Resumo: O presente trabalho aborda a vulnerabilidade do consumidor no comércio eletrônico internacional, diante da proteção insuficiente conferida pelo Direito Internacional Privado Brasileiro. Para tanto, a abordagem foi realizada através do método dialético e da análise documental, jurisprudencial e bibliográfica. Inicialmente, foram analisados os aspectos inerentes às relações de consumo feitas por meio eletrônico, sendo ressaltada a importância do princípio da confiança e a posição de vulnerabilidade do consumidor. Em seguida, construiu-se um panorama geral do cenário brasileiro e a necessidade de regulamentação da matéria, sendo apresentada a proposta legislativa de alteração das Leis de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. A seguir foram apresentadas as posições do Direito Internacional Privado quanto ao tema, dentre as quais destacou-se a utilização da autonomia da vontade e a adoção do Código de Defesa do Consumidor como norma de aplicação imediata. Por fim, buscou-se defender a relativização da autonomia da vontade em face da norma mais benéfica ao consumidor. A principal base teórica utilizada no presente artigo foram os textos elaborados por Cláudia Lima Marques e Nádia de Araújo.
Palavras-chaves: Comércio eletrônico; Direito Internacional Privado; Direito do Consumidor.
Abstract: This paper addresses the vulnerability of the consumer in international electronic commerce, given the insufficient protection granted by the Brazilian Private International Law. For that, the approach was accomplished through the dialectical method and the documentary, jurisprudential and bibliographic analysis. Initially, the aspects related to consumer relations made electronically were analyzed, emphasizing the importance of the principle of trust and the position of vulnerability of the consumer. Then, a general overview of the Brazilian scenario and the need for regulation of the matter was prepared, and the legislative proposal to amend the Laws of Introduction to the Rules of Brazilian Law was presented. The following were the positions of Private International Law on the subject, among which the use of autonomy of the will and the adoption of the Code of Consumer Protection as a rule of immediate application. Finally, we sought to defend the relativization of the autonomy of the will in the face of the most beneficial norm for the consumer. The main theoretical basis used in this article were the texts prepared by Cláudia Lima Marques and Nádia de Araújo.
Keywords: E-commerce; International Private Law; Consumer Law.
Resumen: El presente trabajo aborda la vulnerabilidad del consumidor en el comercio electrónico internacional, ante la protección insuficiente conferida por el Derecho Internacional Privado Brasileño. Para ello, el abordaje fue realizado a través del método dialéctico y del análisis documental, jurisprudencial y bibliográfica. Inicialmente, se analizaron los aspectos inherentes a las relaciones de consumo hechas por medio electrónico, resaltando la importancia del principio de la confianza y la posición de vulnerabilidad del consumidor. A continuación, se construyó un panorama general del escenario brasileño y la necesidad de regulación de la materia, siendo presentada la propuesta legislativa de alteración de las Leyes de Introducción a las Normas del Derecho Brasileño. A continuación se presentaron las posiciones del Derecho Internacional Privado en cuanto al tema, entre las cuales se destacó la utilización de la autonomía de la voluntad y la adopción del Código de Defensa del Consumidor como norma de aplicación inmediata. Por último, se buscó defender la relativización de la autonomía de la voluntad frente a la norma más benéfica al consumidor. La principal base teórica utilizada en el presente artículo fueron los textos elaborados por Cláudia Lima Marques y Nádia de Araújo
Palavras-Clave: Comercio electrónico; Derecho Internacional Privado; Derecho del consumidor.
Sumário: Introdução 1. A relação entre consumidor e fornecedor no comércio eletrônico internacional 1.1 O princípio da confiança nas relações de consumo 1.2 Aspectos inerentes às relações contratuais firmadas no âmbito do comércio eletrônico e a formação do vínculo contratual 1.3 A posição de vulnerabilidade do consumidor 2. Cenário brasileiro e a necessidade de regulamentação do comércio eletrônico internacional 3. O direito internacional privado e a proteção do consumidor 3.1 Autonomia da vontade 3.2 Normas de aplicação imediata 4. A conferência de Haia de direito internacional privado 5. Relativização da autonomia da vontade em face da aplicação da norma mais favorável 6. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Com o advento da globalização, surgiram novas formas de comunicação, sendo uma delas a Internet, que apresenta como característica a rapidez de veiculação de informações e a possibilidade de se firmar relações com pessoas de várias partes do mundo.
Nesse contexto, o número de pessoas que passaram a utilizar a internet como meio de comercialização de produtos aumentou signficativamente, assim como dos adeptos dessa nova forma de consumir. Inegável que isso decorre das facilidades que esse tipo de negócio proporciona, além, é claro, do custo mais baixo do que adquirir o mesmo produto em uma loja física.
Em virtude do aumento desse tipo de comercialização, a regularização do comércio eletrônico internacional é um tema que tem se tornado cada vez mais relevantes nos dias atuais.
Neste diapasão, surgiram conflitos relativos às relações de comércio eletrônico internacional, demandando do direito uma solução no que concerne à regularização dessas relações. Isso porque, é o responsável, através do Estado, por regular essas questões juridicamente relevantes que surgem com a evolução da sociedade.
No entanto, como essas relações são firmadas entre contratantes de países distintos, cada qual com seu ordenamento jurídico próprio, surgem diversos conflitos quanto a qual lei é aplicada no caso, sendo que um pode ser mais protetivo ao consumidor e outros não.
Evidente que o consumidor encontra-se em uma situação de vulnerabilidade nessas relações, uma vez que, ao firmar contratos para aquisição de um produto, muitas vezes não compreende suas cláusulas, devido à barreira da linguagem, o que pode colocá-lo em uma situação de risco e insegurança jurídica.
A legislação, tanto nacional quanto internacional, ainda é muito escassa nesse âmbito, motivo pelo qual o consumidor se encontra em uma situação de vulnerabilidade, característica desses contratos, que são, em grande parte de adesão.
Para resolver tais questões é necessário observar as regras do Direito Internacional Privado, os tratados internacionais que promovem a proteção do consumidor, além de outras previsões legais. Contudo, é necessário refletir se as legislações existentes realmente conferem um efetiva proteção ao consumidor.
