se a título público;


d) seja decorrente de decisão judicial não transitada em julgado; ou


e) não se refira a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal – SRF.


f)  tiver como fundamento a alegação de inconstitucionalidade de lei, exceto nos casos em que a lei:


1 – tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal em ação direta de inconstitucionalidade ou em ação declaratória de constitucionalidade;


2 – tenha tido sua execução suspensa pelo Senado Federal;


3 – tenha sido julgada inconstitucional em sentença judicial transitada em julgado a favor do contribuinte; ou


4 – seja objeto de súmula vinculante aprovada pelo Supremo Tribunal Federal nos termos do art. 103-A da Constituição Federal.


§ 13. O disposto nos §§ 2º e 5º a 11 deste artigo não se aplica às hipóteses previstas no § 12 deste artigo. […]”


Em meio aos dispositivos concernentes à CSLL e ao regime não-cumulativo de recolhimento dos tributos PIS e COFINS, cuidou a Lei nº 11.051/2004 de limitar aos sujeitos passivos o seu direito à reclamação administrativa. Não apenas seria a compensação nos moldes do § 12 tida por não declarada, mas poderia a Administração Fiscal inclusive deixar de apreciar pedido do administrado em sentido contrário. Tal inovação legislativa recebeu o amparo da doutrina de Leandro Paulsen (2009, p. 1057), in verbis:


“Nos casos específicos da compensação considerada não declarada, previstos no § 12 do art. 74 da Lei 9.430/96, eventual insurgência do contribuinte não terá efeito suspensivo da exigibilidade dos créditos que, indevidamente, teve por extintos. Tal resta expresso no § 13 do art. 74 da Lei 9.430/96, acrescidos pela Lei 11.051/04, e se justifica na medida em que diz respeito a poucos casos em que a compensação é de antemão previamente vedada por lei. Trata-se, efetivamente, de situações em que o contribuinte, não obstante a vedação legal expressa, procede, por conta e risco à compensação, de modo que sua simples desconsideração pelo Fisco é admitida por lei, não sendo o caso de se atribuir à insurgência do contribuinte efeito suspensivo.”


A Segunda Turma do Colendo Superior Tribunal de Justiça também parece ter se dobrado à limitação operada pelo legislador ordinário. Conforme o julgado do REsp 1.066.503/AL, de relatoria do Ministro Castro Meira (BRASIL, 2009b):


“TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO. CRÉDITO DE TERCEIRO. DECISÃO NÃO TRANSITADA EM JULGADO. COMPENSAÇÃO CONSIDERADA NÃO DECLARADA. “MANIFESTAÇÃO DE INCONFORMIDADE”. NÃO CABIMENTO. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO.


1. Não se conhece do recurso especial quando o tribunal de origem não emite juízo de valor sobre os dispositivos tidos por violados. Incidência da Súmula 282/STF.


2. Considera-se não declarada a compensação na hipótese em que o crédito seja de terceiro ou decorrente de decisão judicial não transitada em julgado (Lei 9.430/96, art. 74, § 12, alíneas “a” e “d”), ficando afastada a possibilidade de apresentação de “manifestação de inconformidade” e, em consequência, de suspensão da exigibilidade do crédito (§ 13 do referido dispositivo legal).


3. A “manifestação de inconformidade” passou a ter eficácia suspensiva da exigibilidade do crédito tributário com a edição da Lei 10.833/03, que introduziu os §§ 9º a 11 ao art. 74 da Lei 9.430/96.


4. Recurso especial conhecido em parte e não provido.”


O julgado da Segunda Turma continha ao menos duas imprecisões: em primeiro lugar, não foi a edição da Lei nº 10.833/2003 que concedeu eficácia suspensiva à manifestação de inconformidade – como visto, o julgamento do EREsp 850.332/SP, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, havia consignado que a interpretação pretérita do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996, sem as alterações que lhe foram impressas pelo diploma de 2003, já permitia a suspensão dos créditos tributários objeto de pleito compensatório. Em segundo lugar, não é dado ao legislador ordinário limitar as previsões de suspensão do crédito tributário consignadas por lei complementar. O primeiro dos equívocos foi corrigido pelo REsp 1.100.483/AL (BRASIL, 2010a).[2] O segundo permanece.


Este trabalho não trata da competência de que dispõe o legislador ordinário para disciplinar a compensação tributária. Cuida, por outro lado, da vinculação operada pela Lei nº 11.051/2004 entre a compensação não declarada e a apreciação da manifestação de inconformidade nos termos do artigo 74, § 13, da Lei nº 9.430/1996. Por esse prisma, o artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 (do qual emanam as alterações ao diploma de 1996) violou diretamente alguns preceitos constitucionais, estes refletidos na legislação federal.


Destina-se o primeiro capítulo a analisar a ofensa do artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 ao artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição Federal de 1988, que assegura a todos “o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder”. Permitir à Administração Fiscal que ignore a manifestação de inconformidade apresentada, sem sequer denegá-la, representa, como veremos adiante, ofensa ao direito de petição consignado no texto maior.


O segundo capítulo avalia o § 13 da Lei nº 9.430/1996 como norma facilitadora ou limitativa das garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório (artigo 5º, incisos LIV e LV). A inserção causada pelo artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 é confrontada também com os artigos 2º, 48 e 56 da Lei nº 9.784/1999 (BRASIL, 1999), diploma conformador do processo administrativo em âmbito federal.


Por fim, o terceiro capítulo discute a possibilidade de lei ordinária estabelecer limitação oblíqua a garantia consignada por lei complementar – in casu, o Código Tributário Nacional –, na esteira das competências outorgadas a essa espécie legislativa pelo artigo 146, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal. Questiona-se a medida regulamentar consignada aos diplomas ordinários, e se tal fronteira restou indevidamente alargada pelo artigo 4º da Lei nº 11.051/2004.


Conclui o presente trabalho que o legislador, no interesse de emprestar natureza expeditiva e automática ao processo administrativo na seara tributária, ofendeu não apenas as garantias insuprimíveis ao devido processo legal, à ampla defesa e ao contraditório, mas amputou a suspensão conferida pelo artigo 151, inciso III, do Código Tributário Nacional.


