Pablo de Castro Albernaz[1]
Elda Silva dos Santos[2]
Resumo: Nas últimas décadas, observa-se no Brasil o surgimento de formas de ação afirmativa que visam, sobretudo, abrandar a secular desigualdade que marca a sociedade brasileira desde o período colonial, tomando como foco principal ações pontuais no sistema educacional, considerado um dos principais vetores de continuidade dessa segregação. Os debates no âmbito jurídico centraram-se no direito constitucional e no conceito de igualdade, polarizados em uma oposição entre uma noção de igualdade “abstrata” e liberal (uma concepção formal de isonomia), e uma noção “ativa”, voltada a implementação de ações promotoras de igualdade de direitos. No que tange às cotas, as universidades brasileiras tiveram um papel importante no debate, gestando em seus conselhos universitários ações afirmativas que visavam ampliar o acesso de negros e indígenas no ensino superior, o que gerou resistências de setores conservadores da sociedade, culminando na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº186) impetrada pelo partido Democratas (DEM), contra a política de cotas da UNB. O presente trabalho pretende refletir sobre as ações afirmativas no Brasil e seu impacto no preceito constitucional de igualdade, reconstituindo os termos do debate jurídico ocorrido no Supremo Tribunal Federal que reconheceu a constitucionalidade das políticas de cotas no Brasil.
Palavras-chave: Direito Constitucional. Ações afirmativas. Universidades.
Abstract: In the last decades, it has been observed in Brazil the emergence of affirmative action forms that aim, above all, to mitigate the secular inequality that has marked Brazilian society since the colonial period, focusing on specific actions in the educational system, considered one of the main vectors continuity of this segregation. The debates in the legal sphere focused on constitutional law and the concept of equality, polarized in the opposition between a notion of “abstract” and liberal equality (a formal concept of isonomy), and an “active” notion, aimed at the implementation of actions promoting equal rights. With regard to quotas, Brazilian universities played an important role in the debate, generating affirmative actions in their university councils aimed at expanding the access of blacks and indigenous people in higher education, which generated resistance from conservative sectors of society, culminating in the action de Non-compliance with the Fundamental Precept (ADPF No. 186) filed by the Democrats (DEM), against the UNB quota policy. The present work intends to reflect on affirmative actions in Brazil and their impact on the constitutional precept of equality, reconstituting the terms of the legal debate that took place in the Supreme Federal Court that recognized the constitutionality of quota policies in Brazil.
Keywords: Constitutional Law. Affirmative actions. Universities.
Sumário: Introdução. 1. O princípio jurídico da igualdade. 2. Ações afirmativas: breve histórico. 3. Ações afirmativas nas universidades brasileiras. 4. Definindo a ADPF. 5. Entendendo o objeto da ADPF Nº 186/DF. 5.1 Ministro Ricardo Lewandowski. 5.2 Ministro Luiz Fux. 5.3 Ministra Rosa Weber. 5.4 Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha. 5.5 Ministro Joaquim Barbosa. 5.6 Ministro Cezar Peluso. 5.7 Ministro Gilmar Mendes. 5.8 Ministro Marco Aurélio de Melo. 5.9 Ministro Ayres Brito. Conclusão.
Introdução
Nas últimas décadas, observa-se no Brasil o surgimento de formas de ação afirmativa que visam, sobretudo, abrandar a secular desigualdade que marca a sociedade brasileira desde o período colonial, tomando como foco principal ações pontuais no sistema educacional, considerado um dos principais vetores de continuidade dessa segregação. Já nos anos 1940 os movimentos negros organizados no Brasil reivindicavam políticas de ações afirmativas voltadas aos afro-brasileiros, propostas no “Manifesto às Forças Políticas da Nação Brasileira” e no “Manifesto à Nação Brasileira”, lançados, respectivamente, na “Convenção Política do Negro” (Rio de Janeiro, 1946), e na “Convenção Nacional do Negro Brasileiro” (São Paulo, 1945 e Rio de Janeiro, 1946) (SANTOS, 2014, p.45). Entretanto, naquele momento essas reivindicações não geraram o resultado esperado e somente durante o governo de viés neoliberal de Fernando Henrique Cardoso, com o reconhecimento oficial por parte do governo da existência da discriminação contra negro no Brasil, os debates jurídicos em torno do tema das ações afirmativas e cotas para viabilizar o acesso dos negros no ensino superior começaram a eclodir, e nos governos de centro-esquerda de Lula foram criadas algumas dessas políticas sociais, principalmente por iniciativa dos conselhos de ensino e pesquisa das Universidades brasileiras.
Os debates no âmbito jurídico centraram-se no direito constitucional e no conceito de igualdade, polarizados em uma oposição entre uma noção de igualdade “abstrata” e liberal (uma concepção formal de isonomia), e uma noção “ativa”, voltada a implementação de ações promotoras de igualdade de direitos. No que tange às cotas, as universidades brasileiras tiveram um papel importante no debate, gestando em seus conselhos universitários políticas de cotas que visavam ampliar o acesso de negros e indígenas no ensino superior, o que gerou resistências de setores conservadores da sociedade, culminando na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF nº186) impetrada pelo DEM, contra a política de cotas da UNB.
O presente trabalho pretende refletir sobre as ações afirmativas no Brasil e seu impacto no preceito constitucional de igualdade, reconstituindo os termos do debate jurídico ocorrido no Supremo Tribunal Federal que reconheceu a constitucionalidade das políticas de cotas no Brasil.
Do ponto de vista histórico, a proclamação do princípio de igualdade de todos os homens como fundamento da existência humana foi concebida primeiramente pelos estoicos e pelo cristianismo (DRAY, 2003). Modernamente, o conceito de igualdade surge como princípio jurídico no âmbito das constituições promulgadas após as revoluções do século XVIII. Mas foi principalmente através das experiências revolucionárias dos Estados Unidos e França que o conceito de igualdade perante a lei – está genérica e abstrata – deve ser “igual para todos sem qualquer distinção ou privilégio, devendo o aplicador fazê-la incidir de forma neutra sobre as situações jurídicas concretas e sobre os conflitos interindividuais” (GOMES, 2000, p. 1-2).
Essa concepção meramente formal de igualdade se tornou uma ideia mestra do constitucionalismo nascido no século XIX e continuou sendo fundamental em boa parte do século XX. Entretanto, conforme salienta o pesquisador português Guilherme Machado Dray (2003, pp. 114-115), com a evolução histórica o principio de igualdade presente na maioria das constituições e ordenamentos jurídicos modernos podem ser concebidos de três maneiras distintas, primeiramente, como princípio da igualdade perante a lei, entendida como realidade de índole formal, em seguida, como igualdade material perante a lei, e, por fim, como princípio de igualdade de oportunidades enquanto ação de igualdade real.
De acordo com conceito de igualdade formal, todos são iguais perante a lei, sem distinções de quaisquer espécies. Esse conceito formal de liberdade, em conjunto com a noção de neutralidade estatal, foram dois pilares do ideário político liberal, resultando em um entendimento jurídico da igualdade herdeiro dos ideais das revoluções americana e francesa que concebem a ideia de igualdade de todos perante a lei. Essa concepção se assenta no entendimento de que ao Estado cabe a elaboração de normas ou leis de caráter geral e abstrato, sendo ela o cerne das constituições oitocentistas (DRAY, 2003, p.114). Entretanto, como salienta Gomes (2000), os estudos de direito comparado e de política comparada passaram a demonstrar que a igualdade jurídica liberal oitocentista não passa de mera ficção. É possível concluir que somente proibir as ações discriminatórias não era suficiente para se alcançar o princípio da igualdade jurídica. O preceito de impedimento da desigualdade contido na noção abstrata de igualdade perante a lei não pode ser confundido com uma garantia de igualdade de fato, menos ainda como um meio reparador de desigualdades já existentes.