Dessa maneira, essa discussão se torna importante para regular esse novo tipo de relação, que surgiu na sociedade e que demanda uma proteção do direito, tendo em vista a situação de vulnerabilidade do consumidor e as legislações insuficientes, tanto nacional quanto internacional.
No primeiro capítulo será analisada a relação entre o consumidor e o fornecedor no comércio eletrônico internacional, abordando o princípio da confiança nas relações de consumo, os aspectos inerentes à esse tipo de relação e a formação do vínculo contratual, bem como a posição de vulnerabilidade do consumidor.
No capítulo seguinte analisar-se-á o cenário brasileiro e a necessidade de regulamentação dessa matéria.
O terceiro capítulo abordará a proteção conferida ao consumidor pelas normas de direito internacional privado, sendo analisada a autonomia da vontade e as normas de aplicação imediata.
No quarto capítulo será discutida a Conferência de Haia de Direito Internacional Privado, mais especificamente os Princípios de Haia que tratam sobre o tema.
Por fim, tratará da relativização da autonomia da vontade em face da aplicação da norma mais favorável.
1 A RELAÇÃO ENTRE CONSUMIDOR E FORNECEDOR NO COMÉRCIO ELETRÔNICO INTERNACIONAL
1.1 O PRINCÍPIO DA CONFIANÇA NAS RELAÇÕES DE CONSUMO
As relações consumeristas transformaram-se com o passar do tempo e com o avanço da sociedade, tornando-se cada vez mais complexas, o que culminou na sua realização, inclusive, por meio da internet. Nessas relações, firmadas por meio eletrônico, não há uma materialização do fornecedor e do consumidor, como ocorre nas relações “cotidianas”, fator que reforça a necessidade de proteção e observância do princípio da confiança, sendo essencial para ocorrência desses negócios.
O princípio da confiança se apresenta como característica marcante nas relações contratuais, uma vez que a partir do momento que determinada informação é veiculada, o receptor cria expectativas em relação ao produto/serviço, assim é importante que tal característica também seja garantida no comércio eletrônico.
A confiança encontra-se de maneira implícita no ordenamento jurídico, estando sua existência pautada na necessidade de se proteger e fornecer segurança jurídica para as relações contratuais. Robert Alexy ensina que princípios são “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização […]”.[1] Dessa maneira, deve ser observada e garantida na maior amplitude possível a aplicação desse princípio.
A confiança é um princípio basilar do direito do consumidor, uma vez que é essencial para própria relação consumerista, pois ao firmar relações o fornecedor cria uma série de expectativas ao consumidor de que o produto ou serviço será fornecido tal como foi contratado, ele não espera que será lesado, que a outra parte não agirá com lealdade.
Nesse sentido, Cláudia Lima Marques ensina que “[…] as condutas na sociedade e no mercado de consumo, sejam atos, dados ou omissões, fazem nascer expectativas (agora) legítimas naqueles em que despertamos a confiança, os receptores de nossas informações ou dado”.[2]
Assim, é necessária a proteção a tal princípio para gararantir a própria segurança jurídica do negócio celebrado, de maneira que as expectativas criadas sejam atendidas. Nesse sentido, Antônio Jeová Santos referenciado por Marília Zanchet ensina que “[…] a força obrigatória dos contratos, ou o pacta sunt servanda funda-se, na verdade, na necessidade de tutela da confiança, na proteção do tráfico jurídico, demonstrando igualmente o caráter social da proteção das legítimas expectativas”.[3]
Nesse mesmo sentido, Galea ensina que:
“No âmbito do direito do consumidor, é necessário que o aplicador do direito faça valer a expectativa legítima gerada sobre o bem ou serviço fornecido, e que se mitiguem riscos à segurança, à saúde e aos demais direitos protegidos pela legislação brasileira”.[4]
Nesta seara, é necessário distinguir o princípio da confiança e o princípio da boa-fé, este diz respeito à uma padrão ético a ser obervado pelas partes em suas condutas nas relações contratuais, àquele relaciona-se ao atendimento das expectativas geradas pelas partes naquela relação, assim, são princípios que devem ser observados, mas que não se confundem. Nesse sentido:
“[…] sem dúvida a confiança está na base de todos esses princípios, permeando todas as relações sociais, e portanto, presente desde o momento pré até pós-contratual. Já a boa-fé, embora também presente em todo o desenrolar do processo negocial, suscita deveres diversos dos advindos da confiança. Ao proteger-se a boa-fé, protege-se a confiança”.[5]
Pelo exposto, percebe-se que, em uma relação tão frágil e suscetíveis à vários riscos, como a existente no comércio eletrônico internacional, é essencial a observância ao princípio da confiança como meio de proporcionar uma maior segurança jurídica para as partes, além da garantia ao atendimento das expectativas legítimas que foram criadas.
1.2 ASPECTOS INERENTES ÀS RELAÇÕES CONTRATUAIS FIRMADAS NO ÂMBITO DO COMÉRCIO ELETRÔNICO E A FORMAÇÃO DO VÍNCULO CONTRATUAL
No século passado, uma das principais características das relações de consumo residia no fato de que elas eram firmadas pessoalmente entre fornecedor e consumidor, sendo inimaginável ocorrer de outra maneira. Contudo, com o desenvolvimento tecnológico, decorrente do fenômeno da globallização, também foram aprimoradas as formas de se comercializar, abrindo-se espaço para novas modalidades.
Nesse contexto, a internet tornou-se um importante instrumento de ampliação das relações de consumo pelo mundo, sendo possível firmar relações contratuais com pessoas de diversos países, surgindo a partir daí os contratos eletrônicos e, com eles, diversos conflitos inerentes à questão.
Esse tipo de contratação apresenta elementos diversos daqueles comumente presentes quando realizados na presença de duas pessoas, sendo nas palavras de Ricardo Lorenzetti referenciado por Cláudia Lima Marques:
“[…] destaca como elementos novos (e específicos) deste fenômeno novo de contratação: a distância entre fornecedor e consumidor, a simultaneidade ou atemporalidade da oferta e da aceitação, assim como da contratação em si, a desterritorialiedade da contratação, realizada em “território” virtual, a imaterialidade da execução à distância e a objetividade ou “autonomia” das duas vontades exteriorizadas, seja perante um máquina, um fax, um telefone ou qualquer outro meio virtual”. [6]
A simultaneidade ou atemporalidade consubstancia-se no fato que a oferta e aceitação podem ocorrer em momentos bem próximos, basta estar conectado à internet para estar sujeito às ofertas e a facilidade da contratação do serviço ou compra do produto, não existindo um lapso temporal significativo entre eles.
