Thiago Stanley Gurski[1]
Resumo: Seria constitucional impor a perda da função pública quando, no momento do trânsito em julgado da ação de improbidade administrativa, o agente público ocupa um cargo diferente daquele no qual cometera o ato ímprobo? Por meio da metodologia de pesquisa exploratória, o tema foi desenvolvido em 3 (três) capítulos. No capítulo 1, expôs-se a força normativa da Constituição e a autoaplicabilidade dos princípios expressos da Administração Pública. No capítulo 2, após a identificação de duas correntes doutrinárias antagônicas, catalogaram-se todas as opiniões encontradas. No capítulo 3, demonstrou-se a atual e iterativa divergência no seio do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Por fim, obteve-se que a Constituição é clara ao estabelecer que os atos de improbidade administrativa importarão a perda da função pública e que a Administração Pública é regida pelo princípio da moralidade. É regra de hermenêutica que, se a Carta Maior não restringiu, não cabe ao intérprete restringir, logo, a mens legis do art. 37, § 4º, só pode ser no sentido de obstar a continuidade do exercício da função pública por agente ímprobo, não importando em qual cargo tenha praticado atos de improbidade administrativa.
Palavras chave: Improbidade. Cargo. Perda. Constitucional.
Abstract: Would it be constitutional to impose the loss of the civil service when, at the moment of res judicata of the administrative improbity action, the public agent occupies a different position from the one in which he had committed the unlawful act? Through the exploratory research methodology, the theme was developed in 3 (three) chapters. In chapter 1, the normative force of the Constitution and the self-applicability of the expressed principles of Public Administration were exposed. In chapter 2, after the identification of two antagonistic doctrinal currents, all the opinions found were cataloged. In chapter 3, the current and iterative divergence was demonstrated within the Superior Court of Justice (STJ). Finally, it was obtained that the Constitution is clear in establishing that the acts of administrative improbity will imply the loss of the public function and that the Public Administration is governed by the principle of morality. It is a hermeneutic rule that, if the Carta Maior did not restrict, it is not for the interpreter to restrict, therefore, the mens legis of art. 37, § 4, can only be in the sense of preventing the continuation of the exercise of public function by an unlawful agent, no matter in which position he has performed acts of administrative impropriety.
Keywords: Improbity. Office. Loss. Constitutional.
Sumário: Introdução. 1. A Força Normativa da Constituição e os Princípios da Administração Pública. 2. A Perda de Função Pública diversa daquela ocupada no momento do ato ímprobo (ótica doutrinária). 3. A Perda de Função Pública diversa daquela ocupada no momento do ato ímprobo (ótica do STJ). Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O Direito Constitucional é a base sustentadora da esmagadora maioria das sociedades contemporâneas, é o ramo primordial do Direito ao qual todas as demais normas do ordenamento devem observância. A Constituição Federal, há muito, deixou de ser uma carta de intenções e assumiu o papel de instrumento moderador da vida em sociedade, tornando-se o primeiro diploma normativo a ser consultado para o bom desenvolvimento das relações jurídicas civis, penais, administrativas, tributárias, entre outras. Nesse sentido, Barroso (2018, p. s/n):
O direito constitucional moderno, investido de força normativa, ordena e conforma a realidade social e política, impondo deveres e assegurando direitos. A juridicização do direito constitucional e a atuação profícua dos tribunais constitucionais ou das cortes a eles equiparáveis deram especial destaque à jurisprudência constitucional, característica marcante do novo direito constitucional. No Brasil de hoje, a ampliação da jurisdição constitucional, a importância das decisões judiciais e uma crescente produção doutrinária de qualidade proporcionaram ao direito constitucional um momento de venturosa ascensão científica e política.
O Direito Administrativo, por sua vez, escorado na matriz constitucional, normatiza e direciona as relações entre a administração pública consigo mesma (introversa) e entre ela e os particulares (extroversa), sujeitando-se ao regime jurídico-administrativo de direito público (Carvalho Filho, 2019, p. s/n). Nesse contexto, os dois precitados ramos do Direito são imbricados desde o plano abstrato até aportar concretamente na vida dos jurisdicionados, sendo que o Direito Administrativo traduz-se no veículo que imprime movimento aos ditames constitucionais. Segundo Carvalho Filho (2019, p. s/n):
A relação de maior intimidade do Direito Administrativo é com o Direito Constitucional. E não poderia ser de outra maneira. É o Direito Constitucional que alinhava as bases e os parâmetros do Direito Administrativo; este é, na verdade, o lado dinâmico daquele. Na Constituição se encontram os princípios da Administração Pública (art. 37), as normas sobre servidores públicos (arts. 39 a 41) e as competências do Poder Executivo (arts. 84 e 85).
Acerca dos temas de estudo, o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em voga aborda: a) a força normativa da Constituição e os princípios expressos da Administração Pública, a improbidade administrativa e seu cariz constitucional, com especial atenção à sanção de perda da função pública; b) a decretação da perda da função pública por decorrência de ato pretérito de improbidade cometido em cargo público diverso daquele atualmente ocupado pelo agente; c) o mesmo objeto de estudo da alínea anterior, mas pela visão do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Em relação à delimitação do tema de estudo, verifica-se que ele orbita em torno da polêmica referenciada na alínea “c”, supra, destacando-se que, atualmente, pela perspectiva jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a questão é tormentosa e urge ser pacificada, pois as duas turmas de Direito Público da Corte Superior estão proferindo julgamentos diametralmente opostos, causando insegurança jurídica.