A noção jurídica de igualdade material surge, portanto, das críticas ao modelo liberal e clássico de igualdade formal de todos os homens perante a lei, em direção a proposição de uma atuação concreta do direito na busca de tratamento diferenciado em situações de desigualdades existentes nas sociedades, notadamente naquelas que possuem um passado colonial e escravocrata, como é o caso do Brasil, Estados Unidos e Índia, para citar apenas alguns países que incluíram políticas de ações afirmativas em seu ordenamento jurídico. O conceito de igualdade material surge assim de uma concepção de Estado Social de Direito, herdado da doutrina alemã, e se orienta no sentido “da unificação do princípio da igualdade enquanto realidade orientadora quer dos agentes de aplicação do direito, quer do próprio legislador, relativamente ao qual se passa a admitir uma produção legislativa que contemple a existência de casos particulares” (DRAY 2003, p.116). Desse modo, a noção de igualdade material visa buscar a criação de mecanismos de proteção e de defesa das demandas de indivíduos em situação de vulnerabilidade social e econômica, como maneira de buscar a igualdade material. Ao invés de uma concepção “abstrata” e “estática” de igualdade, passa-se a uma noção de igualdade material “ativa” e “militante”, retomando a noção jurídica de tratamento de situações desiguais de maneira dessemelhante, como forma de se evitar o aprofundamento das desigualdades (ROCHA 1996)[3].
Para Guilherme Machado Dray (2003, pp.116-7), após a aceitação da ideia de igualdade material, passou-se a se buscar uma “efetiva igualdade de oportunidades em sentido real, que pressupõe a promoção de medidas corretivas das desigualdades existentes através da implementação de discriminações positivas, que inculcam uma ideia de obrigatoriedade de diferenciação”. Nesse sentido, o princípio de igualdade passa a ser entendido como concretização da noção constitucional de justiça social, não mais como um “ponto de partida”, mas sim como um ideal a ser alcançado, a saber, o da eliminação das desigualdades econômicas, sociais e culturais. Como podemos observar a igualdade enquanto princípio liberal não passa de uma irrealidade jurídica, de modo que o advento da noção de Estado Social de Direito é necessário que se conceba a intervenção do Estado na sociedade, como artífice de políticas sociais que se direcionem à redução das desigualdades.
Assim, veremos ao longo desse artigo que no debate jurídico contemporâneo o tema das ações afirmativas girou em torno do tipo de conceito de igualdade que a constituição brasileira de 1988 nos legou. Para Gomes (2000) e Rocha (1996) a noção de igualdade abstrata e liberal seria ultrapassada e incondizente com a nossa constituição cidadã; pois do texto constitucional emerge uma noção de igualdade substancial, de igualdade em movimento (ROCHA, 1996, p. 287), que faz da busca pela criação de mecanismos de redução da desigualdade uma chave mestra para o entendimento e a aplicação dos preceitos que regem nossa carta magna.
A partir desse novo paradigma de entendimento do conceito constitucional de igualdade, criou-se uma série de ordenamentos jurídicos voltados para a criação de políticas sociais de apoio a grupos minoritários ou em situação de vulnerabilidade, baseando-se no entendimento ativo do conceito de igualdade na constituição de 1988[4].
2 Ações afirmativas: breve histórico
Ao realizar um histórico das ações afirmativas, Gomes (2001) afirma que essas políticas são uma “criação pioneira dos EUA” que demonstram uma mudança de entendimento, por parte do Estado, acerca de seu papel de interventor na busca por melhorias de condições para as minorias. Num primeiro momento, essas ações afirmativas eram concebidas como um aconselhamento por parte do Estado para que as instituições públicas e privadas considerassem os fatores de raça, cor e sexo e nacionalidade em suas políticas de acesso à educação e ao trabalho. Em um momento posterior, criou-se uma alteração conceitual em direção à igualdade de oportunidades, através da implementação de sistemas de cotas definidas de acesso dessas minorias ao mercado de trabalho e sistema educacional.
Para o antropólogo José Jorge de Carvalho (2005, p.5), as políticas afirmativas são iniciadas primeiramente na Índia, quando este país se tornou independente e então foram criadas políticas de cotas paras os dalits, ou shudras (‘intocáveis’), que fazem parte das subcastas excluídas do sistema de educação. Nessas ações afirmativas foram criadas cotas para os dalits no sistema educacional e no funcionalismo público. Outro exemplo citado por Carvalho (2005, p.6) é o da Malásia, país que também implementou ações afirmativas em 1968, em decisão semelhante à da Índia voltada a reparações para os Bhumiputras, grupo étnico originário da Malásia, que se encontravam excluídos das Universidades e do mercado de trabalho.
Ao abordar o histórico das ações afirmativas no Brasil, Santos (2014, p.45-6) afirma que estas não devem ser vistas como obra da boa vontade de políticos ou juristas, ou como ‘cópia’ dos modelos americanos de políticas afirmativas, mas sim como uma resposta institucional às pressões e demandas históricas forjadas ao longo de décadas pelos Movimentos Negros organizados no Brasil. Os já citados “Manifesto às Forças Políticas da Nação Brasileira” e “Manifesto à Nação Brasileira” reivindicavam a inclusão das demandas do movimento negro nos programas políticos dos partidos, reivindicando ações afirmativas como políticas compensatórias à situação de exclusão do negro na sociedade. De modo que “os movimentos negros brasileiros já postulavam políticas de ações afirmativas antes mesmo de estas converterem-se em plataforma política nos Estados Unidos da América” (Santos, 2014, p. 46).
A implementação dessas políticas se daria por meio de cotas para candidatos negros nos partidos e, também, por bolsas de estudo para jovens negros no ensino médio e superior. Apesar de não ter logrado êxito, a pauta acima continuou ao longo da história. Na década de 1980, a liderança negra e deputado federal Abdias Nascimento apresentou ao Congresso Nacional projeto com “propostas concretas de ações afirmativas para cidadãos negros nas esferas da educação, emprego/trabalho, entre outras áreas, por meio do Projeto de Lei (PL) nº 1.331” (Santos, 2014, p.48), que propunha bolsas de estudo em caráter compensatório à população negra em todos os níveis de ensino. Desse modo, podemos notar que os movimentos negros brasileiros pautavam essas ações antes mesmo delas serem debates nos Estados Unidos e Índia, o que demonstra que essas conquistas não foram gestadas pelo Estado, tampouco são cópias das políticas norte-americanas, mas são fruto do engajamento e organização ao longo de décadas.
Com relação às políticas que visam o reconhecimento e a luta contra o racismo, Jaccoud e Beghin (2002, p. 51) afirmam ser possível distinguir três tipos distintos dessas ações: as ações afirmativas, repressivas e valorativas. Os autores salientam, contudo, que essas políticas não são suficientes, pois “o combate às desigualdades raciais no país requer que, simultaneamente ao enfrentamento do racismo e da discriminação racial, estejam atuando políticas universais de saúde, educação, previdência social e assistência social, dentre outras” (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 51).
Para os autores, as ações afirmativas e políticas repressivas visam “combater o ato discriminatório – a discriminação direta – usando a legislação criminal existente” (JACCOUD e BEGHIN, 2002, p. 51-2).; já as ações afirmativas visam o combate à discriminação indireta, resultante da exclusão das populações marginalizadas dos espaços de poder e de representação da sociedade. Por fim, as ações valorativas visam descontruir estereótipos negativos, resultados de nossa herança histórica de preconceito e racismo; são ações de valorização das populações afro-brasileiras, ressaltando sua importância para a construção da sociedade nacional.