1. A ofensa do artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 ao direito de petição aos poderes públicos


Dentre as garantias fundamentais estipuladas pelo artigo 5º do texto maior, encontra-se o direito de petição aos Poderes Públicos. Sobre sua natureza e amplitude, escreve o Ministro Celso de Mello (BRASIL, 1995):


“O direito de petição, presente em todas as Constituições brasileiras, qualifica-se como importante prerrogativa de caráter democrático. Trata-se de instrumento jurídico-constitucional posto à disposição de qualquer interessado – mesmo daqueles destituídos de personalidade jurídica –, com a explícita finalidade de viabilizar a defesa, perante as instituições estatais, de direitos ou valores revestidos tanto de natureza pessoal quanto de significação coletiva.”


Ora, qual a melhor ilustração para o direito consignado no inciso XXXIV, alínea “a”, do artigo 5º da Carta da República? Seria meramente a figura do servidor público postado atrás de um balcão, anotando o protocolo de petições de defesa dos interesses individuais e coletivos? Ou seria a imagem das portas abertas do Judiciário, do Executivo e do Legislativo para ouvir e apreciar os anseios da sociedade? Alinhamo-nos à segunda hipótese, na esteira dos ensinamentos de Uadi Lâmmego Bulos (2002, p. 174) e de Gilmar Ferreira Mendes et al (2008, p. 568):


“Se, por um lado, como disse Seabra Fagundes, “o direito de petição bem merece ganhar o prestígio da lei pois do seu uso freqüente podem resultar conseqüências positivas para o indivíduo e também para a dinâmica dos serviços públicos”, por outro ele merece resposta, pois a falta de pronúncia da autoridade, além de constituir exemplo deplorável de responsabilidade dos Poderes Públicos, aniquila o direito constitucionalmente assegurado. A obrigação de responder é seríssima. Sua falta configura insurgência contra a ordem instituída a partir de 5 de outubro de 1988.


Embora o texto constitucional não se refira a um direito de ser informado sobre o resultado da apreciação, parece corolário do direito de petição essa conseqüência. Pieroth e Schlink anotam, referindo-se ao direito constitucional alemão, que, da fórmula constitucional adotada (Lei Fundamental, art. 17), resulta, literalmente, apenas um direito a se dirigir ao órgão competente, que permitiria extrair também para a outra parte o dever de receber a petição, o que reduziria imensamente o significado jurídico do instituto. Por isso, afirma-se que do direito de petição decorre uma pretensão quanto ao exame ou análise da petição (Prüfung) e à comunicação sobre a decisão (Bescheidung). Da comunicação há de constar informação sobre o conhecimento do conteúdo da petição e a forma do seu processamento. Embora a jurisprudência alemã não vislumbre aqui um dever de motivação, a doutrina majoritária considera que a decisão há de ser motivada.”


Quando a autoridade administrativa não se pronuncia sobre a manifestação de inconformidade protocolada, ofende o direito de petição contido no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Constituição de 1988. O não-conhecimento da manifestação deveria se evidenciar por decisão administrativa notificada ao sujeito passivo, com abertura de prazo recursal nos termos do artigo 33 do Decreto nº 70.235/1972.


Assim, o elenco de situações nas quais a compensação se tem por não declarada não deveria permitir à Administração Pública que constituísse definitivamente o crédito tributário e inscrevesse o sujeito passivo em Dívida Ativa, não sem resposta expressa da autoridade fiscal sobre a manifestação de inconformidade protocolada. É o que determina o artigo 48 da Lei nº 9.784/1999:


“Art. 48. A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência.”


O comando mencionado se insere no Capítulo XI da Lei nº 9.784/1999, cujo título é “Do Dever de Decidir”. Sobre sua aplicação, discursa o mestre José dos Santos Carvalho Filho (2007. pp. 228-230):


“Se a lei ou algum ato normativo impõe ao administrador o dever de agir, não pode ele quedar-se inerte diante da regra de competência. Em outras palavras, se a lei impõe um facere, ao administrador é vedado atuar com omissão (non facere). A atuação comissiva exigida na lei não pode ser substituída por atuação omissiva. A omissão, nesse caso, estampa flagrante abuso de poder e, portanto, inegável ilegalidade, por contrariar a respectiva norma de competência. […]


O art. 48 da Lei nº 9.784 contempla dever de agir cominado às autoridades administrativas, não só no processo como no âmbito de sua competência material.


Dispõe a lei que a Administração está obrigada a emitir decisões nos processos, bem como responder às solicitações ou reclamações em matéria de sua competência. Embora a norma se dirija à Administração, seu conteúdo, no sentido da obrigação de fazer alguma coisa, só pode ser destinado às autoridades administrativas, vela dizer, aos agentes da Administração dotados desse tipo de competência.


Averba a lei, em aditamento, que a determinação de cumprir obrigação positiva deve ser consubstanciada explicitamente. A idéia que a lei transmite com esse termo é a de que o dever de decidir e de responder tem que ser exercido formalmente, cabendo ao agente competente pronunciar-se expressamente dentro do processo administrativo ou para responder ao que foi solicitado ou ao que foi objeto de reclamação. A formalização da atividade administrativa estampa, na espécie, a comprovação de que a lei foi respeitada pela autoridade competente.”


Nesse sentido, não poderia a Lei nº 11.051/2004 limitar o direito de petição assegurado pelo texto maior aos sujeitos passivos da obrigação tributária. Caso o julgador da primeira instância administrativa conclua pela apuração de compensação realizada nos termos do artigo 74, § 12, da Lei nº 9.430/1996, deverá emitir decisão com notificação ao sujeito passivo, para que possa exercer o seu direito de revisão perante a segunda instância. A indiferença ou o não-conhecimento sem efeitos processuais para o administrado se revela em verdadeira ofensa ao comando constitucional, e conosco concorda o julgado do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (BRASIL, 2000), in verbis:


“PROCESSO ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO. RECURSO ADMINISTRATIVO AO CONSELHO DE CONTRIBUINTES NÃO ADMITIDO. AMPLA DEFESA. ART. 5º, LV, DA CF/88. CTN, ART. 151, III. DECRETO Nº 70.235/72, ART. 33. LEI Nº 8748/93, ART. 3º.


