Sumário: I.II O Direito Global; I.II. A Sociedade de Risco; I.III. O Estado e a sociedade de riscos; I.IV. O papel das agências reguladoras na sociedade de risco brasileira. Referências bibliográficas.
I.I O Direito Global
A ordem jurídica sempre foi entendida como um sistema único, detentor de hierarquia de normas, coerência e fontes. Com a globalização econômica essa idéia foi, de certo modo, relativizada. Isso porque o direito na sociedade global exige maior flexibilidade em virtude da grande complexidade das situações concretas. Contudo, independentemente disso, o direito, principalmente o positivo, não tornou-se incompatível com a globalização, na medida em que apesar do novo patamar de desenvolvimento das relações sociais, tal fenômeno não se distanciou dos princípios essenciais que pautam a ordem jurídica.
Com a globalização a interdependência do ordenamento jurídico interno às circunstâncias externas é ampliada, vez que matérias específicas impõem ao direito o seu tratamento jurídico. Por isso, as regras que baseiam o direito e viabilizam os processos de tomadas de decisões são, cada vez mais, imprescindíveis. Logo, muito embora o novo contexto social abale o sistema jurídico, este deve possuir ferramentas para se adaptar às requisições político-econômicas apresentadas.
A complexidade das relações geradas pelo fenômeno da globalização não pode retirar a capacidade da ordem jurídica de se autodeterminar. Ainda que a nova sociedade global exija uma modificação do sistema jurídico, a dificuldade por ela gerada deve “estar ligada a um direito variável, positivo e imunizado, em suas operações, das determinações externas”[1], sob pena do direito restar conformado às leis da economia de mercado.
Assim sendo, ainda que a sociedade global diminua a diferenciação regional dos sistemas jurídicos e exija o tratamento uniforme de determinadas matérias, cada região possui especificidades próprias que demandam tratamentos jurídicos próprios. Dessa forma, cumpre ao direito interno possuir estruturas seletivas capazes de estabilizar essas situações e reduzir a sua complexidade para tornar o seu sistema jurídico operacional e diminuir o impacto de determinadas situações concretas no ambiente externo.
I.II. A Sociedade de Risco
Como já foi dito, a sociedade atual caracteriza-se como uma sociedade global. Isso se deve a sedimentação do modelo de produção econômica, calcada na ampliação do desenvolvimento científico de novas tecnologias, que culminou na diminuição do distanciamento existente entre as diversas regiões mundiais. Em função disso, circunstâncias as quais antes apenas impactavam localmente, agora produzem consequências em escala regional e, em alguns casos, mundial. Logo, os riscos relativos a realização de diversas atividades são elementos centrais no processo de organização social.
O risco pode ser caracterizado, nas palavras de Pierpaolo Cruz Bottini[2] como “a qualidade de uma situação que antecede o perigo”. Segundo o mesmo autor, consubstancia-se o perigo na probabilidade fática da ocorrência da lesão ou do dano que se pretende evitar. O risco simboliza uma opção subjetiva diante de uma situação concreta e, em virtude disso, possibilita o agente planejar ou elaborar alguma estratégia.
O homem durante toda a sua história foi marcado pelo relacionamento social e com a natureza. Relacionamento este que sempre gerou alguma espécie de perigo encarado, no entanto, como algo distante do controle humano, alheio a sua vontade. Por isso, o risco no passado era menor dimensionado, tendo em vista o seu caráter local e pessoal e a facilidade de sua percepção, em razão da falta de complexidade das relações sociais até então travadas.
Contudo, o desenvolvimento gerado com o advento da Revolução Industrial mudou a noção de risco. Isso porque o novo modelo econômico fundamentado na produção em larga escala e na inovação tecnológica exigiu dos agentes produtores um constante aperfeiçoamento, sob pena de afastamento natural do mercado.
Nessa linha, a velocidade da evolução tecnológica, sobretudo pela ampliação do conhecimento científico, fez com que fosse deixado de lado o estudo acerca dos efeitos decorrentes da sua utilização. As novas técnicas de produção não foram acompanhadas por mecanismos capazes de avaliar/medir o seu impacto.