Em importante estudo sobre ações afirmativas no Brasil, o antropólogo José Jorge de Carvalho (2016, p.15) define três termos que são acionados quando se fala sobre políticas de diminuição da desigualdade étnica, racial e social no país: inclusão, cotas e ação afirmativa. Para o autor:
“Inclusão é o processo de transferência pacífica e consensual de poder, oportunidades e riqueza e demais recursos equivalentes (materiais ou imateriais de um segmento da sociedade em posição de domínio e de controle para outro segmento, vinculado histórica e nacionalmente ao primeiro e que se encontra em situação crônica de carência, fragilidade, vulnerabilidade, incapacidade involuntária ou pobreza e que sofre opressão, desvantagem por violência, racismo ou discriminação. É inerente à ideia de um pacto inclusivo pacífico (…) As cotas são uma forma concreta de partilha de poder, benefícios e bens – ou, no nosso caso, cotas nas universidades. Falar de cotas é falar de divisão de poder e riqueza, material ou imaterial. Sabemos que as vagas em uma universidade pública são um bem escasso no Brasil e, por isso mesmo, representam o acesso ao poder e ao controle do Estado e da sociedade por parte do grupo branco dominante. Neste contexto, as cotas significam a possibilidade concreta de dividir esse poder, concentrado pelos brancos, com os negros e indígenas (…) Ação afirmativa é o nome genérico que foi dado nos Estados Unidos às políticas de inclusão dos negros como resultado do movimento pelos direitos civis nos anos 1960 (…) As ações afirmativas foram concebidas inicialmente para a comunidade negra, como uma política de reparação pela discriminação e segregação racial que sofreram desde a abolição da escravidão. Contudo, logo no início elas se estenderam, com adaptações, para outras minorias, como os indígenas, os latinos e os asiáticos (…) Dada a grande influência dos Estados Unidos no Brasil, o termo ações afirmativas passou a ser usado também entre nós, em geral para qualificar a discussão sobre políticas de inclusão com o argumento de que as cotas são um tipo, entre vários, de ações afirmativas. Daí que ações afirmativas nas universidades brasileiras podem não ser apenas cotas (isto é, percentagens definidas de vagas reservadas), mas também vagas e bônus; contudo, elas são principalmente cotas” (CARVALHO, 2016, p.15-6).
Essa longa citação ajuda a entender as diferenças entre os conceitos de inclusão, ação afirmativa e cotas. As cotas são um tipo de ação afirmativa, que conforme veremos a seguir gerou um debate importante do ponto de vista jurídico e do direito constitucional.
3 Ações afirmativas nas universidades brasileiras
José Jorge de Carvalho (2016) realiza um histórico da ampliação da categoria de sujeitos abarcados pelas ações afirmativas, cotas e modos de inclusão no ensino superior, que seguiremos para apresentar a cronologia das ações afirmativas nas Instituições de Ensino Superior (IES). Iremos também apontar em linhas gerais as problematizações acerca da ampliação dos tipos de sujeitos alvos das dessas ações afirmativas, cotas e inclusões.
Através da perspectiva temporal, é possível perceber o desenvolvimento dos debates acerca das cotas no ensino superior, bem como as adesões das instituições e os diferenciados modos de políticas afirmativas aprovadas nos conselhos superiores universitários. Segundo José Jorge de Carvalho (2016, p.74) os anos de 2003 e 2004 foram decisivos na consolidação das ações afirmativas no Brasil. A UNB e a UERJ foram as universidades que mais repercutiram no cenário midiático nacional, sendo por isso alvo de intensos ataques dos setores contrários às políticas afirmativas. As críticas à UERJ se deram por ter sido ela a primeira a implementar essas políticas afirmativas, e por terem as cotas sido motivadas pelo poder legislativo e executivo do Estado do Rio de Janeiro. Com relação à UNB, a hostilidade se deu de maneira mais intensiva devido ao ineditismo da proposta aprovada e por ter sido a primeira universidade federal a aprovar as cotas; além disso, a UNB se situa na capital federal o que dá a ela grande visibilidade nacional. Outro fator para a repercussão das cotas nessa instituição foi que as cotas foram aprovadas pelo conselho Universitário, fazendo valer a autonomia universitária, abrindo um importante precedente para a implementação de políticas afirmativas em outras universidades, e, por fim, o fato da aprovação de cotas para negros, ou seja, “cotas raciais”, sem nenhum outro tipo de restrição como renda ou escola pública, fez com que os ataques através de artigos acadêmicos (MAGGIE e FRY, 2004, LEWGOY 2005, FRY 2005, MAGGIE 2005)[5] e da opinião pública fossem intensos e resultassem no processo judicial movido pelo DEM contra a UNB e julgado pelo STF em 2012.
Para Carvalho (2016, p.75), o modelo de cotas da UNB pode ser pensado analiticamente como um primeiro modelo proposto enquanto cotas para negros e vagas para indígenas. Para o autor, esse modelo visava contemplar as demandas dos grupos étnicos historicamente excluídos do ensino superior, representados pelo Movimento Negro e Movimento Indígena.
O segundo modelo de ações afirmativas é representado pelo modelo aprovado pela UERJ. Carvalho afirma que o potencial inclusivo do modelo da UNB foi reduzido drasticamente no que diz respeito à UERJ, pois esta universidade “inverteu o sentido de prioridade da luta antirracista e propôs, a partir do condicionante básico de renda, a inclusão de várias categorias de sujeitos. Ao fazer essa escolha, ela condicionou a inclusão dos negros (…) a outra demanda tida como primordial” (2016, p.75). Ao se comparar as políticas afirmativas em ambas as instituições, vê-se que na UNB o critério étnico-racial é central, enquanto na UERJ a questão racial se soma a outras demandas, ambas as instituições representando “o grande divisor de águas das ações afirmativas no Brasil, a de cotas para negros, de um lado, e cotas para escola pública e para estudantes de baixa renda do outro” (José Jorge de Carvalho, 2016, p.75). Além dessas duas formas de políticas afirmativas que atingem quatro grupos distintos (negros e indígenas, alunos de escola públicas e de baixa renda), surgiu também a demanda das cotas para deficientes, quilombolas (UFBA) e a de residentes de determinadas regiões.
Uma questão importante salientada por José Jorge de Carvalho é que o movimento de criação das ações afirmativas possuem duas tensões: enquanto tem crescido ao longo dos anos adesão das instituições de ensino superior federal com relação às ações afirmativas, essas ações, por outro lado, vêm se afastando da motivação inicial dessas políticas, que era a do combate ao racismo acadêmico, com a criação de modelos de ações afirmativas que vem “diminuindo o ritmo de inclusão dos negros nas universidades” (2016,p.76). Realizando uma contagem dos tipos de ações afirmativas, José Jorge de Carvalho chega ao número de 53 Instituições de Ensino Superior- IES com ações afirmativas para negros, 67 IES para indígenas, e 94 para alunos de escola pública; 25 IES com cotas para pessoas com deficiência e baixa renda. Em uma análise matemática o autor mostra a variação existente nos tipos de ações afirmativas nas universidades, de modo que “cada nova universidade que aprovava ações afirmativas introduzia algum tipo de marcados de singularidade ou emblema de originalidade com relação às anteriores” (José Jorge de Carvalho, 2016, p.76). Do mesmo modo, a lei de cotas (lei 12.711/2012) se diferenciou de todos os modelos de cotas gestados nas Universidades Federais.
4 Definindo a ADPF
No nosso Ordenamento Jurídico existe o controle judicial de Constitucionalidade que verifica a compatibilidade de leis e atos normativos infraconstitucionais em conformidade com a Constituição. O “controle de constitucionalidade tem por objetivo retirar do sistema jurídico normas inconstitucionais. É a verificação vertical de compatibilidade entre uma lei ou ato normativo e a Constituição” (PIRES, 2016). A partir desse mecanismo de controle as leis em dissonância com a Constituição Federal são consideradas inconstitucionais e em consequência não são inseridas no sistema.