Dos elementos suso informados, extrai-se o seguinte problema: é constitucional impor a perda da função pública atualmente ocupada por agente público em razão de ato de improbidade praticado em cargo público diverso, por ele ocupado no passado? Ou, dizendo da forma mais direta o possível para que qualquer um possa entender qual é o problema objeto do trabalho: o que acontece se, no momento do trânsito em julgado, o condenado por improbidade administrativa ocupa cargo diferente daquele que exercia na prática do ato?
A pesquisa é justificada cientificamente porque o problema vislumbrado é de interesse da comunidade jurídica, demanda estudos mais aprofundados sobre temas correlatos de Direito Constitucional e Administrativo e, como antes mencionado, está causando séria divergência jurisprudencial na Corte responsável por uniformizar a jurisprudência nacional, ou seja, o debate transcendeu o plano teórico e está impactando o direito dos jurisdicionados.
Como objetivo geral a pesquisa realizada é investigar, ou seja, analisar qual está sendo o tratamento doutrinário e jurisprudencial ao problema apresentado e verificar a adequação constitucional das respostas.
O objetivo específico, por sua vez, é responder se é constitucional impor a perda da função pública se, no momento do trânsito em julgado, o condenado por improbidade administrativa ocupa cargo diferente daquele que exercia durante a prática do ato de improbidade.
A metodologia de pesquisa adotada foi não original, conforme classificação proposta por Ruaro (2004, p. 24), “[…] a pesquisa não original lida com trabalhos ou estudos já realizados e são motivo de análises e interpretações do proponente da pesquisa”, na medida em que se realizou uma revisão de estudos já publicados, no intuito de interpretá-los e interlaçá-los.
O caminho metodológico percorrido foi o exploratório, que, segundo Ruaro (2004, p. 24) é “[…] um estudo que tem por finalidade buscar maiores informações sobre determinado assunto, facilitando a delimitação de um tema de trabalho, bem como definir objetivos e/ou formular hipóteses de uma pesquisa.”.
A tipologia de pesquisa adotada foi a teórica, a qual, segundo Baffi (2017), é “[…] orientada no sentido de re-construir teorias, quadros de referência, condições explicativas da realidade, polêmicas e discussões pertinentes.”
Em relação ao método de pesquisa, optou-se pelo método dedutivo, ilustrado por Bittar (2016, p. 34) como a “[…] extração discursiva do conhecimento a partir de premissas gerais aplicáveis a hipóteses concretas.”; e definido por Russ (2015, p. s/n) como “[…] argumentação lógica perfeita constituída de três proposições declarativas que se conectam de tal modo que a partir das primeiras duas, chamadas premissas, é possível deduzir uma conclusão.”.
A teoria da força normativa da Constituição proveio da doutrina alemã de Konrad Hesse propondo uma interação entre a realidade social e a abstração jurídica de forma que as normas constitucionais não sejam pura abstração nem tampouco somente um reflexo da realidade, mas podendo, contudo, moldá-la, conforme ensina Sarmento (2012, p. s/n):
É nesse sentido que Hesse resgata a proposta de Heller, para quem a Constituição deveria ser definida simultaneamente como normatividade e normalidade social (norma e realidade). Seu objetivo é também operar uma síntese das duas posições (sociológica e normativa), ao formular a conhecida teoria da força normativa da Constituição.
Segundo Canotilho, apud Moraes (2017, p. s/n), em matéria de regras interpretativas das normas constitucionais, o princípio da máxima efetividade deve atribuir a uma norma constitucional a interpretação que lhe proporcione a maior eficácia possível.
Tal princípio já foi utilizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), dentre outros fundamentos, para declarar indevida a perda automática do mandato parlamentar por decorrência de condenação criminal, tendo em vista o texto constitucional mencionar, no art. 55, § 2º, que “a perda será decidida” pela Casa à qual estiver vinculado o parlamentar, como consta em trecho do voto do Relator Ministro Nelson Jobim, no Recurso Extraordinário nº 225.019/GO, publicado no Informativo STF nº 162.
Mendes (2018, p. s/n), por seu turno, entende que a força normativa da Constituição é inerente ao princípio da máxima efetividade. Veja-se:
De alguma forma contido no princípio da máxima efetividade, fala-se no princípio da força normativa da Constituição. Com este, propõe-se seja conferida prevalência aos pontos de vista que tornem a norma constitucional mais afeita aos condicionamentos históricos do momento, garantindo-lhe interesse atual, e, com isso, obtendo-se “máxima eficácia, sob as circunstâncias de cada caso”.
No contexto da decisão exarada no RE 225.019/GO, pode-se extrair que, se as normas constitucionais devem ter a máxima efetividade, tendo a Constituição verdadeira força normativa, sobrelevando-se a normas infraconstituiconais como o Código Penal, e atribuindo a última palavra sobre a perda do mandato à respectiva Casa Legislativa, nem mesmo o STF poderia expurgar o parlamentar federal sem a chancela do parlamento, sob pena de vulnerar-se a norma constitucional.
Pelo viés da força normativa da Constituição, Sarmento (2012, p. s/n) alega ter sido o Direito Administrativo severamente impactado pela nova abordagem interpretativa, devendo este ramo do direito público rever seus conceitos:
No Direito Administrativo, a constitucionalização tem provocado mudanças igualmente importantes em conceitos e institutos fundamentais. […] O próprio princípio da legalidade administrativa, segundo o qual o Estado só pode agir quando autorizado por lei, tem sido repensado em razão do reconhecimento da força normativa da Constituição. Afinal, se as normas constitucionais são, em regra, diretamente aplicáveis, independentemente de mediação legislativa, não faz muito sentido exigir que a Administração se abstenha de agir sob o pretexto da inércia do legislador.