Com relação ao fornecedor, há uma despersonalização, pois, o contrato não é realizado com uma pessoa e, sim, com uma marca ou site, através de uma máquina, que pode se comunicar ou não com a mesma língua. Já o consumidor, pode ser qualquer pessoa, sendo identificado por um cartão de crédito e uma senha, por exemplo, não sendo possível individualizar o consumidor e fornecedor.
A distância entre o consumidor e o fornecedor, também denominada de desumanização, ocorre quando o negócio jurídico não é realizado na presença física do contratante e contratado e, sim, por meio eletrônico. Tais contratos são denominado de “contratos à distância”, enquadrando-se como um subtipo de contrato “automatizado”, uma vez que, como já dito, é realizado por meio de uma máquina. Nas palavras de Cláudia Lima Marques:
“[…] é um fenômeno plúrimo, multifacetado e complexo, nacional e internacional, onde há realmente uma certa desumanização do contrato. […] aqui temos um outro tipo de contrato pós-moderno, em que a impessoalidade é elevada a graus antes desconhecidos, e no qual todas as técnicas de contratação de massa se reunirão: do contrato de adesão, das condições gerais contratuais, ao marketing agressivo, à catividade do cliente, à internacionalidade intrínseca de muitas relações, à distância entre o fornecedor e o consumidor”.[7]
Tal contrato, apresenta-se ainda como de adesão, no qual não há a possibilidade de discussão das cláusulas com o fornecedor do produto/serviço, nesse caso, o consumidor realiza o contrato com a própria máquina e o simples ato de selecionar uma opção significa seu consentimento e concordância com diversas cláusulas que são intrínsecas àquele contrato, sendo na maioria das vezes desconhecidos pelo consumidor.
Nesse sentido, Vivant[8] prevê quatro tipos de contratos diferentes, quais sejam aqueles de acesso às redes eletrônicas (plano de internet), os contratos de venda de produtos online, os contratos de bens “informacionais” (músicas, revista online, educação à distância) e, por último, os de prestação de serviços online (contratos de agências de viagem, bancos financeiras).
Um ponto importante e que merece destaque é quanto ao momento da ocorrência do vínculo contratual. Nesse ponto, importante mencionar a oferta, que ocorre na fase pré-contratual e possui caráter vinculativo, dispondo o art. 30 do Código de Defesa do Consumidor que a mesma obriga o fornecedor que a veicular integra o contrato que vier a ser celebrado.
Nesse sentido, a formação do vínculo inicia-se ainda na fase pré contratual, uma vez que o fornecedor ao veicular uma oferta se vincula à mesma, que adquire uma força obrigatória e deve integrar o contrato que será realizado. Quantos às práticas pré contratuais, como a oferta, Cláudia Lima Marques ensina que:
“A grande pergunta é qual a força vinculativa dessas práticas: em outras palavras, se tais práticas passam a obrigar efetivamente o fornecedor, se esta obrigação cria um liame, representa um novo vínculo juridicamente relevante entre o consumidor (exposto a estas práticas) e o fornecedor que as ordena ou executa”.[9]
No que tange ao comércio eletrônico a proposta realizada pelo fornecedor e as informações veiculadas pelo próprio site são consideradas ofertas capazes de vincular o fornecedor à prestação daquele produto/serviço nos termos da oferta, bastando a aceitação do consumidor para que se concretize. Nesse sentido Farias e Rosenvald ensinam que:
“A proposta do fornecedor consubstancia todos os elementos da oferta de consumo, sendo aplicável ao comércio eletrônico a vinculação assinalada no art. 30, do Código de Defesa do Consumidos.
[…]
O site será considerado como uma oferta ao público, nos termos do art. 30 do CDC, quando contiver os elementos suficientes do negócio jurídico. A página da WEB será, portanto, vinculante como contrato de consumo”.[10]
Assim, a formação do vínculo contratual nos contratos eletrônicos ocorre com a aceitação do consumidor à oferta, que é realizada através de um simples click no mouse.
A doutrina, contudo, estabelece momentos distintos da aceitação realizada no contrato entre ausentes e no contrato entre presente. Este é aquele em que o contrato é realizado de forma simultânea, não há um espaço temporal grande entre o momento da oferta e da aceitação, ocorre de maneira imediata, há um contato direto. Aquele ocorre quando há resposta não é instantânea, há um lapso temporal maior entre o momento da oferta e da aceitação, não há um contato direto, sendo realizada por meio de email ou carta, por exemplo. Nesse aspecto, Cláudia Lima Marques pontua que:
“Quanto à aceitação entre ausentes, o Código de Defesa do Consumidor nada regula, assim, aplicam-se as normas subsidiárias da legislação geral. Segundo o Código Civil brasileiro de 1916, em seu art. 1.086, e o novo Código Civil de 2002, em seu art. 434, o contrato torna-se prefeito quando da expedição da aceitação pelo consumidor, a qualquer momento, dentro das condições da oferta não retirada devidamente. Já entre presentes, a aceitação deve ser imediata”.[11]
Nesse contexto, o Enunciado 173 da III Jornada de Direito Civil[12] dispõe que “A formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes, por meio eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente”.
Contudo, ressalta-se que a regra do art. 30, CDC, não se aplica aos comércios eletrônicos firmados com fornecedores estrangeiros, uma vez que em tal situação aplica-se a regra presente no art. 9, §2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que dispõe que a lei aplicável será a do país em que residir o proponente, ou seja, o fornecedor. Tal situação, coloca o consumidor em uma posição de extrema vulnerabilidade, que será abordada no tópico seguinte.
1.3 A POSIÇÃO DE VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR
O consumidor, de maneira geral, encontra-se em uma posição vulnerável nas relações de consumo, isso decorre principalmente do fato dele não se encontrar em igualdade de condições com o fornecedor. Tal situação, foi reconhecida como um princípio pelo art. 4º, I do Código de Defesa do Consumidor.
