Cabe, de plano, e em rápida síntese, explicar termo e origem do instituto estudado. Amicus Curiae ou amigo da corte, conforme os processualistas Nelson Nery Jr e Rosa Nery, assim pode ser entendido:
“O relator, por decisão irrecorrível, pode admitir a manifestação de pessoa física ou jurídica, professor de direito, associação civil, cientista, órgão e entidade, desde que tenha respeitabilidade, reconhecimento científico ou representatividade para opinar sobre a matéria objeto da ação direta. Trata-se da figura do amicus curiae, originária do direito anglo-saxão. No direito norte-americano, há intervenção por consenso entre as partes ou permissão ou por permissão da Corte”.
Se é verdadeiro, historicamente falando, dizer que o instituto nasceu ou provém do direito romano (Cabral, 2004), mais apropriado ainda reconhecer ter sido o seu aprofundamento (ou desenvolvimento) e propagação promovidos pelo direito estadunidense.
Aliás, podemos reproduzir os contornos de admissibilidade do “amigo da corte” nos Estados Unidos pelo regulamento de sua Corte Suprema (Rules of the Supreme Court of the United States), a saber:
a) o pretendente a ser admitido na lide demonstre interesse no resultado da demanda;
b) a matéria ventilada seja relevante e inédita (não tenha sido levantada pelas próprias partes);
c) haja consentimento expresso dos litigantes ou autorização da Corte;
d) seus argumentos e pedidos sejam sucintos e apenas excepcionalmente participem de debates orais.
Sem maiores digressões, podemos usar esse paradigma para situar o contexto de translação do instituto para o Brasil.
A natureza jurídica do amicus curiae é um ponto problemático. Por hora, indiferente à discussão, mostra-se-nos salutar acompanhar as principais manifestações do instituto no ordenamento jurídico nacional. Para isso reproduzimos o didático quadro sinóptico das hipóteses de intervenção (Aguiar, 2005):
Dispositivo Legal | Interventor | Requisitos | Comprovação de Interesse | Observações |
Lei 6385/76, art. 31 | Comissão de Valores Mobiliários (CVM) | Matéria de atribuição da CVM | Dispensada | Doutrina e STF indicam tratar-se de amicus curiae |
Lei 8884/94, art.89 | Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) | Matéria relativa à direito de concorrência | Dispensada | A lei e o STJ aduzem tratar-se de assistência. A doutrina sustenta configurar amicus curiae. |
Lei 9469/97, art.5º | Pessoa Jurídica de Direito Público | X | Interesse Econômico | Conforme o STJ, é assistência. A doutrina vacila entre amicus curiae e assistente atípico. |
Lei 9868/99, art.7º | Ente com representatividade | Relevância da matéria | Dispensada | Para a doutrina e jurisprudência, trata-se de amicus curiae, cuja natureza jurídica não é consensual. |
CPC, art. 482 | Ente com representatividade | Relevância da matéria | Dispensada | Para a doutrina configura amicus curiae. |
Lei 10259/01, art 14 | Qualquer pessoa | Pedido de Uniformização no JEF | Dispensada | A doutrina aponta ser participação de amicus curiae. |
Embora o presente texto não tencione pormenorizar conceitos outros de direito processual civil que não o do amicus curiae, em contrapartida, torna-se indispensável à compreensão, ao menos, pontuarmos ou situarmos alguns deles (sujeitos processuais), tais como partes, terceiros e intervenções – e auxiliar da justiça. Através desses institutos conceituados solidificar-se-á a apreensão do real significado da natureza jurídica daquele (amicus curiae).
Por “parte” utilizaremos/repetiremos a idéia dos compêndios atuais de direito processual civil – conforme professor Fredie Didier – por exemplo, que assim estabelece:
“O conceito de parte deverá se restringir àquele que participa (ao menos potencialmente) do processo com parcialidade, tendo interesse em determinado resultado do julgamento. Saber se esta participação se dá em relação à demanda, principal ou incidental, ou em relação à discussão de determinada questão, não é algo essencial ao conceito puramente processual de parte. Parte é quem postula ou contra quem se postula ao longo do processo, e que age, assim, passionalmente.”se postulaao longo do processoe processual de parte.erminado resultado do julgamaneot
A propositura da ação (para o autor); a citação válida (para o réu); pela sucessão (inter vivos ou causa mortis), para ambos; pela admissão da intervenção de terceiros em processo pendente, dentre outros, tem-se a aquisição da qualidade de parte. Como corolário do enquadramento – surgem as titularidades das partes: faculdades, ônus, poderes e deveres processuais, além da submissão/subordinação aos efeitos da sentença de mérito e da sua imutabilidade em relação ao trânsito em julgado.
