Análise acadêmica de julgados jurídicos: uma proposta metodológica

Resumo: Neste ensaio, proponho uma metodologia para a análise crítica de julgados jurídicos que pode ser utilizada nos cursos tanto de graduação como de especialização da área do Direito. A proposta está assentada nos preceitos da elaboração de trabalhos acadêmicos com vista à avaliação de âmbito mais qualitativo, capaz de propiciar o desenvolvimento de competências e habilidades pressupostas aos acadêmicos em geral e, algumas delas, específicas e necessárias à formação jurídica.

Palavras-chave: Análise crítica. Julgados jurídicos. Proposta Metodológica. Ensino. Metodologia ativa.

Sumário: 1. Introdução. 2. Proposta de roteiro metodológico para análise. Organização estrutural proposta. 3. Estrutura do texto. 4. A avaliação da análise crítica elaborada. 5. Considerações finais

Introdução

No contexto da formação acadêmica, alguns trabalhos auxiliam no desenvolvimento da capacidade analítica e crítica, uma vez que possibilitam aos estudantes que exponham, escrita ou oralmente, suas interpretações e compreensões sobre determinado assunto apresentado. Essa atividade crítica pode dar origem a outras situações interessantes à ampliação do senso crítico, abrindo espaço para debates, posicionamentos, comparações e contraposições de posicionamentos, articulações de conteúdos diversos, diálogos com outras áreas e com a realidade tanto imediata quanto distante, análises de tendências etc.

Como propõe Pedro Demo, em seu livro Educar para a Pesquisa[1], a educação, de uma forma geral, não apenas nas universidades, mas em todos os seus âmbitos precisa atentar para o fato de ser “fundamental que os alunos escrevam, redijam, coloquem no papel o que querem dizer e fazer, sobretudo alcancem a capacidade de formular”. Dessa forma, torna-se possível transformar o simples repasse de reconhecimento, de coisas lidas, em um laboratório de construção de ideias próprias. Para o autor:

“Formular, elaborar são termos essenciais da formação do sujeito, porque significam propriamente a competência, à medida que se supera a recepção passiva do conhecimento, passando a participar como sujeito capaz de propor e contrapor…Aprende a duvidar, a perguntar, a querer saber, sempre mais e melhor. A partir daí, surge o desafio da elaboração própria, através da qual o sujeito que desperta começa a ganhar forma, expressão, contorno, perfil. Deixa-se para trás a condição de objeto”. (DEMO, 2007, p.28)

Trabalhar em prol dessa formulação ou elaboração de uma postura crítica do sujeito diante do conhecimento pode ser a chave para se reposicionar e se repensar a educação universitária guiada pela simples reprodução do conhecimento, estruturada na aula repassada pelo professor e copiada pelo aluno, tão questionada atualmente pelos estudiosos de didática e ensino no ensino superior.

Essa educação para a pesquisa precisa ser cada vez mais estimulada e fomentada pelos cursos superiores de uma forma geral, afinal, a educação não é só ensino, instrução, treino, mas, sobretudo, formação da autonomia crítica e criativa do sujeito-aluno competente. E esse fomento pode se dar tanto pela metodologia de ensino empregada quanto pela forma de atividades e de avaliações desenvolvidas, tendo em vista que algumas metodologias são mais estimulantes, mais ativas que outras e algumas formas de avaliação são menos centradas no simples ato de examinar, por isso, mais preocupadas com os aspectos qualitativos e formativos que com aspectos puramente quantitativos.

Neste âmbito, uma das atividades de análise crítica que tem muito a agregar à formação de competências e habilidades dos alunos do curso de Direito é, sem dúvida, a análise sistemática de julgados atuais ou não[2]. Entretanto, é preciso lembrar que para se realizar a análise crítica de qualquer texto, antes é necessário que o texto seja lido e compreendido[3]. Só se faz análise crítica de fato daquilo que foi compreendido! Esse preceito não é diferente na área jurídica. Essa informação, pois mais óbvia que possa parecer, precisa ser ressaltada, para que se compreenda que, possivelmente, a análise demandará de seu elaborador mais de uma leitura do texto base e, talvez, a leitura de outros materiais para ajudá-lo a “enxergar” questões importantes nos textos lidos ou para construir associações, contrapontos ou comparações.

Com a crescente disponibilização das decisões dos tribunais em meio eletrônico, muitos dos quais de livre acesso, é possível selecionar textos relacionados às mais diferentes disciplinas e conteúdos do curso de Direito ou aos estudos complementares, para se realizar um trabalho instigante e analítico de alta envergadura, totalmente diferente de outros trabalhos acadêmicos, sem, no entanto, destoar do que se espera do desenvolvimento de competências e habilidades de um aluno da graduação ou da especialização. Competências e habilidades relacionadas, dentre outros aspectos:

– à escrita acadêmica: elaboração própria de texto analítico e de formulação crítica;

– à apresentação oral acadêmica: se o texto elaborado é para apresentação oral;

– à leitura analítica e crítica de gêneros textuais característicos da área jurídica.