Assim, a vulnerabilidade é um princípio norteador que permeia todo o Código de Defesa so Consumidor, tratando-se de uma vulnerabilidade presumida em relação à pessoa física.
A vulnerabilidade é classificada pela doutrina de diversas formas, sendo as principais a vulnerabilidade técnica que diz respeito ao desconhecimento do consumidor acerca das especificidades daquele produto/serviço que está sendo contratado, podendo ser facilmente manipuladas pelo fornecedor, a vulnerabilidade jurídica que se relaciona a incapacidade do consumidor de compreender os termos daquele contrato que está sendo celebrado e, por fim, a vulnerabilidade econômica que se relaciona a superior condição econômica do fornecedor em relação ao consumidor. Nesse sentido Cláudia Lima Marques ensina que:
“[…] existem quatro tipos de vulnerabilidade: a técnica, a jurídica, a fática e a vulnerabilidade básica dos consumidores, que podemos chamar de vulnerabilidade informacional. Na vulnerabilidade técnica, o comprador não possui conhecimentos específicos sobre o objeto que está sendo adquirido e, portanto, é mais facilmente enganado quanto às características do bem ou quanto à sua utilidade, o mesmo ocorrendo em matéria de serviços.[…]
Já a vulnerabilidade jurídica ou científica é falta de conhecimentos jurídicos específicos, conhecimento de contabilidade ou de economia. […] há ainda a vulnerabilidade fática ou socioeconômica, em que o ponto de concentração é o outro parceiro contratual, o fornecedor que, por sua posição de monopólio, fático ou jurídico, por seu grande poder econômico ou em razão da essencialidade do serviço, impõe sua superioridade a todos que com ele contratam”.[13]
A referida autora reconhece ainda uma outra espécie de vulnerabilidade, qual seja a informativa, que visa minimizar os riscos que os consumidores ficam expostos, diante de todo tipo de informação veiculada pelo fornecedor, desde as enganosas/abusivas às desnecessárias. Veja-se:
“O que caracteriza o consumidor é justamente seu déficit informacional, pelo que não seria necessário aqui frisar este minus como uma espécie nova de vulnerabilidade, uma vez que já estaria englobada como espécie de vulnerabilidade técnica. Hoje, porém, a informação não falta, ela é abundante, manipulada, controlada e, quando fornecida, nos mais das vezes, desnecessária. […] Esta vulnerabilidade informativa não deixa, porém, de representar hoje o maior fator de desequilíbrio da relação vis-à-vis dos fornecedores, os quais, mais do que experts, são os únicos verdadeiramente detentores da informação”. [14]
Quando a relação de consumo ocorre no meio eletrônico com fornecedores estrangeiros essa posição de vulnerabilidade é bastante potencializada, necessitando de uma tutela efetiva do Estado e dos organismos internacionais relativos à conflitos que porventura possam ocorrer.
Inúmeros são os motivos que colocam o consumidor nessa posição de vulnerabilidade, dentre os quais se destacam a barreira da linguagem, a falta de compreensão jurídica, a dificuldade em acionar um passivo em possível ação judicial devido à distância, o risco de não receber o produto que comprou, a possibilidade de receber um produto diferente da forma que foi divulgado, dentre outras.
Nesse sentido, Cláudia Lima Marques referenciada por Geovana Geib ensina que:
“Hoje em dia não é necessário deslocar-se para outro país para ser um consumidor que contrata de forma internacional ou se relaciona com fornecedores de outros países. Em teoria, o consumidor não deve ser prejudicado, seja sob o plano da segurança, da qualidade, da garantia ou do acesso à justiça somente porque adquire produto ou utiliza serviço proveniente de um outro país ou fornecido por empresa com sede no exterior”.[15]
Também podem ocorrer situações em que o consumidor tenha algum direito lesado na realização daquele negócio jurídico e não encontre amparo na legislação pátria devendo, segundo o art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, submeter-se à legislação do país de origem do fornecedor, que pode ter uma legislação menos protetiva que a legilação brasileira, acentuando sua posição de vulnerabilidade.
2 ECENÁRIO BRASILEIRO E A NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO DO COMÉRCIO ELETRÔNICO INTERNACIONAL
No Brasil, a lei aplicável aos contratos internacionais, inclusive os realizados por meio eletrônico, é a Lei de Introdução às Nomas do Direito Brasileiro – LINDB –, que dispõe no seu art. 9º a regra aplicável para reger as obrigações, qual seja a do país em que se constituírem.
Quanto a obrigação resultante dos contratos em geral, estipula o parágrafo 2º do art. 9º da LINDB que, nesses casos, aplica-se a lei do local em que residir o proponente. Assim, a referida regra é utilizada também nos contratos eletrônicos, uma vez que são realizados a distância, fator que culmina na adoção da lei do local da contratação, ou seja, a do país no qual reside o fornecedor.
Tal fator gera uma excessiva vulnerabilidade, uma vez que pode ocorrer que a legislação consumerista do país do fornecedor seja menos protetiva do que a do país do consumidor e que o mesmo não tenha consciência das implicações jurídicas do contrato que está realizando. Ademais, depreende-se da análise do artigo que não há uma previsão específica quanto aos contratos intenacionais consumerista, tal previsão é aplicada aos contratos em geral.