Nesse ensejo, ainda que haja falhas ou omissões na Lei de Improbidade Administrativa, suas lacunas poderiam ser colmatadas por normas extraídas diretamente do texto da Constituição, eis que esta preocupou-se em frisar os efeitos e consequências dos atos de improbidade administrativa eventualmente cometidos pelos agentes públicos.
Ademais, a ligação da improbidade administrativa com os princípios expressos da Administração Pública é inegável, podendo ela ser considerada a ferramenta de efetivação deles. Tais princípios, segundo Pazzaglini Filho (2018, p. s/nº) são:
[…] normas jurídicas primárias ou superiores de eficácia imediata, plena e imperativa, hegemônicas em relação às demais normas (constitucionais e infraconstitucionais) do sistema normativo, que, de um lado, expressam os valores transcendentais da sociedade e o conteúdo essencial da Constituição e, de outro, predefinem, orientam e vinculam a formação, o conteúdo, a aplicação e a exegese de todas as demais regras que compõem o ordenamento jurídico.
A improbidade administrativa foi erigida a tema de grande importância pelo Constituinte de 1988, pois são encontradas diversas referências no Texto Maior (grifou-se):
Art. 15. É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: […] V – improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º.
Art. 37. […] § 4º Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.
Art. 97. […] § 10. No caso de não liberação tempestiva dos recursos de que tratam o inciso II do § 1º e os §§ 2º e 6º deste artigo: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009) […] III – o chefe do Poder Executivo responderá na forma da legislação de responsabilidade fiscal e de improbidade administrativa; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009)
Art. 101. […] § 3º Os recursos adicionais previstos nos incisos I, II e IV do § 2º deste artigo serão transferidos diretamente pela instituição financeira depositária para a conta especial referida no caput deste artigo, sob única e exclusiva administração do Tribunal de Justiça local, e essa transferência deverá ser realizada em até sessenta dias contados a partir da entrada em vigor deste parágrafo, sob pena de responsabilização pessoal do dirigente da instituição financeira por improbidade. (Incluído pela Emenda constitucional nº 99, de 2017)
Art. 104. Se os recursos referidos no art. 101 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para o pagamento de precatórios não forem tempestivamente liberados, no todo ou em parte: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 94, de 2016) […] II – o chefe do Poder Executivo do ente federado inadimplente responderá, na forma da legislação de responsabilidade fiscal e de improbidade administrativa; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 94, de 2016)
Como consta no art. 37, caput, da CF/88, a Administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e a violação de qualquer deles, como visto acima, poderá ser considerado ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da Administração.
Sendo os princípios da Administração Pública valores transcendentais da sociedade a cuja observância pelos agentes públicos da moderna Administração pública gerencial é esperada, a violação de qualquer deles é uma afronta à própria Constituição, ainda que a Lei de Improbidade, em seu art. 11, não tenha reproduzido ipsis literis o comando constitucional do art. 37 da CF/88, conforme percebido por Pazzaglini Filho (2018, p. s/nº):
Embora a redação do dispositivo não tenha sido a mais apropriada, pois seria de maior rigor ou precisão reiterar os princípios constitucionais basilares que informam a atuação pública elencados no art. 37, caput, da Carta Magna (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência), a circunstância de constar dele a expressão violação da legalidade elucida, sem dúvidas, que o preceito compreende a transgressão dos demais princípios constitucionais que instruem, condicionam, limitam e vinculam a atuação dos agentes públicos, posto que, como já afirmado no Capítulo I, por ocasião do exame dos princípios constitucionais da Administração Pública, estes “servem para esclarecer e explicitar o conteúdo do princípio maior ou primário da legalidade”.
Em sendo verificada a lesão aos multirreferidos princípios, poderá sem imposta a perda da função pública, nos termos do art. 11 da Lei de Improbidade Administrativa.
De acordo com as linhas que iniciam este capítulo, o Texto Maior deve ser observado no sentido do cumprimento dos comandos idealizados pelo Constituinte devido à força normativa da Constituição, repisando-se a especial influência e orientação que a CF/88 imprimiu ao Direito Administrativo.
Nesse contexto, os princípios da Administração Pública mencionados são normas jurídicas autoaplicáveis e devem prover efetividade tanto à seleção dos agentes que atuarão em favor da sociedade quanto à exclusão dos inaptos por inobservância das normas deontológicas, ainda que haja omissão na Lei de Improbidade. Tal conclusão é extraída das lições de Barroso (2017, p. s/nº):
Efetividade significa a realização do Direito, a atuação prática da norma, fazendo prevalecer no mundo dos fatos os valores e interesses por ela tutelados. Simboliza, portanto, a aproximação, tão íntima quanto possível, entre o dever-ser normativo e o ser da realidade social. O intérprete constitucional deve ter compromisso com a efetividade da Constituição: entre interpretações alternativas e plausíveis, deverá prestigiar aquela que permita a atuação da vontade constitucional, evitando, no limite do possível, soluções que se refugiem no argumento da não autoaplicabilidade da norma ou na ocorrência de omissão do legislador.