Decisão administrativa que não admite recurso ao Conselho de Contribuintes, por entender que não há previsão legal, baseando-se no art. 3º da Lei nº 8.748/93, é abusiva, lesando direito do contribuinte de ter seu pedido apreciado pelas duas instâncias administrativas. Ofensa aos arts. 151, III, do CTN e 33 do Decreto nº 70.235/72, que prevêem a suspensão da exigibilidade do crédito tributário na pendência de recurso administrativo, bem como à garantia constitucional da ampla defesa – art. 5º, LV.”


Não poderia o administrador se negar a apreciar a manifestação de inconformidade, ou ignorá-la por completo em virtude do artigo 74, § 13, da Lei nº 9.430/1996. Sua decisão, parte integrante do processo administrativo que culminará com o lançamento definitivo da quantia devida, se desdobrará em eventual recurso do sujeito passivo, prerrogativa incluída no princípio constitucional de ampla defesa e contraditório, de cuja aplicação trataremos no tópico seguinte. Pendente de apreciação o recurso, resta suspenso o crédito tributário que nele se discute, à luz da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça:


“TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. COMPENSAÇÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO EM TRAMITAÇÃO. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO. CERTIDÃO POSITIVA COM EFEITO DE NEGATIVA. VIABILIDADE.


1. A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do EREsp 850.332/SP, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 12/8/2008, pacificou entendimento segundo o qual, enquanto pendente processo administrativo em que se discute a compensação do crédito tributário, o fisco não pode negar a entrega da Certidão Positiva de Débito com Efeito de Negativa – CPD-EN, ao contribuinte, conforme o art. 206 do CTN.


2. Interpretação do art. 151, III, do CTN, que sugere a suspensão da exigibilidade da exação quando existente uma impugnação do contribuinte à cobrança do tributo, qualquer que seja.


3. Recurso especial não provido. (BRASIL, 2009d)


TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. PEDIDO DE COMPENSAÇÃO NA ESFERA ADMINISTRATIVA PENDENTE DE ANÁLISE. CAUSA DE SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO.


1. Entendimento pacífico desta Corte no sentido de que o pedido administrativo de compensação de tributos possui o condão de suspender a exigibilidade do crédito tributário, nos termos do art. 151, III, do CTN. Precedentes: REsp 1.100.367/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe de 28.5.2009; REsp 1.044.484/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe de 5.3.2009; REsp 914.318/RJ, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe de 18.12.2008; REsp 774.179/SC, Rel. Min. Eliana Calmon, Primeira Seção, DJ de 10.12.2007.


2. Recurso especial não provido”. (BRASIL, 2010c)


Consideramos pendente o processo administrativo no qual não foi proferida decisão da autoridade fiscal com notificação ao sujeito passivo para recurso à instância superior. Nesses casos, dada a indiferença da Administração Pública ao pleito formulado e a ofensa ao artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a”, da Carta de 1988, resta ao contribuinte a interposição de mandado de segurança, na esteira do que determina o artigo 5º, incisos XXXV e LXIX, do texto maior, bem como do artigo 1º da Lei nº 12.016/2009 (BRASIL, 2009e). O eminente Ministro Joaquim Barbosa reitera o comando legal em julgado de 2007:


“MANDADO DE SEGURANÇA. RECURSO ADMINISTRATIVO. INÉRCIA DA AUTORIDADE COATORA. AUSÊNCIA DE JUSTIFICATIVA RAZOÁVEL. OMISSÃO. SEGURANÇA CONCEDIDA.


A inércia da autoridade coatora em apreciar recurso administrativo regularmente apresentado, sem justificativa razoável, configura omissão impugnável pela via do mandado de segurança. Ordem parcialmente concedida, para que seja fixado o prazo de 30 dias para a apreciação do recurso administrativo”. (BRASIL, 2007a)


Configura ofensa ao direito de petição a recusa de conhecimento da manifestação de inconformidade manejada com o fito de debater a não-homologação do expediente compensatório. Conforme veremos a seguir, entretanto, a ação mandamental – conquanto adequada para contornar o abuso de autoridade perpetrado em uníssono pelos administradores públicos e pelo legislador que lhes empresa pretensa legitimidade – sofre ela mesma vedação sumular ante os procedimentos compensatórios elencados no § 12 do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996.


2. A ofensa do artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 às garantias constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório


Os incisos LIV e LV do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 asseguram aos litigantes em processo judicial ou administrativo, bem como aos acusados em geral, as garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Com o fito de interpretar essa proteção, vejamos a lição de Guerra (2003, p. 100) e Cintra et al (2002, pp. 52-57):


“O devido processo legal tanto se pode referir ao direito fundamental ao processo devido, como um direito fundamental dotado de um conteúdo complexo, como também é possível referir-se a cada uma das exigências aninhadas nesse conteúdo complexo como constituindo um direito fundamental. […] A vantagem em se identificar cada uma dessas exigências e denominá-las individualmente é a de facilitar a sua operacionalização pelo intérprete, isto é, auxiliá-lo na solução de questões relacionadas com a concretização de tais valores.


O princípio do contraditório também indica a atuação de uma garantia fundamental de justiça: absolutamente inseparável da distribuição da justiça organizada, o princípio da audiência bilateral encontra expressão no brocardo romano audiatur et altera pars. Ele é tão intimamente ligado ao exercício do poder, sempre influente sobre a esfera jurídica das pessoas, que a doutrina moderna o considera inerente mesmo à própria noção de processo. […]


Em síntese, o contraditório é constituído por dois elementos: a) informação; b) reação (esta, meramente possibilitada nos casos de direitos disponíveis).


