Resumo: O contrato de trespasse materializa importante instituto jurídico que poderia ser melhor utilizado para efeito de se promover e realçar o princípio da função social da empresa e da preservação da atividade empresarial, evitando-se, pois, o encerramento de empresas que enfrentam dificuldades financeiras e não encontram mecanismos para ser preservadas. Este artigo tem por escopo demonstrar as principais características do contrato de alienação do estabelecimento empresarial, os aspectos formais e materiais que precisam ser observados, quais são os suportes legislativos mais importantes que são aplicáveis neste tipo de negócio jurídico e quais as implicações, do ponto de vista jurídico-econômico, que justificam a viabilidade ou não da sua utilização pelo empresariado, tratando-se, inclusive, das possibilidades de declaração de ineficácia do negócio jurídico eventualmente celebrado e das repercussões por ele exercidas no manejo da ação renovatória de locação não-residencial.
Palavras-chave: Trespasse; estabelecimento; empresarial; possibilidades; problemas.
Abstract: The contract materializes trespass important legal institution that could be better used for the purpose of promoting and enhancing the principle of the social function of the company and the preservation of business activity, avoiding therefore the closure of companies facing financial difficulties and not mechanisms are to be preserved. Scope of this article is to demonstrate the main features of the contract of sale of the business establishment, the formal and material aspects that need to be observed, which are the most important legislative support that are applicable in this type of legal business and the implications from the point of a legal-economic, justifying the feasibility or otherwise of its use by businesses, in the case, including the possibilities for a declaration of ineffectiveness of any legal transaction concluded and the repercussions he exercised in the management of lease action renovator non-residual .
Keywords: Sale, establishment, business, possibilities, problems.
Sumário: 1. Introdução; 2. As fontes do direito e o sistema jurídico; 2.1 As fontes do Direito; 2.2 A teoria dos sistemas; 3. Estabelecimento empresarial e/ou fundo de empresa: a sua natureza jurídica. Necessária distinção entre estabelecimento e patrimônio; 4. O contrato de trespasse como mecanismo de transferência do estabelecimento comercial; 4.1 Aspectos (formais e materiais) necessários ao contrato de trespasse; 4.2. A transferência do estabelecimento empresarial e a caracterização da sucessão. Os débitos vinculados ao fundo de empresa e os casos trabalhista e tributário. 4.3. A alienação do estabelecimento em procedimento de recuperação judicial, extrajudicial e/ou falência; 4.4. A proteção do adquirente pela cláusula de não-restabelecimento. Efeitos do trespasse na locação empresarial; 4.5. A possibilidade de declaração de ineficácia do contrato de trespasse. Críticas à previsão genérica de ineficácia do negócio e de transferência de todo o passivo ao adquirente; 5. A ausência de proteção ao adquirente do estabelecimento empresarial. Repercussões econômicas da normatização do trespasse do estabelecimento; 6. Considerações finais; 7. Referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A alienação do estabelecimento empresarial foi pensada como importante mecanismo de manutenção da atividade empresarial e de preservação do interesse social da empresa, isto porque o trespasse do fundo de empresa se apresenta como solução a evitar a paralisação da sociedade empresária, mantendo-se os postos de trabalho, a produção de riquezas e a contribuição com o desenvolvimento econômico e social do país.
O objetivo do estudo, longe de esgotar o tema, é passar, ainda que rapidamente, sob os pontos mais importantes que cercam o trespasse do estabelecimento empresarial, explorando sua natureza jurídica, seus elementos essenciais e individualizando sua posição no universo de relações jurídicas que compõem a estrutura de uma empresa.
Demonstrar-se-á que o contrato de trespasse é o veículo normativo (por veicular normas individuais e concretas estabelecidas pelas partes contratantes) eleito para viabilizar a transferência onerosa do estabelecimento empresarial, abordando-se as formalidades que precisam ser observadas à validade jurídica deste tipo de contrato.
Importante questão abordada diz respeito à sucessão dos débitos vinculados à atividade desenvolvida pelo estabelecimento, assim como aqueles de natureza trabalhista e tributária, quando se está diante da realização do trespasse do fundo empresarial.
Abordar-se-á, ainda, a alienação do estabelecimento empresarial na sistemática dos procedimentos da recuperação judicial e extrajudicial e, ainda, no curso da falência, demonstrando-se que as consequências jurídicas de se adquirir o fundo de empresa nestas circunstâncias são diferenciadas, do ponto de vista da responsabilidade por débitos, se comparada com a mesma operação realizada a revelia da aplicação da Lei nº 11.101/2005.
Verificar-se-á, ademais, as consequências jurídicas da realização do trespasse do estabelecimento em relação à locação empresarial, em especial quanto aos requisitos para a ação renovatória de locação, assim como a obrigação de não-restabelecimento do alienante do fundo de empresa em virtude da cláusula de não-concorrência, para ao final deste ensaio se destacar as possibilidades de declaração de ineficácia do trespasse de estabelecimento.
Toda a análise proposta é realizada sem prejuízo das ponderações críticas à normatização do estabelecimento empresarial hoje vigente no Brasil, pois o fato de as regras à alienação do estabelecimento estar corporificadas no Código Civil brasileiro não impede que se teçam críticas ou elogios, pois como pondera Fábio Tokars[1] “(…) evidentemente, para além da existência da lei, faz-se necessária a análise quanto à sua correção e adequação. O mito positivista, no sentido de que a norma se constitui em fundamento suficiente para a compreensão do Direito, está de há muito superado. Está consolidada a compreensão da interdisciplinariedade dos fenômenos jurídicos, principalmente para a possibilidade de identificação das condicionantes de criação do direito normatizado, que permitem, em associação com outros elementos, a avaliação quanto à legitimidade das regras jurídicas em espécie”.
Diante do panorama traçado pelo direito brasileiro em relação ao contrato de trespasse, buscar-se-á nesse ensaio descortinar seu conteúdo e associá-lo aos valores constitucionais afetos à livre iniciativa, analisando a viabilidade ou não da sua utilização no âmbito do direito brasileiro. Em outras palavras, a partir do método indutivo-dedutivo, pretende-se responder aos seguintes questionamentos: o contrato de trespasse, no modelo brasileiro, atende às necessidades da classe empresária? No atual modelo brasileiro, a alienação do estabelecimento empresarial é medida adequada do ponto de vista dos atores de tal instrumento jurídico?
Definidos o tema, o problema e o método, passa-se a estudar o contrato de trespasse na perspectiva do Direito brasileiro, naturalmente sem a pretensão de esgotar o assunto, tamanha a sua complexidade, relevância e implicações jurídicas.
2. AS FONTES DO DIREITO E O SISTEMA JURÍDICO
Como caminho necessário para se compreender a possibilidade de alienação do estabelecimento empresarial realizado por intermédio do contrato de trespasse, com a superação, ainda que parcial, das prescrições normativas do Decreto-Lei 7.661/45, de 21 de junho de 1945, especialmente em função da normatização traçada com o advento do Código Civil de 2002 e da Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, deve-se, ainda que de forma sucinta e sem qualquer pretensão de esgotar o tema, analisar as fontes do direito e passar os olhos na teoria dos sistemas, institutos que se reputam importantes para a compreensão do tema em estudo.
2.1 AS FONTES DO DIREITO
A doutrina tradicional, talvez por não emprestar a devida atenção ao importante instituto jurídico que são as fontes do direito, contenta-se em descrevê-la fazendo uma associação com as fontes de água, transparecendo a ideia de que se trata do nascedouro do direito, de onde promana o direito. É por essa razão que se perguntado aos operadores do direito o que são fontes do direito, a maioria deles responderá se tratar das leis, doutrina, jurisprudência e até mesmo dos costumes.
Embora o tema das fontes do direito não seja o objetivo principal desse trabalho dado o objeto de investigação, valendo-se de uma concepção diferente daquela comumente descrita pela doutrina acerca da análise desse instituto, busca-se demonstrar uma forma diferente de enxergar tal fenômeno jurídico, onde fontes do direito são os focos ejetores de normas jurídicas, enquanto processos de enunciação.
Por fontes do direito havemos de compreender os focos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos habilitados pelo sistema para produzirem normas, numa organização escalonada, bem como a própria atividade desenvolvida por esses entes, tendo em vista a criação de normas. Significa dizer, por outros torneios, que não basta a existência de órgão devidamente constituído, tornando-se necessária sua atividade segundo as regras previstas no ordenamento[2].
Todavia, o mesmo Paulo de Barros Carvalho adverte que: “tratar de fontes do direito deve levar o intérprete a refletir sobre o fato de que regra jurídica alguma ingressa no sistema do direito positivo sem que seja introduzida por outra norma, tratada pela doutrina como veículo introdutor de normas jurídicas. Isso nos autoriza a falar em “normas introduzidas” e “normas introdutoras”. (…). Nos limites dessa proposta, fontes do direito serão os acontecimentos do mundo social, que juridicizados por regras do sistema e credenciados para produzir normas jurídicas que introduzam no ordenamento outras normas, gerais e abstratas, gerais e concretas, individuais e abstratas ou individuais e concretas[3]”.
Nesta perspectiva, pode-se afirmar, na linha de investigação proposta por Paulo de Barros Carvalho, que o sistema do direito positivo é integrado por normas introdutoras e introduzidas, enquanto que o conjunto de fatos aos quais a ordem jurídica atribuiu teor de juridicidade, se tomados na qualidade de enunciação e não como enunciados, estarão formando o território das fontes do direito posto. Esta diferenciação proposta permitirá operar com as fontes como algo diferente do direito posto.
Diante dos pressupostos firmados, é possível sustentar que o estudo das fontes do direito está voltado para os fatos enquanto enunciação que fazem nascer regras jurídicas introdutoras, de forma que tais eventos só assumem essa condição por estarem previstos em outras normas jurídicas.
É por essa razão que Lourival Vilanova[4] sentencia que “as normas de organização (e de competência), e as normas do “processo legislativo”, constitucionalmente postas, incidem em fatos e os fatos se tornam jurígenos. O que denominamos “fontes do direito” são fatos jurídicos criadores de normas: fatos sobre os quais incidem hipóteses fácticas, dando em resultado normas de certa hierarquia”.
O direito nasce, portanto, dos fatos que desencadeiam o processo de produção de normas jurídicas (enunciação), culminando com o produto legislado, ou enunciado prescritivo que, nesta concepção, nada mais é, senão, que veículo introdutor de normas jurídicas, ou seja, norma de estrutura.