Como ensina Pierpaolo Cruz Bottini baseado nas lições de Anthony Giddens
“A sociedade de risco compreende um período em que as consequências da modernidade se tornam, mais radicalizadas e universalizadas do que antes, e podem ser compreendidas, então, como o conjunto de relações econômicas e sócias que se desenham na era pós-industrial, em que o novo modelo de produção determina um novo papel ao risco.”
Isso significa, em outras palavras, que o risco passa a desempenhar, na sociedade atual papel essencial para o processo de organização coletiva, na medida em que muito embora a evolução tecnológica não apresente imediatamente alguma ameaça, ela certamente apresenta uma dificuldade no reconhecimento de riscos futuros.
A configuração do risco como figura central do processo de organização social transforma o modo de relacionamento político na sociedade. Isso porque se antes a idéia de risco relacionava-se a fatores externos não controlados pelo homem, hoje ele decorre principalmente da atividade humana potencializada pela ação da natureza. A nova extensão do risco gerada por essa nova perspectiva pode ser exemplificada com a explosão da usina nuclear em Chernobyl (1986), bem como o recente outro desastre nuclear ocorrido no Japão em virtude de tsunami.
Aliás, o exemplo japonês demonstra claramente a dimensão do risco produzido pelas novas tecnologias e a dificuldade do estabelecimento de uma relação de causalidade[3] entre a realização de determinadas atividades pelo homem e seus potenciais resultados. Constata-se esse fato, geralmente, após o acontecimento das catástrofes, em que os mecanismos prévios desenvolvidos para análise e verificação de risco foram insuficientes para medir a magnitude do impacto da inovação tecnológica aliada aos fenômenos da natureza.
Essa dificuldade na fixação de um nexo causal deriva, por sua vez, da ausência de referencial de espaço e tempo. A evolução da sociedade global faz com que os resultados dessas novas atividades não respeitem fronteiras nacionais e ocorram em tempo real. Desse modo, a falta de critérios para o contingenciamento do risco torna o desenvolvimento de novos instrumentos para aferi-los mais complexos, já que o avanço na criação de novas técnicas de produção não é proporcional ao progresso no conhecimento dos efeitos da sua utilização.
Frise-se que essa ausência de referencial de tempo e espaço proporciona a socialização dos riscos, os quais passam a ser enfrentados por todas as classes sociais. Logo, quem causa o risco também sofre as suas conseqüências. Esse é o chamado efeito bumerangue[4], o qual confere o efeito reflexivo aos riscos.
Aduz Pierpaolo Cruz Bottini[5]:
“O caráter reflexivo dos novos riscos, determinado pelo efeito bumerangue, é responsável pelo acirramento das reinvindicações pelo controle destes riscos. Quando a camada social proprietária dos meios de produção não era afetada, a lógica predominante voltava-se unicamente para o desenvolvimento de mecanismos e tecnologias que permitissem agregar valor a insumos, de maneira rápida e eficiente. Não estava na pauta política a preocupação com os eventuais resultados prejudiciais decorrentes daqueles métodos produtivos. A demanda pela contenção de riscos provinha exclusivamente da camada social que os suportava, sem condições efetivas de fazer valer o discurso crítico em relação aos perigos potenciais das novas práticas industriais.”
Não se quer dizer que a evolução tecnológica e o desenvolvimento humano deve ser evitado, em vista a ausência de parâmetros pré-fixados a respeito da exposição ao risco de determinadas atividades. O risco sempre fez e sempre fará parte da vida humana. Contudo, nas palavras de Pierpaolo Cruz Bottini, a nova dimensão dada ao risco e os perigos a ele relacionados reflete às opções da sociedade quanto ao grau de tolerâncias dessas novas atividades.
Cumpre esclarecer que, apesar da sociedade de riscos gerar uma sensação de ameaça constante, ela não cria uma situação real de perigo concreto, mas de expectativa. Nesse sentido aponta Christian Larroumet:
“A aceleração do conhecimento científico e da tecnologia neste início de terceiro milênio faz com que, cada vez mais, a segurança dos novos produtos permita considerar como menos seguros produtos ainda recentes, mas dos quais não se podia imaginar uma falta de segurança no momento em que foram colocados em circulação.”
Expectativa essa que a sociedade espera seja controlada pelo Estado através de mecanismos de gestão de riscos. Gestão consubstanciada na elaboração de uma linha de ação a ser seguida pelo Estado por meio de uma análise dos custos e dos benefícios advindos da execução de determinada atividade, a fim de fixar níveis aceitáveis de risco e proibir a atuação fora dos patamares estabelecidos.
