Resumo: As alterações trazidas ao parágrafo único do artigo 9º do Código Penal Militar visavam colocar o militar perante o Tribunal do Júri, no cometimento do homicídio doloso contra civis. Entretanto, tal dispositivo produzido dentro de um contexto social brasileiro conturbado, revelou ser equivocado, conduzindo o operador do Direito, por vezes, a impropriedades jurídicas. Considerado por muitos como inconstitucional, não retira a natureza militar desse delito. [1]
Palavras-chave: Militar. Homicídio Doloso. Vítima Civil.
Abstract: The changes brought to the sole paragraph of Article 9 of the Military Criminal Code aimed at putting the military before the grand jury when they commit intentional murder of civilians. However, this provision produced within a troubled social context in Brazil, proved to be mistaken, leading the operator of the law to, sometimes, do legal improprieties. Even though it is considered by many as unconstitutional, this provision does not deprive the military nature of this crime.
Keywords: Military. Intentional Murder. Civilian Victim.
Sumário: Introdução. 1. Breve histórico. 2. Da inconstitucionalidade. Conclusão.
Introdução
Tratar-se-á, neste artigo, acerca de relevante tema da legislação penal castrense, o qual, surgido num contexto sócio-político voltado para a afirmação dos direitos e garantias proporcionados pela Carta Magna recém promulgada, encontrou, dentro de um contexto de violações de direitos humanos noticiados como sendo de autoria de órgãos de segurança pública à época, a motivação necessária, acrescida pelo apoio de alguns segmentos da sociedade brasileira, para a inclusão do parágrafo único no art. 9º do Código Penal Militar (CPM), causando a partir de então uma gama de consequências que repercutem até os dias atuais no mundo jurídico.
O texto legal que inicialmente inseriu o citado dispositivo no mundo jurídico tratava-o como segue:
“Art. 9 – Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:[…]
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil, serão da competência da justiça comum.”
Nos parágrafos seguintes veremos um breve histórico do surgimento dessa alteração legislativa e sua posterior alteração (bem como outra tentativa de alterá-la, corrigindo-a), além de observarmos como o judiciário tem aplicado tal dispositivo nas situações concretas surgidas a partir de então.
1. Breve Histórico
De constitucionalidade duvidosa, a Lei 9.299, de 07 de agosto de 1996, que introduziu o § único do Art. 9º do Código Penal Militar, coloca o militar diante da Justiça Comum, perante o Tribunal do Júri, na ocorrência dos crimes dolosos contra a vida de civis.
Tal dispositivo foi produzido sob a pressão do clamor popular e a partir da insistência da mídia nacional e internacional, que veiculava costumeiramente e já há algum tempo, situações de violência contra civis envolvendo casos de lesões corporais e homicídios.
Tais situações teriam ocorrido principalmente em São Paulo e Rio de Janeiro no início dos anos 90, denominados à época como “chacinas”, sendo sua responsabilidade atribuída a policiais militares.
É nesse contexto que surge o Projeto de Lei nº 2.801/92 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1992), de autoria da Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava, à época, o extermínio de crianças e adolescentes, sendo seus signatários os Deputados Rita Camata, Fátima Pelaes e Laerte Bastos.
Como justificativa, ao final do documento os citados congressistas afirmaram o seguinte:
“Dos trabalhos levados a cabo pela Comissão de Inquérito destinada a investigar o extermínio de crianças e adolescentes, e consolidados em seu relatório final, surge a constatação de que o julgamento de policiais militares envolvidos com o extermínio é muitas vezes permeado pelo corporativismo, que gera verdadeiro sentimento de impunidade aos criminosos fardados.
Assim, contamos com nossos Pares, no sentido de remeter a Justiça comum o julgamento, em tempo de paz, de crimes que de “militares” nada têm.” (grifo no original)
Assim, ocorreu esse relevante reflexo para a legislação penal militar: a inclusão do parágrafo único no artigo 9º do Código Penal Militar, sendo considerado por muitos eivado de inconstitucionalidade, pairando para outros a dúvida acerca da natureza do delito: se militar ou comum.