Esse sistema de Controle de Constitucionalidade Jurídico repressivo divide-se em sistema concentrado e sistema difuso. Enquanto este ocorre na esfera Judicial comum de competência de qualquer Juiz, naquele a competência é apenas do Supremo Tribunal Federal. Acontece que o controle concentrado possui cinco ações autônomas: Ação Direta de Inconstitucionalidade genérica (ADI)(CF, art. 102, inciso I, alínea “a”); Ação Direita de Inconstitucionalidade Interventiva (art. 36, inciso III, CF); Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) (art. 103, §2º da CF/88.) ; Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) e, por fim, o objeto do presente trabalho, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF).
“A ADPF serve para reparar grave lesão à Constituição. Encontra-se prevista no art. 102, § 1.º, CF e é regulada pela Lei n.º 9.882/1999. A ADPF busca a defesa da integridade da Constituição e dos direitos fundamentais” (PIRES, 2016). Essa ação possui uma “cláusula de subsidiariedade”, isto é, a ADPF é uma ação residual do Controle Concentrado que só será admitida quando não couber nenhuma das outras quatro ações supracitadas. (GENEVEVE, 2016), O STF conceituou essa ação da seguinte forma:
“É um tipo de ação, ajuizada exclusivamente no STF, que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Neste caso, diz-se que a ADPF é uma ação autônoma. Entretanto, esse tipo de ação também pode ter natureza equivalente às ADIs, podendo questionar a constitucionalidade de uma norma perante a Constituição Federal, mas tal norma deve ser municipal ou anterior à Constituição vigente (no caso, anterior à de 1988). A ADPF é disciplinada pela Lei Federal” (GLOSSÁRIO JURÍDICO).
A doutrina e a Jurisprudência complementaram o que seriam “preceitos fundamentais” pela falta de definição clara pela lei 9.882/98, conceituação de suma importância para o entendimento do objeto da ADPF.
5 Entendendo o objeto da ADPF Nº 186/DF
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 186 do Distrito Federal, foi proposta pelo Partido Político dos Democratas (DEM), e conforme o artigo 103, VIII da CF/88 e artigo 2º, inciso I da lei 9.882/98 o arguente tem legitimação parar propor determinada ação, tendo em vista que se trata de pessoa jurídica de direitos privados de caráter nacional. No dia 26 de abril do ano de 2012 o relator Ministro Ricardo Lewandowski e os demais Ministros do Supremo Tribunal Federal julgaram em Sessão Plenária a total improcedência dessa ADPF.
O legitimado ativo propôs a Arguição, com pedido de liminar, com intuito de declarar inconstitucionais os atos da Universidade de Brasília (UNB), do Centro de Promoção de Eventos da Universidade de Brasília (CESPE) e do Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade de Brasília (CEPE). O autor não questiona a constitucionalidade de ações afirmativas como políticas necessárias para a inclusão de minorias, ou mesmo a adoção do modelo de Estado Social pelo Brasil e a existência de racismo, preconceito e discriminação na sociedade brasileira. Nos moldes de sua ação o legitimado esclarece o os motivos da propositura da ação:
“Acentua, dessa forma, que a ação impugna, especificamente, a adoção de políticas afirmativas “racialistas”, nos moldes da adotada pela UnB, que entende inadequada para as especificidades brasileiras (…) Alega que o sistema de cotas da UnB pode agravar o preconceito racial, uma vez que institui a consciência estatal da raça, promove ofensa arbitrária ao princípio da igualdade, gera discriminação reversa em relação aos brancos pobres, além de favorecer a classe média negra.” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Como vimos, a Universidade de Brasília (UNB) foi a primeira instituição de ensino superior federal a adotar um sistema de cotas raciais para ingresso por meio do vestibular. A iniciativa, baseada na autonomia universitária, adotou, segundo as informações prestadas pela UnB, o critério da análise do fenótipo do candidato: “os critérios utilizados são os do fenótipo, ou seja, se a pessoa é negra (preto ou pardo), uma vez que, como já suscitado na presente peça, é essa característica que leva à discriminação ou ao preconceito” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Os principais argumentos levantados pelo arguente para corroborar sua tese foram:
“1. Os atos proferidos pelos órgãos da Universidade de Brasília trazem uma visão falaciosa acerca da discriminação no Brasil, pois, não está pautada num critério racial, é um problema social. Ademais, violam claramente os seguintes artigos da Constituição Federal: art. 1º, caput, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II, XXXIII, XLI, LIV, 37, caput, 205, 206, caput, I, 207, caput, e 208, V;
Nesse interstício temporal o Ministro Gilmar Mendes estava no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal e requisitou informações ao Reitor da UNB, ao Diretor do CESPE e ao Presidente do CEPE, bem assim as manifestações do Advogado Geral da União e do Procurador Geral da República. Os arguidos prestaram informação no sentido que apenas o caráter repressivo do estado por si só é insuficiente no combate à discriminação; que é necessário somar a proibição discriminatória com políticas que promovam a igualdade, que o fato das leis em caráter proibitivo apenas camuflou mais ainda o racismo. Posteriormente a Procuradoria Geral da União emitiu um parecer pela improcedência da ADPF.
No parecer, destacou, em resumo, que,
“a Constituição de 1988 insere-se no modelo do constitucionalismo social, no qual não basta, para a observância da igualdade, que o Estado se abstenha de instituir privilégios ou discriminações arbitrárias. Pelo contrário, parte-se da premissa de que a igualdade é um objetivo a ser perseguido por meio de ações ou políticas públicas, que, portanto, ela demanda iniciativas concretas em proveito dos grupos desfavorecidos” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Aduziu, ademais, que
“a justiça compensatória não é o único nem mesmo o principal argumento em favor da ação afirmativa para negros no acesso ao ensino superior. Ao lado dela, há a justiça distributiva, a promoção do pluralismo nas instituições de ensino e a superação de estereótipos negativos sobre o afrodescendente, com o conseguinte fortalecimento da sua autoestima e combate ao preconceito” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Em posicionamento análogo a Advocacia Geral da União argumentou que “a mera existência de outros meios mais brandos de possível adoção não é argumento apto a qualificar a sistema de cotas como desnecessário ou desmedido” e defendeu a constitucionalidade das cotas com critérios étnico-raciais (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
O STF vem admitindo a figura do amicus curiae no processo objetivo de controle de constitucionalidade, para prestar informações, colaborar, prestar esclarecimentos a “ajudar” a Corte. É o “amigo da Corte” (PIRES, 2016). Devido a grande relevância social do tema, diversas foram as participações de colaboradores como amicus curiae:
“Defensoria Pública da União – DPU; Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA); AFROBRAS – Sociedade Afro-brasileira de Desenvolvimento Sócio Cultural; ICCAB – Instituto Casa da Cultura Afro-brasileira; IDDH – Instituto de Defensores dos Direitos Humanos; Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro – MPMB; Fundação Nacional do Índio – FUNAI; Fundação Cultural Palmares; Movimento Negro Unificado – MNU; EDUCAFRO – Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes, CONECTAS Direitos Humanos e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – CFOAB”. (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
No dia 15 de setembro de 2009, foi determinada a realização de Audiência Pública sobre políticas de ação afirmativa para o acesso ao ensino superior público, ocorrida nos dias 3, 4 e 5 de março de 2010. No dia 3 de março, participaram da audiência os representantes das instituições estatais responsáveis pela regulação e organização das políticas nacionais de educação e de combate à discriminação étnica e racial, bem como do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, órgão responsável por mensurar os resultados dessas políticas públicas, além das partes relacionadas aos processos.