Não se pode deixar de ressaltar as palavras de Rodrigo Santos Neves[5], que assevera: “Como poderia o direito nascer de uma lei, ou de um julgado de um tribunal? O direito nasce do seio da sociedade, devido às necessidades desta e para supri-las. O direito não nasce da vontade do legislador – como afirmam os positivistas – nem do entendimento de um tribunal sobre uma determinada matéria (pois isto é apenas uma interpretação do direito)”.
Por fim, nesta perspectiva apresentada, as fontes do direito deixam de ser analisadas como fontes formais (que nas palavras de Paulo de Barros Carvalho[6], são as fórmulas que a ordem jurídica estipula para introduzir regras no sistema), e passa a ser analisado apenas sob a perspectiva de fonte material (que na visão do mesmo autor, se ocupam dos fatos da realidade social que, descritos hipoteticamente nos supostos normativos, têm o condão de produzir novas proposições prescritivas para integrar o direito posto), que se analisadas como ato de enunciação, são fontes de normas jurídicas.
É por essa razão que doutrina, costumes e jurisprudência não podem ser consideradas como fontes do direito, enquanto que as leis, ou instrumento primários de normas, assim como os instrumentos secundários de normas jurídicas, são, nesta perspectiva, apenas veículos utilizados para inserir as normas jurídicas no sistema posto.
2.2 A TEORIA DOS SISTEMAS
Nesse trabalho, em que pese opiniões em sentido contrário, parte-se do pressuposto que o direito é um sistema autopoiético, pois enquanto sistema complexo possui as características de ser auto-regulável e auto-referenciável. Cristiano Carvalho[7] pondera que “os sistemas jurídicos modernos têm em si mesmos as regras de sua auto-produção, são, portanto, auto-referenciáveis”.
Os sistemas autopoiéticos são assim caracterizados porque todos os elementos necessários às suas operações são produzidos internamente no próprio sistema, ou seja, o sistema autopoiético se auto-alimenta. A autopoiese, teoria desenvolvida pelos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varella, tomou como objeto o ser vivo enquanto sistema ao mesmo tempo fechado, em sua organização interna, e aberto para as informações advindas do ambiente.
Fazendo uma síntese das propriedades de funcionamento do sistema autopoiético, uma vez mais se recorre às lições de Cristiano Carvalho[8], que adota a seguinte classificação:
“(i) é auto-regulável: significa que o sistema consegue manter o seu equilíbrio interno através da troca de informação com o ambiente. As respostas (“feedback”) do ambiente às mensagens que envia o fazem ajustar a sua ação futura;
(ii) é auto-gerativo: significa que o sistema produz seus próprios elementos;
(iii) é auto-referenciável: significa que o sistema tem em si mesmo as regras de sua auto-produção, i. e, o sistema fala sobre si mesmo (função metalinguística).”
Em verdade, o sistema autopoiético é fechado sintaticamente e aberto semanticamente, ou seja, é fechado operacionalmente, mas aberto cognitivamente, razão de ser auto-regulável e auto-referenciável, mas apesar de produzir os elementos necessários à sua manutenção, há interação com o meio ambiente, que não o influencia diretamente, mas esse contato faz com que a sua estrutura processe as informações e perturbações advindas do ambiente, fazendo-o evoluir.
Da mesma forma, essa abertura semântica permite que o sistema autopoiético se comunique com outros subsistemas, que apesar de serem fechados operacionalmente, são interdependentes. Em outras palavras, o sistema autopoiético é formado por subsistemas que apesar de fechados, se intercomunicam, sendo essa a característica que torna vivo o sistema.
É por isso que Maturana diz que o sistema autopoiético, por produzir a si próprio, em produção contínua, apresenta uma característica de clausura organizacional, o que significa que o sistema é autônomo no sentido de processar as informações enviadas pelo ambiente, pois são as mensagens deste ambiente que irão estimular o sistema autopoiético.
Luhmann e Teubner afirmam categoricamente a autopoiese do sistema jurídico, que é fechado operacionalmente (ou normativamente), mas aberto cognitivamente, i. e, aberto às mensagens do ambiente, o que é condição para o processo autopoiético. A consequência da autopoiese para o domínio jurídico é a consagração da autonomia sistêmica, em relação aos demais sistemas sociais[9].
Qual a importância da autopoiese para o estudo da alienação do estabelecimento empresarial? É que as consequências jurídicas advindas do contrato de trespasse transcendem ao campo do direito, que inegavelmente baliza os aspectos formais e materiais mínimos a serem seguidos, todavia, também se relaciona com outros campos do conhecimento, a exemplo da economia e das relações sociais (em função das repercussões econômicas e sociais advindas da utilização ou não desse importante mecanismo de promoção do princípio da preservação da empresa, mas que no Brasil não encontra o regramento adequado à sua utilização).
Todos esses microssistemas se comunicam e se interrelacionam, nos termos da abertura semântica antes mencionada, demonstrando, pois, a autopoiese do sistema normativo em que inserido o contrato de alienação de estabelecimento empresarial.
Feitas essas considerações sobre a teoria das fontes do direito e sobre a autopoiésis do sistema jurídico, já é possível avançar e começar a tratar especificamente sobre o trespasse do estabelecimento empresarial.
4. ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E/OU FUNDO DE EMPRESA: A SUA NATUREZA JURÍDICA. NECESSÁRIA DISTINÇÃO ENTRE ESTABELECIMENTO E PATRIMÔNIO
Estabelecimento empresarial é o conjunto de elementos corpóreos e incorpóreos, organizados pelo empresário para dar início à atividade empresarial. Surge o estabelecimento, portanto, quando o empresário consegue reunir os elementos úteis e indispensáveis ao funcionamento do empreendimento, iniciando, de fato, as atividades comerciais, que compreenderão a existência de um ponto que propicie a atração e manutenção de clientela[10], de mobiliários, de mercadoria que será objeto de mercancia, de tecnologia e de um nome fantasia ou título ao estabelecimento.
A partir do conceito apresentado, firma-se a premissa de que estabelecimento empresarial é sinônimo de fundo de empresa[11], onde “o empresário aparelha-se para exercer sua atividade. Forma o fundo de comércio a base física da empresa, constituindo o instrumento da atividade empresarial”[12] que surge a partir do instante em que o empresário consegue reunir os elementos necessários ao início da atividade econômica desejada.
O estabelecimento empresarial, em período anterior ao advento do novo Código Civil e alicerçado no direito estrangeiro, era considerado pela doutrina brasileira como uma universalidade de fato – universitas facti – já que esta se caracteriza pela união de bens, com destinação e finalidade específicas e que se mantêm unidos em razão da vontade de seu proprietário[13].
Na universalidade de fato, a união de bens destinados a um fim específico é determinado pelo seu proprietário, i. é, decorrente da vontade de uma pessoa que detém a titularidade jurídica desses bens. Por outro lado, na universalidade de direito, a união de bens independe da vontade de seu proprietário, pois é determinada pela lei, formando-se uma verdadeira união de relações jurídicas.
Como até a entrada em vigor do Código Civil de 2002 não havia disciplina jurídica específica quanto ao estabelecimento empresarial no direito brasileiro, a doutrina clássica, então, considerava o fundo de empresa como uma universalidade de fato. Ocorre que esse panorama se alterou com o Código Civil de 2002, isto porque a nova codificação civil destinou um capítulo inteiro à disciplina do estabelecimento empresarial, que passou, então, a ter disciplina jurídica própria no sistema jurídico tupiniquim.
Inicialmente, percebendo-se a preocupação do legislador, há que se destacar que o Código Reale trouxe o conceito legal de universalidade de fato e de direito, prescrevendo no art. 90 que “constitui universalidade de fato a pluralidade de bens singulares que, pertinentes à mesma pessoa, tenham destinação unitária”, enquanto que no art. 91 está expresso que “constitui universalidade de direito o complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, dotadas de valor econômico”.
Pois bem, a partir da conceituação legal destacada e dando uma interpretação uniforme aos artigos 1.142 c/c 1.146, ambos do vigente Código Civil[14] conclui-se que o conceito de estabelecimento empresarial transparece a ideia de ser este um complexo de relações jurídicas que por intermédio da organização de bens viabiliza o exercício da atividade empresarial por empresário – no caso do empresário individual – ou por sociedade empresária, que em sua maioria são representadas pelas sociedades de responsabilidade LTDA ou pelas Sociedades anônimas S/A’s.
Apesar de não se revestir da característica de sujeito de direito, o estabelecimento é formado por um complexo de relações jurídicas em razão, primeiro, da responsabilidade do sucessor/adquirente quanto às dívidas vinculadas ao empreendimento empresarial, assim como em razão das inúmeras variáveis desse tipo de negociação e, por consequência, das relações jurídicas que podem advir dos bens que compõem o fundo de empresa.
É por essa razão que no atual estágio de evolução da legislação brasileira quanto ao instituto em estudo, já se mostra possível sustentar que o estabelecimento empresarial é considerado, do ponto de vista jurídico, uma universalidade de direito.
Fábio Tokars[15], em obra específica sobre o estabelecimento empresarial, assevera que:
“Embora não negando a relevância dos ensinamentos deste grande jurista [se referindo a Tulio Ascarelli in Panorama do Direito Comercial], temos que a evolução normativa da matéria tornou inaceitável sua conclusão, já que de há muito nosso direito admite a existência do estabelecimento como realidade distinta de seus elementos, sujeita a regime jurídico próprio. Daí reafirmar-se que o estabelecimento, no âmbito do direito brasileiro, se apresenta juridicamente como universalidade de direito.”
Ultrapassada a tarefa de definir se o estabelecimento se constitui em universalidade de fato ou de direito, também se mostra importante destacar que ele (o estabelecimento) não é considerado sujeito de direito (não sendo titular, portanto, de direitos e obrigações, o que afasta a possibilidade de ser confundido com a empresa, i. é, com a pessoa jurídica); é considerado bem móvel e integra o patrimônio da sociedade empresária (não é o patrimônio da sociedade, mas apenas o integra).
Não é sujeito de direito, mas sim objeto de direito, primeiro porque no rol do art. 44 do Código Civil[16] não se contempla o estabelecimento como dotado de personalidade jurídica, não sendo, portanto, titular de direitos e obrigações; segundo, porque há plena aplicação do princípio da unicidade patrimonial quando se tratar de empresa individual, onde a responsabilidade do empresário é ilimitada; terceiro, porque a personificação é atribuída à sociedade empresária, composta por uma pluralidade de sócios e, por fim, porque o art. 1.143, do Código Civil[17] evidencia que o estabelecimento se reveste do predicado de objeto de direito. Essa característica afasta qualquer tipo de confusão que possa haver entre o estabelecimento e a pessoa jurídica empresarial.