É exatamente nesse contexto que a complexidade da decisão a ser tomada aflora. Deve-se identificar o risco de uma atividade em potencial com instrumentos incapazes de mensurar o tamanho do seu impacto na sociedade global sem, contudo, ultrapassar os limites da legalidade e dos direitos fundamentais dos cidadãos.
Assim sendo, essa sensação de ameaça, propiciada pela sociedade de riscos, exige atenção do Estado para a elaboração de medidas de prevenção e precaução capazes de evitar a conversão do risco em perigo efetivo.
I.III. O Estado e a sociedade de riscos
A Constituição e as leis conferem aos cidadãos direitos a serem usufruídos na vida em sociedade. Cumpre, no entanto, que tais direitos sejam exercidos em consonância ao bem-estar social. Por isso, o seu uso deve ser feito de modo a não impedir a realização dos objetivos públicos. Em razão disso, alguns direitos individuais já se encontram delineados pela Lei em outros casos incumbe à Administração Pública delimitar a sua extensão quando a Lei assim não o fizer.
A velocidade da evolução tecnológica e ampliação da sociedade de riscos determina cada vez mais uma atuação rápida do Estado a pretexto de evitar o surgimento de situações de perigo real e iminente. Com a inércia característica do Judiciário – não pela falta de celeridade nos processos judicias, mas pela necessidade de sua provocação através dos meio legitimamente estabelecidos para tanto – a morosidade do Legislativo – caracterizada, principalmente, pelos trâmites legislativos – incumbiu ao Executivo lidar com essa realidade.
O caminho legal, portanto, parece não conseguir suprir, com eficiência – entenda-se rapidez e qualidade – essa nova perspectiva. Veja-se a lição de Fabrício Motta[6]:
“Conforme se comentou neste capítulo, O Executivo passou a ser o executor e o formulador da política, em termos cada vez mais amplos. O Legislativo, ao contrário, cada vez mais outorga amplas e constantes delegações em branco ao Executivo ou, ao invés disso, se limita a consentir com os planos e programas do governo. A cada dia, aumenta o número de Leis que tratam da resolução de casos concretos ou que se limitam a autorizar a ação do Executivo em determinadas áreas, deixando-lhe ampla margem de liberdade. Ao mesmo tempo, a abstração e a generalidade das leis, atributos clássicos ligados à sua função garantística, hoje são tidas como insuficientes para a viabilização da intervenção do Estado em garantia do cumprimento ou da realização de valores exigidos pela sociedade, sendo preciso normas mais diretas.”
De tal modo, percebe-se que a complexidade das mudanças geradas com a globalização repercute no modo de reação do Estado às novas circunstâncias existentes no mundo contemporâneo, e com isso altera-se a função originariamente atribuída à lei enquanto produto da manifestação popular.
Com efeito, a primazia antes conferida ao Legislativo passou a ser exercida pelo Executivo, afetando a relação entre os dois poderes e, consequentemente, a concepção da legalidade administrativa, conforme assinala Odete Medauar[7]. A inovação tecnológica produzida pela globalização e o surgimento da sociedade de riscos contribuíram para a ampliação da atuação normativa do Executivo na elaboração de projetos de lei, na atuação como legislador delegado e até mesmo como legislador direto ao emitir medidas provisórias[8].
A respeito do assunto, ainda complementa Fabrício Motta[9] calcado na lição de Clémerson Cléve:
“A atual queda do prestígio da lei comentada pela doutrina deve-se à emergência do Estado Social com o consequente aumento de sua funções e dos instrumentos de intervenção atribuídos ao Executivo e, também, ao surgimento da sociedade técnica. A conjugação de tais fatores acarreta a necessidade de atuação do Estado com elevado preparo técnico e rapidez, características dificilmente verificáveis no exercício da atividade normativa pelo Estado.”
Resta claro que o surgimento da sociedade de risco exigiu, inexoravelmente, do Estado uma maior atuação da Administração Pública naquilo que concerne à contenção e à prevenção de ameaças à ordem socioeconômica. Nesse diapasão, para o Estado conseguir manter o bom convívio social ele teve de estabelecer limites para a atuação privada, considerando a sociedade global e a necessidade de diminuição de riscos dela decorrentes.
