1. INTRODUÇÃO.
Jargão de brincadeira infantil e muito comum nos filmes policiais do cinema hollywoodiano, a célebre frase “você tem o direito de permanecer calado, qualquer coisa que você disser poderá ser usada contra você”, “saiu” (frise-se: saiu, entre aspas) das telas e ganhou força no direito pátrio positivo, que com certeza num estudo relâmpago, quiçá em outra oportunidade, sobre direito comparado nos irá mostrar a tendência mundial no sentido de prevalecer o direito ao silêncio, sem consequências negativas; haja vista ser direito fundamental individual, hoje em sede constitucional.
2. DIREITO AO SILÊNCIO.
Do teor do artigo 186, do Código de Processo Penal, que antes da alteração trazida com a Lei nº 10.792, de 01 de dezembro de 2003, rezava, in verbis: “Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa”; cuja parte final não foi recepcionada pela Carta da República, no ano de 1988. Ex vi o disposto no inciso LXIII, do artigo 5º: “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”, conclui-se que é vedado ao interrogando atribuir um juízo de culpabilidade a partir do silêncio, não traduzindo este fato como auto-incriminativo. Muito embora haja julgado no sentido da
“Subsistência da parte final do artigo – TJSP: ‘O réu teve assegurado seu direito ao silêncio, e se não o exerceu, foi porque não quis. Consequentemente, não havia qualquer irregularidade com o interrogatório, capaz de justificar sua anulação. Ademais a alegação de que a parte final do art. 186 do CPP, que determina que o réu será advertido das consequências de permanecer silente no interrogatório do réu se constitui em meio de prova, e, como tal, deve ser devidamente sopesado, pelo juiz. Assim como as respostas do réu, seu silêncio será igualmente objeto desta avaliação’. (RT 724/608). TJSP: ‘Processo. Crime. Nulidade. Inocorrência. Interrogatório. Paciente advertido de que seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo de sua própria defesa. Artigo 186 do Código de Processo Penal não revogado pelo art. 5º, inciso XLIII, da Constituição da República. Ordem denegada’” (JTJ 192/307) (MIRABETE: 2000)
Com a nova redação do artigo 186, agora desta feita: “Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas. – Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”. A jurisprudência que já caminhava a largos passos no sentido de que o silêncio não fosse interpretado em prejuízo da defesa do interrogado, agora foi normatizada com a redação do artigo 186, do CPP, em 2003.
Constituindo a audiência de interrogatório ato solene, formal, de instrução, sob a presidência do juiz, a não informação ao preso dos seus direitos, incluindo o de permanecer silente, não sendo mera irregularidade formal, gera nulidade do ato, fazendo
valer o princípio da Carta Magna: nemo tenetur se detegere.
A Lei nº 10.792/03 num leve descuido se esqueceu de revogar o art. 198 do Código de Processo Penal, que diz que: “O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz”. Logo, se o silêncio não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa, é claro que não poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz. Este dispositivo é incompatível com o parágrafo único do art. 186, que além de ferir o princípio da não-autoincriminação do inciso LVIII, artigo 5º, CF/88, está claro que houve uma revogação tácita pela incompatibilidade desta nova lei que alterou o Código de Processo Penal, que regula este aspecto do direito ao silêncio, disciplinando diversamente a matéria.
De idêntica análise, observamos que também foi revogada a parte final do artigo 305, do Decreto-Lei nº 1002, de 21 de outubro de 1969, que instituiu o Código de Processo Penal Militar, ora transcrito, in verbis:
“Observações ao acusado
Art. 305. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao acusado que, embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.”
Do princípio da não auto-incriminação além de se extrair o direito de permanecer calado, hoje devidamente normatizado no sentido de que o silêncio não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa, extrai-se, outrossim, a permissão tanto de comportamentos passivos do acusado, como a recusa de fornecimento de material gráfico ou vocal para análise pericial, como também deve incluir o direito de impedir que o Estado possa colher prova que dependa da submissão do interrogando, como coleta de sangue para realização de perícia, ou mesmo o polêmico teste do bafômetro. Essa prerrogativa é manifestação pessoal negativa, assegurando ao sujeito passivo não praticar nenhum ato de prova que lhe decorra prejuízo.