Nesse sentido, o referido artigo traz a hipótese de contratos firmados entre comerciantes e profissionais, denominado Business to Business (B2B), mas não em relação à contratos firmados entre consumidores e fornecedores, denominados Business to Consummers (B2C), situação que demonstra a inefetiva tutela jurisdicional. Segundo Nádia de Araújo:
“Existe uma enorme diferença entre as características dos contratos internacionais realizados entre comerciantes e profissionais e os celebrados com uma parte mais fraca, o consumidor. É preciso criar regras que garantam um sistema de proteção ao consumidor no âmbito internacional nas Américas e no Mercosul, pois as regras existentes são insuficientes. […]
Quando tivermos uma convenção sobre a lei aplicável aos contratos internacionais com os consumidores, a questão da lei aplicável estará regulada distintamente para os contratos B2B e B2C, facilitando as trocas internacionais e promovendo incremento no comércio regional”.[16]
Diante das especificidades do comércio eletrônico internacional e da vulnerabilidade dos consumidores, é importante que o Brasil crie normas no âmbito do Direito Internacional Privado para regular esse novo tipo de comercialização, uma vez que as regras de comércio eletrônico internacional são mais voltadas para regular relações profissionais. A respeito, Cláudia Lima Marques alerta que:
As regras de comércio eletrônico internacional, as regras de direito internacional privado, em geral, estão construídas sobre a base do profissionalismo e especialidade dos parceiros envolvidos, a proteger quem vende, quem fornece o produto e o serviço, não daquele que apenas paga (comprador, recebedor do serviço, “consumidor”)[17]
Diversos países da América do Sul, tais como, Argentina, Paraguai e Uruguai já possuem legislação específica para tratar da questão. Com relação ao Brasil, se nos anos 70 foi um pioneiro quanto à criação de normas que visavam a proteção do consumidor, quanto às normas de comércio eletrônico internacional não se pode dizer o mesmo, uma vez que carece de regulamentação quanto ao tema, situando-se numa posição defasada dos demais países do Mercosul. Nesse sentido:
“[…] a insuficiência no tratamento dispensado ao tema pela legislação vigente evidencia-se tanto pela ausência de tratado internacional que discipline específica e satisfatoriamente a questão quanto pela inexistência de preceito distintivo na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. O universo protetivo tal como projetado pelo Código de Defesa do Consumidor não se mostra compatível com as disposições da LINDB das quais se inferem os elementos de conexão relativos ao consumo como contrato internacional”.[18]
Nesse contexto, é importante citar o Projeto de Lei 281/2012, de autoria do Senador José Sarney, que tramita no Senado Federal que visa alterar o art. 9º, com a inclusão do art. 9º-B a fim de aperfeiçoar a disciplina dos contratos internacionais de consumo. Veja-se:
“Art. 9º-B. O contrato internacional de consumo, entendido como aquele realizado entre um consumidor pessoa natural e um fornecedor de produtos e serviços cujo estabelecimento esteja situado em país distinto daquele de domicílio do consumidor, reger-se-á pela lei do lugar de celebração ou, se executado no Brasil, pela lei brasileira, desde que mais favorável ao consumidor.
§ 1º Se a contratação for precedida de qualquer atividade negocial ou de marketing, por parte do fornecedor ou de seus representantes, dirigida ao território brasileiro ou nele realizada, em especial envio de publicidade, correspondência, e-mails, mensagens comerciais, convites, prêmios ou ofertas, aplicar-se-ão as disposições da lei brasileira que possuírem caráter imperativo, sempre que mais favoráveis ao consumidor.
§ 2º Os contratos de pacotes de viagens internacionais ou viagens combinadas, que envolvam grupos turísticos ou serviços de hotelaria e turismo, com cumprimento fora do Brasil, contratados com agências de turismo e operadoras situadas no Brasil, reger-se-ão pela lei brasileira”.[19]
Essa iniciativa é muito importante, pois demonstra uma preocupação do legislador em regular essa relação que se faz cada vez mais presente no dia a dia da sociedade. Inclusive, percebe-se a tendência em adequar as normas brasileiras de Direito Internacional Privado com as que são adotadas na maioria dos países, qual seja a adoção do princípio da autonomia da vontade para reger as relações de consumo.
Tais propostas de alteração foram inspiradas nos Princípios da Haia, aprovados na Conferência da Haia de Direito Internacional Privado no ano de 2015, trata-se de organização da qual o Brasil é membro. Assim, foram criados princípios soft law, para serem usados como inspiração pelos países membros como modelos para criação de normas.
Importante ressaltar que tais princípios estão em consonância com a autonomia da vontade, que é crucial para a criação de normas do Direito Internacional Privado. Nesse sentido Nádia de Araújo sustenta que:
“Na literatura internacional, em várias oportunidade tem sido sublinhada a ausência de reconhecimento da autonomia da vontade em países da América Latina, entre os quais se inclui o Brasil. Por isso a mudança que agora se opera é extremamente positiva. É também bastante pioneira, pois incorpora uma série de regras que acabam de ser adotadas em sua redação definitiva pela Conferência da Haia, no seu primeiro exemplo de soft law, os Princípios sobre a lei aplicável aos contratos internacionais da Conferência da Haia (“Princípios da Haia”). O legislador assim demonstrou grande sensibilidade para com o tema, e com isso o Brasil se adequa definitivamente ao padrão internacional de respeito à autonomia das partes em matéria contratual”.[20]
É notório, portanto, que a legislação brasileira é escassa quando comparada às legislações de outros países, visto que não apresenta medidas específicas para tratar das relações consumeristas no comércio eletrônico internacional, o que possibilita constantes situações de violações e que demonstra a necessidade de adequá-la à realidade brasileira e à tendência internacional.
3 O DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO E A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR
3.1 AUTONOMIA DA VONTADE
As normas de Direito Internacional Privado estão previstas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro de 1942 e não trazem nenhuma menção quanto à proteção dos consumidores, uma vez que, como já dito, tais normas são muito mais voltadas para a regulação das relações profissionais e especializadas de ambas as partes do que para a relação com um consumidor, que simplesmente adiquire um produto.
Há quem interprete a LINDB defendendo que deve prevalecer nessas contratações a autonomia da vontade, ou seja, que as partes tenham liberdade para escolher a lei aplicável ao contrato, nas palavras de Nádia de Araújo:
“[…] para eles, qualquer restrição à autonomia da vontade e à liberdade de escolha da lei aplicável ao contrato internacional exige expressa previsão legal. Por ostentar qualidade de preceito fundamental na ordem constitucional brasileira, a autonomia da vontade é essencial para a vida em liberdade e para a dignidade da pessoa humana, constituindo parte integrante de direitos fundamentais e da democracia. Como inexiste em nosso ordenamento jurídico qualquer lei que proíba o exercício da autonomia da vontade, deve ser considerada inconstitucional qualquer interpretação extensiva do art. 9º da LICC que restrinja o seu exercício.”[21]
Em outra vertente, alguns doutrinadores entendem que a regra disposta no art. 9º da LINDB, que prevê a aplicação da norma do domicílio do fornecedor, exclui a aplicação do princípio da autonomia da vontade nesses contratos, uma vez que não se encontra expressamente previsto. Nesse sentido:
“Em outras palavras, segundo a opinião majoritária da doutrina brasileira de DIPr., as normas da Lei de Introdução ao Código Civil são obrigatórias (leis federais) e aplicável é o art. 9º da LICC, a excluir a autonomia da vontade nos contratos internacionais em geral, quanto mais nos de consumo”.[22]
Contudo, tanto a utilização do princípio da autonomia da vontade de maneira absoluta, quanto o disposto no art. 9º da LINDB, quando aplicados às relações de consumo tornam-se preocupantes, uma vez que o consumidor é colocado em uma situação de extrema vulnerabilidade.