O contraditório não admite exceções: mesmo nos casos de urgência, em que o juiz, para evitar o periculum in mora, provê inaudita altera parte (CPC, arts. 929, 932, 937, 813 ss.), o demandado poderá desenvolver sucessivamente a atividade processual plena e sempre antes que o provimento se torne definitivo.


Em virtude da natureza constitucional do contraditório, deve ele ser observado não apenas formalmente, mas sobretudo pelo aspecto substancial, sendo de se considerar inconstitucionais as normas que não o respeitem.”


O ilustre doutrinador português J. J. Gomes Canotilho (2011, p. 505) nos informa da existência de um princípio da plenitude da garantia jurisdicional administrativa, instrumentalizado pelo contraditório e pela ampla defesa disponibilizados ao administrado – tudo de acordo com os ditames estruturais do devido processo legal (due process of law). Cá conosco, temos o contraditório e a ampla defesa como princípios norteadores do processo administrativo federal. Tal é a dicção do artigo 2º da Lei nº 9.784/1999, in verbis:


“Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.”


Ora, quando ignora ou não conhece a manifestação de inconformidade protocolada pelo sujeito passivo, a Administração Pública faz juízo próprio de subsunção aos preceitos do artigo 74, § 12, da Lei nº 9.430/1996 e impede ao administrado sequer a possibilidade de recurso à instância superior. O debate meritório sobre a compensação não pode nem mesmo ser ventilado em mandado de segurança, tendo em vista a proibição constante da Súmula nº 460 do STJ (BRASIL, 2010e), que determina: “É incabível o mandado de segurança para convalidar a compensação tributária realizada pelo contribuinte”. Doravante, assume o processo administrativo posição ainda mais vital, sendo a única oportunidade para o contribuinte discutir a não-homologação por parte do Fisco.


2.1. Os precedentes da Súmula nº 460 do Superior Tribunal de Justiça.


Suponhamos que o contribuinte tente extinguir crédito tributário contra si oponível (porém ainda não constituído definitivamente) através de procedimento compensatório identificado pelo artigo 74, § 12, inciso II, alínea “a” da Lei nº 9.430/1996: digamos que queira compensar valores devidos a título de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) com “créditos-prêmio” de IPI, instituídos pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 491/1969 (BRASIL, 1969). Nesse caso, sua compensação será tida por não declarada – o sujeito passivo não terá sequer o direito a eventual manifestação de inconformidade, dada a vedação do § 13 do artigo 74 referido. Poderá se valer de mandado de segurança para homologar o pleito compensatório?


A resposta da Súmula nº 460 do Superior Tribunal de Justiça é negativa. Com efeito, a instrução probatória capaz de atestar a idoneidade da compensação intentada pelo contribuinte não se coaduna com os aspectos estruturais do mandado de segurança. Para repelir a aplicação do § 12 do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996 à compensação formulada, teria o sujeito passivo de ajuizar ação anulatória – graças ao lançamento do tributo – nas linhas do procedimento ordinário do Código de Processo Civil (BRASIL, 1973).


O primeiro dos precedentes da Súmula em comento foi o julgado do AgRg no REsp nº 660.803/PE (BRASIL, 2006a). Naquela ocasião, a corte se deparou com mandado de segurança no qual requereu o impetrante não apenas a declaração de inconstitucionalidade dos Decretos nos 2.445/88 (BRASIL, 1988a) e 2.449/88 (BRASIL, 1988b) para fins de compensar valores indevidamente pagos ao Fisco Federal a título de PIS (Programa de Integração Social). Em seu pedido, solicita o autor “que não seja molestado pela autoridade coatora ante ao fato de estar procedendo à compensação dos valores recolhidos a maior”. O voto da relatora, Ministra Eliana Calmon, é elucidativo sobre o caso:


“Ora, a questão não é apenas de direito, pois discute a homologação dos cálculos apresentados pela impetrante, o que afasta o requisito do direito líquido e certo amparável por mandado de segurança, previsto no art. 1º da Lei 1.533/51. Assim sendo, entendo correto o encaminhamento dado pelo Tribunal no sentido de considerar indispensável a dilação probatória e, conseqüentemente, inadequada a via mandamental.


Ademais, o que se infere da narrativa expendida na inicial é que a pretensão da impetrante é de cunho claramente condenatório, uma vez que pretende a apuração do quantum , como se objetivasse garantir a própria compensação na via estreita do mandamus, o qual não se confunde com ação de cobrança. Diante desse contexto, aplicável a Súmula 269 do Supremo Tribunal Federal, que assim dispõe: “O mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança”.


As decisões no REsp nº 881.169/SP (BRASIL, 2006b), no REsp nº 900.986/SP (BRASIL, 2007b), no AgRg no REsp nº 728.686/SP (BRASIL, 2008c) e no AgRg no REsp nº 725.451/SP (BRASIL, 2009a) repetem os mesmos fundamentos. Em cada um dos mandados de segurança analisados, o contribuinte mencionou que havia procedido à compensação tributária nos termos do artigo 66 da Lei nº 8.383/1991 (BRASIL, 1991). A perpepção de que o pleito autoral se endereçava à homologação superveniente das compensações efetuadas sponte propria gerou o desprovimento dos mandados de segurança.


O último precedente, julgado do Recurso Especial nº 1.124.537/SP (BRASIL, 2009f), trata de situação na qual o contribuinte procedeu à compensação de créditos de IRPJ (Imposto de Renda Pessoa Jurídica) com o antigo FINSOCIAL. Nesses casos, e conforme voto do Ministro Luiz Fux, não pode o STJ obstaculizar o exercício de fiscalização por parte das autoridades administrativas quanto à procedência das compensações.


Portanto, caso não veja admitido seu pleito compensatório, deverá o contribuinte recorrer administrativamente da decisão ou ajuizar ação ordinária com o objetivo de convalidar a compensação efetuada. Esta última alternativa se torna a única nos casos em que a compensação intentada pelo contribuinte fizer parte da lista do § 12 do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996, conforme mencionado.


