Análise da decisão do STF relativa ao aborto de anencéfalo à luz das teorias do direito

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar a decisão da legalização do aborto de feto anencéfalo, proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), utilizando-se como fundamento de argumentação teorias positivistas do direito, bem como teoria de vertente preponderantemente social, através de uma postura favorável ao supracitado julgamento.

Palavras-chave: anencéfalo; decisão; autonomia; direito; moral.

Abstract: This study aims to analyze the decision according to legalization of abortion of anencephalic fetus, pronounced by Supremo Tribunal Federal (STF), using as a basis of argument the positivist theories of law, as well as a theory of a slope more social, by a stance of agreeing with the judgment.

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Key-words: anencephalus; decision; autonomy; law; moral.

Sumário: 1. Introdução; 2. Aspectos gerais da decisão do STF; 3. Análise do caso à luz das teorias do direito; Aparente tensão/ conflito entre princípios: a única resposta correta em Alexy e Dworkin e a crítica de Habermas; 4. Aparente tensão/ conflito entre princípios: a única resposta correta em Alexy e Dworkin e a crítica de Habermas; 5. Habermas: a ideia da autonomia com base na teoria discursiva e democrática; 6. A evolução temporal da sociedade e a importância analítica da decisão segundo um romance em cadeia; 7. Luhmann: as contingências e a decisão judicial como fator variável; 8. Direito e Moral: Luhmann, Kelsen e Habermas e o muro entre esses dois sistemas; 9. Positivismo dogmático: a preservação da segurança jurídica à luz do ordenamento jurídico; 10. O movimento feminista e as conquistas de direitos: uma abordagem social a partir da teoria de Wolkmer; 11. Conclusão; 12. Referências bibliográficas.

1. Introdução

O presente artigo objetiva uma análise da recente decisão do Supremo Tribunal Federal, relativa à possibilidade de interrupção legal da gravidez de feto anencéfalo, por meio de fundamentações argumentativas que serão expostas ao longo deste, de forma correlacionada com as teorias jurídicas positivistas.

De fato, em 2012, o STF, em sede de reviravolta jurisprudencial, julgou procedente a legalização do aborto em caso de feto anencéfalo, com o intuito de proteger os direitos e a dignidade da mulher, assegurados pela Constituição Federal. Entendeu, diferentemente de decisões anteriores, não haver, no caso, crime contra a vida, uma vez que o feto não viveria mais de 24 (vinte e quatro) horas.

Ante a intensa repercussão da questão nos meios sociais, face às diferenças de opiniões, trata-se de debate cuja importância se afigura inquestionável. Para formação do posicionamento esposado neste artigo, fundamentar-se-á em consagradas teorias do direito. Visa-se, com isso, a uma análise mais profunda acerca do tema.

2. Aspectos gerais da decisão do STF

O ministro relator, Marco Aurélio, votou pela possibilidade legal de interrupção da gravidez de feto anencéfalo, considerando o pedido da CNTS para avaliar inconstitucional a interpretação dos artigos 124, 126 e 128 do Código Penal, que criminalizam a antecipação forçada do parto, salvo exceções legais.

Para sustentar tal posição, foram propostas diversas argumentações. Dentre estas, destaca-se a prevalência da proteção dos direitos básicos da mulher em detrimento da incolumidade física do feto anencéfalo, vez que este, se sobreviver ao parto, viverá por apenas algumas horas. Destarte, privilegiam-se na hipótese as garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral da mãe.

Restou ressaltado ainda, pela Suprema Corte, que, embora o aborto seja crime contra a vida, no anencéfalo não existe vida possível, de modo que a anencefalia é doença congênita letal, sem cura e sem possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica posteriormente. Trata-se, pois, de uma morte certa. A manutenção dessa gravidez, por sua vez, teria o condão de causar à mãe graves riscos à saúde física e mental.

3. Análise do caso à luz das teorias do direito

Numa abordagem de viés positivista dogmático, as teorias de Hans Kelsen e de Norberto Bobbio visam defender o poder da norma e do ordenamento jurídico, de modo que as decisões deveriam ser feitas tão só com base no Direito, sem dele fugir. Seguindo esse pensamento, a decisão do STF seria ilegítima, ante a ausência de previsão legal de aborto de fetos anencéfalos. Tal pensamento, como se passa a demonstrar, não merece prosperar.