Calha rememorar que o art. 37, § 4º, da CF/88 traz a perda da função pública como decorrência do cometimento de ato de improbidade e tal punição foi devidamente acolhida pelo legislador infraconstitucional, entretanto, não houve um detalhamento necessário no corpo da Lei de Improbidade Administrativa no sentido de esclarecer qual função pública exatamente será perdida no caso de o agente público mudar de função após cometer o ilícito.
Esta é, enfim, mais uma das lacunas deixadas pelo legislador às quais a doutrina e a jurisprudência pátria debruçam-se atualmente, resultando em interessante e fervoroso embate, cuja solução definitiva ainda não foi pacificada na jurisprudência, mas pode estar na força normativa da Constituição e na autoaplicabilidade dos princípios regentes da Administração Pública.
Em primeiro lugar, calha esclarecer a amplitude do termo “função pública” para os fins deste estudo, qual seja, a análise da (in)constitucionalidade da perda da função ocupada em cargo diferente do qual foi praticado o ato ímprobo.
Alerta-se, desde já, sobre a existência de celeuma doutrinária e jurisprudencial acerca da decretação da perda da função pública por ato de improbidade cometido por agentes políticos, como o Presidente da República, senadores e deputados, que são diferenciados dos demais servidores por serem investido no mandato popular eletivo e por serem beneficiados por uma garantia exacerbada ao exercício da função outorgada pela própria Constituição Federal. Nas palavras de Emerson Garcia (2006, p. 472):
[…] a perda do mandato está condicionada ao prévio pronunciamento do órgão competente do Poder Legislativo, o que afasta a possibilidade de que ela advenha de sentença prolatada em ação civil em que sejam perquiridos os ilícitos praticados pelos membros do Congresso Nacional.
O mesmo não se dá em relação aos governadores, prefeitos e vereadores, ou seja, podem perder a função pública em razão de ato de improbidade sem qualquer entrave porque a Constituição Federal não os blindou com maiores garantias, como o fez para os demais agentes políticos supramencionados. Dessa feita, não havendo norma constitucional de reprodução obrigatória nas Cartas Estaduais e leis orgânicas, se assim o fizerem, estarão invadindo a competência da União. É o que explica Emerson Garcia (2006, p. 468-473):
[…] nas hipóteses previstas na Lei nº 8.429/92, cumpre distinguir o seguinte: a) em se tratando de ato de improbidade igualmente previsto na Lei nº 1.079/50, as sanções de perda da função e inabilitação poderão ser aplicadas pelo Senado Federal […] Em relação aos Chefes dos Executivos Estaduais e Municipais, além de estarem sujeitos à Lei de Improbidade em sua totalidade, não poderá o princípio da simetria sequer ser aventado pela legislação infraconstitucional para lhes assegurar todas as prerrogativas outorgadas ao Presidente da República pela Constituição. E ainda, não poderia a Constituição Estadual restringir a eficácia da Lei nº 8.429/92, sob pena de usurpar competência privativa da União. Em razão disto, o Governador poderá ter seu mandato cassado sempre que incorrer em crime de responsabilidade ou praticar atos de improbidade, aplicando-se o mesmo entendimento em relação ao Prefeito Municipal e aos respectivos vices.
Recapitulando, tal debate não é alvo da presente pesquisa, pois ampliaria a discussão demasiadamente e refugiria ao escopo do objetivo a ser alcançado.
Voltando ao curso do presente estudo, pelo espírito da Lei de Improbidade idealizado pelo legislador, o termo função pública abrange toda e qualquer forma de desempenho de atividade pública: cargo, emprego, função permanente ou temporária, estatutária ou contratual, remunerada ou gratuita. Segundo Calil Simão (2014, p. 824):
A utilização do termo função pública permite considerar um número maior de situações – logo, aumenta o campo de aplicação dessa sanção. Essas atividades são desempenhadas pelos detentores de cargos e empregos públicos, situações, desse modo, incluídas no âmbito de incidência do dispositivo. As funções transitórias são exercidas pelos denominados servidores públicos especiais ou temporários (CF, art. 37, IX). Já as funções permanentes, pelos detentores de cargos ou empregos públicos. […] A expressão função pública abrange, desse modo, as de natureza derivada e as de natureza autônoma decorrentes de qualquer vínculo jurídico que o condenado mantenha com o poder público (estatutário ou contratual).
Segundo Pazzaglini (2018, p. s/nº), a perda de função pública “[…] consiste na ruptura ou cessação compulsória do vínculo jurídico do agente público com o órgão ou entidade pública (ou assemelhada) decorrente de sentença condenatória em ação civil de improbidade administrativa que a decretou.”, devendo cingir-se à função ocupada pelo agente no momento da prática do ato ímprobo, sendo descabido qualquer acréscimo de efeitos para além disso, in verbis (grifou-se):
Cumpre ter presente que a sanção fulmina a função pública (ou cargo), que o agente exercia (ou ocupava) por ocasião da prática do ato de improbidade administrativo reconhecido na sentença. Vale dizer, penaliza a função ou cargo público que o agente público condenado exercia ou ocupava à época em que praticou a conduta (ação ou omissão) ímproba incriminada. Nesse ponto, impende assinalar que, caso já tenha ocorrido a aposentadoria do agente público infrator, ao tempo do trânsito em julgado da sentença correspondente, não cabe a cassação de sua aposentadoria sob o argumento de que se trata de consequência da perda da função pública.