2.2. A possibilidade de utilização do mandado de segurança para compelir a autoridade fiscal a apreciar o recurso administrativo interposto.


Embora não seja permitido ao contribuinte impetrar mandado de segurança para convalidar compensação realizada perante o Fisco, lhe é possível utilizar o mandamus para compelir a autoridade fiscal a apreciar o recurso administrativo interposto contra eventuais compensações identificadas pelo § 12 do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996. Este pedido – ao contrário daquele – se restringe a solicitar uma determinação judicial para que a autoridade coatora se abstenha de cumprir a determinação legal em homenagem aos princípios de ampla defesa, contraditório e à garantia do due process of law.


Nesse sentido, o writ interposto cuidará de preservar o direito do sujeito passivo à apreciação de sua manifestação de inconformidade. Esse direito se identifica com as garantias do contraditório e da ampla defesa, de modo que qualquer consideração meritória por parte da Administração Pública deve ser permeada por intervenções processuais facultadas ao administrado. Assim defende a doutrina:


“O princípio do contraditório é formado por dois elementos: o direito de informação e o direito de reação. É necessário que seja dada ciência, por meio de intimações e notificações, ao interessado dos fatos, argumentos e documentos apresentados no processo. […] O contraditório é princípio absoluto, ou seja, não admite exceções. A sua inobservância acarreta a nulidade do processo. (HARGER, 2008, pp. 142/143)


O princípio da revisibilidade consiste no direito de o administrado recorrer da decisão que lhe seja desfavorável. Tal direito só não existirá se o procedimento for iniciado por autoridade do mais alto escalão administrativo ou se for proposto perante ela. Neste caso, como é óbvio, o interessado mais não poderá senão buscar as vias judiciais. […]


Deveras, seriam impossíveis “o contraditório e a ampla defesa”, constitucionalmente previstos, sem audiência do interessado, acessos aos elementos do expediente e ampla instrução probatória. Assim, também, seria impossível exercitá-los eficientemente sem direito a ser representado e assistido por profissional habilitado. De outra parte, uma vez que o Texto Constitucional fala em “recursos a ela inerentes” (isto é, inerentes à ampla defesa), fica visto que terá de existir revisibilidade da decisão, a qual será obrigatoriamente motivada, pois, se não o fosse, não haveria como atacá-la na revisão.” (MELLO, 2005, pp. 465-474)


A indiferença da Administração Pública à manifestação de inconformidade protocolada, ainda que com supedâneo no artigo 74, § 13, da Lei nº 9.430/1996, ofende as garantias constitucionais de contraditório e ampla defesa, plenamente aplicáveis ao processo administrativo fiscal. Como visto, o contraditório é princípio absoluto na relação processual entre Administrador e administrado. Assim, se impedida a apreciação detalhada da manifestação de inconformidade, bem como se obstado o recurso da decisão à instância superior, será nulo o processo administrativo que se encerrou com a constituição definitiva do crédito e a inscrição do sujeito passivo em Dívida Ativa. Vejamos o que assevera a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, embora em análise exclusiva do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996 (sem as alterações que lhe foram feitas pelos diplomas supervenientes):


“TRIBUTÁRIO. COMPENSAÇÃO INFORMADA PELO CONTRIBUINTE EM DCTFs. PROCESSO ADMINISTRATIVO EM ANDAMENTO. SUSPENSÃO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. IMPOSSIBILIDADE DE EXECUÇÃO IMEDIATA POR PARTE DO FISCO DE EVENTUAIS VALORES QUE TENHA DISCORDADO QUANTO À COMPENSAÇÃO, ANTES DE FINDO O RESPECTIVO PROCESSO ADMINISTRATIVO.


1. “A entrega de declaração pelo contribuinte reconhecendo débito fiscal constitui o crédito tributário, dispensada qualquer outra providência por parte do fisco.” (Súmula 436 do STJ).


2. Ocorre que, quanto à compensação, a Primeira Seção do STJ tem o entendimento de que “Realizando a compensação, e, com isso, promovendo a extinção do crédito tributário (CTN, art. 156, II), é indispensável que o contribuinte informe o Fisco a respeito. Somente assim poderá a Administração averiguar a regularidade do procedimento, para, então, (a) homologar, ainda que tacitamente, a compensação efetuada, desde cuja realização, uma vez declarada, não se poderá recusar a expedição de Certidão Negativa de Débito; (b) proceder ao lançamento de eventual débito remanescente, a partir de quando ficará interditado o fornecimento da CND. (EREsp 576661/RS, Rel. Ministro  TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/09/2006, DJ 16/10/2006) Precedentes: REsp 1179646/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/08/2010, DJe 22/09/2010; REsp 1149115/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/03/2010, Dje 15/04/2010; REsp 1072648/SC, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/09/2009, DJe 21/09/2009; REsp 596340/RS, Rel. Ministra  DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 05/12/2006, DJ 18/12/2006; REsp 419476/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/05/2006, DJ 02/08/2006.


3. Realmente, incumbe a autoridade administrativa averiguar a regularidade do procedimento para fins de quitação do crédito tributário por meio de compensação e, caso não concorde com a extinção (por considerar inexiste ou insuficiente o crédito devido ao contribuinte ou ainda por considerar inexistente o direito à compensação) deverá praticar ato manifestando essa discordância, por meio de processo administrativo tributário (que suspenderá o crédito tributário), antes de propor ação fiscal em face do contribuinte.


4. É cediço na doutrina que: Uma vez realizado o lançamento ou provocada a Administração, por iniciativa dos contribuintes ou mesmo ex officio, abre-se a instância de revisão, formando-se o procedimento administrativo tributário, que será regido nos termos da lei (art. 151, III, do CTN).


Assim, a manifestação administrativa do contribuinte suscitando a compensação tributária equivale a verdadeira desconformidade quanto à arrecadação do tributo, abrindo o processo administrativo fiscal de que trata o art. 151, III, do CTN. Esse é o espírito legislativo do referido inciso.