A legalização do aborto de fetos anencéfalos encerra um embate entre princípios constitucionais basilares: o direito à vida e a liberdade/autodeterminação.

 Habermas apresenta uma teoria embasada no discurso (consenso) e na democracia, fundamentando a necessidade da autonomia do indivíduo, para que se preserve sua vida privada e, consequentemente, sua liberdade.

Diante do conflito de princípios acima expostos, Robert Alexy e Ronald Dworkin seguem um caminho próximo, buscando uma explicação plausível: a ponderação, de modo que nenhum dos dois princípios é descartado. Nesse âmbito, Dworkin defende a ideia do romance em cadeia, segundo o qual as decisões judiciais devem ser partes de um romance, como capítulo, obras de uma mesma comunidade personificada.

Luhmann, por sua vez, elucida um pensamento acerca da evolução histórica, da contingência do direito e, assim, do caráter variável da decisão judicial (tal como ocorreu com o STF). Assim, afigura-se plenamente justificável a evolução jurisprudencial e consequente mudança de entendimento da Corte Suprema.

Por fim, o entendimento de Antônio Carlos Wolkmer ratifica o posicionamento aqui esposado, vez que teoria se fundamenta na importância concedida ao movimento feminista, favorável, pois, ao pluralismo jurídico. Visa, assim, tomar como fonte do direito não só a lei, mas também as outras formas de manifestações sociais.

4. Aparente tensão/ conflito entre princípios: a única resposta correta em Alexy e Dworkin e a crítica de Habermas

Observa-se um aparente conflito entre o direito à vida de um feto que não viverá mais de 24 horas e o princípio da dignidade da pessoa humana, amplamente defendido por nossa Constituição Federal. Aqui, é possível destacar uma aparente tensão/colisão de princípios, na qual dois autores consagrados, cujas teorias em muitos pontos se aproximam, abordariam suas teorias: Robert Alexy e Ronald Dworkin.

Dworkin desencadeia uma discussão com base em sua teoria da única resposta correta. Para ele, quando o ordenamento jurídico se encontra em aberto, há a possibilidade de o aplicador do direito atuar construtivamente, tal como o legislador. Essa interpretação construtiva do direito se baseia na ideia da integridade, que posteriormente será melhor retratada, a qual se divide em integridade na legislação (levar em conta os princípios no momento da produção das leis) e integridade no julgamento (tomar em consideração os princípios no momento da decisão judicial).

Ele contrapõe a um modelo de regras outro de princípios, de modo que o sistema jurídico seria então composto de ambos, que constituem as normas (vale explicitar a diferença fundamental em caso de conflito entre regras ou entre princípios: no caso das primeiras, uma é invalidada, sendo totalmente descartada, enquanto, nos segundos, o que tem maior peso prepondera, não sendo o outro invalidado).

Quando existe uma aparente contradição entre princípios, fala-se, para ele, num caso difícil. Este, por sua vez, exige a atuação de um Juiz Hércules, que, com sua sabedoria, paciência e habilidade, é capaz de desfazer essa tensão. Como esse juiz ideal não existe na realidade, é preciso que todos os juízes se inspirem nele e o utilizem como um espelho. Vale ressaltar que o juiz não possui predisposição para agir com discricionariedade, já que ao resolver o caso difícil, ele deve se utilizar de padrões determinados, a fim de que haja previsibilidade e justiça em sua resposta.

Pensando numa abordagem dworkiniana, a decisão judicial no sentido de preservar os direitos da mulher, bem como sua dignidade, em prol do direito à vida do feto, constituiria fruto de um árduo trabalho do juiz. Depois de variados testes de adequação para determinar qual a resposta cabível ao caso, ele foi capaz de desfazer a aparente tensão que havia entre os princípios constitucionais e fazer prevalecer um sobre o outro.

Alexy, no entanto, acredita que Dworkin, ao tão somente distinguir regras e princípios, não se utilizou dos meios suficientes, pois uma teoria dos princípios por si só não tem condições de sustentar a tese da única resposta correta. Ele busca, então, mostrar defeitos da teoria dos princípios através de uma teoria da argumentação jurídica orientada de acordo com o conceito de razão prática, aproximando-se da ideia do consenso alcançado por meio de argumentações, tal como entende Habermas, cuja teoria será mais a frente melhor explicada.