Ao aplicar esse princípio de maneira absoluta, o consumidor é prejudicado, pois, como são contratos de adesão, geralmente o fornecedor estrangeiro escolhe a legislação aplicável, podendo ser imposta uma legislação menos vantajosa, sem que seja dada a possibilidade de escolha ao mesmo.
Quando aplica-se o disposto no art. 9º da LINDB, ou seja, a aplicação da lei do domicílio do fornecedor, o consumidor pode ser prejudicado ao se deparar com uma legislação menos protetiva que a do seu país de origem. Tal regra beneficia somente o fornecedor e, assim como a autonomia da vontade, foi criada para reger aquelas relações realizadas entre profissionais.
Ressalta-se que, a autonomia da vontade quando aplicada aos contratos internacionais, realizados entre profissionais, pode ser vantajosa para ambas as partes. Contudo, o mesmo não pode-se afirmar quanto às relações de consumo, principalmente as que ocorrem por meio eletrônico, uma vez que a adoção do referido princípio poderia gerar insegurança jurídica e potencializar a vulnerabilidade do consumidor, através da imposição de uma lei menos vantajosa para o mesmo.
Dessa maneira, a autonomia da vontade deve ser utilizada com certa cautela nas relações internacionais consumeristas, sob pena de colocar o indivíduo em uma posição de risco e vulnerabilidade e a mercê das normas contratuais impostas pelo fornecedor.
3.2 NORMAS DE APLICAÇÃO IMEDIATA
A Constituição Federal de 1988 estabelece, em seu art. 5º, inciso XXXII, que o Estado promoverá a defesa do consumidor brasileiro ou estrangeiro residente no país, percebe-se, portanto, a intenção do legislador em conferir, no mais alto grau, a proteção constitucional do consumidor, reconhecendo-o como um direito fundamental.
Outrossim, o Código de Defesa do Consumidor atribui, conforme art. 1º, caráter de ordem pública e interesse social às disposições do código, nos termos dos artigos 5º, inciso XXXII e 170, inciso V, ambos da CF/88, bem como do art. 48, ADCT.
Nesse sentido, percebe-se que foi conferido o caráter de normas de ordem pública e interesse social, bem como de aplicação imediata às regras que versem a respeito da defesa do consumidor. Assim, por serem de aplicação imediata e ordem pública, elas devem ser observadas em todas as relações firmadas com os consumidores brasileiros. Nesta linha, Araújo ensina que:
“Há situações em que o interesse de proteção estatal é de tal ordem que há normas imperativas ou de aplicação imediata – lois de police – impedindo o uso da lei estrangeira.[…]
Para os franceses, a ordem pública é considerada uma exceção quando, após a determinação da lei aplicável pela regra de conexão, deixa-se de aplicá-la para solucionar a questão, porque contrária a concepção do foro a esse respeito. Já as regras consideradas como de aplicação imediata (lois de police) são aquelas cujo conjunto é considerado como de domínio de regulamentação estatal e que por todos deve ser seguido, para salvaguardar a organização política, social ou econômica do país”.[23]
Assim, partindo do pressuposto de que por serem lei de aplicação imediata, devem ser aplicadas no mais alto grau, essas prevaleceriam em relação ao direito internacional privado, acarretando em uma inutilização do mesmo. Quanto às leis de aplicação imediata, Marques ensina que:
“As chamadas “leis de aplicação imediata” são lei básicas de segurança do mercado ou sociedade […], leis para nacionais e estrangeiros e para todas as relações privadas, sem necessidade de antes passar pelo método clássico do Direito Internacional Privado, da indicação de uma lei aplicável”.[24]
A partir de uma análise ampla do Código de Defesa do Consumidor, se nota que há uma intenção do legislador em proteger o consumidor no mais alto nível, inclusive os que firmam relações de âmbito internacional. Neste diapasão, o art. 2º do referido diploma normativo define como consumidor “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”, bem como o art. 3º classifica como fornecedor “toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados”.[25] Assim, resta demonstrada a intenção do legislador em proteger o indivíduo em todas as relações de consumo, inclusive nas internacionais. Nesse sentido:
“Todos estes artigos bem denotam a “vontade” do Código de Defesa do Consumidor de aplicar-se também a casos de consumo internacional ocorridos no mercado brasileiro ou com os consumidores que protege. Parece-me, pois, tratar-se de uma lei de aplicação imediata”.[26]
Considerando que as normas do Código de Defesa do Consumidor seriam de aplicação imediata, haveria sempre uma prevalência destas em relação ao Direito Internacional Privado, desconsiderando as peculiaridades de uma relação jurídica internacional, aplicando como se interna fosse.
Tal fator acarretaria em uma diminuição das relações comerciais com fornecedores estrangeiros, pois estes sempre teriam que se adequar a legislação brasileira, o que geraria uma desestimulação à essas contratações.
Quanto ao tema, foi formulada uma tese no 5º Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor no sentido de que o magistrado, diante de conflito entre a legislação nacional e estrangeira, deve aplicar o Código de Defesa do Consumidor, salvo quando a legislação estrangeira for mais favorável, veja-se:
“11. As normas do Código de Defesa do Consumidor , como expressamente designado em seu art. 1º , são de “ordem pública e de interesse social”, entre a ordem pública local e a ordem pública estrangeira o juiz deve preferir a ordem pública de seu país; as disposições do Código de Defesa do Consumidor, por serem normas de ordem pública, não podem deixar de ser aplicadas às relações de consumo que envolvem consumidores residentes no território nacional, ressalvada a aplicação cumulativa da legislação estrangeira mais favorável. (aprovada por unanimidade)”. [27]
Pelo exposto, deve haver uma cautela ao considerar de aplicação imediata as disposições do Código de Defesa do Consumidor nas relações internacionais, devendo o magistrado analisar no caso concreto qual legislação é mais favorável ao consumidor.