2. Da Inconstitucionalidade
A discussão acerca da constitucionalidade do referido dispositivo não demorou a surgir. Apenas treze dias após sua promulgação, já surge o PL 2.314/96 (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1996), diante da Exposição de Motivos nº 475/96 do então Ministro Justiça Nelson Jobim, a qual gerou a Mensagem 779/96 do então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso ao Congresso Nacional, cuja finalidade buscava, em suma, a correção de “defeitos evidentes” da Lei 9.299/96.
Dentre esses “defeitos” o Sr Ministro cita o vício de constitucionalidade referente à afronta ao art. 124 da CF, a não abrangência do delito de lesões corporais contra civis e outras “impropriedades redacionais”, que poderiam causar uma “insegurança jurídica” referente à competência para a apuração do delito, desde sua fase inquisitorial.
Assim, conforme aquele Ministro, bastaria que os delitos aqui almejados tivessem sua natureza militar descaracterizada, o que poderia ser feito pela legislação infraconstitucional sem afrontar a Carta Magna. Tal alteração então sugerida por meio deste PL (arquivado em 17 de fevereiro de 2003) foi a seguinte:
“Não constituem crimes militares o homicídio (art. 121 do Código Penal) e a lesão corporal (art. 129 do Código Penal) cometidos contra civil por oficiais e praças das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, dos Estados e do Distrito Federal, no exercício de função de policiamento.”
Tal afronta à Carta Magna ocorreria na medida que a alteração trazida pela Lei 9.299/96 (norma infraconstitucional) estaria invadindo competências delimitadas por dispositivos da CF, como podemos observar nos dizeres de Célio Lobão:
“O parágrafo único do art. 9º, de conteúdo processual penal militar, ao proclamar, na região árida da inconstitucionalidade, que compete à justiça comum processar e julgar os crimes militares contra a vida praticados por militar contra civil, evidentemente, violentou as normas expressas nos arts. 124 e 125, § 4º, da Constituição. Inconstitucionalidade cristalina.” (LOBÃO, 2006, p.137)
Da mesma forma trata Jorge César de Assis ao discorrer acerca da inconstitucionalidade da supracitada lei desde sua edição:
“Desde sua edição nos posicionamos contra a Lei 9.299/96, por considerá-la inconstitucional.[…]
Naquela época, procuramos demonstrar de uma maneira simples a inconstitucionalidade da norma, já que a competência da Justiça Militar é constitucional, a da Justiça Federal, ampla, prevista no art. 124: processar e julgar os crimes militares definidos em lei não importando quem seja o autor, que poderá ser o civil e, a dos Estados e do Distrito Federal, restrita, prevista por ocasião da lei no § 4º do art. 125, processar e julgar nos crimes militares definidos em lei, apenas policiais e bombeiros militares.[…]
A bem da verdade, a Lei 9.299/96 operou, pela via ordinária, verdadeiro deslocamento de uma competência estabelecida pela própria Constituição.” (ASSIS, 2007, p.153)
Corroborando tal entendimento, o Exmo. Sr. Ministro do Superior Tribunal Militar (STM), o General de Exército Fernando Sérgio Galvão, em visita ao Comando Militar do Sul, em agosto do corrente ano, ministrou palestra a Oficiais e Praças, tendo como objetivos comentar casos julgados no STM e realizar orientações.
Cumprindo esse objetivo, o eminente Ministro destacou a opinião daquela Egrégia Corte a respeito da aplicação do § único do Art 9º do Código Penal Militar, deixando clara a inconstitucionalidade da norma perante aquele Tribunal Castrense.
Destacou ainda que a Lei 12.432/11 alterou o § único do Art 9º do Código Penal Militar ao delimitar a competência da Justiça Militar da União para julgar os crimes dolosos contra a vida praticados contra civis no contexto do Art 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, alterado pela Lei 9.614/98 (Lei do Abate):
“Art. 303. A aeronave poderá ser detida por autoridades aeronáuticas, fazendárias ou da Polícia Federal, nos seguintes casos:
I – se voar no espaço aéreo brasileiro com infração das convenções ou atos internacionais, ou das autorizações para tal fim;
II – se, entrando no espaço aéreo brasileiro, desrespeitar a obrigatoriedade de pouso em aeroporto internacional;
III – para exame dos certificados e outros documentos indispensáveis;
IV – para verificação de sua carga no caso de restrição legal (artigo 21) ou de porte proibido de equipamento (parágrafo único do artigo 21);
V – para averiguação de ilícito.