O estabelecimento, além de ser classificado como incorpóreo, é bem móvel, mesmo quando composto em parte por bens imóveis se estes estiverem afetados ao desenvolvimento da atividade empresarial. O fato de a universalidade que é o estabelecimento ser considerado pelo direito um bem móvel, passível inclusive de alienação, ser composto também por bens imóveis, não descaracteriza a natureza mobiliária[18] de que se cogita.
Em termos práticos, ter-se-ia a seguinte situação: a partir do momento em que o estabelecimento é formado, possibilitando o início da atividade empresarial, tem-se aí o surgimento de um bem móvel. Ocorre que este bem móvel poderá, de acordo com o tipo de atividade e as necessidades do empreendedor, ser composto por outros bens móveis (mobiliários e mercadorias, por exemplo) e também por bens imóveis (a exemplo do imóvel onde a indústria desenvolve sua atividade). Portanto, não há óbice ao estabelecimento, enquanto bem móvel, ser composto, também, por bem imóvel.
Apesar de o estabelecimento comercial, na sua unidade constitutiva, ser considerado bem incorpóreo, ressalta-se que o fundo de empresa é composto por elementos corpóreos ou materiais (máquinas, equipamentos, mercadorias, dinheiro, veículos, imóveis, etc.) e incorpóreos ou imateriais (nome comercial, patentes de invenção, registro de desenhos industriais, marcas do produto ou do serviço, ponto da empresa, título do estabelecimento, obras literárias etc.).
Interessante notar que o aviamento, enquanto capacidade que uma empresa tem para gerar lucros e atrair a clientela, por não ser considerado bem, não faz parte do estabelecimento empresarial, não sendo elemento deste. É ele, uma característica ou um atributo do estabelecimento, todavia, não o integra, reafirme-se.
É bem verdade que o aviamento é o fator mais importante para a determinação do preço do estabelecimento a ser pago pelo adquirente num contrato de trespasse (pois o interessado na aquisição do estabelecimento irá avaliar a sua capacidade de gerar lucro e atrair clientela), todavia, mesmo diante dessa importante característica, não pode ser considerado como objeto que integre a universalidade e, tampouco, confundir-se com ela[19].
Além do aviamento, a clientela também não é elemento integrante do estabelecimento empresarial. É que o empresário não pode ser considerado proprietário de seus clientes, não tendo o empreendedor mecanismos que vinculem os clientes ao seu estabelecimento e, tampouco, poderá a clientela ser considerada uma “coisa” para ser de propriedade de alguém. Mesmo quando se trate de inibir ou coibir a prática da concorrência desleal, não há presunção de que o empresário seja titular de uma determinada clientela.
Apesar disso, “embora até seja possível falar-se em direito à clientela, cuja tutela se faz por meio da repressão à concorrência desleal (Colombo, 1979:172/173), não se deve confundi-la com os bens do patrimônio da sociedade empresária[20]”.
Apesar de a doutrina majoritária entender que a clientela não é elemento do estabelecimento empresarial, não se pode deixar de considerar que existem instrumentos contratuais cujo objeto é a alienação de clientela. É por essa razão que Fábio Tokars destaca que “tais pactuações, contudo, devem ser vistas como contratos de intermediação, justificando-se os valores recebidos pelo empresário alienante como remuneração à facilitação de contratação entre o novo empreendedor e os antigos clientes, com fundamento assemelhado à hipótese de representação comercial[21]”
Em síntese, ainda que ao tutelar o estabelecimento e a sua proteção ante a prática de concorrência desleal o legislador também proteja indiretamente a clientela, esta não poderá ser considerada elemento do fundo de empresa, já que os clientes não poderão ser negociados porque não são objeto de titularidade do empresário.
Os contratos, por sua vez, a partir da doutrina clássica, dado o caráter sinalagmático que em geral se consubstancia e a sua interpessoalidade, não eram considerados como elemento do estabelecimento, mas sim elemento da empresa em si. Salutar se faz destacar o entendimento de Rubens Requião[22]:
“Os contratos e as relações jurídicas não são bens, e a rigor escapam ao âmbito do estabelecimento comercial. […] Os contratos não integram o estabelecimento comercial, pois são ‘elementos da empresa’. No exercício da empresa, de que é o fundo de comércio instrumento, o empresário é levado a firmar diversos contratos. Esses contratos se referem ao funcionamento desse instrumento de ação, que é o fundo de comércio ou ‘azienda’, mas não o integram.”
Mas o próprio Rubens Requião, aparentemente cogitava, embora não diga expressamente, da possibilidade de os contratos se tornarem elementos do estabelecimento, pois dizia “não devemos, em princípio, incluir os contratos como elementos componentes ou constitutivos do fundo de comércio, pois integram a empresa[23]”. Se não pode incluir, em princípio, os contratos como elementos do fundo empresarial, ao mesmo tempo, não rechaça a ideia de que em algumas situações, ainda que excepcionais tal enquadramento se mostra possível.
Não se pode deixar de ressaltar, entretanto, que sob o ponto de vista econômico, não raras vezes os estabelecimentos dependem dos contratos que são firmados para fomentar o desenvolvimento da atividade empresarial. Em razão disso, simplesmente cogitar da impossibilidade de manutenção desses contratos quando da transferência do estabelecimento, acabaria por aniquilar a capacidade de geração de lucro do fundo de empresa e, por consequência, levaria ao insucesso da operação de trespasse, mormente porque estaria comprometida a capacidade do empreendimento de se manter no mercado competitivo.
O art. 1.148 do Código Civil, aparentemente tentou resolver esse problema ao prever que “salvo disposição em contrário, a transferência importa a sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se não tiverem caráter pessoal, podendo os terceiros rescindir o contrato em noventa dias, a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, neste caso, a responsabilidade do alienante”.
Houve, portanto, autorização legal para que os contratos firmados por determinada empresa sejam incluídos na negociação de transferência do estabelecimento – com exceção daqueles pessoais, onde a mudança de qualquer das partes acarrete a inexecução do seu objeto ou a alteração do pactuado – isto porque podem ser transferidos separadamente por intermédio do instituto da sub-rogação.
Vale-se novamente das lições de Fábio Tokars[24] que pontifica:
“Neste contexto, surgiu a conclusão doutrinária de que os contratos podem ser considerados como parte integrante do estabelecimento empresarial, desde que se mostrem necessários ao desenvolvimento da atividade, como ocorre, classicamente, com os contratos de franquia, de aluguel, de fornecimento ou de distribuição, entre tantos outros que podem ser mencionados. Como em determinados casos, em certas relações jurídicas a conexão econômica com o fundo de comércio (estabelecimento) é intrínseca, tais contratos seguem, forçadamente, o destino do estabelecimento comercial.”
E não há, como se poderia cogitar, vulneração aos princípios da autonomia privada e da liberdade contratual – este como consequência daquele – porque o próprio art. 1.148 do Código Civil apesar de prever que há sub-rogação automática dos contratos na transferência do estabelecimento, também prescreve, entretanto, que não se sub-rogam os contratos pessoais e que o terceiro contratante (aquele que contratou primitivamente com o estabelecimento no instrumento contratual objeto de sub-rogação) desde que haja justo motivo, poderá rescindir o contrato no prazo de 90 (noventa) dias, ficando o alienante, nesse caso, sujeito à responsabilidade indenizatória em relação ao adquirente do estabelecimento.
Verifica-se, portanto, que no atual modelo da codificação civil, não existem óbices à possibilidade de os contratos indispensáveis à manutenção do estabelecimento sejam inseridos na transferência deste, consubstanciando-se, pois, em elemento do fundo empresarial.
Por fim, antes de encerrar este primeiro capítulo, há que se ressaltar, por importante, que há diferenciação entre estabelecimento e patrimônio. Maria Helena Diniz[25] define patrimônio como:
“Direito Civil. Complexo das relações jurídicas de uma pessoa que tenham valor econômico (Clóvis Bevilaqua). Incluem-se no patrimônio: a posse, os direitos reais, as obrigações e as ações correspondentes a tais direitos. O patrimônio abrange direitos e deveres redutíveis a dinheiro, consequentemente, nele não estão incluídos os direitos de personalidade, os pessoais entre cônjuges, os oriundos de poder familiar e políticos”.
Logo, verifica-se que o estabelecimento é parte integrante do patrimônio empresarial, todavia, seus conceitos lógico-jurídicos não se confundem, tratando-se de realidades distintas. Não é o estabelecimento o patrimônio da empresa, mas sim parte dele. Tanto essa afirmação é verdadeira que não se pode olvidar existirem elementos do estabelecimento empresarial que não são caracterizados como patrimônio da empresa ou do empresário, todavia, também existem parcelas integrantes do patrimônio que não são elementos do estabelecimento.
Pode-se trazer o exemplo de empresa de taxi aéreo que adquiriu aviões para o desenvolvimento da sua atividade por intermédio de contrato de arrendamento mercantil. Neste caso, o proprietário do bem é a instituição financeira arrendadora, não tendo o arrendatário direito de propriedade plena sobre esses bens, todavia, os contratos de arrendamento destas aeronaves fazem parte do estabelecimento por ser elemento indispensável ao desempenho da atividade empresarial[26].
Há que se fazer, entretanto, uma ponderação: é que não se pode considerar, à luz do direito brasileiro, a distinção patrimonial entre o empresário e sua empresa individual, havendo, neste caso, confusão patrimonial entre a pessoa física e a pessoa jurídica em razão da plena aplicação do princípio da unicidade patrimonial, quando for o caso de o empresário não optar pela constituição de empresa individual de responsabilidade LTDA a que se referem os artigos 44, inciso VI, 980-A e 1033, parágrafo único, todos do Código Civil[27], inseridos pela Lei nº 12.441, de 11 de julho de 2011, que entrou em vigor no dia 12 de janeiro de 2012.
Traçadas essas ponderações, já se pode falar do contrato de trespasse como meio para a transferência do estabelecimento empresarial.
4. O CONTRATO DE TRESPASSE COMO MECANISMO DE TRANSFERÊNCIA DO ESTABELECIMENTO COMERCIAL
Tendo em vista sua característica mobiliária, o estabelecimento comercial pode ser objeto de alienação por seu titular. O contrato de compra e venda de estabelecimento empresarial é denominado de contrato de trespasse. Atualmente, a alienação do estabelecimento possui regras próprias, prescritas pelo Código Civil nos artigos 1.142 a 1.149. Embora elogiável a inclusão desse importante instituto nas disposições da codificação civil, ver-se-á mais adiante que não se pode olvidar que essa disciplina legal não está isenta de críticas e, porque não dizer, de falhas.