Além de ilegal e inconstitucional a extinção de cotas atentaria contra o próprio desenvolvimento da ciência e do conhecimento do país, declarou o representante da Fundação Nacional do Índio o jurista Carlos Frederico de Souza Marés de Souza Filho em sua defesa das cotas raciais nas universidades. O IPEA, representado pelo seu diretor Mario Lisboa Theodoro, declara que nos estudos realizados a desigualdade racial no Brasil é indiscutível e que a política de cotas no ensino superior constitui o principal mecanismo para superar esse problema. O pesquisador expôs dados estatísticos que visaram demonstrar “a ocorrência de um racismo institucionalizado; a persistência da exclusão dos negros do mercado de trabalho e do ensino em geral; e a existência de uma desigualdade social de cunho racial” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Já a Universidade de Brasília, representada pelo professor de antropologia José Jorge de Carvalho, esclareceu os motivos da adoção do sistema de cotas raciais para o ingresso na instituição, lembrando que ele foi adotado no ano de 2003 “em resposta a uma constatação de que o espaço acadêmico da universidade era altamente segregado racialmente”, sugerindo que as ações afirmativas fossem promovidas nos cursos de mestrado e doutorado não se limitando apenas ao curso de graduação.
“No dia 4 de março, iniciou-se o contraditório entre os defensores da tese da constitucionalidade e da inconstitucionalidade das políticas de reserva de vagas para o acesso ao ensino superior, fazendo uso da palavra cinco representantes de cada lado” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012), sendo que neste presente trabalho traz os argumentos de três representantes de cada lado.
A primeira expositora do segundo dia, Wanda Marisa Gomes Siqueira, que falou em nome dos estudantes alegadamente prejudicados pelo programa de ação afirmativa adotado na UFRGS, disse que não era a favor da política de cotas pelo fato da referida instituição de ensino não exigir a comprovação de renda dos alunos negros e de escolas públicas, que vários alunos que se prepararam para o vestibular foram prejudicados com essa divisão das vagas, tendo em vista que as vagas para autodeclarados negros não foram todas preenchidas.
O especialista em genética humana Sérgio Danilo Pena, ao usar da tribuna, apresentou o resultado de suas pesquisas, sob a perspectiva que não haveria nenhuma diferenciação entre a genética e ancestralidade e como comprovação o conceito de raça não é aplicável a população brasileira. Segundo o pesquisador, “(…) do ponto de vista científico, raças humanas não existem e (…) não é apropriado falar de raça, mas sim de características de pigmentação da pele. E a cor da pele não está geneticamente associada a nenhuma habilidade intelectual, física e emocional” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Ibsen Noronha, representante da Associação de Procuradores do Estado- ANAPE, afirmou em síntese que há um real perigo na implementação desse sistema nas universidades, visto que estariam tendenciosamente a cometer injustiças em detrimento da suposta dívida histórica, pois desde o século XVI há registro de negros libertos no Brasil que prosperaram economicamente (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Luiz Felipe de Alencastro, representante da Fundação Cultural Palmares, alude que é fundamental para a consolidação da democracia brasileira a redução das discriminações que ainda são de grande peso sobre o negro, lembrou que a partir de 2010 os afrodescendentes, quais sejam, os autodeclarados negros e os pardos, passaram a formar a maioria da população no País. Defendeu que para a comunidade universitária e científica a presença de alunos cotistas contempla benefícios para tais.
Representando o Centro de Estudos Africanos da Universidade de São Paulo – USP, Kabengele Munanga também se posicionou a favor dos programas de cotas raciais por ser um meio viável de integração de setores discriminados na sociedade:
“o que se busca pela política de cotas para negros e indígenas não é para terem direito às migalhas, mas sim para terem acesso ao topo em todos os setores de responsabilidade e de comando na vida nacional em que esses dois segmentos não são devidamente representados, como manda a verdadeira democracia” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
José Vicente falou em nome da Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sóciocultural – AFROBRAS, e ressaltou que ações afirmativas e reserva de vagas vêm sendo adotadas há muito tempo no País, elucidando que “onde houver desigualdade, é obrigação e dever moral, ético e constitucional do Estado agir de modo próprio, ainda que de forma extraordinária e excepcional, para a equalização das oportunidades” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.24, 2012). Enfatizou, ainda, que além de promover e homenagear a justiça o sistema de cotas implementada pela Universidade de Brasília “tem a capacidade de calcinar a profunda fratura exposta que mantêm separados e desiguais negros e brancos em nosso País”.
No dia 5 de março, pela manhã, deu-se continuidade ao contraditório entre os defensores das teses da constitucionalidade e da inconstitucionalidade das políticas de reserva de vagas.
“Após a Audiência Pública, os arguidos aportaram sua manifestação acerca do mérito da presente ADPF. Nela, afirmaram que a Universidade de Brasília adotou o sistema de cotas porque hoje o meio acadêmico brasileiro constitui um espaço de formação de profissionais de maioria esmagadoramente branca” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Posteriori a ação foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal no dia 26 de abril de 2012, por isso aqui serão analisados em sínteses os votos dos noves ministros do STF: Ricardo Lewandowski (relator), Luiz Fux, Rosa Weber, Carmen lúcia, Joaquim Barbosa, Cezar Peluso, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Ayres Brito (Presidente da Corte em 2012).
No julgamento realizado em 2012, verifica-se que os Ministros acompanharam por unanimidade o voto proferido pelo relator, com o fundamento que estas ações afirmativas que contempla os princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade seriam de grande importância para a superação da desigualdade entre brancos e negros. Ocorrendo o voto a favor da improcedência da ADPF nº 186/DF por nove dos onze Ministros do STF. Não votaram os Ministros Celso de Mello, que cancelou seu voto, e o Ministro Dias Toffoli se declarou impedido sob o fundamento de que, quando era advogado-geral da União, já havia dado parecer favorável à implementação deste sistema.
5.1 Ministro Ricardo Lewandowski
Para desenvolver seu voto, o Ministro expõe didaticamente motivos distintos e relevantes para embasar sua tese de constitucionalidade do sistema de cotas implantada pela Universidade de Brasília. Ressaltou de início a importância da Igualdade material em detrimento da formal e que a “ideia de democracia, nos dias atuais, exige a superação de uma concepção mecânica, estratificada, da igualdade, a qual, no passado, era definida apenas como um direito”, claramente distante da vivência realística da sociedade brasileira (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Evidenciou também o papel da Justiça distributiva como meio de superação das desigualdades “mediante uma intervenção estatal determinada e consistente para corrigi-las, realocando-se os bens e oportunidades existentes na sociedade em benefício da coletividade como um todo”. O modelo Constitucional brasileiro inclui em seu texto “diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade”, estabelecendo diversos instrumentos jurídicos para a efetivação plena dos direitos fundamentais, denotando a consonância com a Justiça distributiva:
“No que interessa ao presente debate, a aplicação do princípio da igualdade, sob a ótica justiça distributiva, considera a posição relativa dos grupos sociais entre si. Mas, convém registrar, ao levar em conta a inelutável realidade da estratificação social, não se restringe a focar a categoria dos brancos, negros e pardos. Ela consiste em uma técnica de distribuição de justiça, que, em última análise, objetiva promover a inclusão social de grupos excluídos ou marginalizados, especialmente daqueles que, historicamente, foram compelidos a viver na periferia da sociedade” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Ao falar sobre ações afirmativas, o Ministro deixou evidente em seu voto que esta política vem sendo usada desde sua origem para promover igualdade de oportunidades real a grupos compelidos historicamente pela desigualdade. Nesse mesmo sentido fez uma análise a respeito da adoção do critério étnico-racial das cotas que “não podem ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados preceitos constitucionais isoladamente considerados, ou a partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012), tendo em vista que permeia historicamente a desigualdade nas relações étnico-raciais e essas políticas são pontes de reversão desse modelo no âmbito universitário, considerando o valor do papel Integrador das Universidades Públicas como principais centros de formação das elites brasileiras, sendo o melhor espaço para desconstruir e desmistificar os preconceitos sociais em relação ao outro “e, por conseguinte, para a construção de uma consciência coletiva plural e culturalmente heterogênea, aliás, consentânea com o mundo globalizado em que vivemos” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
Para autenticar seu voto o ministro discorre que os critérios da heterocomposição e da autodeterminação adotado pela a UNB está de inteiro teor com o que visa a Constituição Federal, que não ofende o princípio da igualdade, pelo contrário concretiza a igualdade material, apresentando em si harmonicamente com o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade demostrando compatibilidade com os valores e princípios Constitucionais.