Não há, dentro desse quadro, como entender-se ocorrido o afastamento da taxatividade que deve ser própria ao art. 151 do CTN para se considerar tal interpretação como ampliativa ou extensiva. O que está fazendo o STJ é tão-somente interpretar o real sentido do art. 151, III, do CTN, que sugere a suspensão da exigibilidade do tributo quando existente uma impugnação do contribuinte à cobrança do tributo, qualquer que seja esta.


Esse entendimento é corroborado por Hugo de Brito Machado Segundo (em Código Tributário Nacional: anotações à Constituição, ao Código Tributário Nacional e às leis complementares 87/1996 e 116/2003. São Paulo: Atlas, 2007, p. 297) nos seguintes termos:


A apresentação de reclamações e recursos, em face do indeferimento de um pedido de compensação, ou da não-homologação de uma compensação declarada, têm o mesmo efeito de suspender a exigibilidade do crédito tributário. Afinal, a compensação, que teria o condão de extinguir o crédito tributário, não foi aceita, e o ato de discuti-la torna logicamente impossível que se exija o pagamento do valor de cuja compensação se cogita. Como já tivemos a oportunidade de consignar, trata-se de imposição dos princípios do devido processo legal administrativo, da ampla defesa e do contraditório, e do direito de petição (Processo Tributário, São Paulo: Atlas, 2004, p. 117). […] (BRASIL, 2010f)


Outra decisão do Superior Tribunal de Justiça enfrenta a ausência de manifestação por parte da autoridade administrativa no tocante à própria não-homologação dos valores objeto da compensação tributária. O acórdão, porém, traz importante lição sobre o processo administrativo seguinte:


“TRIBUTÁRIO. DECLARAÇÃO DE CONTRIBUIÇÕES DE TRIBUTOS FEDERAIS – DCTF. COMPENSAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. CRÉDITO NÃO CONSTITUÍDO DEVIDAMENTE. CERTIDÃO DE REGULARIDADE FISCAL.


1. É pacífico na jurisprudência desta Corte que a declaração do tributo por meio de DCTF, ou documento equivalente, dispensa o Fisco de proceder à constituição formal do crédito tributário.


2. Não obstante, tendo o contribuinte declarado o tributo via DCTF e realizado a compensação nesse mesmo documento, também é pacífico que o Fisco não pode simplesmente desconsiderar o procedimento adotado pelo contribuinte e, sem qualquer notificação de indeferimento da compensação, proceder à inscrição do débito em dívida ativa com posterior ajuizamento da execução fiscal.


3. Inexiste crédito tributário devidamente constituído enquanto não finalizado o necessário procedimento administrativo que possibilite ao contribuinte exercer a mais ampla defesa, sendo vedado ao Fisco recusar o fornecimento de certidão de  regularidade fiscal se outros créditos não existirem.


4. Recurso especial não provido.” (BRASIL, 2008a)


Por oportuno, cumpre destacar que eventual alegação de possibilidade de não-conhecimento de ações ou recursos interpostos no Processo Civil não se aplica à manifestação de inconformidade, dada a ausência de notificação do sujeito passivo para que conteste a decisão por seus fundamentos. Doutra parte, a análise conjunta do artigo 74, § 13, da Lei nº 9.430/1996 com a Súmula nº 460 do Superior Tribunal de Justiça indica que a decisão da Administração Fiscal de não homologar a compensação é irrecorrível, ao arrepio da determinação do artigo 35 do Decreto nº 70.235/1972, que afirma ser necessário o encaminhamento de recurso à instância superior mesmo nos casos em que se apure no decisum originário a perempção do direito discutido. Ora, ao inserir o § 13 no artigo 74 da Lei nº 9.430/1996, o artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 inovou na sistemática processual administrativa, tolhendo ao contribuinte o direito de obter decisão (resposta) referente à sua manifestação de inconformidade e o direito de recorrer do não-conhecimento da manifestação para a instância administrativa superior. Permitiu à Administração Fiscal que inscrevesse o contribuinte prontamente em Dívida Ativa, o que se reputa absurdo.


Questiona-se a vinculação de compensações não-declaradas à abreviação do contraditório e da ampla defesa junto à manifestação de inconformidade. Sobre o tema, escreve Machado Segundo (2008, p. 199):


“A propósito, e especialmente em função das alterações levadas a efeito no art. 74 da Lei nº 9.430/96 pela Lei nº 11.051, de 2004, pode ser questionada a validade das restrições feitas ao direito de compensar, a exemplo da restrição do crédito-prêmio de IPI, e aos créditos obtidos junto a terceiros. É certo que o direito de compensar, como qualquer direito, não é absoluto, e pode comportar restrições. Mas essas restrições devem ser razoáveis e proporcionais à finalidade a que com elas se quer chegar.


Em princípio, pode ser razoável a limitação relativa aos créditos obtidos junto a terceiros, a fim de tornar possível o controle da Administração Tributária Federal. Entretanto, caso esse crédito tenha sido apurado em processo judicial (do qual a Fazenda participou, como parte interessada, até seu final desfecho), e tenha sido cedido pelo terceiro no âmbito do citado processo judicial, a restrição pode se afigurar exagerada, desnecessária e, por isso, uma inconstitucional restrição ao direito de propriedade do cedente e do cessionário.


Quanto ao crédito-prêmio de IPI, a discussão, segundo nos parece, deve centrar-se em sua subsistência, ou em sua revogação, não podendo ser resolvida com a pura e simples proibição de que seja compensado. Caso o crédito-prêmio não tenha sido extinto na década de 1980, nem tenha sido alcançado pelo art. 41 do ADCT, por não ter natureza setorial, como nos parece correto, e foi confirmado pela Resolução nº 71/2005, do Senado Federal, é inconstitucional vedar a compensação a ele relativa. Por outro lado, caso se entenda que tal extinção ocorreu, a solução não será negar o direito à apreciação do pedido de compensação, mas sim conhecê-lo e indeferi-lo, se for o caso.”