É importante destacar que o contrato de trespasse não pode ser confundido ou equiparado com a alienação de quotas de sociedade empresária ou de ações de uma sociedade anônima, sendo importante a seguinte ponderação:
“No trespasse, o estabelecimento empresarial deixa de integrar o patrimônio de um empresário (alienante) e passa para o de outro (adquirente). O objeto da venda é o complexo de bens corpóreos e incorpóreos envolvidos com a exploração de uma atividade empresarial. Já na cessão de quotas sociais de sociedade limitada ou na alienação de controle de sociedade anônima, o estabelecimento empresarial não muda de titular. Tanto antes como após a transação, ele pertencia e continua a pertencer à sociedade empresária. Essa, contudo, tem a sua composição de sócios alterada. Na cessão de quotas ou alienação de controle, o objeto da venda é a participação societária.”[28]
O valor do estabelecimento, em geral, é avaliado segundo a sua capacidade de gerar lucro e atrair a clientela, ou seja, pelo aviamento, e naturalmente é superior ao valor dos elementos que o compõe, razão pela qual é mais vantajoso se promover a alienação do estabelecimento empresarial, como uma universalidade de bens, do que promover a cessão individual dos bens corpóreos e incorpóreos que o integra.
Salvo disposição contratual em contrário, a alienação do estabelecimento inclui todo o complexo de bens corpóreos e incorpóreos que o compõe, sejam eles móveis ou imóveis, desde que indispensáveis à continuidade da atividade empresarial pelo adquirente. O adquirente se sub-roga em todos os contratos que sejam necessários à manutenção e funcionamento do fundo de empresa, estando também tais instrumentos, portanto, incluídos no trespasse do estabelecimento.
A compra e venda de estabelecimento empresarial, instrumentalizada por intermédio do contrato de trespasse, possui aspectos formais e materiais que precisam ser seguidos para que se dê aplicação ao princípio da segurança jurídica e se consiga chegar ao objetivo último do contrato, que é a execução do seu objeto e a efetiva transferência do estabelecimento empresarial.
4.1 ASPECTOS (FORMAIS E MATERIAIS) NECESSÁRIOS AO CONTRATO DE TRESPASSE
Como anteriormente à Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil – não havia disciplina jurídica própria do estabelecimento empresarial, especialmente no que tange à sua alienação ou transferência, não se exigia qualquer tipo de formalidade para a concretização de um negócio jurídico celebrado por intermédio de contrato de trespasse. Trazendo a lume a característica de bem móvel do estabelecimento comercial, a simples tradição efetivava a transferência de propriedade do estabelecimento.
Do ponto de vista formal, não existiam exigências a ser cumpridas para se firmar um contrato de trespasse exatamente por não existir legislação específica impondo a observância de alguma formalidade, registro ou publicidade do contrato formalizado. Apesar disso, se fazia necessário que junto ao contrato de trespasse fosse elaborado um inventário dos bens que eram objeto da operação, pois se não houvesse tal cuidado, seria objeto de transferência a totalidade dos bens indispensáveis ao desenvolvimento da atividade empresarial pelo adquirente do estabelecimento, o que, por vezes, poderia não representar a vontade das partes contratantes.
Em função dessa característica peculiar, sem perder a qualidade de negócio único, não raras vezes o trespasse era realizado por intermédio de mais de um instrumento contratual, razão pela qual se faz importante destacar a observação de Oscar Barreto Filho, citada por Fábio Tokars, quando assevera que:
“Há ocasiões em que se mostra mais conveniente, para efeitos fiscais, a realização de mais de um instrumento contratual sobre o trespasse, cindindo a operação em blocos distintos. Contudo, mesmo que haja pluralidade de instrumentos, não se afasta a unicidade do negócio, que para todos os efeitos jurídicos será reputado como transferência de estabelecimento, de toda a universalidade. Atingindo-se materialmente o âmbito mínimo de transferência, a operação será considerada como trespasse, ainda que as partes tenham formalizado mais de um instrumento contratual.”[29]
A partir do advento do Código Civil, o contrato de trespasse passou a ter disciplina jurídica específica e, por conta disso, a codificação civil prescreveu formalidades formais a ser seguidas. A redação do art. 1.144 do Código Civil assim prescreve: “O contrato que tenha por objeto a alienação, o usufruto ou arrendamento do estabelecimento, só produzirá efeitos quanto a terceiros depois de averbado à margem da inscrição do empresário, ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis, e de publicado na imprensa oficial”.
Além da necessidade de o contrato ser escrito, extrai-se da norma codificada que para a eficácia jurídica do contrato de trespasse perante terceiros, dois requisitos formais precisam ser cumpridos cumulativamente, quais sejam: (i) arquivamento[30] (embora o Código Civil tenha nominado como averbação) do contrato no registro de empresários, ou das sociedades empresariais envolvidas na negociação (comprador e vendedor), realizado perante a Junta Comercial e, (ii) publicação na imprensa oficial. A observância dos dois requisitos ora destacados são determinantes para a eficácia do contrato de trespasse perante terceiros, pois com o registro na junta comercial e a publicação na imprensa oficial, consegue o legislador realizar sua vontade, ou seja, que o negócio jurídico celebrado tenha ampla publicidade.
Deve-se ressaltar, ademais, que existem atividades que apesar de organizadas como pessoa jurídica, não são levadas a registro perante a Junta Comercial. É o caso das sociedades simples (não empresárias), que passam a ter existência jurídica a partir do seu registro no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas. Destarte, não se vislumbra qualquer óbice à alienação do estabelecimento de sociedade simples, como é o caso, por exemplo, de um determinado laboratório de análises clínicas ou de clínicas de diagnóstico por imagem, onde o principal aspecto para atração da clientela é o nome – fantasia – e/ou o seu ponto.
Nesse caso, o cliente não procura o laboratório ou a clínica de diagnóstico em razão das pessoas que lá desenvolvem suas atividades, mas sim em razão da confiabilidade que o nome empresarial oferece aos seus clientes. Apesar disso, é inquestionável a característica de sociedade simples de ambos os empreendimentos ao desenvolver atividade de viés intelectual, que no primeiro caso é composto, em geral, por bioquímicos e, no segundo, por médicos[31].
Apesar de o Código Civil ser silente, deve-se aplicar para o trespasse de estabelecimento das sociedades simples a mesma sistemática para a alienação do estabelecimento empresarial de sociedades empresárias, sendo necessário, além da forma escrita e da publicação na imprensa oficial, o arquivamento do contrato no Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, possibilitando-se, desta forma, a ampla publicidade pretendida pelo legislador substantivo Civil.
Deve-se destacar, entretanto, que os requisitos formais ora mencionados são de observância obrigatória para que o contrato de trespasse produza efeito perante terceiros, todavia, o Código Civil não prescreveu nenhuma formalidade para a produção de efeitos perante as partes contratantes, logo, neste último caso, a sistemática permanece igual ao período anterior à codificação civil, ou seja, para que a transferência do estabelecimento produza efeitos perante as partes contratantes, não se exige a observância de nenhum requisito formal específico, salvo àqueles inerentes a qualquer negócio jurídico (art. 104 e seguintes do Código Civil).
Além das formalidades mencionadas, existem outras que precisam ser observadas para que se alcance o objetivo final do contrato de trespasse que é, efetivamente, a transferência dos elementos corpóreos e incorpóreos que são úteis e indispensáveis ao início das atividades empresariais. Mas para que seja possível destacar essas outras formalidades, há que se retomar a ideia de que o estabelecimento empresarial, apesar de ter natureza jurídica de bem móvel (característica mobiliária) pode ser composto por bens móveis e imóveis.
A delimitação do aspecto material não é simples, pois se faz necessário, no âmbito da universalidade, identificar quais são os elementos que fazem parte do estabelecimento que está sendo objeto de negociação, notadamente porque em alguns casos, há a necessidade de contratação especial, como na alienação de imóvel eventualmente integrante do estabelecimento.
É que existem casos em que a simples tradição ou formalização do contrato de trespasse não são suficientes para a efetiva transferência do estabelecimento empresarial em razão da natureza jurídica dos bens ou elementos que o compõem, sendo necessária a observância de outras formalidades específicas. É o caso, por exemplo, de o fundo de empresa ser composto (i) por bem imóvel; (ii) por direitos de propriedade industrial (marcas e patentes) ou (iii) por contratos cuja manutenção seja imprescindível para a viabilidade do negócio pós alienação do estabelecimento.
Em geral, a transferência do estabelecimento empresarial se aperfeiçoa pela tradição, mormente quando o fundo de empresa, em que pese sua característica mobiliária, é composto, apenas, por bem móvel. Entretanto, quando o estabelecimento empresarial é composto também por bem imóvel, a simples tradição não é suficiente para dar validade jurídica à transferência do imóvel ao adquirente do fundo, isto porque a legislação exige a observância de formalidade específica.
Nesse diapasão, prescreve o art. 108 do Código Civil que: “Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.
Semelhante determinação existe no art. 172, da Lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 – Lei de Registros Públicos –que possui a seguinte redação: “No Registro de Imóveis serão feitos, nos termos desta Lei, o registro e a averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, “intervivos” ou “mortiscausa” quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade”. (Renumerado do art. 168 § 1º para artigo autônomo com nova redação pela Lei nº 6.216, de 1975).
Assim, por imposição legal, a transferência de bem imóvel necessita de escritura pública, que será levada a registro perante o Cartório de Registro de Imóveis – CRI – para que possa produzir efeitos jurídicos[32]. Desta forma, quando o estabelecimento empresarial objeto de transferência for composto também por bem imóvel, além da forma escrita e das formalidades prescritas pelo art. 1.144 do Código Civil, haverá a necessidade de se adotar formalidade complementar, qual seja, a necessidade de escritura pública registrada perante o CRI para a efetiva transferência do bem imóvel.
Destarte, importante ressaltar a salutar advertência feita por Eduardo Ribeiro de Oliveira[33] ao aduzir que
“Diversas disposições legais efetivamente existem, anteriores ao Código, excepcionando a exigência da escritura pública. É o que sucede com os contratos relativos ao Sistema Financeiro da Habitação (Lei nº 4.380/64, art. 61, §5º) e ao chamado Sistema de Financiamento Imobiliário (Lei nº 9.514/97, art. 38). A Lei das Sociedades por Ações dispensa a escritura pública, quando se trate da incorporação de imóveis para formação do capital social (Lei nº 6.404/76, art. 89). Tais disposições continuam em vigor.”