Sem maiores dificuldades se percebe que ‘Juiz’ e ‘Auxiliares’ por não serem partes, são terceiros. Mas não possuem vínculo, afetação ou interesse na causa – são desinteressados. Noutro viés, de acordo com Luiz Guilherme Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart, o ‘terceiro interessado’ é aquele possuidor de interesse jurídico; portanto, ingressando no processo, passa a adquirir poderes de parte, sem assumir tal condição. A intervenção do terceiro corresponde ao ingresso de uma pessoa no processo em curso, tornando-se, para alguns doutrinadores, verdadeira parte (principal) ou meramente auxiliar, ampliando-se subjetivamente a lide. Nesse conjunto de modalidades de intervenção de terceiros temos a assistência (simples e litisconsorcial).
Na assistência simples (ou também denominada adesiva) não se tem nova demanda, nem seu ingresso amplia o objeto do processo, por não possuir relação jurídica própria, limitando-se a oferecer ajuda a uma das partes principais; enquanto na intervenção litisconsorcial (semelhante ao litisconsórcio ativo ulterior) o assistente possui, a despeito de resistência doutrinária, direta e imediata vinculação à relação material em discussão. Há formulação de novo pedido e conseqüente ampliação do objeto do processo.
Essa diferenciação se torna importante porque com base na explicação acima, podemos concluir: em se tratando de assistência simples (não parte), não existe sujeição aos efeitos da coisa julgada; a litisconsorcial, se transmudada em parte, reflexamente, vincular-se-á definitivamente ao resultado – atrelando-se, por conseguinte, aos fatos e motivos que fundamentaram o decisium, salvo hipóteses extraordinárias contidas no art.55 do CPC.
Os “Auxiliares da Justiça” são funcionários, servidores públicos ou pessoas investidas de munus público que interagem para produção da justiça. Servem de colaboradores ao desenvolvimento do processo e infra-estrutura indispensável ao exercício jurisdicional. Em rol exemplificativo o CPC Pátrio enumera no art. 139, alguns deles: escrivão, oficial de justiça, perito, depositário, administrador e intérprete.
Esse panorama foi traçado no propósito de equacionarmos a posição do amicus curiae dentre as processualmente mais adequadas. Isso denota sua natureza jurídica.
O “amigo da corte”, a depender da natureza jurídica, possuirá maior ou menor possibilidade de atuação, com participação mais ou menos extensa no processo – e submeter-se-á, analogamente, em maior ou menor ênfase aos efeitos, a depender, justamente, da sua índole intrínseca. Revela-se, pois, a importância prática e não somente teórica deste aclaramento.
Para Antônio Passo Cabral o “amigo da cúria” é um tipo de intervenção.
“Aquele que atua como amicus curiae decerto não se inclui no conceito de parte, pois não formula pedido, não é demandado ou tampouco titulariza a relação jurídica objeto do litígio. Também não exterioriza pretensão, compreendida como exigência de submissão do interesse alheio ao seu próprio, pois seu interesse não conflita com aquele das partes. E dentro da conceituação puramente processual dos terceiros, devemos admitir necessariamente que o amicus curiae inclui-se nesta categoria. Sua manifestação deve ser compreendida como verdadeira modalidade de intervenção de terceiros.”
Edgard Bueno Filho pensa um tanto mais especificamente:
“Com efeito, para intervir no processo judicial comum basta ao terceiro demonstrar o interesse legítimo. Nas ações diretas de constitucionalidade e de inconstitucionalidade, como já se viu, a intervenção só se admite quando o terceiro seja uma entidade ou órgão representativo. Portanto, além da demonstração de interesse no julgamento da lide a favor ou contra o proponente, a assistência do amicus curiae só será admitida pelo Tribunal depois de verificada a representatividade do interveniente. Daí a conclusão de se tratar de assistência qualificada.”