Não obstante essas divergências, Alexy em muito aproveitou a teoria desenvolvida por Dworkin, focando nos princípios e nas tensões existentes entre eles no momento da aplicação. Aquele teórico acredita que, diante de um aparente conflito entre dois princípios, se mesmo após uma análise deles com base na idoneidade- a norma que limita um princípio só pode ser constitucional se favorecer outro- e na necessidade- deve-se analisar se a norma que favorece um princípio é, por outro lado, limitadora de outro princípio-, mostra-se ainda inviável a determinação de qual deles prevalece, deve-se proceder a uma ponderação: determinar-se-á o princípio a ser protegido no caso concreto. Essa técnica representa a aplicação do princípio da proporcionalidade, mais especificamente do princípio da proporcionalidade em sentido estrito.

É possível melhor compreender seus pensamentos acerca da ponderação por meio de suas próprias palavras:

“A lei da ponderação mostra que a ponderação deixa-se decompor em três passos. Em um primeiro passo deve ser comprovado o grau do não-cumprimento ou prejuízo de um princípio. A isso deve seguir, em um segundo passo, a comprovação da importância do cumprimento do princípio em sentido contrário. Em um terceiro passo deve, finalmente, ser comprovado, se a importância do cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não-cumprimento do outro” (ALEXY, 2005, pág. 339-340).

Esse pensamento de Alexy pode ser aproximado da teoria do ordenamento jurídico, de Bobbio, já que para ambos ocorre apenas uma aparente contradição, que pode ser revolvida observando-se o todo. Não obstante, colocando-se em posição contrária aos anteriormente citados, Habermas apresenta diversas críticas à ponderação, afirmando que há um amolecimento dos direitos fundamentais, isto é, uma relativização dos mesmos (Alexy responde a essa crítica fundamentando que não ocorre uma relativização de tais direitos, mas tão somente a observação de um em detrimento de outro no caso concreto), que no direito não existem colisões, tendo visto que estas são automaticamente desfeitas no momento da aplicação, bem como que a técnica ponderativa é irracional, por conceder maior atenção à técnica que ao próprio caso concreto.

Habermas segue, ainda, com suas críticas. Para ele, Alexy sai do sistema do direito, pois a valoração deve ser buscada no campo da moral (crítica que, nesse âmbito, seria igualmente sustentada por Luhmann, ferrenho defensor da autopoiese dos sistemas), além de que o direito não poderia sobreviver com base em respostas relativas, já que o sistema binário do sim ou não é necessário para a produção de decisões judiciais.

5. Habermas: a ideia da autonomia com base na teoria discursiva e democrática

Claro que as ideias habermasianas não serão aqui abordadas tão só com a função de combate à teoria de Alexy, tendo visto até mesmo que esta é de grande importância na fundamentação da resposta dada ao caso aqui abordado: a decisão pela constitucionalidade do aborto de anencéfalo. Dar-se-á, então, continuidade à descrição do caso aqui estudado, ao lado de alguns dos ideais habermasianos ainda não expostos.

O ministro relator diz que obrigar a mulher a manter tal gestação significa desprovê-la do mínimo essencial de autodeterminação, semelhante a uma tortura. Cabe à mulher e não ao Estado sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente privada para escolher entre a manutenção ou não da gravidez, diante de sua autonomia.

Aqui impera a autonomia privada tão defendida por Habermas em sua teoria democrática e discursiva, já que a liberdade, para ele, é a manutenção dos direitos de ordem privada, de modo que a mulher, então, livre, deve estar apta a decidir acerca de valores apenas a ela concernentes, e não ao Estado. O indivíduo precisa ser livre para exercer seus direitos individuais. Ao Estado, desse modo, cabe tão somente o dever de informar e prestar apoio médico e psicológico antes e após a decisão.