“[…] doutrina constitucional e processual penal brasileira demonstra claramente os percalços os quais surgiriam em função de eventual constrangimento imposto ao condutor para que produzisse prova contra si mesmo. Idêntica conclusão poderíamos extrair de eventual ilícito administrativo criado para punir a recusa a tal colaboração do condutor. Ora, se o direito à não-auto-incriminação adquiriu um status constitucional, é evidente que nenhuma outra regra, muito menos de cunho administrativo, pode servir de instrumento de persuasão para que o indivíduo viole as suas próprias convicções e, especialmente, os seus direitos fundamentais. Se assim ocorre no campo administrativo, igualmente sucederá no Direito Penal, porquanto inadmissível a configuração de crime de desobediência em razão de o condutor negar a sua colaboração para a realização dos testes de embriaguez.
Uma incursão na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, quanto à aplicação do direito à não-auto-incriminação, revela de igual forma a aversão aos meios de prova os quais violem tal garantia […]” (JESUS: 2004).
Já na inteligência da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, que considera a aplicação de penalidades e medidas administrativas ao condutor que se recusa a submissão de qualquer procedimento, como os “testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado”, posicionamo-nos, como não podia deixar de ser, ao lado do Doutor Jesus, Damásio, quando assevera que “o direito à não-auto-incriminação adquiriu um status constitucional, é evidente que nenhuma outra regra, muito menos de cunho administrativo, pode servir de instrumento de persuasão para que o indivíduo viole as suas próprias convicções e, especialmente, os seus direitos fundamentais”. Do contrário isto seria genericamente um “dever de falar”, um dever de produzir prova contra si mesmo, ferindo garantias maiores: fundamentais constitucionais.
Para melhor entendimento, trouxemos à baila o artigo 277, §§ 2º e 3º, do CTB:
“Art. 277. Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado. (Redação dada pela Lei nº 11.275, de 2006)
§ 2o A infração prevista no art. 165 deste Código[1] poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor. (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
§ 3o Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)”
3. CONCLUSÃO.
Em boa análise Doutor Tourinho, Fernando, a respeito da revogação do artigo 198, aduz que:
“Se o réu tem o direito ao silêncio, como garantia constitucional, parece-nos evidente que, se porventura dele fizer uso, não pode o Juiz louvar-se nessa circunstância para a formação do seu convencimento. Poderá até fazê-lo, intimamente, sendo-lhe contudo vedado transportar para os autos esse fato, porquanto implicaria a neutralização daquele direito constitucional.”
Humano ser que é, o magistrado, inobstante, ainda que seja profissional de notório saber
jurídico reconhecido, no caso do réu ou indiciado, aconchegado no princípio da não-autoincriminação, não produzir prova contra si mesmo, negando-se, v.g. a fornecer material para exame de DNA ou simplesmente em silêncio permanecer; a mente humana, mormente a dos operadores jurídicos habituados a celeremente pensar, ainda que num átimo de segundo sequer, vislumbra a possibilidade de que, através do DNA ele, o interrogado, se revelaria com culpa; ainda assim ele não poderia sentenciar a partir desta livre convicção íntima, vez que em última análise tudo deve ser muito bem fundamentado; portanto, cabe aqui o profissionalismo, inclusive dispensando reservas mentais tendenciosas.
O silêncio do acusado não pode constituir a base da convicção, esta deve se arrimar em outras provas colhidas, com amparo legal, e acostadas aos autos do processo; alfim o que não existe nos autos não há de existir no mundo… jurídico.
Secretário de Ofício da Procuradoria da Justiça Militar. Advogado. Pós-Graduado em Direito Administrativo. Pós-Graduando em Direito Militar
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