Ainda na visão de Daniel Amorim e Rafael Carvalho (2018, p. s/nº), com a perda da função pública “[…] extingue-se a relação jurídica existente entre o agente ímprobo e a pessoa jurídica de direito público ou privada elencada no art. 1.º da Lei 8.429/1992.” e somente pode ser aplicada após o trânsito em julgado, visando a “[…] valorizar a segurança jurídica para a aplicação dessas sanções, ainda que tal exigência possa tornar a medida ineficaz, em especial em cargos eletivos.”
Sobre qual função deverá ser perdida, os supracitados autores, afirmando filiação à corrente majoritária, alegam que deve ser extirpado da Administração Pública o agente ímprobo condenado com trânsito em julgado, sendo desinfluente o fato de este ocupar cargo diferente do qual cometera o ato de improbidade (grifou-se):
A parcela doutrinária majoritária, com a qual me filio, entende que a função pública que será perdida é aquela exercida pelo agente ímprobo no momento do trânsito em julgado, mesmo que diferente daquela exercida à época em que foi praticado o ato de improbidade administrativa. Nesse sentido também o Superior Tribunal de Justiça. Além de ser interpretação que dá uma maior eficácia à sanção ora analisada, é a única que afasta o agente ímprobo de sua vinculação com a Administração Pública. Que sentido teria reconhecer que o sujeito é ímprobo e mantê-lo nos quadros da Administração Pública, dando-lhe total condição para que venha a repetir a prática de tais atos?
Cleber Masson (2016, p. 785), por sua vez, informa que a perda da função enseja a extinção do vínculo jurídico, entre o agente ímprobo e a entidade vitimada, e alcança qualquer função que esteja sendo ocupada no momento do trânsito em julgado (grifou-se):
A finalidade da sanção em exame, de natureza político-administrativa, é afastar dos quadros da Administração Pública todos os agentes que demonstraram pouco ou nenhum apreço pelos princípios regentes da atividade estatal, denotando uma deformidade de caráter incompatível com a natureza da função exercida. É oportuno salientar que esta sanção incide sobre toda e qualquer função pública que esteja sendo exercida pelo agente ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória, mesmo que diferente da exercida à época em que praticou o ato ímprobo.
A mesma solução é proposta por Pedro Roberto Decomain (2007, p. 208), Eurico Ferraresi (2011, p. 144), Carlos Frederico Brito dos Santos (2009, p. 160-162), Luiz Manoel Gomes Junior e Rogério Favreto (2010, p 181-182).
Interessante a visão de Waldo Fazzio Júnior (2015, p. 515, grifou-se):
A função pública do agente público consiste nos deveres inerentes à sua posição administrativa, mas também encerra direitos em face da Administração Pública. Em princípio, a lei não precisaria dela cogitar, já que a suspensão dos direitos políticos envolve a perda da função, implicando a cessação imediata de seu exercício. Qual é a extensão da perda da função pública? Parece-nos correto entender que a Lei nº 8.429/92 retira o agente público de seu status administrativo. Este perde a investidura, fica sem posição administrativa. Não se trata de suspensão mas de perda. É o desfazimento da situação jurídica constituída pela investidura ou contratação, conforme o caso.
Observe que o autor lança luzes sobre a questão da suspensão dos direitos políticos, a qual, na ótica dele, já bastaria a forçar a exclusão do agente ímprobo dos quadros da Administração, tendo por mote que o exercício dos direitos políticos é condição inafastável ao exercício de cargo público, pois é pré-requisito exigido por lei (art. 5º, II, Lei 8.112/90) conforme autorizado pela própria CF/88, art. 37, I, “[…] os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei […]”.
Emerson Garcia (2006, p. 466), por sua vez, também entende que a sanção de perda da função pública é ampla e compreende o desfazimento de todos os vínculos que o agente ímprobo mantenha com o poder público, em todas as esferas de governo. Dessa feita, tendo o agente ímprobo cometido um ato ilícito contra a Administração municipal, ainda que esteja ocupando cargo público estadual no momento do trânsito em julgado, deveria ser sumariamente excluído. Nas palavras do autor (grifou-se):
Em razão da mencionada incompatibilidade entre a personalidade do agente e a gestão da coisa pública, o que se tornou claro com a prática do ato de improbidade, deve a sanção de perda da função, quando aplicada, extinguir todos os vínculos laborais existentes junto ao Poder Público. O art. 12, em seus três incisos, fala genericamente em perda da função, que não pode ser restringida àquela exercida por ocasião da prática do ato de improbidade, isto sob pena de se permitir a prática de tantos ilícitos quantos sejam os vínculos existentes, em flagrante detrimento da coletividade e dos fins da lei. […] Assim, é irrelevante que o ilícito, verbi gratia, tenha sido praticado em detrimento de um ente municipal e o agente, por ocasião da aplicação da sanção, mantenha uma relação funcional com a administração estadual, pois a dissolução deverá abranger todos os vínculos mantidos com o Poder Público, designativo que abrange os sujeitos passivos dos atos de improbidade.
Por outro lado, a corrente minoritária da doutrina opta pela interpretação restritiva, limitando a perda da função pública àquela na qual o agente público efetivou o ato ilícito. Tendo havido mudança de cargo público ou função, seria descabido determinar a perda da nova posição ocupada, porquanto os dispositivos constitucionais e legais preveem que o ato de improbidade administrativa importará a perda “da” função pública, e não “de” função. O detalhe é percebido por Daniel Amorim e Rafael Carvalho (2018, p. s/nº):
Para parcela minoritária da doutrina, a perda da função pública será limitada àquela função exercida pelo agente público no momento da prática do ato de improbidade administrativa. Afirma-se que essa foi a opção do legislador ao prever a perda “da” função pública e não “de” função pública, sendo, ademais, impossível uma condenação genérica e eventual, a colher o agente público no momento de seu trânsito em julgado.