Tais limites, incidentes, principalmente, sobre à liberdade e à propriedade, exigiram uma ampliação do poder de polícia[10] do Estado. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello, o poder de polícia se refere “ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos”[11] Tal poder têm como propósito condicionar a atuação privada e conformá-la aos interesses coletivos.
Deve-se observar, contudo, que a ação administrativa com base no poder de polícia não lhe confere a possibilidade de agir de qualquer maneira. Em uma porque em certos casos a limitação ao exercício de determinados direitos já vem estabelecida em Lei, de modo que cumprirá à Administração apenas assegurar-lhe o respeito, impedindo a transgressão. Em duas porque, em outros casos em que a Lei não fixar limites, caberá a Administração analisar as circunstâncias objetivas e subjetivas do fato, à luz dos princípios constitucionais que fundamentam a sua ação, e julgar a conveniência e a oportunidade da utilização do poder de polícia, com o fito de evitar qualquer supressão a esfera legitimamente protegida do exercício do direito pelo particular.
Desta maneira, a Administração Pública ao empregar o poder de polícia, deve respeitar certos limites para não incidir em arbitrariedade. Quando tais limites não são diretamente disciplinados em Lei, eles o são indiretamente determinados pela finalidade legal da sua aplicação, baseado nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Logo, é necessário que haja adequação entre os meios utilizados pela Administração para atingir o objetivo legal pretendido, sob pena de responsabilidade civil administrativa por excesso[12].
O poder de polícia pode ser exercido de duas maneiras pelo Estado. A primeira, em sentido amplo, relaciona-se com a possibilidade de a Administração Pública intervir de forma geral ou abstrata no âmbito de atuação privada, através de regulamentos para a fiel execução de Leis: Já o segundo modo refere-se à utilização do poder de polícia em situações específicas e concretas – para a concessão de autorizações, licenças e permissões, por exemplo – a fim de obstar determinadas atividades particulares contrastantes ao interesse público. Essa última definição corresponde à noção de polícia administrativa[13].
O exercício da polícia administrativa, conforme explica Celso Antônio Bandeira de Mello[14] “repousa nesta, assim, chamada, ‘supremacia geral’, que no fundo, não é senão a própria supremacia das leis em geral, concretizadas através de atos da Administração.” A supremacia geral é, portanto, o poder conferido à Administração para aplicar e exigir o cumprimento das Leis.
Por outro lado, a “supremacia especial” repousa na idéia da Administração utilizar o poder de polícia em situações em que o particular mantenha com ela um vinculo de sujeição especial. Isso significa, situações em que os entes privados atuem no campo estatal, como servidores públicos, na prestação de serviços públicos por delegação, no direito especial ao usufruto de bem público e na celebração de contratos administrativos, por exemplo.
Dentro da relação genérica, de supremacia geral da Administração Pública, é importante destacar que o poder de polícia só será utilizado para regulamentar os comportamentos dos particulares no campo de atividades que lhes é próprio. Isso quando a Lei, ao disciplinar a vida dos indivíduos, atribuir à Administração uma função ativa em seu cumprimento, consoante explica Carlos Ari Sundfeld[15].
Isto é, a atuação administrativa quando do estabelecimento de relação genérica com o particular deve estar adstrita ao princípio da legalidade. A Administração só poderá exercer o seu poder de polícia nessa seara quando expressamente previsto em Lei, nada mais e nada menos. Em contrapartida na relação específica os poderes conferidos à Administração independem de expressa previsão legal, vez que nesse caso os particulares estarão mais sujeitos a autoridade do Estado.
Conforme aponta Carlos Ari Sundfeld[16]:
“(…) enquanto os poderes da Administração, nos vínculos específicos com os particulares, lhe são conaturais e, portanto, tão extensos quanto o necessário, os poderes genéricos da Administração frente aos particulares existirão se, quando, como e na medida em que expressamente previstos em lei.”
A diferenciação entre os dois aspectos – genérico e específico – é essencial para entender o papel que a lei desempenha na legitimação dos atos praticados pela Administração Pública no uso do poder de polícia. Principalmente, quanto ao o uso deste poder pelas agências reguladoras no caso de relação especial dos particulares com a Administração Pública.