A teoria habermasiana, sustentada tanto no princípio democrático como no discursivo, pretende que o conjunto de cidadãos, iguais e livres, cooperantes entre si, através de um discurso racional, forme uma sociedade na qual a legitimidade da soberania popular deve estar estritamente correlacionada com o conceito de legalidade. Nesse sentido, o processo de positivação não pode ser visto separadamente das relações sociais, pois todos precisam crer numa auto-legislação (autocompreensão). “A ideia da autolegislação de civis exige que os que estão submetidos ao direito, na qualidade de destinatários, possam entender-se também enquanto autores do direito” (HABERMAS, 2003, pág. 157). Caso ocorra esse divórcio, pode-se desconfiar da legitimidade do direito.

6. A evolução temporal da sociedade e a importância analítica da decisão segundo um romance em cadeia

Com relação ao Código Penal, que não expressa o caso de anencefalia como autorizador de interrupção de gravidez, o ministro argumenta que nas décadas em que ele foi editado, a medicina não possuía ainda os recursos atuais, que permitem identificar previamente esse tipo de anomalia fetal. Ainda assim, um feto sem potencialidade de vida não pode ser tutelado pela proteção à vida. O ministro destacou ainda que, já naquela época, em vista da proteção da honra e da saúde da mulher, o aborto em gestação decorrente de estupro não era considerado crime, ainda que diante de um feto plenamente viável. Se a proteção a este é passível de ponderação com direitos da mulher, então é inegável essa proteção com relação ao feto anencéfalo.

Nesse âmbito, entende-se ser necessário pautar aqui a ideia de Dworkin relativa à adaptação da decisão judicial ao contexto sócio-temporal, que também se relaciona com sua ideia de integridade do direito. Esta, juntamente com a ideia da justiça e do devido processo legal, constitui a base do pensamento dworkiniano. Tal integridade diz respeito à assunção de um compromisso por parte do governo, que deve estender a todos os cidadãos os padrões de justiça e equidade. Acerca de tal pensamento, elucida o próprio autor:

O direito como integridade pede que os juízes admitam, na medida do possível, que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo, e pede-lhes que os apliquem nos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo as mesmas normas” (DWORKIN, 2007, pág. 291).

A interpretação, em meio a essa concepção de integridade, pode mudar com o tempo, de modo que o que em uma determinada época era tido como incontestável, em outra já pode sofrer críticas. Nesse sentido, Dworkin acredita ser de grande importância a análise das decisões judiciais, haja posto que o direito é um romance em cadeia e as respostas aos casos difíceis acompanham a evolução temporal da sociedade.

Antigamente, em meio a uma concepção distinta acerca do aborto de anencéfalo, os ministros decidiram pela permanência da constitucionalidade dos artigos do Código Penal que criminalizam a antecipação do parto nesse caso de gestação, ao passo que, num novo contexto, após observar repetidamente na sociedade casos relativos a esse tema, bem como mulheres sofrendo riscos de saúde e danos psicológicos em razão da manutenção de uma gravidez que geraria um ser natimorto, os ministros mudaram suas concepções, acompanhando as mudanças sociais, e decidiram pela possibilidade legal de tal interrupção.

A partir disso, ao invés de se pensar aqui numa mudança radical e sem fundamento da ideologia dos ministros, sustenta-se que houve, na verdade, a preservação da ideia do romance em cadeia exposto e defendido por Dworkin. Se esse conceito diz respeito à realização de decisões judiciais de modo uno e contínuo, de forma que cada decisão seja um capítulo de um mesmo romance, obra de um único autor (comunidade personificada), diz-se, aqui, que a decisão contrária a esta proferida em 2002 foi amadurecendo, a ponto de as decisões posteriores serem levadas a um rumo oposto, não obstante ainda fruto dessa mesma comunidade personificada. Esta, ao longo de suas decisões/capítulos, foi capaz de adaptar seus pensamentos ao movimento da história, que mudou as concepções anteriores. Ocorre similarmente às reviravoltas existentes nos romances contemporâneos.

Para Dworkin, ainda, os fatos que permeiam essa decisão e os artigos declarados inconstitucionais devem ser bem interpretados para a produção da decisão judicial, de modo que tal interpretação é construtiva, o que se percebe claramente quando é criada uma nova concepção: a de que, agora, é possível que mulheres em gestação de feto anencéfalo antecipem o parto. Para a produção dessa resposta, entretanto, deve-se fazer um teste de adequação, que consiste na análise metódica de diferentes situações, a fim de escolher aquela que melhor se adequa ao caso concreto e que é, na verdade, a única resposta correta. Esta é fruto de um trabalho árduo do juiz por ele denominado juiz Hércules, como já citado, que deve ser uma inspiração para os outros aplicadores do direito.