É de se perceber que o processo administrativo composto pela manifestação de inconformidade se equipara ao processo administrativo de impugnação de lançamento em todos os seus efeitos. Tanto poderá a Administração Fiscal se equivocar na cobrança de valores sem respaldo legal ou na apuração de tributo atingido por decadência, quanto poderá atribuir erroneamente a capitulação de uma das hipóteses de compensação não-declarada aos valores que o sujeito passivo pretende compensar. Se persistente a orientação do § 13 do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996, não terá o sujeito passivo direito a qualquer recurso da não-homologação do pleito compensatório.


3. A ofensa do artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 ao princípio constitucional da distribuição funcional das normas


Na esteira da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2008d) e da doutrina de Michel Temer (2006, p. 148), não existe hierarquia entre a lei complementar e a lei ordinária. A Constituição Federal se ocupou de distribuir a cada uma das espécies legislativas as suas devidas competências, de modo que a alegação de desobediência do Poder Legislativo à ordem seletiva por parte do texto maior se justifica apenas sob o ponto de vista funcional, e não hierárquico.


Nesse sentido, determina o artigo 146, inciso III, alínea “b”, da Constituição Federal de 1988 que cabe à lei complementar estabelecer normas gerais sobre “obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários”. Ora, o preceito da Constituição Federal se estende para as hipóteses de extinção do crédito tributário, de acordo com Velloso (2007, p. 67):


“As normas relativas às formas de extinção dos créditos tributários também se qualificam como normas gerais em matéria tributária. Por essa razão, os dispositivos do CTN que versam sobre o pagamento (art. 157 ss.) têm status de lei complementar, como já decidiu o STF ao declarar a inconstitucionalidade da previsão, em lei ordinária, de nova hipótese de extinção do crédito tributário pela dação em pagamento.”


Se as hipóteses de extinção do crédito tributário merecem tratamento por lei complementar, também o merecem as hipóteses de suspensão. O rol do artigo 151 do Código Tributário Nacional, que enuncia cada uma delas, corresponde ao conceito de “normas gerais em matéria de legislação tributária”, reiterado pelo mestre Leandro Paulsen (2009, p. 92).[3] Assim, temos que a norma constante do artigo 151, inciso III, da Lei nº 5.172/1966 só poderá ser alterada por lei complementar. A norma a que fazemos alusão determina que seja suspensa a exigibilidade do crédito tributário quando pendentes de apreciação as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo.


Para impedir aos sujeitos passivos a suspensão dos créditos que pretendem compensar graças ao protocolo de reclamação ou recurso administrativo, teria o legislador que se utilizar do expediente da lei complementar com o fito de modificar o dispositivo do Código Tributário Nacional. Ocorre que a Lei nº 11.051/2004, da qual é proveniente o artigo 4º, cuja redação inseriu no artigo 74 da Lei nº 9.430/1996 os §§ 12 e 13, é lei ordinária. Como a Constituição impediu à lei ordinária o tratamento de matérias afeitas à lei complementar, evidente que a Lei nº 11.051/2004 anda em descompasso com o texto maior. Mas a questão comporta outras discussões.


Poder-se-ia sugerir que a Lei nº 11.051/2004 não tratou de matéria reservada à lei complementar – sua disciplina se restringe à manifestação de inconformidade no processo administrativo fiscal. Ocorre que, ao disciplinar a manifestação de inconformidade, criou o artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 uma hipótese de não-suspensão de reclamação administrativa, visto que permitiu à Administração Fiscal a inscrição em Dívida Ativa sem sequer processar a manifestação protocolada pelo sujeito passivo. Para além de ofender os direitos fundamentais de petição, de contraditório e ampla defesa, teria a lei ordinária se arvorado a operar modificação vedada até mesmo às emendas constitucionais pelo artigo 60, § 4º, inciso IV do texto maior, segundo o qual “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e as garantias fundamentais”.


Poder-se-ia também sustentar que a Lei nº 11.051/2004 não fez mais do que lhe permitira o próprio inciso III do artigo 151 do Código Tributário Nacional: as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo administrativo tributário, suspendem o crédito tributário nelas debatido. Estaria o artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 justamente regulando uma das reclamações administrativas, e o permissivo expresso do artigo 151, inciso III, da Lei nº 5.172/1966 seria o amparo legal a essa regulação.


Ocorre, contudo, que a norma constante do artigo 151, inciso III, do Código Tributário Nacional não admite restrição por parte do diploma ordinário, apenas esclarecimento da vontade expressa na lei complementar. Ora, a regulação de que trata o inciso III serve para explicitar o sentido da norma, nunca para lhe restringir a aplicação. Dessa forma, requer o Código Tributário Nacional que o legislador ordinário regule as balizas em que o direito à suspensão (este reservado à lei complementar) será garantido aos sujeitos passivos – quando a regulação cria hipótese de reclamação administrativa sem efeito suspensivo, diminui a norma regulada, incorrendo em evidente ofensa à distribuição funcional lançada pela Carta de 1988. Sobre o assunto, vejamos a jurisprudência:


“LIMITAÇÃO DE DIREITO DO CONTRIBUINTE PREVISTO NO ART. 151, III, CTN. OFENSA AO PRINCÍPIO DE HIERARQUIA DAS NORMAS.


O art. 151, III, do Código Tributário Nacional dispõe que ‘as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo, suspendem a exigibilidade do crédito tributário administrativo’. Portanto, diante da natureza de Lei Complementar do Código, hierarquicamente superior às demais normas legislativas, à exceção da Emenda Constitucional, não pode legislação inferior limitar ou condicionar a eficácia de hipótese de suspensão de exigibilidade do crédito tributário. A segunda parte do inciso em comento, ao se referir a leis reguladoras, não autoriza, como se sabe, a que se inove na matéria. A regulamentação apenas deve explicitar o direito garantido ao contribuinte, e nunca limitá-lo, o que só poderia ser providenciado por norma processada na forma de lei complementar. Recurso improvido.” (BRASIL, 2001)


Existe inclusive uma vedação gramatical ao argumento de que a Lei nº 11.051/2004 poderia ter restringido o campo de proteção do artigo 151, inciso III, do Código Tributário Nacional. Com efeito, a frase “nos termos das leis reguladoras do processo administrativo” serve como adjunto adnominal da frase “as reclamações e os recursos”. Nessa condição, o adjunto adnominal pode assumir função restritiva ou explicativa, esta última evidenciada in casu pelo emprego da vírgula. Assim, não estaria suspenso o crédito tributário consignado apenas nas reclamações e nos recursos normatizados pelas leis reguladoras do processo administrativo tributário – a decisão do Superior Tribunal de Justiça no EREsp 850.332/SP comprova a assertiva ao determinar que mesmo quando a manifestação de inconformidade ainda não havia sido disciplinada pela Lei nº 10.833/2003, já lhe era possível a geração de efeitos suspensivos.