4 A CONFERÊNCIA DE HAIA DE DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO
A Conferência de Haia de Direito Internacional Privado tem por finalidade unificar, de maneira progressiva, as regras de direito internacional privado. Nesse contexto, foram criados pelo Escritório Permanente da Conferência de Haia, no ano de 2011, os Princípios de Haia sobre os Contratos Internacionais, que servem como diretrizes de normas de direito internacional privado utilizadas no âmbito dos contratos internacionais. Tais princípios coadunam-se com a autonomia da vontade, que deve ser observada na criação de normas de direito internacional privado.
Ressalta-se que tais princípios servem como orientação para os países criarem suas próprias normas de direito internacional privado, possuindo um caráter não vinculante. Nesse sentido:
“Na verdade, em razão de seu caráter não vinculante, a Conferência de Haia está ciente de que os juízes não aplicarão os Princípios de forma direta.14 No entanto, de um ponto de vista estratégico, tais normas podem servir de um modelo para legisladores em países (como o Brasil) nos quais a legislação em matéria de direito aplicável aos contratos internacionais é inexistente, fragmentada ou antiquada”.[28]
Como já dito, a autonomia da vontade é um princípio crucial para o direito internacional privado, uma vez que deve se garantir no mais alto nível a liberdade de escolhas das partes. Contudo, tal princípio encontra restrição diante de uma norma de ordem pública e de norma imperativas que, nesse caso, devem prevalecer.
Logo, como as regras de proteção ao consumidor são consideradas de ordem pública e interesse social, estas prevaleceriam, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, em relação à autonomia da vontade, que é característica dos contratos internacionais. Nesse sentido, Nadia de Araújo e Lauro Gama ensinam que:
“Resta examinar se alguns contratos devem ser totalmente excluídos do âmbito de aplicação dos Princípios da Haia, ou se merecem regulação específica no próprio instrumento. Veja-se, por exemplo, os contratos de consumo e os de trabalho, destinados a proteger a parte mais fraca da relação, e que se sujeitam a regras específicas, a maioria das quais imperativas. Em termos mais genéricos, o poder de barganha manifestamente desigual entre as partes poderia justificar a exclusão do contrato do escopo dos futuros Princípios da Haia”. [29](grifo nosso)
Pelo exposto, não restam dúvidas quando à prevalência da autonomia da vontade no âmbito do direito internacional privado, contudo, quando tratar-se de uma relação consumerista, a utilização de tal princípio deve ser mais cautelosa, sob o risco de colocar o consumidor em uma posição ainda mais vulnerável.
5 A RELATIVIZAÇÃO DA AUTONOMIA DA VONTADE EM FACE DA APLICAÇÃO DA NORMA MAIS FAVORÁVEL
O princípio da autonomia da vontade estabelece que as partes são livres para dispor a respeito das cláusulas que irão reger o negócio jurídico a ser celebrado, sendo utilizado nas relações comerciais por meio eletrônico, conforme prevê o art. 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Nas palavras de Nádia de Araújo:
“Para o DIPr, “autonomia da vontade” significa permitir que partes escolham a lei aplicável ao contrato internacional.[…]
No contrato internacional, devido a sua característica de estar ligado a mais de um sistema jurídico, é preciso saber de qual desses sistemas será a lei aplicável. E hoje a faculdade das partes em determinar esta escolha é pacífica em vários países, seja por força de legislação interna, ou ainda de normas provenientes de tratados e convenções internacionais que abraçaram o princípio”. [30]
Contudo, conforme já dito, a aplicação de tal princípio às relações de consumo é inviável, uma vez que, o consumidor é vulnerável, inclusive, juridicamente. Tal situação decorre do seu desconhecimento das regras e da falta de seu poder de negociação, que o coloca a mercê das imposições do fornecedor.
Nesse sentido, é necessário realizar uma abordagem diferenciada para esse tipo de relação, com uma atualização das normas de Direito Internacional Privado Brasileiro que, atualmente, não regulam tal relação de modo satisfatório. Nas palavras de Khouri:
“Como se vê, não existe, na Lei de Introdução ao Código Civil, qualquer norma específica do direito dos conflitos relativa à proteção do consumidor ou a qualquer outra categoria de contratante que já à época pudesse ser considerado economicamente vulnerável.[…]
Mesmo com a crescente especialização do direito privado, o fato é também que o DIP manteve-se, na maioria dos ordenamentos, com o método conflitual genérico, não acompanhando aquela tendência do direito material”.[31]
Outrossim, as normas em vigor atualmente são pautadas pela existência de equilíbrio de forças entre as partes contratantes, o que não há nas relações de consumo, tendo em vista que é reconhecida a vulnerabilidade da parte contratante.
Alguns países e blocos econômicos, reconhecendo a necessidade de proteção do consumidor, buscaram fornecer uma maior garantia e segurança à estes como, por exemplo, a União Européia que estabelece no art. 6º do Regulamento (CE) 593/2008 sobre a lei aplicável que:
“[…]os contratos celebrado por uma pessoa singular, para uma finalidade que possa considerar-se estranha à sua actividade comercial ou profissional (<<o consumidor>>), com outra pessoa que aja no quadro das suas actividades comerciais ou profissionais (<<o profissional>>), são regulados pela lei do país em que o consumidor tem sua residência habitual desde que o profissional:
a) Exerça as suas actividades comerciais ou profissionais no país em que o consumidor tem a sua residência habitual, ou
b) Por qualquer meio, dirija essas actividades para este ou vários países, incluindo aquele país, e o contrato seja abrangido pelo âmbito dessas actividades”.[32]
Como já dito, o póprio Código de Defesa do Consumidor estabelece como foro da ação o domicílio do consumidor, conforme art. 101, I. Essa previsão visa tutelar o sujeito que é parte hipossuficiente da relação jurídica consumerista.