Sob outro viso, a necessidade de se atender a providências complementares não existe apenas no caso de bens imóveis, pois se o estabelecimento empresarial estiver integrado por direitos de propriedade industrial, também haverá de serem observadas formalidades específicas para a eficácia jurídica do trespasse.
É que os artigos 59 e 60 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996[34], prescreve que a cessão do direito de propriedade industrial – patente de invenção e modelo de utilidade – deverá ser averbada no Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI, com a identificação completa do cessionário, viabilizando, a partir das anotações de que trata o art. 59, a validade perante terceiros.
De igual forma, em se tratando de trespasse de estabelecimento que tenha entre seus elementos a “marca” e o “desenho industrial”, a legislação também prescreve formalidade específica e, a respeito, pondera Fábio Tokars[35] que
“já na hipótese de direito industrial registrável (marca e desenho industrial), embora a cessão de igual forma deva ser anotada junto ao INPI, somente a partir deste ato produzindo seus efeitos frente a terceiros (arts. 136, I, e 137 da LPI), há normas mais específicas sobre a matéria. Segundo o art. 134, a cessão somente será possível se o cessionário atender aos requisitos legais para requerer o registro, os quais são especificados no art. 128 da mesma normatização. E, nos termos do art. 135, ‘a cessão deverá compreender todos os registros ou pedidos, em nome do cedente, de marcas iguais ou semelhantes, relativas a produto ou serviço, semelhante ou afim, sob pena de cancelamento dos registros ou arquivamento dos pedidos não cedidos’.”
Portanto, seja no caso de propriedade industrial consubstanciado em patente – invenção e modelo de utilidade – ou na hipótese de direito industrial registrável – marca e desenho industrial – é fato que o simples contrato de trespasse e a tradição são insuficientes para a completa transferência do estabelecimento empresarial, havendo a necessidade de se tomar providências específicas para a eficácia jurídica perante terceiros.
Feitas essas ponderações, há que se analisar, ainda, a situação dos contratos cuja manutenção seja determinante para a viabilidade econômica do negócio após a alienação do estabelecimento empresarial. Como estudado precedentemente, parte-se do pressuposto de que não há óbice para que determinados tipos de contrato sejam considerados como integrantes do estabelecimento empresarial.
Na teoria geral do direito contratual, até por não haver disciplina específica no Código Civil, não se admite, como regra geral, a cessão de posição contratual sem a concordância do outro contratante. Entretanto, a existência de legislação específica pode dar tratamento diferenciado à matéria e até permitir, em situações excepcionais, a cessão de posição contratual independentemente da anuência da outra parte contratante.
Assim, mesmo no período anterior ao Código Civil de 2002 e como exceção à regra geral pode-se destacar o art. 468, da CLT[36], onde os contratos de trabalho eram mantidos independentemente da alienação ou modificação da estrutura jurídica da empresa. Havendo alienação da empresa os contratos de trabalho eram transferidos automaticamente ao adquirente. Se fosse o caso de alienação do estabelecimento empresarial, a mesma consequência jurídica seria observada em relação aos empregados do alienante.
Já no caso das locações, a Lei nº 8.245/91, art. 13[37], prevê que a cessão depende de consentimento prévio e escrito do locador, não havendo presunção de consentimento em razão da demora deste em manifestar a sua oposição em caso de ausência de notificação por parte do locatário. Entretanto, se notificado, terá o prazo de trinta dias para manifestar formalmente sua oposição.
Não se pode olvidar que eventual oposição do locador à cessão do contrato de locação em caso de alienação do estabelecimento empresarial poderia até inviabilizar a concretização do negócio em razão da importância que o ponto tem no sucesso de uma atividade empresarial. Outra situação que se mostrava de possível ocorrência era o locador exigir o pagamento de luvas para consentir com a cessão, o que também poderia trazer dissabores para a realização do negócio ante o potencial aumento no custo da aquisição de um estabelecimento empresarial.
Em razão dessas dificuldades, uma solução encontrada era fazer constar no contrato de locação não-residencial autorização prévia do locador à cessão do contrato em caso de alienação do estabelecimento empresarial. Mas reconhece-se que tal medida não era das mais fáceis em razão da dificuldade de se negociar a inserção desta cláusula no contrato de locação.
Mas foi a partir da entrada em vigor do novo Código Civil que o regime de transferência dos contratos que compõem o estabelecimento empresarial sofreu alteração, pois prescreve o art. 1.148 que “salvo disposição em contrário, a transferência importa a sub-rogação do adquirente nos contratos estipulados para exploração do estabelecimento, se não tiverem caráter pessoal, podendo os terceiros rescindir o contrato em noventa dias, a contar da publicação da transferência, se ocorrer justa causa, ressalvada, nesse caso, a responsabilidade do alienante”.
Em outras palavras, em razão da norma jurídica plasmada no art. 1.148 da nova codificação civil e se não houver disposição no instrumento objeto de sub-rogação em sentido contrário, autorizou-se expressamente que os contratos firmados e que sejam necessários à exploração do estabelecimento empresarial sejam sub-rogados pelo adquirente do fundo de empresa, excetuando-se, apenas, aqueles instrumentos de caráter pessoal em razão do risco da inexecução do contrato em função da alteração das partes contratantes.
Buscou o legislador preservar a unidade econômica do estabelecimento, de forma que o adquirente desta universalidade de bens não fique na dependência de terceiros, possibilitando a sucessão dos contratos firmados pelo alienante do fundo de empresa. O art. 1.148 parece ser interessante instrumento de realização da função social da empresa e de preservação da atividade empresarial, evitando-se, pois, dificuldades na efetivação da transferência do estabelecimento empresarial.
Não se pode deixar de ressaltar que a norma codificada, expressamente, ressalvou à sub-rogação os contratos pessoais – como já mencionado – e facultou ao terceiro contratante (aquele que contratou primitivamente com o estabelecimento no instrumento contratual objeto de sub-rogação) a possibilidade de rescisão do contrato, no prazo de até 90 (noventa) dias, desde que haja justo motivo, situação que se ocorrer, acaba por sujeitar o alienante a indenizar o adquirente do estabelecimento. A sucessão ocorrerá por imposição legal, salvo as hipóteses destacadas.
De outra maneira, deve-se destacar que questão relevante quanto ao aspecto material da transferência do fundo de empresa diz respeito à fixação do valor do estabelecimento (seu preço), que em geral, é superior aos elementos que o compõem. A tarefa de se determinar o valor de mercado do fundo de empresa não é das mais fáceis, pois a universalidade não é composta apenas pelos bens corpóreos, mas também pelos incorpóreos.
Apesar disso, é fato que para o potencial vendedor, melhor se mostra a alienação do estabelecimento como um todo, englobando toda a universalidade de bens que compõem o fundo empresarial, pois a alienação isolada dos elementos que o compõem certamente resultará em um preço inferior àquele que seria conseguido com o trespasse do estabelecimento.
Embora existam vários elementos que são importantes na composição do preço da universalidade, não se pode olvidar que o valor do estabelecimento está diretamente relacionado com a sua capacidade de gerar lucro, de atração de clientela, de forma que o aviamento é o elemento de maior importância quando da fixação do preço do fundo empresarial. Fábio Tokars[38] apresenta três variáveis na composição do valor do estabelecimento:
“Podemos dizer, em linhas gerais, que o valor de um estabelecimento é formado pela interrelação de três variáveis específicas:
a) o valor individual dos elementos integrantes;
b) o valor decorrente da atividade organizativa desenvolvida pelo empreendedor;
c) o potencial de atração de clientela (aviamento).”
Portanto, verifica-se que o valor do estabelecimento é decorrente de uma complexa análise dos seus bens corpóreos e incorpóreos e que a alienação do fundo de empresa é mais vantajosa que a venda fracionada dos seus elementos, ficando evidente, ademais, que o aviamento é parcela mais importante na composição desse valor.
Por fim, outra formalidade importante que precisa ser observada na elaboração de um contrato de trespasse é a obtenção da anuência dos credores quanto à realização da operação, no caso de não restar bens suficientes para saldar as dívidas do vendedor. Tal anuência se faz necessária em razão da norma prescrita no art. 1.145 do Código Civil[39], pois se as dívidas não forem saldadas previamente à alienação do estabelecimento ou, se não restar bens suficientes para garantir tais pagamentos, a eficácia do trespasse dependerá da concordância dos credores.
4.2 A TRANSFERÊNCIA DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL E A CARACTERIZAÇÃO DA SUCESSÃO. OS DÉBITOS VINCULADOS AO FUNDO DE EMPRESA E OS CASOS TRABALHISTA E TRIBUTÁRIO
Na sistemática anterior à edição do atual Código Civil, era firme a posição doutrinária – com divergências minoritárias – no sentido de que o passivo não integrava o estabelecimento empresarial, de forma que o adquirente do fundo empresarial não respondia, em razão de sucessão, pelos débitos anteriores ao trespasse, ou seja, o passivo empresarial era desvinculado da universalidade de bens que forma o estabelecimento. Existiam exceções expressamente previstas em lei – que ainda se encontram em vigor – no que diz respeito aos débitos decorrentes das relações trabalhistas e débitos tributários, de tal sorte que nestes dois casos, o adquirente respondia pelos débitos do estabelecimento[40].
Além daquelas hipóteses legalmente previstas de sucessão na alienação do estabelecimento empresarial, a outra forma possível era a assunção de passivo, cuja relação jurídica era decorrente do próprio contrato de trespasse, ou seja, as partes contratantes estabeleciam no instrumento contratual quais eram os débitos que seriam assumidos pelo adquirente do fundo de empresa e quais seriam excluídos da avença.
Ocorre que toda essa construção doutrinária, que encontrava ressonância no posicionamento dos Tribunais foi desconsiderada pelo vigente Código Civil, que a partir da norma jurídica constante do art. 1.146 prescreveu que “o adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento”, i. é, estabeleceu a norma codificada que o passivo passa a ser considerado como elemento do estabelecimento empresarial, transferível ao adquirente do fundo de empresa.