A mesma posição é compartilhada por José Roberto Pimenta Oliveira (2009, p. 298-299), Carlos Alberto de Salles (2010, p. 166-168).
Convenha-se, ambas as posições detêm argumentos plausíveis.
A posição doutrinária majoritária pela decretação da perda de qualquer função pública, que esteja sendo ocupada no momento do trânsito em julgado da condenação por ato de improbidade administrativa, leva em conta o fato de que o agente público ímprobo seria desprovido de capacidade moral para ser mantido em qualquer cargo público, seja qual for o ato cometido no passado, escorando-se na robustez da interpretação teleológica.
Busca-se, assim, livrar a sociedade do agente público que desrespeitou os princípios constitucionais da Administração pública, com base nos fins almejados pelo legislador ao editar a Lei de Improbidade Administrativa.
De outro vértice, a posição minoritária, ainda que largue em desvantagem por ir de encontro ao anseio punitivista das maiorias na pretensa proteção do patrimônio público, não pode ser ignorada porque é escorada em apurado aspecto técnico e favorece as garantias individuais.
Sabe-se que a interpretação textual da lei, não obstante ser reconhecida como o modo mais “pobre” do exercício da hermenêutica, presta-se, no mais das vezes, a justamente abrandar os excessos interpretativos. Segundo Paulo Nader (2017, p. s/nº):
O elemento gramatical compõe-se da análise do valor semântico das palavras empregadas no texto […] Modernamente, a crítica que se faz a esse elemento não visa, como é natural, à sua eliminação, mas à correção dos excessos que surgem com a sua aplicação. Objetiva-se evitar o abuso daqueles que se apegam à literalidade do texto, com prejuízo à mens legis.
Nessa toada, cabe relembrar que, em matéria de direito punitivo, a interpretação extensiva é amplamente rechaçada, devendo, em regra, adotar-se uma posição restritiva. Nesse sentido, Ivan Rigolin (2012, p. s/nº):
Sendo dispositivos que restringem direitos, somente restritivamente podem ser lidos e aplicados, nos exatos termos escritos na lei, sem a menor possibilidade de se sujeitar a interpretações ampliativas, analógicas, sistemáticas, teleológicas ou finalísticas, históricas, generalizantes ou difusas.
Desse modo, ainda que a corrente minoritária lance mão da interpretação semântico-textual das palavras do texto normativo (a perda “da” função pública, não “de” função pública), não pode ser completamente relegada ao oblívio porque está devidamente fundamentada.
É líquido e certo que a pretensa “defesa de corruptos” encontra resistência em todas as searas da sociedade, nem é isso o que se pretende com o presente debate. Ocorre que a garantia de leis claras e jurisprudência coerente e previsível é direito de todos.
Considerando que o objeto do presente estudo foi amplamente exposto nas linhas anteriores, demonstrar-se-á agora, de plano, a divergência atual e iterativa entre as duas turmas de direito público do STJ.
A 1ª Turma, em suma, filiou-se à corrente doutrinária minoritária, ou seja, entende que o condenado somente deve perder a função pública utilizada para o cometimento do ato de improbidade administrativa. Isso se deve ao fato de as normas de direito sancionatório serem matéria de legalidade estrita, estando, assim, fora da órbita da interpretação extensiva. Observe-se que os arestos são recentes, conforme se extrai da colação infra (grifou-se):
ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PERDA DE FUNÇÃO PÚBLICA. SANÇÃO QUE NÃO ATINGE CARGO PÚBLICO DIVERSO DAQUELE OCUPADO PELO AGENTE PÚBLICO À ÉPOCA PRÁTICA DO ATO DE IMPROBIDADE. 1. A questão controversa cinge-se a saber se a sanção de perda da função pública em razão de atos então praticados na condição de vereador e tesoureiro poderia atingir cargo público efetivo para o qual, por concurso público, o agente foi nomeado posteriormente aos fatos narrados na inicial da ação de improbidade administrativa. 2. A Primeira Turma do STJ orienta-se no sentido de que as normas que descrevem infrações administrativas e cominam penalidades constituem matéria de legalidade estrita, não podendo sofrer interpretação extensiva, motivo pelo qual a sanção de perda da função pública do art. 12 da Lei n. 8.429/1992, ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória, não pode atingir cargo público diverso ocupado pelo agente daquele que serviu de instrumento para a prática da conduta ilícita. Precedentes: AgRg no AREsp 369.518/SP, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 28/3/2017; EDcl no REsp 1.424.550/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 8/5/2017. 3. Agravo interno não provido. (AgInt no REsp 1423452/SP, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 01/03/2018, DJe 13/03/2018)
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. IMPROBIDADE. LITISCONSÓRCIO PASSIVO. DESNECESSIDADE. VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. EXAME. VIA IMPRÓPRIA. ATO CONFIGURADO. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7 DO STJ. INCIDÊNCIA. PERDA DO CARGO. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. 1. O Plenário do STJ decidiu que “aos recursos interpostos com fundamento no CPC/1973 (relativos a decisões publicadas até 17 de março de 2016) devem ser exigidos os requisitos de admissibilidade na forma nele prevista, com as interpretações dadas até então pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça” (Enunciado Administrativo n. 2). 2. Consoante jurisprudência pacificada no STJ, não há litisconsórcio passivo necessário entre o agente público e os terceiros beneficiados com o ato ímprobo. 3. A via do recurso especial é imprópria para a alegação de violação de dispositivo constitucional. 4. Conforme pacífico entendimento jurisprudencial desta Corte Superior, improbidade é ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo, sendo “indispensável para a caracterização de improbidade que a conduta do agente seja dolosa para a tipificação das condutas descritas nos artigos 9º e 11 da Lei 8.429/1992, ou, pelo menos, eivada de culpa grave nas do artigo 10” (AIA 30/AM, Rel. Ministro Teori Albino Zavascki, Corte Especial, DJe 28/09/2011). 