Assim sendo, passar-se-á a examinar qual o grau de intervenção normativa esses entes administrativos devem possuir, a luz da sociedade de riscos.
I.IV. O papel das agências reguladoras na sociedade de risco brasileira.
A introdução das agências reguladoras no Brasil se deu em meados da década de 90. A sua instituição fazia parte do projeto de reestruturação econômica iniciado no governo do então Presidente Fernando Henrique Cardoso. Esse projeto tinha por objetivo principal desonerar a máquina pública. A meta era a prestação eficiente de serviços para a sociedade, o que não se estava conseguindo, naquele momento, com as empresas estatais.
As agências reguladoras caracterizavam a intenção do Estado brasileiro em deixar de ser um agente direto da ordem socioeconômica e passar a ser um agente regulador/fiscalizador das atividades de natureza pública desenvolvidas pela iniciativa privada.
No Brasil, as agências reguladoras são caracterizadas como pessoas jurídicas de Direito Público, de natureza autárquica, criadas por Lei e que somente por Lei podem ser extintas, com capacidade administrativa, autonomia patrimonial, mas sob controle do Estado quanto à organização, administração e fiscalização financeira, submetidas, de acordo com o legislador pátrio, a um regime especial.
A legislação atinente às agências reguladoras além de lhes atribuírem características inerentes às autarquias clássicas distingue-as em função de um grau maior ou menor de independência da Administração Direta. É o que se pode perceber pelo Art 8º da Lei nº 9.472/1992 (Lei Federal instituidora da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL) e do Art. 1º da Lei nº 9.427/1996 (Lei Federal instituidora da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL).
Praticamente, todas as agências reguladoras foram criadas para controlar setores econômicos de grande importância para o país, e, consequentemente, de grande impacto para a sociedade. São exemplos a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), a ANEEL, ANATEL, ANA (Agência Nacional de Águas), ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), entre outras.
Sua função principal é estabelecer parâmetros razoáveis para a correta produção e efetiva prestação dos serviços atinentes ao setor econômico por elas fiscalizado e controlado, os quais tenham a capacidade de conciliar os interesses tanto dos fornecedores/prestadores quanto dos clientes/consumidores. Parâmetros esses baseados em decisões técnicas, livre de influência política. É o que se infere do Art. 3º da Lei nº 9.427/1996 (ANEEL), dos Art. 6º e 7º da Lei nº 9.782/1999 (Lei Federal instituidora da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA).
As formulações desses parâmetros pelas agências reguladoras deveriam servir como diretriz para o setor privado acerca da melhor opção, no desenvolvimento da atividade econômica ou na prestação do serviço público, para o interesse coletivo.
Contudo, tais parâmetros e diretrizes consubstanciados em regulamentos expedidos pelas agências reguladoras poderiam vincular a atuação privada? Dito de outro modo, as agências reguladoras poderiam deter poder normativo suficiente para obrigar os particulares a cumprirem as suas determinações?
Para responder essa pergunta é preciso considerar algumas coisas. Primeiro, as agências regulam setores de grande relevância social, os quais mesmo não possuindo natureza de serviço público produzem interesses coletivos, implicando o surgimento de relação especial. Segundo, os serviços públicos passaram a ser exercidos por particulares sob regime de delegação, o que gerou uma relação privada de caráter especial exigindo controle por parte do Estado. Terceiro, a globalização e o surgimento da sociedade de riscos aumentaram a velocidade, a complexidade e a repercussão das relações sociais, as quais não foram acompanhadas pelo Poder Legislativo e reclamaram uma atitude por parte do Poder Executivo. Quarto, as agências reguladoras possuem ou não capacidade técnico-científica suficiente para contingenciar e determinar os riscos decorrentes da realização e do desenvolvimento dessas atividades. Quinto, e último, o Art. 5º, II da Constituição da República estabelece que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de Lei.
A Constituição em seu Art. 5º, II expressamente estabelece o princípio da legalidade. O princípio da legalidade é a base do Estado Democrático de Direito, visto que é ele quem garante a proteção dos indivíduos através da limitação dos poderes estatais. O Art. 37 da Carta Magna ao fixar os limites da atuação administrativa impõe o dever a Administração Pública de obedecê-lo.