Em suma, com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 o adquirente do estabelecimento, além da sua já conhecida responsabilidade por débitos trabalhistas e tributários em decorrência de norma específica, passou a ter que responder também por todas as obrigações relacionadas ao negócio explorado pelo alienante, desde que os débitos estejam regularmente contabilizados. A única excludente de responsabilidade do adquirente pelos débitos vinculados ao estabelecimento prevista pela codificação civil se encontra na necessidade de o passivo estar regularmente contabilizado, i. é, os débitos que não foram objeto de contabilização pela empresa não serão transferidos ao o comprador do fundo de empresa como efeito do contrato de trespasse.
Estabeleceu o legislador, ainda, uma hipótese normativa de solidariedade, de forma que o devedor inicial continuará, juntamente com o adquirente e pelo prazo de um ano, solidariamente responsável pelo pagamento das dívidas vencidas, contados a partir da publicação do trespasse e, quanto aos débitos vincendos, contados a partir da data do vencimento.
Apenas em relação ao passivo composto por dívidas tributárias, deve-se esclarecer que o art. 133, incisos I e II e § 1º, do CTN[41] prescreve que o adquirente do estabelecimento empresarial ficará responsável pelo pagamento integral dos débitos no caso de o alienante cessar a exploração da atividade ou comércio relativo ao fundo empresarial objeto de alienação. A responsabilidade, entretanto, será subsidiária no caso de o alienante prosseguir na exploração do mesmo ramo de atividade ou reiniciar a exploração da mesma ou de outra atividade empresarial, no prazo de seis meses, contados da data da alienação.
4.3 A ALIENAÇÃO DO ESTABELECIMENTO EM PROCEDIMENTO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL, EXTRAJUDICIAL E/OU FALÊNCIA
Sabe-se que o Decreto-Lei 7.661/45 regulou o procedimento de falência até a entrada em vigor da Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Este diploma normativo, no art. 52, inciso VIII[42], estabelecia um regime de severa restrição à alienação do fundo de empresa ao prescrever a ineficácia em relação à massa falida da transferência de propriedade e/ou de estabelecimento empresarial se não houvesse a anuência dos credores ou o adimplemento de todas as obrigações no caso de não restarem bens suficientes ao falido para pagamento dos credores.
Não há dúvida, por outro lado, que o legislador, com a edição da Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005 – que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária – tinha por objetivo preservar a função social da empresa, a circulação de riqueza, o estímulo da atividade econômica e a geração de emprego e renda com a manutenção dos postos de trabalho. Tal perspectiva fica muito evidente no art. 47 da referida lei, que prescreve: “a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
A vista desses objetivos inovou a lei de recuperação judicial, extrajudicial e falência do empresário e da sociedade empresária, pois além de prever que a recuperação judicial poderá ser judicial ou extrajudicial[43], ainda previu a possibilidade de alienação do estabelecimento empresarial sem que o adquirente suporte os efeitos nocivos decorrentes desse negócio jurídico em razão das disposições constantes no art. 1.146 do Código Civil – o adquirente não assume a responsabilidade pelos débitos vinculados à universalidade – e sem que haja o risco de uma declaração de ineficácia posterior do contrato de trespasse.
A possibilidade de alienação do estabelecimento, livre de ônus, no processo de recuperação judicial está prescrito no art. 60, da Lei nº 11.101/2005, que tem a seguinte redação: “Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta Lei. Parágrafo único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei”;
Do mesmo modo, a alienação do fundo empresarial, também isenta de ônus para o adquirente no caso de falência, encontra amparo no art. 141 da mesma lei. Eis a sua redação: “Na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata este artigo: I – todos os credores, observada a ordem de preferência definida no art. 83 desta Lei, sub-rogam-se no produto da realização do ativo; II – o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, as derivadas da legislação do trabalho e as decorrentes de acidentes de trabalho”.[44]
Todavia, é importante observar que tanto na recuperação judicial – em razão da aplicação da parte final do parágrafo único do art. 60, da LRF – quanto na falência, a alienação do estabelecimento sem qualquer ônus não será possível se configurada as hipóteses previstas no § 1º, do art. 141, da Lei nº 11.101/2005, que tem a seguinte redação: “Na alienação conjunta ou separada de ativos, inclusive da empresa ou de suas filiais, promovida sob qualquer das modalidades de que trata este artigo: (…). § 1º O disposto no inciso II do caput deste artigo não se aplica quando o arrematante for: I – sócio da sociedade falida, ou sociedade controlada pelo falido; II – parente, em linha reta ou colateral até o 4º (quarto) grau, consanguíneo ou afim, do falido ou de sócio da sociedade falida; ou III – identificado como agente do falido com o objetivo de fraudar a sucessão”.
Observa-se, portanto, que as disposições da Lei nº 11.101/2005 excepciona, quanto aos procedimentos de recuperação judicial/extrajudicial e falência, as normas de responsabilidade do adquirente do estabelecimento empresarial plasmadas no art. 1.146 do Código Civil, não havendo dúvidas que ao empresário interessado na realização de trespasse do estabelecimento é mais interessante, como medida prévia à alienação, buscar a aprovação de um plano de recuperação judicial do alienante, obstando, desta forma, a responsabilidade por sucessão do adquirente.
Entrementes, existe um obstáculo importante a ser superado para a homologação do plano de recuperação judicial: trata-se da exigência veiculada pelo art. 57 da Lei nº 11.101/2005[45], onde se exige a prova de quitação dos débitos tributários, mediante apresentação de certidão negativa de débitos – CND. Todavia, quanto à exigência de regularidade fiscal há que se tecer algumas ponderações.
Parece ser indene de dúvidas que diante de uma situação de endividamento que leve o empresário ou a sociedade empresária a formular um plano de recuperação judicial, existirão débitos tributários a ser saldados perante o Fisco e que, por questões óbvias, são obrigações de difícil resolução em curto espaço de tempo. Em razão dessa realidade, a exigência do supracitado art. 57 da Lei nº 11.101/2005 é praticamente impossível de ser cumprida, eis que o empresário ou a sociedade empresária não conseguirão as certidões negativas de débitos exigidas pela legislação, tornando tal exigência desarrazoada, o que certamente impossibilitaria a implementação do plano de recuperação judicial.
Nesse contexto, não se pode perder de vista os objetivos buscados pelo legislador com a edição da Lei nº 11.101/2005, de forma que o seu artigo 57 deve ser interpretado sistematicamente com os artigos 68[46] e 47[47]. E a interpretação, em um Estado Democrático de Direito como o brasileiro deve partir necessariamente da Constituição Federal, especialmente levando em consideração os princípios da função social da empresa, do valor social do trabalho e da ordem econômica.
Desta forma, a exigência de apresentação de certidões negativas de débitos apenas será razoável a partir do momento em que o sistema jurídico dispor de mecanismos que possibilitem ao empresário ou à sociedade empresária saldar seus débitos sem que isso inviabilize o deferimento do próprio plano de recuperação judicial, ou seja, somente a partir do momento em que for editada a lei específica sobre parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial a que alude o art. 68 da Lei nº 11.101/2005.
Não é outro o entendimento de Eduardo Secchi Munhoz[48] ao destacar que “para a completude do sistema de reorganização da empresa, é fundamental que a lei de recuperação seja secundada pela lei tributária, na medida em que cabe a esta estabelecer as condições especiais de parcelamento dos débitos de tributos para efeito de recuperação, conforme prescreve o art. 68”.
E a Lei Geral Tributária, que é o CTN, também prescreve no § 3º, do art. 155-A[49] que é a lei específica que disporá sobre o parcelamento a ser concedido para o devedor em recuperação judicial. E nem se diga que a norma cunhada no § 4º do mesmo artigo é suficiente para superar a necessidade de edição de lei específica, isto porque as unidades da Federação não dispõem de legislação que disciplinem o parcelamento de débitos tributários aos devedores em recuperação judicial[50] e as leis editadas para recuperação de créditos tributários – em geral, denominadas de REFIS – além de possuírem prazo de vigência determinado, ainda não se prestam a suprir as exigências do art. 68 da LRF e do art. 155-A do CTN.
Portanto, a recuperação judicial deverá ser deferida independentemente da apresentação da certidão negativa de débitos tributários – art. 57 LRF – já que a ausência da legislação específica que trate do parcelamento de débitos dos devedores que estão nesta situação especial inviabiliza o pagamento dos tributos no momento da apresentação do plano de recuperação e, por consequência, acaba por impedir o seu deferimento, ferindo os próprios princípios norteadores do instituto da recuperação judicial. Pelos mesmos motivos a exigência do art. 191-A do CTN não pode servir de empecilho para o deferimento do pedido de recuperação judicial[51].
Ademais, o art. 52, inciso II, da Lei nº 11.101/2005[52] prescreve a dispensa de apresentação de certidões negativas para possibilitar o desenvolvimento das atividades empresariais ao postulante da recuperação judicial. Assim, exigir-se a apresentação de certidão negativa de débitos tributários, na forma do art. 57, além de irrazoável em razão dos fundamentos já apresentados, ainda se consubstancia em antinomia entre as proposições do art. 52, inciso II e aquela do art. 57, ambos da Lei nº 11.101/2005.
Para encerrar este subcapítulo, destaca-se o entendimento de Hugo de Brito Machado Segundo[53] que sustenta:
“Parece-nos inteiramente contraditório, e por isso mesmo irrazoável, exigir a apresentação da certidão de quitação de todos os tributos como condição para a concessão de recuperação judicial. Isso porque uma das coisas que o requerente de uma recuperação judicial tem maior dificuldade em obter é precisamente a prova de quitação de todos os tributos, tanto que um dos efeitos da concessão de uma recuperação judicial é a “dispensa da apresentação de certidões negativas para que o devedor exerça as suas atividades, exceto para contratação com o Poder Público ou para recebimento de benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios…” (Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, art. 52, inciso II). Ora, como se concebe que a concessão da recuperação judicial tenha como efeito liberar o contribuinte da apresentação de certidões, mas a apresentação destas seja condição sine qua non para a concessão da recuperação? Um verdadeiro nonsense (…).”
4.4 A PROTEÇÃO DO ADQUIRENTE PELA CLÁUSULA DE NÃO-RESTABELECIMENTO. EFEITOS DO TRESPASSE NA LOCAÇÃO EMPRESARIAL
Já de demonstrou precedentemente que embora existam vários fatores que compõem o valor de mercado de um estabelecimento empresarial, o elemento mais importante na composição desse preço é o aviamento, ou seja, a capacidade que o fundo de empresa tem de atrair a clientela e, por consequência, gerar lucros.