7. Luhmann: as contingências e a decisão judicial como fator variável

Em oposição a esse entendimento da única resposta correta, no entanto, Luhmann e Habermas apostam na melhor resposta, dentre várias, para determinado caso concreto, em prol de preservar a segurança jurídica.

Luhmann afirma que, diante das complexidades, o direito evolui no sentido de simplificar os problemas, pacificar a sociedade e preservar a segurança jurídica, através das decisões judiciais. Pensando, então, no caso do aborto de anencéfalo, os problemas relativos às várias mulheres que sofreram riscos graves à saúde e danos psicológicos, o STF buscou simplificar tais problemas, dando a elas uma resposta prospectiva, e preservar os seus direitos relativos à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica e moral.

Em virtude das contingências humanas, a decisão judicial se apresenta como um fator variável, o que é possível notar pelo fato de que, alguns anos atrás, o mesmo caso foi decidido de forma contrária. “Hoje pode estar em vigor um direito que ontem ainda não existia e amanha possível, provável, ou até mesmo certamente não mais vigirá” (LUHMANN, 1985, pág. 11). Aqui é possível observar a similaridade de tal concepção com o pensamento acima fundamentado do romance em cadeia de Dworkin, segundo o qual as decisões acompanham a evolução histórica.

Para Luhmann, tem-se o caráter do direito como uma conquista evolutiva, visto que é com base nos direitos individuais protegidos, como estes acima citados, que as pessoas, cada vez mais, ao desenrolar da história, têm sua liberdade, sua dignidade e sua segurança protegidas na sociedade. É através da luta pela justiça, como no caso das mulheres que recorreram aos tribunais para interromper tal espécie de gravidez, que as pessoas conquistam progressivamente seus direitos na sociedade.

8. Direito e Moral: Luhmann, Kelsen e Habermas e o muro entre esses dois sistemas

O ministro destacou o caráter laico do Estado brasileiro previsto na Constituição de 1891, de modo que a interrupção de gravidez de feto anencéfalo não pode ser examinada sob ponto de vista de morais religiosas. Com relação a essa separação entre Direito e Moral, algumas teorias podem ser aqui analisadas, de forma dialogada entre si.

Luhmann, a partir de sua Teoria Sistêmica, fala ainda da importância da separação entre direito e moral, permitindo ao direito atuar com maior liberdade. Isso se baseia no caráter autopoiético dos sistemas em sua teoria, de modo que um sistema não pode interferir no outro. Nesse sentido, o STF não precisa se perguntar se é moral ou não a prática do aborto de anencéfalo, devendo agir somente com base em preceitos jurídicos. Deve-se ressaltar, no entanto, que a posição aqui defendida diz respeito à preservação dos preceitos morais no momento da decisão judicial, tal como entendem Dworkin e Alexy.

É possível tecer uma relação de Kelsen com Luhmann, no âmbito dessa separação entre direito e moral. Percebe-se a existência de uma aproximação entre a Teoria Sistêmica do Direito e a Teoria Pura do Direito, esta última de Kelsen, cujo pensamento será melhor explicitado num tópico específico mais adiante. Em ambas, o direito deve ser visto separadamente dos preceitos morais, de modo que a decisão judicial deve ser independente do campo da moral.

Aproveitando-se da teoria de Luhmann, Habermas posiciona-se desse mesmo modo com relação a essa desintegração entre direito e moral. Esse muro entre esses dois ramos, em Habermas, pode ser relacionado também ao obedecimento ao Direito tendo em vista resguardar a segurança jurídica, a qual é preservada pelo fato de as pessoas saberem que caso não obedeçam à norma, sofrerão uma sanção. Ele tem aqui como base a teoria kantiana: as pessoas obedecem às regras do direito sem se perguntarem quais os motivos, mas simplesmente sabendo que, em caso de transgressão, terão que se submeter a uma sanção, ao passo que obedecem às regras morais em função de sua consciência, porque acham que aquilo é certo.