O ministro julga improcedente a ação como exposta a seguir:
“Isso posto, considerando, em especial, que as políticas de ação afirmativa adotadas pela Universidade de Brasília (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, superando distorções sociais historicamente consolidadas, (ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente aos meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e preveem a revisão periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana, julgo improcedente esta ADPF” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
5.2 Ministro Luiz Fux
O magistrado inicia suas elucidações com embasamento em quatro premissas para confirmar a constitucionalidade das cotas, a primeira dela é que “No Brasil, a pobreza tem cor” apresentando dados estatísticos de 2009 do IBGE no qual revela que a “mais de 50% da população do País, encontram-se em situação profundamente desvantajosa em relação aos brancos em todos os indicadores sociais relevantes – renda, níveis de analfabetismo, acesso a saneamento básico e serviços de saúde, dentre outros”, o que evidencia “o enorme abismo que separa as etnias formadoras da sociedade brasileira”. A segunda diretriz reforça em seu argumento que “a disparidade econômico-social entre brancos e negros não é produto do acaso”, na construção histórica inicial desse país a cor da pele revelava qual seu lugar na sociedade, reflexos que deixaram profundas cicatrizes que revigoram ainda no momento presente, “que a abolição da escravatura apenas serviu para trocar o negro de senhor: passou a ser escravo de um sistema feito para que nada mude, apesar das mudanças”. O ministro reforça em sua terceira premissa que a abolição do regime escravocrata do século XIX apenas transformou o racismo institucionalizado em um racismo camuflado, suas vítimas são silenciadas pelo chamado “mito da democracia racial”.
A quarta e última premissa: “políticas universalistas (i.e., desapegadas a aspectos raciais) de melhoria das condições econômico-sociais da população não são suficientes para combater a disparidade de índices de desenvolvimento” social no Brasil, a injustiça racial não está limitada apenas ao campo da distribuição de riqueza (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012). Nas palavras do Ministro as Políticas de ações afirmativas têm plena legitimidade Constitucional, inclusive os adotados pelo critério racial. Fux ainda afirma que a raça nesse contexto não está ligado aos aspectos biológicos, como afirma os arguentes que a UNB estaria criando um tribunal racial ao implementar essas políticas pelo critério relacionado puramente pela distinção da cor, que a ideia de “raça” provém de uma construção forjada pela nossa sociedade, e juridicamente está ligado pelo viés político, sociológico, cultural e histórico:
“Também não acolho a impugnação de que a existência de uma comissão responsável por avaliar a idoneidade da declaração do candidato cotista configure um ‘Tribunal Racial’. O tom pejorativo e ofensivo empregado pelo partido requerente não condiz com a seriedade e cautela dos instrumentos utilizados pela UnB para evitar fraudes à sua política de ação afirmativa .A referida banca não tem por propósito definir quem é ou não negro no Brasil. Trata-se, antes de tudo, de um esforço da universidade para que o respectivo programa inclusivo cumpra efetivamente seus desideratos, beneficiando seus reais destinatários, e não indivíduos oportunistas que, sem qualquer identificação étnica com a causa racial, pretendem ter acesso privilegiado ao ensino público superior” (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
O Ministro vota pela improcedência da ADPF, e pela luz de sua decisão é possível extrair que a cor da pele está diretamente ligada a pobreza, e assim com o Ministro Lewandowski, Fux também ressalta que medida seria um benefício direto aos negros, mas também um benefício indireto aos alunos brancos, que a diversidade cultural é importante para o desenvolvimento educacional dos alunos.
5.3 Ministra Rosa Weber
“Identificadas essas desigualdades concretas, a presunção de igualdade deixa de ser benéfica e passa a ser um fardo, enquanto impede que se percebam as necessidades concretas de grupos que, por não terem as mesmas oportunidades, ficam impossibilitados de galgar os mesmos espaços daqueles que desfrutam de condições sociais mais favoráveis. E, sem igualdade mínima de oportunidades, não há igualdade de liberdade. Inegavelmente as possibilidades de ação, as escolhas de vida, as visões de mundo, as chances econômicas, as manifestações individuais ou coletivas específicas são muito mais restritas para aqueles que, sob a presunção da igualdade, não têm consideradas suas condições particulares”. (ACORDÃO STF ADPF 186, 2012).
São por estas palavras que a Ministra traz seus primeiros argumentos defendendo um caráter positivo do Estado, uma ação de fazer, adentrando no mundo das relações sociais para corrigir a desigualdade concreta, que só será possível pela luz da igualdade material. A Ministra alega que as cotas tais como é previsto na UNB atende o princípio da proporcionalidade, tendo em vista que se amoldam a melhor compreensão da realidade brasileira permitindo assim que grupos representativos sendo minoria de fato nos cursos superiores possam por meio do ingresso ter acessos as esferas mais almejadas da sociedade.
Por fim Rosa Weber traz em enfoque que nos EUA os negros sofrem preconceitos de origem, discriminação ligada a ascendência, já no Brasil o preconceito é ligado a preconceito de marca, onde a cor e os traços definem quais oportunidades o indivíduo terá na sociedade. E menciona em seu voto “convicta de que os princípios e regras constitucionais tidos como violados pelo autor da ação na verdade amparam o sistema temporário de cotas em exame” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.130, 2012).
5.4 Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha
A ministra para corroborar seu voto se fundamenta em três pontos, o primeiro deles é a diferença entre as noções de igualdade e igualação, enquanto a primeira é algo estático, isto é, garante o direito daquele que já está igualado, a igualação por sua vez é um processo muito mais dinâmico que por meio de políticas compensatórias visam trazer a igualdade de oportunidades aos que não possuem. A Ministra enfatiza em seu segundo ponto a liberdade de ser a “ciência de que a sua identidade haveria de ser respeitada naquilo que o distingue não na sua humanidade, mas na sua peculiaridade, que é: cada um de nós sermos iguais, mas sermos únicos” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.132, 2012).
Em seu terceiro ponto Carmen Lúcia destaca a responsabilidade social do estado em fazer cumprir o princípio da igualdade dinâmica, igualdade essa que se renova para transformar a sociedade com o objetivo de se alcançar o exposto do artigo 3º da Constituição Federal, que é construir uma sociedade livre, justa, e solidária com a igualdade como seu valor fundamental. Por fim, Carmen Lúcia traz uma nova elucidação ao entender que as políticas de cotas devem vir acompanhadas de outras políticas que combatem a desigualdade, trouxe como exemplo, medidas adotadas pela PUC de Minas Gerais que além do sistema de cotas para o ingresso, propunha apoio pedagógico aos cotistas por meio de reforços de aula em português e outras línguas. Que a posição adotada pela a UNB não contraria a constituição, que o direito foi criado para a sociedade, e essas medidas possibilitam que o direito saia do status plastificado que ignora a realidade se amoldem as de cada um segundo a necessidade. Seguindo o mesmo liame dos votos dos ministros já citado, a ministra vota pela improcedência da ADPF 186/DF, e afirma que não é apenas questão de pobreza, o negro já desde da infância consegue notar que está em uma posição desigual em relação aos não negros, ficando claro a necessidade da existência de cotas raciais nesta sociedade.