Podemos extrair de julgados do próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) o papel do amicus curiae como de assistente.
MEDIDA CAUTELAR. EFEITO SUSPENSIVO. RECURSO ESPECIAL. ANTV. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERVENÇÃO DO CADE. COMPETÊNCIA. […]. 3. A regra inscrita no art.5º, parágrafo único, da Lei 9.469/97 e art. 89 da Lei 8.884 – contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae em nosso Direito. Deveras, por força de lei, a intervenção do CADE em causas em que se discute a prevenção e a repressão à ordem econômica, é de assistência. Outrossim, tratando-se de entidade federal, inequívoca é a competência da Justiça Federal, mercê de a ação ser movida pelo Parquet federal em relação a qual, somente as decisões daquela justiça vincula. (CC 40.534, Rel. Min. Teori Albino Zavascki) 4. Liminar indeferida.
(Medida Cautelar 9576 – RS. Número: 2005/0019257-6. Rel. Min. Luiz Fux. DJ 21/02/05. Reqte: Associação Nacional dos Transportadores de Veículos. Reqdo: Ministério Público Federal).
O procurador Leonardo Cunha, abordando a lei 9.469/97, conclui tratar-se de nova forma de intervenção de terceiros (intervenção anômala); diferindo, porém, da figura do amicus curiae, porque este desponta como auxiliar da justiça, criado para contribuir para o aprimoramento tecnojurídico da decisão judicial; diferentemente a intervenção anômala, que ressalta um interesse econômico da Fazenda Pública e pretende o êxito de uma das partes.
A doutrina nacional, em maioria, se inclina para o papel do amicus curiae como uma espécie de intervenção de terceiros específica ou tipo inovador de assistência, distinta das conhecidas. Uma nova modalidade interventiva/assistencial: sui generis ou atípica. Aqui se repete Dirley da Cunha Júnior, in verbis: “terceiro especial, que pode intervir no feito para auxiliar a Corte, desde que demonstre um interesse objetivo relativamente à questão jurídico-constitucional em discussão”.
Por derradeiro, apesar das particularidades e diversidades, em termos restritos, o conceito de amicus curiae parece, de fato, agregar-se à idéia de auxiliar da corte. Compõe o quadro dos sujeitos processuais junto com Ministério Público, partes ou magistrado. Alimenta o julgador com elementos consistentes (fáticos, jurídicos, políticos, culturais) visando ao maior aprofundamento do tema em análise, prevendo, com mais balizamento, o alcance e as conseqüências do julgado. Não se limita, destarte, a questões fático-comprobatórias, diferenciando-se dos peritos. Ademais, tanto solicita como podem ser solicitado a participar de processos, conquanto não possua atuação compulsória (divergindo da função de custos legis); não se submete à suspeição ou impedimento; não recebe honorários profissionais; não apronta laudos, mas memoriais e/ou sustentação oral; pode integrar questões envolvendo tanto direito disponível como indisponível.
Em conclusão, a depender do limite de abrangência do instituto (consoante quadro acima disposto) pode-se flutuar a natureza jurídica do amicus curiae ora para uma intervenção ou assistência padrão ou inovadora, ora, mais restritamente, para um tipo de auxiliar específico.
Qual seja a opção escolhida, no entanto, deve-se ter em mente a preservação da coerência doutrinária ou sistêmico-processual e a exata intenção da teleologia do instituto. Cuidado ou até mesmo racionalização dessa apontada flutuação do instituto também deve ser trabalhado a fim de evitar, a pretexto de mera flutuação, geração de arbítrio e incongruência jurídica.
É inegável o surgimento e utilização científica do amicus curiae nos diversos prismas em que sua incorporação é normatizada pelo ordenamento jurídico. Retrata significativa evolução ou aprofundamento da democracia, fortalecimento de instituições adstritas e incremento de legitimidade às decisões judiciais.
Nota Bibliográfica:
Procurador Federal, pós-graduado em direito processo civil, professor da Faculdade de Direito de Recife (UFPE) e da Faculdade Escritor Osman Lins (FACOL).
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