Tal entendimento no caso aqui apresentado é nítido quando se observa que a questão do aborto de anencéfalo já era a algum tempo discutida, mas, em razão de aspectos morais, tal prática não era tida como legítima. Para Habermas, no entanto, sendo a moral e o direito campos sistêmicos distintos e autônomos, a decisão não pode ser embasada em aspectos morais.

9. Positivismo dogmático: a preservação da segurança jurídica à luz do ordenamento jurídico

A partir desse momento, entraremos no campo de dois positivistas dogmáticos: Hans Kelsen e Norberto Bobbio. Para Kelsen, o direito não precisa ser explicado por outras áreas, mas apenas pelo direito mesmo. Apoiando-se no paradigma da ciência, ele afirma que sem o rigor desta não é possível segurança jurídica, pois é preciso acreditar que todos seguem a regra, a fim de que haja previsibilidade. Nesse sentido, a norma jurídica, produzida pela autoridade jurídica competente, precisa ser respeitada, para que, assim, seja possível que cada um paute sua conduta no que está preestabelecido legalmente.

Sendo assim, a aplicação do direito deve ser feita com base no texto da lei. Não obstante, é importante ressaltar que, ao contrário de Dworkin, para quem a resposta ao caso concreto é uma só, que deve ser descoberta por um juiz Hércules, para Kelsen existe a chamada moldura hermenêutica. A relação entre escalão superior e inferior, como ocorre entre Constituição e lei, ou entre uma lei e uma sentença judicial, é uma relação de vinculação, de maneira que esta, no entanto, nunca é completa, já que há sempre uma margem de livre apreciação. Essa moldura representa, então, as possibilidades de interpretação da norma.

Seguindo, desse modo, o entendimento kelseniano, que tem na norma a base do direito, compreendemos que, com relação ao caso judicial aqui apresentado, ele diria que a observância ao que está previsto no Código Penal é necessária para a segurança jurídica. Não importariam, então, os aspectos morais e religiosos que envolvessem a questão, pois, segundo sua teoria pura do direito, somente os preceitos jurídicos deveriam ser levados em consideração no momento da aplicação. Visando à ordem, aqueles que desobedecessem ao determinado legalmente deveriam ser punidos.

Por outro lado, com uma postura não contrária à de Kelsen, mas complementar, Bobbio lança a teoria do ordenamento jurídico, o qual deveria ser coerente, coeso, uno e completo. Para ele, é no ordenamento que se encontra a sanção, e não na norma em si, dado que existiriam normas sem sanção. Ao observar um caso concreto, não se deve apenas atentar para as normas isoladas, mas para o conjunto de normas que compõem o ordenamento, cujos sentidos se complementam e se mostram essenciais para eliminar as lacunas e as contradições. Acerca dessa acepção da norma como parte de um conjunto, ele fala:

“Se sanção jurídica é só a institucionalizada, isso significa que, para que haja Direito, é necessário que haja, grande ou pequena, uma organização, isto é, um complexo sistema normativo. Definir o Direito através da noção de sanção organizada significa procurar o caráter distintivo do Direito não em um elemento da norma mas em um complexo orgânico de normas” (BOBBIO, 1999, pág. 27).

Analisando-se a questão do aborto de anencéfalo, a simples observância de alguns artigos do Código Penal não seria suficiente para determinar que tal prática é inconstitucional. Seria necessário olhar para o ordenamento em sua totalidade, tal como Bobbio deixa claro no excerto acima aludido.

Para Bobbio, Kelsen põe a norma jurídica como centro do Direito e se esquece do ordenamento jurídico como um todo do qual ela apenas faz parte. No entanto, entende-se que, na verdade, o que Kelsen faz não é desconsiderar o sistema inteiro, mas apenas tomar a norma isolada como o cerne de seu estudo. Sendo ele um constitucionalista, não se pode afirmar que ocorre uma não observação do todo, já que a ideia da pirâmide normativa implica exatamente uma observância à supremacia da Constituição e, portanto, a existência de um sistema escalonado no qual se mostra imprescindível o respeito à organização hierárquica jurídica.