A melhor interpretação do artigo 151, inciso III, do Código Tributário Nacional conduziria ao destaque de quaisquer reclamações e recursos administrativos como facilitadores da suspensão do crédito tributário neles debatido. Em segundo lugar, ficaria a lei ordinária encarregada de disciplinar cada expediente processual, de modo a privilegiar os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, e nunca com o fito de suprimir a garantia original prevista em lei complementar.


Conclusão


Conquanto louvável, o interesse do legislador em conferir feição mais ágil e expeditiva ao processo administrativo encontra obstáculo na ampla defesa e no contraditório, bem como na garantia maior do due process of law. A iniciativa de elencar determinadas espécies de pedidos de compensação como “compensações não-declaradas” não permite – como jamais poderia permitir – que a Administração Fiscal se isole na apreciação de cada requerimento e de sua subsunção às hipóteses presentes no § 12 do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996. É ofensa às garantias mais comezinhas do processo administrativo fiscal, listadas em âmbito federal pelo artigo 2º da Lei nº 9.784/1999.


Por outro lado, a limitação oblíqua perpetrada pela Lei nº 11.051/2004 ao Código Tributário Nacional ofende o princípio da distribuição funcional das normas. Ainda que a suspensão do crédito tributário não tenha sido objeto de normatização por parte do diploma ordinário, as reclamações e os recursos administrativos o foram. Determinar que um recurso ou uma reclamação administrativa regularmente protocolados não tenham o condão de suspender a exigibilidade do tributo discutido é usurpar competência da lei complementar e, em última análise, mitigar os efeitos do direito de petição, consignado no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea “a” da Constituição Federal.


A bem da verdade, o mencionado direito de petição é o maior ofendido pelo artigo 4º da Lei nº 11.051/2004. O contribuinte fica impedido de sequer obter resposta sobre a conformação de seu pedido à legalidade tributária ou à lista específica do § 12 do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996. Ademais, e este assunto tangencia aquele abordado no presente trabalho, determina o § 15 do mesmo artigo 74 – inserido pelo artigo 62 da Lei nº 12.249/2010 (BRASIL, 2010d) – que o valor cobrado pela autoridade fiscal será acrescido de 50% (cinquenta por cento) nos casos de “pedido de ressarcimento indeferido ou indevido”. Submete-se o contribuinte às exigências legais e infralegais, procura quitar suas dívidas para com o Fisco através de procedimento compensatório que julga correto, mas tem de si extirpado o direito de se equivocar. Se o fizer, precisa arcar com multa abusiva e confiscatória, o que reitera o cerceamento entalhado pelo legislador ordinário no corpo do artigo 74 da Lei nº 9.430/1996 às garantias do sujeito passivo na relação tributária.


Em suma, a alteração promovida pelo artigo 4º da Lei nº 11.051/2004 no artigo 74 da Lei nº 9.430/1996 apresenta consequências danosas para a própria relação Fisco-contribuinte. Os acréscimos no diploma de 1996 têm o claro objetivo de desencorajar o procedimento compensatório, que é reflexo do direito de propriedade do contribuinte lesado. Caso tenha direito a receber do Estado valores que adimpliu indevidamente (por questões de inconstitucionalidade ou ilegalidade), pode escolher a via de repetição ou a via compensatória, que deveria primar pela celeridade. Outra abordagem aumenta a insegurança dos sujeitos passivos quanto a seu próprio patrimônio (atingido pela multa de 50% em caso de indeferimento ou “não-conhecimento”), o que evidencia a ilegitimidade dos comandos legais que permitiram o surgimento dessa injustiça.


 


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PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à Luz da Doutrina e da Jurisprudência. 11ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, ESMAFE, 2009.

TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 14ª Edição. São Paulo: Malheiros, 1998.

VELLOSO, Andrei Pitten. Constituição Tributária Interpretada. São Paulo: Atlas, 2007.


Notas:

[1] Se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação.

[2] “Firma-se, dessa feita, a segunda premissa: a apresentação de impugnação administrativa à exigibilidade do crédito tributário tem o condão de suspender a sua exigibilidade, nos termos do art. 151, III, do CTN. Assim sendo, merece ser revisto o entendimento firmado nos autos do REsp 1.066.503/AL. Conclui-se que deve o ‘recurso de inconformidade’ da empresa recorrente ser conhecido pela Administração Tributária, ficando suspensa a exigibilidade do crédito tributário objeto do pedido de compensação até a conclusão do julgamento”.

[3] “Conforme já ressaltado em nota genérica acerca do inciso III, em que se insere esta alínea, o rol estabelecido é apenas exemplificativo, não excluindo a abordagem de outros institutos inerentes à tributação que se enquadrem no conceito de normas gerais de direito tributário”.

Informações Sobre o Autor

Lucas de Lima Carvalho

Advogado. Bacharel em Direito (Universidade Federal do Ceará, 2008) e Especialista em Direito Tributário (Fundação Getúlio Vargas, 2010). Membro pesquisador do Grupo de Estudos Tributários do Programa de Pós-Graduação em Ordem Jurídica Constitucional da Universidade Federal do Ceará. Membro da Comissão de Estudos Tributários da Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Estado do Ceará.


Equipe Âmbito Jurídico

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