– à argumentação: pois ao se levantar a tese e os argumentos mais importantes empregados no julgado para sustentá-lo – argumentos tanto de ordem jurídica quanto não jurídica – se tem a possibilidade de desenvolver mais o conhecimento sobre essa importante ferramenta do direito e sua empregabilidade na práxis;

– ao raciocínio: identificar proposições, estabelecer relações, inferir, demonstrar por argumentação;

– à linguagem jurídica: maior contato com a linguagem jurídica, sua terminologia, jargões, brocardos, formalidade etc.;

– à capacidade de discutir questões e de se posicionar diante delas;

– à associação e conexão de conteúdos: uma decisão, muitas vezes, associa inúmeros conteúdos na análise e sustentação de uma tese, o que propicia a percepção de formas de desenvolvimentos dessas associações e de sua importância. Além disso, permite ao próprio analista que estabeleça associação a outros conteúdos por extensão, criando redes de significados;

– à capacidade de síntese de ideias;

– à fomentação de pesquisas futuras;

– à ampliação dos conhecimentos jurídicos: discussão de aspectos legais, doutrinários e jurisprudenciais que agregam à formação do aluno do Direito.

Além disso, considerando-se que a pirâmide de aprendizagem proposta por William Glasser tenha fundo de verdade, já que tem sido citada em algumas dissertações brasileiras[4], a atividade proposta poderia trabalhar em prol de aumentar o nível de aprendizagem sobre um tema discutido, uma vez que objetiva uma leitura mais aprofundada do julgado, sua análise em termos de informações essenciais, a organização sistemática dessas informações levantadas para que se transformem em conhecimento, a crítica e expressão do posicionamento diante do discutido, podendo ainda, se apresentada para os demais colegas, alcançar o maior percentual de aprendizagem proposto.

De acordo com tal pirâmide, a aprendizagem opera em níveis que vão desde aquelas atividades que, se não complementadas por outras, tendem a resultar em menor “retenção” de informações e, portanto, menos conexões capazes de serem transformadas em conhecimento até as que mais têm possibilidade de resultar em maior aprendizado.

A pirâmide prevê os seguintes níveis e propõe possíveis percentuais alinhados à aprendizagem, como evidencio adiante:

 

Percebe-se, pela análise da pirâmide, que a atividade proposta estaria trabalhando nos níveis verde, amarelo e azul, todos mais elaborados e com pressupostos de aprendizados mais eficientes.

2. Proposta de roteiro metodológico para análise

Nesta exploração textual, especialmente no início do trabalho com essa modalidade crítico-analítica, é válido guiar-se por alguns pontos que podem compor um roteiro metodológico para elaboração da análise crítica do julgado, tais como:

3. Organização estrutural proposta

Se digitado, é interessante seguir as regras de formatação de trabalhos acadêmicos propostas pela ABNT, para que assim se continue a preparação dos alunos para a redação de outros trabalhos deste meio, como ensaios, artigos, paper e monografias.

O ideal é que o trabalho seja elaborado individualmente, em dupla ou em grupos pequenos, pois grupos maiores, se mal administrados pelos membros, sobrecarregam alguns e desobriga outros da elaboração. Também é desejável que, no total, o texto ocupe entre 02 e 05 páginas devidamente formatadas, a fim de que se possa trabalhar a capacidade de síntese dos alunos.

     O quadro abaixo dispõe os dados da formatação mencionada:

4. Estrutura do texto

Seguindo-se o roteiro traçado, a estrutura do texto seria a seguinte:

Essa estrutura, portanto, atende de forma geral a todos os julgados, especialmente os votos dos ministros, que são textos de relevância destacada na área e podem fornecer inúmeros elementos para o debate, análise crítica dos conteúdos tratados e posicionamento dos estudantes em relação às teses defendidas, dentre inúmeras outras possibilidades.

4. A avaliação da análise crítica elaborada

     Importante momento em qualquer proposta de atividade está relacionado à sua avaliação, todavia, como preceitua as correntes que defendem a avaliação formativa e qualitativa, é interessante que tanto professor quanto aluno tenham conhecimento de aspectos relevantes que poderão ser considerados no momento de se avaliar o trabalho, tais como:

– Capacidade do analista em detectar a tese defendida;

– Levantamento dos argumentos jurídicos mais importantes, devidamente sintetizados;

– Levantamentos dos argumentos não jurídicos mais importantes, devidamente sintetizados;

– Qualidade do comentário elaborado (pertinente, fundamentado ou justificado);

– Qualidade do posicionamento do analista (está bem definido e justificado);

– Atendimento à norma culta da língua portuguesa;

– Aspectos relacionados à formatação do texto (afinal, trabalho acadêmico relaciona-se ao conjunto: forma e conteúdo).

Considerações finais

Como toda metodologia de trabalho, essa depende mais da forma como será “operacionalizada” pelo professor e aluno que propriamente de sua estrutura. Todavia, esse ensaio oferece uma proposta norteadora para aqueles que desejam realizar atividades mais significativas e capazes de suscitar debates mais consistentes nas aulas e desenvolvimento de competências e habilidades que agreguem valor à formação acadêmica e profissional.

 

Notas
[1] DEMO, Pedro. Educar pela pesquisa. 8 ed. Campinas: Autores Associados, 2007.
[2] Às vezes, é preciso recuperar um julgado de anos passados para se promover comparações e expansões em relação a uma decisão mais recente, por exemplo.
[3] Adoto aqui o termo compreensão como a junção dos níveis de compreensão e de interpretação de um texto, ou seja, níveis que relacionam texto/ contexto/ discurso.
[4] Um exemplo é a menção na dissertação de Isaías Pessoa da Silva, na Universidade Estadual da Paraíba, aprovada em 2015, intitulada Estilos de aprendizagem e materiais didáticos digitais nos cursos de licenciatura em matemática a distância (p.13).

Informações Sobre o Autor

Magna Campos

Mestre em Letras, Professora de Técnica de Redação Jurídica e de Leitura e Produção de Textos no curso de Direito. Autora dos livros: Ensaios de Leitura Crítica Leitura e Escrita: Nuances Discursivo-Culturais


Equipe Âmbito Jurídico

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