10. O movimento feminista e as conquistas de direitos: uma abordagem social a partir da teoria de Wolkmer

Passando-se para uma análise de envergadura mais social, os pensamentos de Wolkmer acerca do pluralismo jurídico podem contribuir para uma apreciação mais completa a respeito da decisão judicial que permite, agora, o aborto em caso de feto anencéfalo. Sendo ele contrário ao monismo estatal, a observação dos interesses, dos direitos e das necessidades das mulheres gestantes é entendida como a evolução de uma nova cultura jurídica que surge a partir das novas necessidades. Assim, os novos sujeitos – aqui as mulheres – participam da constituição da normatividade jurídica.

No contexto dos movimentos feministas, bem como de suas lutas, a decisão favorável ao aborto de anencéfalo se apresenta como mais uma conquista de direito, após muitas outras referentes, principalmente, à igualdade entre os sexos masculino e feminino. Sendo a mulher autônoma e detentora de seu próprio corpo, ela possui autodeterminação para escolher pela manutenção ou não da gravidez, cabendo tão somente a ela avaliar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, conforme já fundamentado anteriormente pelo ministro relator Marco Aurélio.

Para Wolkmer, o Brasil se incluiria, nesse contexto, no âmbito dos novos movimentos sociais, embora em muitos aspectos ainda sejam predominantes os velhos movimentos sociais, baseados nas divisões de classe. No entanto trata-se da luta por direitos difusos e de minorias, no caso, as mulheres, que sempre tiveram, e ainda têm, sua posição nas decisões políticas e sociais tida como inferior, apesar da constante luta pelos seus direitos e pelo seu reconhecimento como sujeitos de direitos, igualmente aos homens.

11. Conclusão

A análise da decisão do Supremo Tribunal Federal referente ao aborto de fetos anencéfalos à luz dos pensamentos esposados permite concluir pelo acerto da supracitada Corte. A mulher tem direito à autonomia e, consequentemente, à autodeterminação, tal como entende Habermas. Cabe apenas a ela decidir pela manutenção ou não de uma gravidez que gerará um indivíduo sem potencialidade de vida. Sua dignidade, bem como seus direitos individuais, deve ser preservada, conforme garante a Constituição.

Quanto à separação entre direito e moral, como já frisado anteriormente, entende-se ser ela impossível na produção de respostas justas, já que o direito deve ser tido não isolado dos outros campos, mas com eles trabalhado conjuntamente. Levar em conta tão somente a lei isolada implica desconsiderar, às vezes, aspectos éticos, bem como várias outras disciplinas que podem atuar positivamente ao lado do ramo do direito.

Nesse sentido, as teorias de Robert Alexy e Ronald Dworkin, que concedem aos princípios grande importância e que pensam no direito de modo vinculado com a moral, apresentam argumentações basilares na fundamentação da decisão aqui analisada, já que os ministros do STF, para proferir seus votos, não levaram em conta apenas a lei isolada, mas também variados princípios favoráveis à liberdade da mulher.

 

Referências bibliográficas
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2ª edição, 2003, pp. 113-168.
ALEXY, Robert. Doutrina Internacional: direitos fundamentais, ponderação e racionalidade. Revista de Direito Privado, nº 24, outubro/dezembro, 2005, São Paulo, RT, pp. 334-344.
BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ª edição, 1999, pp. 19-70.
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2ª edição, 2007, pp. 271-331.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 6ª edição, 1998, pp. 79-91.
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985, pp. 7-42.
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: Fundamento de uma nova cultura do Direito. São Paulo, Editora Alfa Ômega, 3ª edição, 2001, pp. 119-168; 235-283.
DIMITRUK, Erika Juliana. O princípio da integridade como modelo de interpretação construtiva do Direito em Ronald Dworkin. Disponível em <http://web.unifil.br/docs/juridica/04/Revista%20Juridica_04-11.pdf >.
ALEXY, Robert. Sistema jurídico, princípios jurídicos y razón práctica. Disponível em <http://www.biblioteca.org.ar/libros/141737.pdf>.

Informações Sobre o Autor

Laís Nunes de Oliveira

Bacharel em direito pela UFPI. Aprovada nos concursos de analista judiciário do TRE GO/2015 e Procurador do Estado do Amazonas/2016


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Equipe Âmbito Jurídico

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