5. Hipótese em que, em face das premissas fáticas assentadas no acórdão objurgado, que reconheceu o enquadramento do recorrente nos atos de improbidade administrativa (arts. 10, XII, e 11 da Lei n. 8.429/1992), com a indicação expressa do elemento subjetivo (dolo), a modificação do entendimento firmado pelas instâncias ordinárias demandaria induvidosamente o reexame de todo o material cognitivo produzido nos autos, desiderato incompatível com a via especial, a teor da Súmula 7 do STJ. 6. A teor do entendimento majoritário da Primeira Turma do STJ, a sanção da perda do cargo público, prevista entre aquelas do art. 12 da Lei n. 8.429/1992, não está relacionada ao cargo ocupado pelo agente ímprobo ao tempo do trânsito em julgado da sentença condenatória, mas sim àquele (cargo) que serviu de instrumento para a prática da conduta ilícita. 7. A obrigação de reparar o dano causado ao erário, correspondente ao total das remunerações percebidas pelos parentes dos vereadores que foram nomeados indevidamente para ocupar cargos em comissão, constitui enriquecimento ilícito por parte da Administração, considerando que o serviço público foi desenvolvido. 8. Fixação da multa civil em 3 (três) vezes o valor da remuneração percebida pelo recorrente à época dos fatos. 9. Recurso especial parcialmente provido, na parte conhecida. (REsp 1766149/RJ, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, Rel. p/ Acórdão Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 08/11/2018, DJe 04/02/2019)
Por outro vértice, de forma diametralmente oposta, a 2ª Turma do STJ, filiando-se à doutrina majoritária, julga pela perda de qualquer função pública que esteja sendo ocupada no momento do trânsito em julgado. O fundamento base é a ausência de capacidade moral para continuar integrando os quadros da Administração Pública. Entretanto, ainda que não seja mencionado nas ementas, é óbvia a aplicação de interpretação extensiva em favor da mens legis da Lei nº 8.429/92, mesmo se tratando de direito punitivo. Observe-se (grifou-se):
ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. IMPROBIDADE. PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. SENTENÇA CONDENAÇÃO. TRÂNSITO EM JULGADO. DECLARAÇÃO POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO. MERO CUMPRIMENTO DE DECISÃO JUDICIAL. PRECEDENTES. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. AUSÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE LIQUIDEZ E CERTEZA AO DIREITO POSTULADO. 1. Recurso ordinário em mandado de segurança impetrado contra o ato administrativo que declarou a perda da função pública de servidor público por atenção ao teor de sentença judicial transitada em julgada. O impetrante alega violação do devido processo legal e o abuso de direito. 2. A aplicação da penalidade de perda de função pública, prevista nos arts. 9º, 10º e 11 da Lei n. 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), abrange todas as atividades e vínculos que o agente ímprobo eventualmente possuir com o poder público. 3. “A sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao tempo da condenação irrecorrível” (REsp 1.297.021/PR, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 20.11.2013). No mesmo sentido: REsp 924.439/RJ, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 19.8.2009. 4. Não há falar em violação do devido processo legal, pois o ato administrativo atacado (fl. 12) somente deu cumprimento administrativo à decisão judicial, transitada em julgado, por meio da qual se declarou a perda da função pública. Recurso ordinário improvido. (RMS 32.378/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/05/2015, DJe 11/05/2015)
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. POLICIAL RODOVIÁRIO FEDERAL. COBRANÇA DE PROPINA. PREQUESTIONAMENTO AUSENTE: SÚMULA 211/STJ. PROVA EMPRESTADA. ESFERA PENAL. POSSIBILIDADE. EXISTÊNCIA DOS FATOS. MODIFICAÇÃO DE PREMISSA INVIÁVEL. SÚMULA 7/STJ. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO NÃO CONFIGURADA. PERDA DA FUNÇÃO PÚBLICA. ART. 12 DA LEI 8.429/1992. PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E PROPORCIONALIDADE. SÚMULA 7/STJ. 1. É inadmissível o recurso especial quanto a questão não decidida pelo Tribunal de origem, por falta de prequestionamento. 2. A jurisprudência do STJ é firme pela licitude da utilização de prova emprestada, colhida na esfera penal, nas ações de improbidade administrativa. 3. É inadmissível o recurso especial se a análise da pretensão da recorrente demanda o reexame de provas (Súmula 7/STJ). 4. Inexistente violação dos arts. 458 do CPC e 12, parágrafo único, da Lei 8.429/1992, pois o acórdão recorrido fundamentou adequadamente a imposição da perda de função pública. 5. A Lei 8.429/1992 objetiva coibir, punir e afastar da atividade pública todos os agentes que demonstraram pouco apreço pelo princípio da juridicidade, denotando uma degeneração de caráter incompatível com a natureza da atividade desenvolvida. 6. A sanção de perda da função pública visa a extirpar da Administração Pública aquele que exibiu inidoneidade (ou inabilitação) moral e desvio ético para o exercício da função pública, abrangendo qualquer atividade que o agente esteja exercendo ao tempo da condenação irrecorrível. 7. Não havendo violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, modificar o quantitativo da sanção aplicada pela instância de origem, no caso concreto, enseja reapreciação dos fatos e provas, obstado nesta instância especial (Súmula 7/STJ). 8. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido. (REsp 1297021/PR, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/11/2013, DJe 20/11/2013)
Para ficar claro, o Supremo Tribunal Federal ainda não se manifestou sobre o tema, não havendo sequer tese de repercussão geral em fila de julgamento.