Nesse diapasão, como na sistemática anterior ao Código Civil de 2002 não havia disciplina jurídica acerca do contrato de trespasse, era comum que em tais instrumentos se fizesse constar a denominada cláusula de não-restabelecimento ou de não-concorrência, onde o alienante do estabelecimento, por força de contrato, se comprometia a não desenvolver concorrência – desenvolvendo a mesma atividade empresarial – com o adquirente da universalidade. Nos casos em que não se inseria tal cláusula no contrato de trespasse e o alienante se restabelecia na mesma atividade, utilizava-se das normas de direito concorrencial para resolver o impasse.
Entretanto, o Código Civil de 2002, com nítida inspiração no art. 2.557 do Código Civil italiano[54] e de forma inteligente resolveu o problema ao prescrever no art. 1.147[55] que, salvo disposição contratual em contrário, o alienante estará proibido de fazer concorrência ao adquirente mediante restabelecimento pelo prazo de cinco anos. Se o caso concreto não se tratar de alienação de estabelecimento, mas de arrendamento ou usufruto, a proibição se mantém, todavia, o prazo será equivalente à duração do contrato, limitado a cinco anos em razão da delimitação temporal imposta no caso de alienação (caput do art. 1.147)[56].
Embora não se tenha dúvida de que a clientela não é considerada elemento do estabelecimento empresarial e conquanto não pertença ao empresário, isso não significar dizer que o direito à clientela não encontre proteção nas normas de direito concorrencial o que, por evidente, torna importante a existência da cláusula de não-restabelecimento, pois como lembra Fábio Ulhôa Coelho,
“O alienante do estabelecimento empresarial que se restabelece em concorrência com o adquirente, em geral acaba atraindo para o novo local de seus negócios a clientela que formou no antigo. Note-se que o desvio de clientela, atualmente, deve-se menos o contrato pessoal entre o consumidor e comerciante, e mais às informações que o empresário alienante detém sobre a realidade do mercado em que opera. O uso dessas informações na exploração da mesma atividade, no novo estabelecimento concorrente, é o elemento decisivo para a atração da clientela formada em torno do outro. Esse fato, por evidente, importa prejuízo ao adquirente que, embora esteja exposto à concorrência em geral, pagou ao alienante um determinado valor, em razão especificamente do aviamento do estabelecimento transacionado. Ora, o restabelecimento do alienante pode, por essa razão, caracterizar enriquecimento indevido.”
Apesar de importante a existência da cláusula de não-restabelecimento e da necessária proteção ao princípio da livre concorrência e da boa-fé objetiva, é evidente que tal proibição encontra limites no princípio constitucional da livre iniciativa, pois o alienante não pode ser proibido de explorar atividade econômica não concorrente (o que não implicaria em danos ao adquirente do estabelecimento) ou ficar adstrito àquela obrigação de não-fazer por prazo indeterminado e, ainda, sem delimitação geográfica que determine sua impossibilidade de atuar no mesmo ramo do adquirente (por não haver impedimento que ao restabelecimento em local diverso e não alcançado pelo potencial econômico do antigo estabelecimento).
Por fim, no caso de descumprimento do dever legal ou contratual de não-restabelecer por parte do alienante do estabelecimento, poderá o adquirente ajuizar ação de perdas e danos ou, tendo em vista a natureza jurídica de obrigação de não-fazer da cláusula de não-concorrência, poderá também requerer ao juiz que determine o desfazimento do fundo criado com infração à lei ou ao contrato. Não sendo possível desfazer o ato, a obrigação se resolver em perdas e danos, na forma dos artigos 642 e 643, ambos do Código de Processo Civil[57].
De outro lado, tendo em vista a previsão do art. 1.148 do Código Civil[58] de que a alienação do estabelecimento importa em sub-rogação dos contratos firmados para exploração do estabelecimento – à exceção dos contratos pessoais – o adquirente do fundo de empresa se sub-rogará no contrato de locação firmado, havendo mera sucessão de locatários. Deve-se apenas ressaltar, como anteriormente demonstrado, que o locador dispõe do prazo de noventa dias para denunciar o contrato de locação no caso de ocorrer justa causa.
É de bom alvitre destacar que o enunciado nº 234 da III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de Estudos Judiciários – CEJ – do Conselho da Justiça Federal – CJF – entre os dias 1º a 3 de dezembro de 2004, cancelou o enunciado nº 64 da I Jornada de Direito Civil e firmou entendimento em sentido contrário do ora defendido ao concluir que “quando do trespasse do estabelecimento empresarial, o contrato de locação do respectivo ponto não se transmite automaticamente ao adquirente”.
Não se comunga do mesmo entendimento firmado pelo citado enunciado 234 em razão da norma jurídica plasmada no art. 1.148 do Código Civil excetuar da sub-rogação automática apenas os contratos de cunho pessoal, de forma que os demais contratos empresariais firmados com o objetivo de exploração do estabelecimento inserem-se na regra geral de sub-rogação ao adquirente do fundo de empresa, ficando garantido ao locador, a denúncia da locação na hipótese de existir justa causa. Ademais, a ausência de sub-rogação automática do contrato de locação teria como consequência a oneração da operação de trespasse em razão da provável necessidade de pagamento de luvas ao locador, o que poderia, até mesmo, inviabilizar a realização da transferência onerosa do estabelecimento empresarial.
Portanto, havendo sub-rogação do contrato de locação no caso de alienação de estabelecimento empresarial, poderá o adquirente da universalidade valer-se dos requisitos objetivos para o ajuizamento da ação renovatória da locação não-residencial, o que significa dizer que o prazo anterior ao negócio poderá ser utilizado integralmente ou somado ao período posterior ao trespasse para efeito completar cinco anos de contrato – art. 51, II, da Lei nº 8.245/91 – e da mesma forma, para se completar o prazo de três anos de exploração do mesmo ramo de atividade – art. 51, III, da Lei nº 8.245/91[59].
4.5 A POSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DE INEFICÁCIA DO CONTRATO DE TRESPASSE. CRÍTICAS À PREVISÃO GENÉRICA DE INEFICÁCIA DO NEGÓCIO E DE TRANSFERÊNCIA DE TODO O PASSIVO AO ADQUIRENTE
Como já enunciado nas linhas que se passaram, à luz da teoria geral do estabelecimento empresarial, não se pode confundir o estabelecimento com a própria empresa ou, ainda, o patrimônio da empresa com o fundo empresarial. Embora o estabelecimento não possa ser confundido com o patrimônio empresarial, é certo que a universalidade de bens que representa compõe o patrimônio do empresário ou da sociedade empresária. Não é o estabelecimento o próprio patrimônio, mas sim parte dele.
Da mesma forma, ao longo dos anos, a corrente majoritária da doutrina do estabelecimento empresarial, corroborada por entendimento pretoriano, evoluiu no sentido de considerar que o passivo não integrava o fundo de empresa, de forma que o adquirente daquela universalidade de bens não respondia, em razão de sucessão, pelos débitos anteriores ao trespasse. Isto significava dizer que o passivo empresarial era desvinculado do estabelecimento, excetuando-se, por evidente, os débitos trabalhistas e tributários que dispunham e ainda dispõem de regramento próprio e específico.
Ainda no regime anterior ao atual Código Civil ou à Lei nº 11.101/2005, especificamente no direito falimentar, nos termos do art. 52, inciso VIII[60], do Decreto-Lei nº 7.661/45, havia previsão normativa no sentido de tornar ineficaz, em relação à massa falida, a alienação do fundo de empresa se o negócio jurídico não fosse precedido da anuência dos credores ou do adimplemento de todas as obrigações do alienante, no caso de não restarem bens suficientes ao falido para pagamento dos seus credores, situação que se mostrava importante complicador para a maior utilização do contrato de trespasse.
Ocorre que a partir da entrada em vigor do Código Civil de 2002, tendo em vista a codificação das regras que nortearam, a partir de então, a alienação do estabelecimento empresarial e dada a previsão normativa constante do art. 1.145[61], a eficácia do contrato de trespasse dependerá do pagamento de todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias a partir de sua notificação, se ao alienante não restarem bens suficientes para o adimplemento de suas obrigações.
Não obstante isso, a previsão normativa constante do inciso VIII, do Decreto-Lei nº 7.661/45 encontrou eco no artigo 129, inciso VI, da Lei nº 11.101/2005 que prescreve: “São ineficazes em relação à massa falida, tenha ou não o contratante conhecimento do estado de crise econômico-financeira do devedor, seja ou não intenção deste fraudar credores: (…) – VI – a venda ou transferência de estabelecimento feita sem o consentimento expresso ou o pagamento de todos os credores, a esse tempo existentes, não tendo restado ao devedor bens suficientes para solver o seu passivo, salvo se, no prazo de 30 (trinta) dias, não houver oposição dos credores, após serem devidamente notificados, judicialmente ou pelo oficial do registro de títulos e documentos.
Da mesma forma, se mostra passível de declaração de ineficácia o contrato de trespasse que não respeita os requisitos formais prescritos pelo art. 1.144 do Código Civil, i. é, o arquivamento do contrato na Junta Comercial e a publicação na imprensa oficial.
Do enredo normativo destacado extrai-se que o legislador, além de promover uma indevida confusão entre patrimônio e estabelecimento, ainda estabeleceu um alargamento equivocado das possibilidades de declaração de ineficácia – via ação revocatória – dos contratos de trespasse se, não restando bens suficientes ao pagamento débitos, não houver comprovação do pagamento de todos os credores ao tempo da alienação ou se estes não anuírem com a venda do estabelecimento.
Com a desculpa de se evitar lesão ao direito dos credores do alienante do estabelecimento empresarial, estabeleceu o legislador do Código Civil, e da Lei nº 11.101/2005 quando repetiu a previsão normativa do art. 52, inciso VIII, do Decreto-Lei nº 7.661/45, uma ampla e irrestrita presunção de má-fé das partes que buscam a celebração de um contrato de trespasse, presunção esta que parece estar em rota de colisão com o princípio da boa-fé objetiva e da probidade que devem ser adotados tanto na interpretação do contrato, quanto nas fases pré e pós-contratual[62].
Não se pode olvidar, outrossim, que a norma jurídica constante do art. 1.145 do Código Civil, ao alargar indevidamente a possibilidade de declaração de ineficácia do contrato de trespasse, independentemente de processo falimentar (art. 52, VIII, do Decreto-Lei 7.661/45) e estabelecer a presunção de má-fé dos contratantes, está em contradição com a previsão constante do art. 164 do mesmo codex que impõe: “Presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial, ou à subsistência do devedor e de sua família”.