De acordo com os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello[17], o princípio da legalidade é:
“(…) o específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e que lhe dá identidade própria. Por isso mesmo é o direito administrativo (pelo menos aquilo que como tal se concebe) nasce com o Estado de Direito: é uma conseqüência dele. É o fruto da submissão do Estado à lei. É em suma: a consagração da idéia de que a Administração Pública só pode ser exercida na conformidade da lei e que, de conseguinte, a atividade administrativa é atividade sublegal, infralegal, consistente na expedição de comandos complementares à lei. (…)”
Segundo o referido doutrinador a falta de contradição à lei e a existência de autorização legislativa prévia são condições essenciais para a atuação administrativa[18]. É dever da Administração, inclusive, assegurar a fiel execução das leis e das normas legais, sob pena de responsabilidade civil.
Contudo, conforme salientado no presente trabalho as relações sociais atuais desenvolvem-se com muita rapidez e complexidade exigindo tratamento jurídico cada vez mais específico. Para acompanhar isso se editam diversas leis, as quais nem sempre trazem a melhor solução ao caso concreto. Aliado a isso o Executivo, para tentar suprir a falta de legislação acerca de determinadas matérias, amplia a sua atuação no campo normativo, as vezes de forma inconstitucional.
A Administração Pública deixa de socorrer-se precipuamente na Lei, para amparar a sua ação normativa nos princípios gerais do Direito. A atuação administrativa ao invés de ser entendida sob a égide da aplicação da legalidade em sentido estrito passa a ser respaldada no ordenamento jurídico.
A Administração busca no conjunto de normas e princípios que formam o ordenamento jurídico pátrio a solução ótima para o caso concreto, levando em conta a solução legislativa ofertada e o interesse público envolvido. Essa obediência à ordem jurídica como um todo forma o chamado princípio da juridicidade.
A evolução da sociedade e do Estado, nos dias atuais, caminha para uma mitigação do princípio da legalidade em favor do princípio da juridicidade, vinculando a atuação administrativa aos ditames estabelecidos pelo Direito e não somente a letra da lei.
Nessa toada, aduz Carmem Lúcia Antunes Rocha:
“O ´império da lei’ não tem mais lugar no Estado Democrático de Direito material, pois neste o que se adota é o ´Império da Justiça´, sob cuja égide ainda se forma e se informa a ordem jurídica contemporânea. A ´legalidade´ não é cogitada, pois, senão com o significado de ser aquela que veicula a materialidade da Justiça concebida e desejada pelo povo de um Estado, segundo suas necessidades e aspirações. A dimensão do Estado haverá que ser, pois, a desta Justiça realizadora do bem de todo o povo, da universalidade das pessoas que o compõem, mais, ainda, sem prejuízos graves ou fatais para toda a humanidade, pois não poucas vezes, agora, os interesses públicos não são apenas locais, mas transnacionais, como ocorre quando se cuida de meio ambiente, saúde e, especialmente, direitos humanos.”
Ainda, nesse ponto, é possível afirmar, inclusive, que a atuação técnica e específica das agências em matérias relevantes para o interesse público pode contribuir para uma performance mais ágil e eficiente do Estado, num setor econômico regulado.
Explica Leila Cuéllar[19]:
“(…) ao contrário do que ocorre como o Poder Legislativo, que possui um número muito grande de questões para apreciar, abrangendo uma gama diversa de matérias, o campo de atuação dos entes reguladores é mais restrito, vez que possuem competência para disciplinar apenas determinadas áreas. Além disso, são compostos por funcionários que devem ter notória capacitação profissional, vinculada às áreas de atividade das agências. As agências reguladoras tenderão, assim, a se especializar nas matérias que lhes dizem respeito.”
A partir dessa análise poderia se cogitar na atribuição de poder normativo para as agências reguladoras, ainda mais sopesando-se a neutralidade técnica que fundamenta o seu surgimento e a existência, nos setores regulados, de relação especial de sujeição dos particulares à Administração Pública, tendo em vista o interesse público contido na prestação/realização dessas atividades.
Entretanto, apesar dessa nova compreensão acerca do princípio da legalidade, cujo entendimento até de certo modo poderia legitimar uma atuação mais vinculante por parte das agências reguladoras em relação ao particulares, é exatamente na sua idoneidade técnica que reside o problema para a atribuição de poder normativo.