5.5 Ministro Joaquim Barbosa
O Ministro não se delongou em seu voto, adotando na íntegra o voto do ministro Lewandowski. “O voto de Sua Excelência não só é convincente, mas é abrangente e inteiramente em sintonia com o que há de mais moderno na literatura sobre o tema” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.154, 2012).
5.6 Ministro Cezar Peluso
O Ministro Cezar Peluso buscou redigir um voto bastante claro e objetivo. Para elucidar seus argumentos inicia embasando que o “princípio da igualdade implica a necessidade jurídica, não apenas de interpretação, mas também de produção normativa de equiparação de situações que não podem ser desequiparadas sem razão lógico-jurídica suficiente” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.155, 2012). Alega que não há como negar as barreiras impostas desde os primórdios da educação brasileira aos negros, que sempre foram colocados em posição de inferioridade educacional em relação aos brancos, à qual se referiu como sendo um “déficit educacional e cultural da etnia negra”. E Assim como a Ministra Carmem Lúcia, o ministro enfatiza que a responsabilidade ética e jurídica do Estado e da sociedade é adotar políticas públicas que respondam a esse déficit histórico:
“A existência de um dever, que não é apenas ético, mas também jurídico, assim do Estado, como da sociedade toda, perante tamanha desigualdade, à luz dos objetivos fundamentais da República, como está no artigo 3º da Constituição Federal, que se propõe, em primeiro lugar, a construir uma sociedade solidária; em segundo lugar, a erradicar a marginalização e reduzir as desigualdades sociais; e, em terceiro lugar, promover o bem de todos sem preconceito de raças. São objetivos textuais da Constituição” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.156, 2012).
Pelas observações feitas acima, há de se perceber que o ministro ratifica seu voto pela constitucionalidade das cotas atribuídas pela UNB pelo fato de socialmente justificável, sendo claro que a educação do branco e negro nunca tiveram no mesmo patamar, e é de inteira responsabilidade do estado tomar medidas que transforme esse quadro, fazendo o uso dessas ações afirmativas.
5.7 Ministro Gilmar Mendes
É importante salutar que o voto do ministro foi o que mais se diferenciou dos demais. Pela sua ótica o modelo adotado pela Universidade de Brasília não é o melhor modelo a ser implementado no Brasil, embora tenha sido a primeira Universidade a nível federal que trouxe o sistema de cotas, sob análise do fenótipo do candidato. Gilmar Mendes reforça a ideia de que raças humanas é um conceito histórico e social, mas pelo contexto biológico inexiste a diversidade de raça e que no Brasil há uma certa dificuldade de se identificar quem é negro e quem é branco levando em conta que houve um grande processo de miscigenação racial, fator esse que torna-se um entrave no caminho de implantação do sistema de cotas. O ministro enfatiza que além da importância do caráter transitório é necessário submeterem a avaliações periódicas que possam ser acessadas por toda sociedade para que se analise a real efetividade da política de cotas como benéfica a grupos excluídos, isto é, dos então alunos cotistas.
Segundo o Ministro as políticas de cotas devem ser implantadas observando a peculiaridade histórica e social da sociedade brasileira, sendo que esse critério adotado pela UNB distinguindo apenas pela cor da pele não é o melhor modelo para incluir grupos socialmente marginalizados:
“A implementação de cotas baseadas apenas na cor da pele pode não ser eficaz, do ponto de vista de inclusão social, ao passo que sua conjugação com critérios de renda tem o condão de atingir o problema de modo mais preciso, sem deixar margens para questionamentos baseados na ofensa à isonomia, ou sobre a possível estimulação de conflitos raciais inexistentes no Brasil atual” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.203, 2012).
De acordo com a linha de raciocínio do Ministro, pode-se aduzir que grande parte dos seus argumentos é desfavorável as cotas, afirmando ele que só é constitucional as políticas de cotas adotada pela UNB pelo fato de possuírem caráter transitório e ser um modelo experimental que pode ser melhorado ao longo do tempo.
5.8 Ministro Marco Aurélio de Melo
Segundo Marco Aurélio o que concretiza a implementação das ações afirmativas como uma forma de diminuir com as desigualdades sociais é sua legitimação como objetivos da Constituição Federal em seu artigo 3°, da CF/88, pois não basta apenas um caráter estático do Estado é necessário uma atuação positiva e compensatório do Estado e da conscientização da população, na mudança do pensamento para transformar a cultura. Neste sentido, nas falas do Ministro:
“Pode-se dizer, sem receio de equívoco, que se passou de uma igualização estática, meramente negativa, no que se proibia a discriminação, para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos ”construir”, “garantir”, “erradicar” e “promover” implicam mudança de óptica, ao denotar “ação”. Não basta não discriminar. É preciso viabilizar – e a Carta da República oferece base para fazê-lo – as mesmas oportunidades. Há de ter-se como página virada o sistema simplesmente principiológico. A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa. Que fim almejam esses dois artigos da Carta Federal, senão a transformação social, com o objetivo de erradicar a pobreza, uma das maneiras de discriminação, visando, acima de tudo, ao bem de todos, e não apenas daqueles nascidos em berços de ouro” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.213, 2012).
O Ministro dá continuidade na elucidação dos seus argumentos destacando os artigos inicias da constituição, enfatizando que pelo peso da lei busca diminuir essa desigualdade, um avanço apresentado na CF/88, referente ao artigo “4º, inciso VII, repudia-se o terrorismo, colocando-se no mesmo patamar o racismo, que é uma forma de terrorismo” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.213, 2012). Em sequência, trouxe os incisos XLI e XLII, do artigo 5º, CF, que trazem expressamente o princípio da igualdade e suas consequências aplicadas a quem pratica o racismo. No tocante a exposição acerca da Constituição Federal, denotou a igualdade nas constituições já implementada no ordenamento jurídico brasileiro e enfatizou a necessidade da aplicação das ações afirmativas tendo e vista o fracasso promovido pela neutralidade do estado que as normas proibitivas não são suficientes para afastar a discriminação:
“É necessário fomentar-se o acesso à educação; urge implementar programa voltado aos menos favorecidos, a abranger horário integral, de modo a tirar meninos e meninas da rua, dando-lhes condições que os levem a ombrear com as demais crianças. O Estado tem enorme responsabilidade nessa área e pode muito bem liberar verbas para os imprescindíveis financiamentos nesse setor” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.215, 2012).
O ministro ressalta que nosso ordenamento jurídico agasalha de forma muito favorável às ações afirmativas, tendo como exemplo a proteção dado a mulher no mercado de trabalho amparado no artigo 7º, inciso XX. Da CF/88, artigo 37, inciso III, ao receber em seu texto a reservas de vagas para deficientes em concursos públicos, “no artigo 170, ao dispor sobre as empresas de pequeno porte, prevendo que devem ter tratamento preferencial; no artigo 227, ao fazê-lo também em relação à criança e ao adolescente”. Quanto ao artigo 208, inciso V, “acesso aos níveis mais elevados do ensino e pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um”, esse último deve ser interpretado de modo harmônico com os demais preceitos constitucionais, que “somente pode fazer referência à igualdade plena, considerada a vida pregressa e as oportunidades que a sociedade ofereceu às pessoas. A meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.216, 2012).
Ao contrário que sustenta o arguente de que a adoção de politicas de cotas para negros tenha criado um “Estado racializado”, essas medidas são instrumentos necessários para correção da desigualdade, e é preciso fazer uma interpretação além da superficialidade da CF/88 e entender que nossa história foi construída pelas mãos calejadas dos discriminados.O ministro segue apoiando o modelo aplicado pela UNB e enfatiza que a Constituição concede em seu artigo 207, autonomia na atuação das Universidades, e vota pela improcedência da ADPF 186, haja exposto que se encontra totalmente harmônico o modelo adotado pela UNB aos princípios inerentes a Carta Magna.