A rigidez das normas prescritas pelo art. 1.145 do Código Civil e do artigo 129, inciso VI, da Lei nº 11.101/2005, inverteu a ordem lógica das coisas, ou seja, a má-fé que depende de prova da sua ocorrência, de exceção, passou a ser a regra geral quando se trata de alienação do estabelecimento empresarial, pois a partir dos comandos normativos ora estudados, é a boa-fé que precisa ser comprovada, juntamente com os três requisitos exigidos pelo art. 1.145 do Código Civil, ou seja, (i) pagamento dos credores; (ii) o consentimento dos credores, expresso ou tácito, com a alienação do estabelecimento, depois de notificados, e (iii) a existência de patrimônio remanescente, suplantando as dívidas do alienante.
No mesmo sentido, a regra contida no art. 1.146, do Código Civil[63], que prescreve a responsabilidade do adquirente pelos débitos vinculados ao estabelecimento empresarial traz excessivo rigor e onerosidade ao trespasse do estabelecimento, situação que acaba por minar a iniciativa da sociedade em firmar tais tipos de contrato e retira a eficácia social deste importante instrumento de desenvolvimento econômico.
Foi infeliz o legislador nas suas opções, primeiro porque com a possibilidade de transferência onerosa do fundo de empresa sem assunção do passivo vinculado ao fundo de empresa, evita-se o encerramento das atividades empresariais por dificuldades financeiras do alienante, situação que realça o princípio da preservação da empresa e a sua função social, a circulação de riqueza, o estímulo da atividade econômica e a geração de emprego e renda com a manutenção dos postos de trabalho, e segundo, porque aqueles credores do alienante do estabelecimento não serão prejudicados com a transferência da universalidade de bens porque o valor pago pelo adquirente substituirá o bem objeto de transferência.
Não se sustenta a presunção de má-fé porque não há lesão ao direito dos credores, isto porque o estabelecimento objeto de alienação é substituído pela própria indenização – que no mais das vezes se faz em dinheiro – paga pelo adquirente do fundo de empresa, ou seja, substituir-se-á a universalidade de bens por dinheiro.
Por fim, há que se destacar que em razão de a legislação que prevê a possibilidade de ineficácia do trespasse não estabelecer prazo para o ajuizamento da ação revocatória competente, poderá o adquirente do estabelecimento empresarial ser surpreendido, vários anos depois de concretizada a transferência, com decisão judicial declarando a ineficácia do negócio jurídico por ele celebrado com o alienante.
Nesse sentir, como as relações jurídicas não podem se perpetuar indefinidamente pelo tempo em razão da necessidade de se preservar o princípio da segurança jurídica, parece correto afirmar, à míngua de previsão normativa específica, que o limitador temporal para o ajuizamento da ação revocatória por parte dos credores que se sentirem prejudicados será o prazo de prescrição dos direitos que eventualmente foram lesados com a realização do trespasse do estabelecimento empresarial.
5. A AUSÊNCIA DE PROTEÇÃO AO ADQUIRENTE DO ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL. REPERCUSSÕES ECONÔMICAS DA NORMATIZAÇÃO DO TRESPASSE DO ESTABELECIMENTO
A partir de todos os fundamentos até aqui expostos, não é difícil perceber que à luz do direito brasileiro, o trespasse do estabelecimento empresarial é medida de extremo risco para o adquirente, pois além de estar obrigado a assumir a responsabilidade pelo pagamento de todos os débitos vinculados ao estabelecimento empresarial, ainda poderá ser surpreendido, pela insegurança jurídica do negócio, com uma declaração de ineficácia do contrato muito tempo depois da concretização da operação.
Não há, portanto, no direito brasileiro, a proteção necessária e que era de esperar por parte da legislação, notadamente um função do importante papel econômico e social que o trespasse do estabelecimento empresarial pode trazer, como analisado anteriormente.
Mas as falhas quanto ao trespasse do estabelecimento não apresentam apenas repercussões jurídicas, isto porque do ponto de vista econômico as consequências do atual regramento normativo desse tipo de negócio também são perceptíveis, pois a transferência de responsabilidade ao adquirente é tão severa que, em verdade, no Brasil é mais fácil e menos arriscado liquidar o empreendimento em dificuldade ao invés do transferi-lo a terceiro.
As consequências são evidentes, pois além de existir um desestímulo à formalização desse tipo de negócio jurídico – o que não deveria ocorrer frente aos benefícios por eles gerados – o encerramento da atividade empresarial importa em demissões, ausência de recolhimento de tributos, diminuição da circulação de dinheiro na economia e malferimento do princípio da livre iniciativa e da necessária concorrência de mercado.
E tamanha preocupação do legislador era desnecessária, pois os interesses dos credores do alienante do estabelecimento empresarial continuariam protegidos, pois seus créditos estariam garantidos pela indenização paga pelo adquirente quando da aquisição do estabelecimento empresarial, evitando-se, pois, todo o impacto econômico-social ora destacado com a inviabilidade material de se firmar, na atual conjuntura legislativa, um contrato de trespasse.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
(i) O estudo das fontes do direito está voltado para os fatos enquanto enunciação que fazem nascer regras jurídicas introdutoras, ou seja, o direito nasce dos fatos que desencadeiam o processo de produção de normas jurídicas (enunciação), culminando com o produto legislado, ou enunciado prescritivo que, nesta concepção, nada mais é, senão, que veículo introdutor de normas jurídicas, ou seja, norma de estrutura. Essa perspectiva de fontes materiais do direito permite a afirmação de que doutrina, costumes e jurisprudência não podem ser consideradas fontes do direito.
(ii) Na perspectiva apresentada neste ensaio, o direito é visto como um sistema autopoiético, que é fechado sintaticamente e aberto semanticamente, ou seja, é fechado operacionalmente, mas aberto cognitivamente, razão de ser auto-regulável e auto-referenciável, de forma que apesar de produzir os elementos necessários à sua manutenção, há interação com o meio ambiente, tornando-se vivo porque abriga no seu interior subsistemas que se comunicam e essa abertura semântica permite a comunicação com outros sistemas.
(iii) Estabelecimento empresarial é o conjunto de elementos corpóreos e incorpóreos, organizados pelo empresário para dar início à atividade empresarial e surge quando se torna possível reunir os elementos úteis e indispensáveis ao funcionamento do empreendimento, iniciando-se, de fato, as atividades comerciais, que compreenderão a existência de um ponto que propicie a atração e manutenção de clientela, de mobiliários, de mercadoria que será objeto de mercancia, de tecnologia e de um nome fantasia ou título ao estabelecimento, razão pela qual estabelecimento empresarial é sinônimo de fundo de empresa.
(iv) A transferência do estabelecimento empresarial se aperfeiçoa pelo contrato de trespasse, mas diferentemente do que ocorre para a sua eficácia entre as partes que independe de qualquer forma, para a sua eficácia perante terceiros, existem uma série de formalidades que precisam ser observadas, como o arquivamento do contrato no registro de empresários, ou das sociedades empresariais envolvidas na negociação realizado perante a Junta Comercial e a publicação na imprensa oficial. A depender dos elementos que compõem o estabelecimento, outras formalidades também precisam ser seguidas, como, por exemplo, a escritura pública, registrada perante o CRI para a transferência de imóvel que componha o fundo de empresa.
(v) Na atual sistemática, o trespasse do estabelecimento empresarial implica em sucessão de responsabilidade ao adquirente de todos os passivos vinculados ao fundo empresarial, independentemente da sua origem e natureza. Todavia, quando a alienação da universalidade de bens é realizada em procedimento de recuperação judicial ou falência, na forma da Lei nº 11.101/2005, a transferência do estabelecimento é realizada sem qualquer ônus ao adquirente, que não fica responsável pelo passivo do estabelecimento, não podendo, outrossim, a exigência de apresentação de certidão negativa de débito representar óbice ao deferimento do plano de recuperação judicial apresentado por empresário ou sociedade empresária.
(vi) O adquirente do estabelecimento empresarial tem a seu favor a proteção da cláusula de não-restabelecimento, que lhe garante, pelo prazo de cinco anos, que o alienante não irá promover concorrência ao empreendimento adquirido atuando no mesmo ramo de atividade, vedação que não se mantém no caso de o alienante explorar atividade empresarial distinta ou se no mesmo ramo, instalar-se em localidade distinta, de forma a não estabelecer concorrência.
(vii) Como a transferência do estabelecimento empresarial, à exceção dos contratos chamados pessoais, implica em sub-rogação de todos os contratos vinculados à exploração da atividade empresarial, inclusive o de locação do imóvel onde desenvolvida a atividade, poderá o alienante se valer do período anterior à negociação para compor os requisitos para ajuizar a ação renovatória de locação.
(viii) Com a entrada em vigor do Código Civil de 2002, a eficácia do contrato de trespasse dependerá do pagamento de todos os credores, ou do consentimento destes, de modo expresso ou tácito, em trinta dias a partir de sua notificação, caso ao alienante não restem bens suficientes para o adimplemento de suas obrigações, sendo que a declaração de ineficácia do negócio também poderá ocorrer em caso de inobservância das formalidades exigidas pelo art. 1.144 do mesmo codex, não havendo, pois, prazo determinado pela legislação para a limitação desta providência (declaração de ineficácia).
(ix) Lamentavelmente, no Brasil o trespasse do estabelecimento empresarial é medida de extremo risco para o adquirente, pois o adquirente está obrigado a assumir a responsabilidade pelo pagamento de todos os débitos vinculados ao estabelecimento empresarial, sendo mais fácil e menos arriscado liquidar o empreendimento em dificuldade ao invés do transferi-lo a terceiro, acarretando um desestímulo à formalização desse tipo de negócio jurídico e, sob o aspecto econômico, o encerramento da atividade empresarial importa em demissões, ausência de recolhimento de tributos, diminuição da circulação de dinheiro na economia e malferimento do princípio da livre iniciativa e da necessária concorrência de mercado.
Advogado e Professor no curso de graduação em Direito da Universidade Católica Dom Bosco, ambos em Campo Grande/MS. Professor seminarista no Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET, unidade Campo Grande. Mestrando em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba. Pós-graduado ‘lato sensu’ em Direito Tributário pelo IBET e em Direito Administrativo pela UNIDERP (atual Universidade UNIDERP-Anhanguera).
Advogada e Professora no curso de graduação em Direito da Faculdade Anhanguera de Florianópolis. Mestranda em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba. Pós-graduada ‘lato sensu’ em Direito Criminal pelo Centro Universitário Curitiba – UniCuritiba.
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