É fato que o papel da Administração Pública na atividade de gerenciamento de riscos é acentuado, cumprindo aos técnicos administrativos tomar importantes decisões sobre quais os riscos permitidos. Ademais, não resta dúvida de que as agências reguladoras, em razão dos fundamentos de sua própria existência, devem ser os entes administrativos mais capacitados e estruturados para assumir essa função, haja vista a crescente criação de agências em diversos países do mundo.
Ocorre que, muito embora exista a possibilidade de contingenciamento dos riscos produzidos pela sociedade global, a falta de referenciais científicos concretos para a fixação do grau de periculosidade das novas atividades desenvolvidas pelos particulares impede a elaboração de parâmetros e de decisões essencialmente calcadas em estudos técnicos.
Ademais, a existência de instrumentos científicos insuficientes para mensurar o impacto preciso a curto, médio e longo prazo faz com que surjam argumentos muitas vezes contraditórios acerca da realização e aplicação de determinadas atividades tecnológicas. A impossibilidade de identificar em que consiste realmente a relação de causalidade entre uma atividade e seus efeitos torna a atuação do gestor de riscos, no caso as agências reguladoras, mais complexa do que ela já é.
Frise-se que as atividades econômicas geridas pelas agências, em muitos casos, envolvem interesses macroeconômicos. Por isso, a tomada ou não de uma decisão acerca do risco permitido calibrada por argumentos cientificamente questionáveis pode implicar em disputas políticas.
Some-se a isso tudo o atual panorama das agências reguladoras no Brasil. Nos últimos anos, boa parte das verbas orçamentárias destinadas a elas vêm sendo retidas pelo próprio governo, a pretexto de cumprimento de outras metas fiscais.
Com a diminuição dos seus recursos, as agências perderam, e muito, a sua capacidade operacional, inclusive para a ampliação estrutural que as possibilitassem arrecadar outras receitas. Essas circunstâncias tornaram as agências reguladoras cada vez mais vulneráveis a ingerências políticas.
Além disso, a piora na qualidade da atuação das agências reguladoras, em virtude do corte no repasse de verbas pelo Estado e da influência política, acarretou uma série de problemas não apenas para as empresas por elas fiscalizadas, mas, principalmente, aos consumidores. Em 2009, por exemplo, a ANAC só dispôs de R$ 20 milhões para garantir a operação da aviação civil de acordo com os padrões internacionais de qualidade e segurança. Em 2010, foram autorizados para essa função R$ 34 milhões, mas R$ 10 milhões foram contingenciados.
A sequência de apagões elétricos, também, iniciada em 2009 e que se estende até hoje poderia ter sido pelo menos contida, se a Agência Nacional de Energia Elétrica mantivesse as fiscalizações. Em 2009, estavam previstas 2.017 fiscalizações, mas, por causa do corte de verbas, só foram executadas 1.866, um número menor do que o de 2008. A Agência Nacional de Telecomunicações dispôs de receitas que, em 2009, estavam orçadas em R$ 3,8 bilhões. Desse valor, porém, só recebeu R$ 302 milhões.
É evidente a importância da criação e manutenção das agências reguladoras a vista da sociedade global, especialmente quanto ao controle dos riscos propiciados pela evolução tecnológica, aplicada nos setores por elas regulados, que se encontram intimamente ligados ao interesse público.
Porém, a atual conjuntura brasileira gera um cenário obscuro para a atuação normativa das agências reguladoras, na medida em que as justificativas pelas quais elas se apoiam para legitimar a utilização desse poder não são efetivamente respeitadas na realidade prática. Isso contribui para o desprestígio das agências perante a sociedade e, consequentemente, na sua idoneidade técnica e política na elaboração de decisões capazes de vincular a atuação privada.
Diante desta análise, resta claro que antes de se pensar em atribuir qualquer tipo de força normativa vinculativa deve-se fortalecer as agências reguladoras estruturalmente para que elas possam atingir os fins para os quais foram desenvolvidas. Sem isso não há que se conferir poder normativo as agências reguladoras, sob pena de se desvirtuar o Estado Democrático de Direito, sobretudo na atual sociedade de riscos.
Advogado, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba (UNICURITIBA).
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