5.9 Ministro Ayres Brito
“E eu também digo, apenas a título de fundamentação, que a política pública e, portanto, estatal, de justiça compensatória, chamada de política pública afirmativa, ou política pública restaurativa, ou política pública compensadora de desvantagens historicamente sofridas por determinados segmentos sociais, é uma política abonada pela Constituição, que decola, arranca da Constituição Federal e se caracteriza como instituto jurídico; essa política pública afirmativa compensatória, ou restaurativa, ou reparadora, é uma figura de Direito Constitucional antes de tudo, é um instituto jurídico constitucional” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.220, 2012).
O ministro inicia seus argumentos enfatizando que a Constituição de 88, tem como ideologia principal construir uma “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (ACORDÃO STF ADPF 186, p.222, 2012), mas como fazer valer esse ideal numa sociedade tão injusta nas suas distribuições de riquezas, é por essa perspectiva que as cotas raciais estão em acordo com os valores instituídos na Constituição Federal.
Tendo em vista os aspectos mencionados a luz do voto de Ayres Brito, sua linha argumentativa se desenvolve no sentido de que como o preconceito racial no Brasil está vigorando desde a escravidão, ações afirmativas baseadas num critério racial são as medidas certas para que haja combates efetivos contra essa mazela. Como o preconceito no Brasil é histórico e está estritamente ligado à cor da pele, apenas medidas como as cotas poderiam ser um remédio eficaz.
Assim sendo, a grande maioria dos votos trouxe como base a ideia já discutida neste trabalho acerca da igualdade material. Segundo eles, os negros são minorias que ao longo da história do Brasil permaneceram à margem da sociedade, e a cor negra seria o fator de preconceito tão arraigado na nossa história como respalda a ministra Rosa Weber que nesta sociedade vigora o preconceito de marca, onde as características definem qual seu lugar na sociedade, e por isso as Universidades teriam total autonomia dada pela Constituição, no artigo 207, para instituir um sistema de cotas baseado unicamente no critério de cor e para os Ministros do STF a política de cotas se consubstanciaria na ideia de igualdade substancial, uma vez que, levar-se-ia em consideração o direito a diferença.
Conclusão
Como vimos, no Brasil os movimentos negros tiveram um protagonismo com relação à proposta das ações afirmativas como medidas compensatórias e de combate à exclusão. Décadas depois, as universidades públicas tiveram um papel importante na efetivação de políticas de inclusão étnico-racial, fazendo das ações afirmativas um meio de aplicabilidade dessa noção jurídica de igualdade material e trazendo contribuições importantes para o debate sobre direito constitucional e a noção constitucional de igualdade.
Nesse artigo buscamos demonstrar que a maior parte dos votos dos ministros corroborou com a visão ativa do principio constitucional da isonomia, como também com a validação do critério étnico-racial para a criação de políticas compensatórias, não considerando com isso um retorno à ideia de racialização, como queria o DEM com a ADPF e alguns antropólogos (MAGGIE, FRY, 2004; LEWGOY, 2005; FRY 2005; MAGGIE 2005), mas como princípio ativo de validação do pressuposto jurídico da igualdade material e de justiça distributiva, reconhecendo a insuficiência de políticas universalistas de combate ao racismo e à desigualdade, em consonância com os princípios constitucionais brasileiros, incluso as ações afirmativas baseadas em critérios raciais.
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[1] Doktor der Philosophie pela Eberhard Karls Universität Tübingen, Alemanha. Professor do Instituto de Antropologia (INAN) da Universidade Federal de Roraima (UFRR). E-mail: pablo.albernaz@ufrr.br.
[2] Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Estácio Atual da Amazônia. E-mail: eldasilva21@gmail.com.
[3] Conforme salienta Gomes (2001, p.4), “produto do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou material propugna redobrada atenção por parte do legislador e dos aplicadores do Direito à variedade das situações individuais e de grupo, de modo a impedir que o dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas”.
[4] Utilizamos aqui, para a perspectiva jurídica, o conceito de minoria proposto por Rocha (1996, p.285) não no sentido quantitativo, mas no de qualificação jurídica, dos grupos contemplados ou aceitos com um cabedal menor de direitos, efetivamente assegurados, que outros que detém o poder. Para uma explicação em termos filosóficos, nos valemos da noção de minoria de Gilles Deleuze e Felix Guatarri (1995, p.44) para os quais “maioria implica uma constante, de expressão ou de conteúdo, como um metro padrão em relação ao qual ela é avaliada. Suponhamos que a constante ou metro seja homem-branco-masculino-adulto-habitante das cidades-falante de uma língua padrão-europeu-heterossexual qualquer (…) É evidente que ‘o homem’ tem a maioria, mesmo se é menos numeroso que os mosquitos, as crianças, as mulheres, os negros, os camponeses, os homossexuais… etc. É porque ele aparece duas vezes, uma vez na constante, uma vez na variável de onde se extrai a constante. A maioria supõe um estado de poder e de dominação, e não o contrário (…) É por isso que devemos distinguir: o majoritário como sistema homogêneo e constante, as minorias como subsistemas, e o minoritário como devir potencial e criado, criativo”.
[5] Em geral os antropólogos críticos ao sistema de cotas raciais questionavam uma suposta “racialização” do país com o retorno do uso do conceito de raça, advogando em favor de uma antropologia culturalista de cunho universalista e igualitário (FRY, 2005). Do mesmo modo, essas críticas se voltavam contra o “excesso” da posição do cientista de intervir politicamente no sentido de colaborar em um “tribunal das raças”, posto que a UNB, sob o pretexto de critérios “objetivistas”, “chegou a envolver a prática da antropologia enquanto atividade de ‘peritagem racial’” (MAIO E SANTOS, 2005, p.182). Ao rebater esses argumentos, Dos Anjos (2005, p.232) afirma que os debates acadêmicos acerca da questão racial são importantes por “impor a discussão sobre a relação entre os lugares de enunciação do cientista e do político-militante”. Em sua resposta ao artigo de Maio e Santos (2005), o antropólogo afirma que o “terreno é movediço quando simultaneamente se reconhece a existência das ‘injustiças raciais’ e se pretende expurgar qualquer operacionalização da categoria de raça”, de modo que, para alguns críticos, as ações afirmativas seriam “dispositivos que para desracializar começam realçando o fato da racialização” (DOS ANJOS 2005, p.233). O autor afirma ser claro o fato de que um antropólogo “que assume o exercício prático em um dispositivo de correção de ‘injustiças raciais históricas’ está inserido num lugar político de enunciação. E sua fala está dotada de uma inautenticidade congênita. Ele fala em nome de injustiçados que não lhe delegaram palavra e autoridade e que, felizmente, tem críticas a fazer sobre qualquer dispositivo que lhe seja montado para corrigir desigualdades raciais que ‘historicamente’ eles mesmos ou seus ancestrais sofreram”. Ao ver a posição do cientista crítico que desconfia da política como a de um “tribunal dos tribunais”, e assumindo ele próprio uma posição política de enunciação, Dos Anjos (2005) lembra que “falar de raças num cenário de correção de injustiças raciais e apontando para a desracialização a um certo prazo deveria ser entendido como diferente de fazer apologia de raças num contexto de promoção da superioridade de uma delas”. Para Dos Anjos, se o processo de racialização no Brasil não era simplesmente mera representação, sendo uma prática baseada em séculos de escravidão, as ações de desconstrução não devem se limitar a uma “pedagogia (des)racial”, o que exige dos cientistas que usem de sua imaginação científica e política para “apresentarem outras possibilidades de construção de dispositivos desracializantes em lugar da crítica exercida no confortável de tribunal de todos os tribunais” da ciência crítica (2005, p.235).
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