Assim, seria viável que nessas situações fossem aplicadas a lei do domicílio do consumidor, o que forneceria uma maior segurança jurídica para estes. Contudo, não haveria a vedação da autonomia da vontade das partes, podendo ser utilizada quando for mais benéfica para o consumidor. Nesse sentido, Geib defende que:
“[…] a regra geral de conexão para definir da lei aplicável determinaria como regra geral a lei do domicílio do consumidor, mas delimitaria que é possível a autonomia da vontade sempre que esta outra lei for mais benéfica para o consumidor (regra flexível a favor do consumidor”.[33]
Pelo exposto, é necessária uma adequação do Direito Internacional Privado a fim de que forneça uma maior garantia para o consumidor, sendo viável a adoção da lei do domicílio do consumidor sem, contudo, vedar a utilização da autonomia da vontade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Primeiramente, para compreender inteiramente a questão, foi necessário analisar as especificidades do comércio eletrônico internacional e a posição do consumidor nessa relação.
Diante da fragilidade e insegurança, demontrou-se a importância do princípio da confiança, uma vez que o fornecedor cria expectativas no consumidor de que o negócio será executado da forma que foi contratado, sendo importante protegê-lo a fim de garantir segurança jurídica e o cumprimento das legítimas expectativas geradas.
Ainda nesse ponto, foram demonstrados os aspectos inerentes ao comércio eletrônico e a formação do vínculo contratual. Dentre eles, destacaram-se a distância entre o fornecedor e o consumidor, a imediatidade entre a oferta e a aceitação, a despersonalização, uma vez que o fornecer é representado pelo site e o consumidor é identificado por um cartão/senha.
Importante mencionar que trata-se de um contrato de adesão, caracterizado pela rigidez das cláusulas, não sendo possível discuti-las ou flexibilizá-las. Quanto à formação do vínculo contratual, no comércio eletrônico em geral ocorre com a recepção da aceitação pelo proponente. Contudo, nos casos de comércio eletrônico internacional aplica-se o art. 9º, §2º, LINDB, o que contribui para a vulnerabilidade do consumidor.
Foi demonstrada a posição de vulnerabilidade do consumidor, sendo esta decorrente do fato de que as partes não estarem em igualdade de condições. O consumidor pode estar sujeito à diversas formas de vulnerabilidade, destacando-se a vulnerabilidade técnica, a vulnerabilidade jurídica, a vulnerabilidade econômica e, por fim, a vulnerabilidade informativa.
Outrossim, destacou-se como motivos ensejadores dessa vulnerabilidade a barreira da linguagem, a falta de compreensão jurídica, a dificuldade em acionar um passivo em possível ação judicial devido à distância, o risco de não receber o produto que comprou e a possibilidade de receber um produto diferente da forma que foi divulgado. Além disso, há a possibilidade de exposição do consumidor à uma legislação menos protetiva que à legislação brasileira, uma vez que segundo o art. 9º da LINDB adota-se a lei do domicílio do fornecedor.
Também foi demonstrado o cenário atual brasileiro e a necessidade de regulamentação da matéria. No Brasil não há uma lei específica para contratos internacionais realizados por meio eletrônico, nos quais se posiciona o consumidor como sujeito ativo da relação. Nessa caso, utiliza-se a regra do art. 9º da LINDB, que é aplicada para os contratos em geral, adotando-se a lei do domicílio do proponente.
Tal situação enfatiza a inefetiva tutela jurisdicional, sendo necessário que o Brasil atualize suas normar de Direito Internacional Privado. Nesse contexto, foi citado o Projeto de Lei 281/2012, de autoria do Senador José Sarney, que tramita no Senado Federal que visa alterar o art. 9º, com a inclusão do art. 9º-B a fim de aperfeiçoar a disciplina dos contratos internacionais de consumo e proteger o consumidor brasileira, parte vulnerável da relação de consumo.
Mostrou-se a posição do Direito Internacional Privado quanto ao tema, sendo ressaltado dois posicionamentos importantes, quais sejam o da autonomia da vontade e da adoção do Código de Defesa do Consumidor como normas de aplicação imediata.
Nesse sentido, alguns doutrinadores defendem a aplicação da autonomia da vontade, ou seja, que as partes estipulem livremente as cláusulas contratuais. Outros doutrinadores defendem que não pode ser aplicada a autonomia da vontade, pois não há previsão legal no art. 9º, LINDB.
Contudo, enfatizou-se a utilização desse princípio com uma certa cautela, sob o risco de colocar o fornecedor em uma situação de vulnerabilidade e submetido às normas abusivas que podem ser estipuladas pelo fornecedor.
Quando ao entendimento de que seriam normas de aplicação imediata, esses doutrinadores defendem que foi conferido o caráter de normas de ordem pública e interesse social, bem como de aplicação imediata às regras que versem a respeito da defesa do consumidor, devendo ser observadas em todas as relações consumeristas, inclusive as internacionais.
Entretanto, de acordo com tal posição, as normas do Código de Defesa do Consumidor sempre prevaleceriam em relação ao direito internacional privado, acarretando em uma inutilização do mesmo.
Ressaltou-se, a criação dos Princípios de Haia sobre os Contratos Internacionais, no âmbito do Conferência de Haia, que defende a aplicação do princípio da autonomia da vontade nos contratos internacionais.
Foi defendida, ainda, a necessidade de relativização do princípio da autonomia da vontade em face da aplicação da norma mais favorável ao consumidor.
Pelo exposto, seria viável adotar a aplicação da norma do domicílio do consumidor sem, contudo, vedar a aplicação da autonomia da vontade, sendo permitida sua utilização quando a norma for mais benéfica para o consumidor.
Acadêmica de Direito na Faculdade de Direito de Vitória FDV
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, especialista em política internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Mestre em direito Internacional e comunitário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Doutor em direitos e garantias fundamentais na Faculdade de Direito de Vitória – FDV, Coordenador Acadêmico do curso de especialização em direito marítimo e portuário da Faculdade de Direito de Vitória – FDV, Professor de direito internacional e direito marítimo e portuário nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de Vitória – FDV.
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