No tangente à nítida e inconciliável divergência entre as Turmas do STJ, o tema urge ser pacificado pela 1ª Seção, órgão competente para temas de direito público, tais como improbidade administrativa. Como se vê, a necessidade de tal debate passa ao largo de mero interesse acadêmico, pois a segurança jurídica obtida pela integridade e coerência da jurisprudência é um dos fins do próprio Estado Democrático de Direito.
CONCLUSÃO
O mote principal do presente estudo foi obter uma resposta ao seguinte problema: é constitucional impor a perda da função pública quando, no momento do trânsito em julgado da ação de improbidade administrativa, o agente público ocupa um cargo diferente daquele no qual cometera o ato ímprobo?
No capítulo 1, expôs-se a força normativa da Constituição e a autoaplicabilidade dos princípios expressos da Administração Pública, a improbidade administrativa e seu cariz constitucional, com especial atenção à sanção de perda da função pública.
Nesse quadrante, é certo que os preceitos constitucionais são normas jurídicas dotadas de efetividade. O Constituinte originário determinou que o ato de improbidade administrativa importa na perda da função pública. Os princípios regentes da Administração Pública, em especial o da moralidade, são autoaplicáveis, entretanto, o aplicador do direito também deve respeito à lei.
No capítulo 2, após a identificação de duas correntes doutrinárias antagônicas, catalogaram-se todas as opiniões encontradas sobre a decretação da perda da função pública por decorrência de ato pretérito de improbidade cometido em cargo público diverso daquele atualmente ocupado pelo agente público.
Como resultado, viu-se que a corrente doutrinária majoritária pela decretação da perda de toda e qualquer função pública que esteja sendo ocupada no momento do trânsito em julgado confere prevalência ao princípio da moralidade em detrimento da lacuna legal da Lei de Improbidade e ainda profere interpretação extensiva a preceito de direito sancionatório, o que contraria princípios de hermenêutica jurídica.
A corrente doutrinária minoritária, por sua vez, faz uma leitura legalista do Texto Maior, com preferência pela interpretação gramatical e semântica, entendendo que a sanção perda “da” função pública não corresponde à perda “de” função pública, privilegia a interpretação restritiva em matéria de direito sancionador.
No capítulo 3, demonstrou-se a atual e iterativa divergência no seio do Superior Tribunal de Justiça (STJ), observando-se que as decisões mais recentes filiam-se à corrente doutrinária minoritária.
A síntese de tudo que foi visto é que ambas as correntes detêm argumentos de peso. É líquido e certo que a pretensa “defesa de corruptos” encontra resistência em todas as searas da sociedade, sendo a doutrina majoritária de fácil aceitação, contando com a suposta prevalência da força normativa da Constituição e dos princípios da Administração Pública, em especial o da moralidade.
Ocorre que a garantia de leis claras e jurisprudência estável e coerente é direito de todos, dentro do que é esperado do Estado Democrático de Direito.
Nesse aspecto, também é lícito conceder crédito a doutrina minoritária, pois ela também tem esteio na Constituição, quando esta prevê a perda “da” função pública, que seria aquela ocupada no momento do ato de improbidade, bem como é pacífica a inaplicabilidade de interpretação extensiva em matéria de direito punitivo, sob pena de ferir-se uma das garantias mais básicas conquistadas pela sociedade em face do poder estatal: o respeito ao princípio da legalidade estrita em matéria sancionatória.
Contudo, atrevendo-se a responder ao questionamento imposto pela problematização, opta-se pela constitucionalidade da corrente doutrinária majoritária, isto é, o agente público condenado por ato de improbidade administrativa deve perder a função pública que ocupa no momento do trânsito em julgado da ação de improbidade, sendo desinfluente ter cometido o ato ímprobo em cargo anterior.
A Constituição é clara ao estabelecer que os atos de improbidade administrativa importarão a perda da função pública e que a Administração Pública é regida pelo princípio da moralidade.
É regra de hermenêutica que, se a Carta Maior não restringiu, não cabe ao intérprete restringir, logo, a mens legis do art. 37, § 4º, só pode ser no sentido de obstar a continuidade do exercício da função pública por agente ímprobo, não importando em qual cargo tenha praticado atos de improbidade administrativa.
Neste vértice, respondendo diretamente ao problema proposto, afirma-se que sim, é constitucional impor a perda da função pública ao agente público condenado por improbidade administrativa ainda que, no momento do trânsito em julgado, ele ocupe cargo diverso daquele no qual cometeu o ato de improbidade.
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[1] Bacharel em Direito pela Faculdade Mater Dei de Pato Branco/PR, Técnico do Ministério Público da União, exercendo a função de Assessor – Nível I, FC-2, junto ao Gabinete nº 01, da Procuradoria da República no Município de Pato Branco desde 3/03/2015, publicação no DOU nº 43, e-mail: ts.gurski@hotmail.com.
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