§ 1° A autoridade aeronáutica poderá empregar os meios que julgar necessários para compelir a aeronave a efetuar o pouso no aeródromo que lhe for indicado.
§ 2° Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada.
§ 3° A autoridade mencionada no § 1° responderá por seus atos quando agir com excesso de poder ou com espírito emulatório.” (grifo nosso)
“Código Penal Militar
Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: [..]
Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303 da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 – Código Brasileiro de Aeronáutica.” (grifo nosso)
Assim, nesse caso específico, não pairam dúvidas de que tal delito será julgado exclusivamente pela Justiça Militar da União, sendo os demais casos submetidos á apreciação de inconstitucionalidade da norma pela via incidental.
Quanto ao julgamento dos homicídios dolosos contra a vida de civis praticados pelos militares estaduais, a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, veio a dirimir as dúvidas quanto a sua submissão ao Tribunal do Júri, disciplinando o art. 125 da CF nos seguintes termos:
“§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.” (grifo nosso)
Entretanto, apesar do esforço dos legisladores e operadores do Direito hodiernos em reparar o equívoco praticado há mais de 16 anos, pairam ainda em alguns expoentes a dúvida acerca da natureza do delito de homicídio doloso praticado por militar contra civil: é crime militar ou não?
Para ilustrar tal controvérsia, trazemos à lume recente decisão do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo, julgando o Recurso em Sentido Estrito nº 1.021/12, datado de 15 de maio de 2012. Sua ementa é a seguinte:
“POLICIAL MILITAR – Recurso em Sentido Estrito – Apelo ministerial requerendo o envio dos autos do IPM à Justiça Comum nos termos do § 2º do art. 82 do CPPM – Exame efetuado pela Justiça Militar que reconheceu inexistir crime militar doloso cometido contra a vida de civil – Legislação que prevê o encaminhamento dos autos apenas quando do reconhecimento da existência de crime – Decisão proferida pela Justiça Militar no pleno exercício da sua competência – Controle exercido pelo Ministério Público sobre a atividade policial que não é afetado pela referida decisão – Recurso que não comporta provimento.”
Em suma, o representante do Ministério Público do Estado de São Paulo interpôs o citado Recurso por não se conformar com a decisão proferida pelo Juiz de Direito da 1ª Auditoria Militar, nos autos do Inquérito Policial Militar nº 62.774/11, que indeferiu sua remessa à Justiça Comum, por entender ser daquela Auditoria a competência para dizer se há ou não crime militar doloso contra a vida de civil, buscando a reforma da decisão com a finalidade de que os autos fossem encaminhados ao Tribunal do Júri, reconhecendo-se a inexistência de crime militar e, consequentemente, a incompetência da Justiça Militar Estadual para conhecimento e arquivamento de feitos dessa natureza, a despeito do reconhecimento de uma causa de exclusão de ilicitude.
Ocorre que o Egrégio Tribunal Militar Paulista, além de indeferir o pleito daquele Ministério, por considerar a Justiça Militar Estadual plenamente competente para apurar a existência ou não de crime doloso contra a vida de civil, praticado por policial militar, ainda lecionou sobre a controvérsia trazida pelo tema aqui tratado, corroborando acerca da constitucionalidade da citada Lei e da natureza do delito aqui tratado:
“Por outro lado, cabe ainda mencionar que a Lei nº 9.299/96 gerou inúmeras dúvidas e discussões a respeito da sua constitucionalidade, do âmbito da sua aplicação e, em especial, sobre a natureza do crime ali tratado ter deixado ou não de ser militar, o que leva até hoje alguns a defenderem equivocadamente o entendimento de que o crime doloso contra a vida cometido por militar contra civil, em situação de serviço, tornou-se uma infração penal comum.”
Faz-se interessante ressaltar ainda o que lecionou aquela Corte, nos dizeres de seu relator o Exmo. Dr. FERNANDO PEREIRA, sobre as alegações daquela CPI constituída na década de 90 anteriormente citada, versando sobre eventual “corporativismo” da Justiça Militar:
“De qualquer forma, transcorridos mais de quinze anos desde então, essa modificação permitiu que fosse desmentida a tese de que o corporativismo levava à absolvição dos acusados nesses casos, uma vez que o índice de condenações nos Tribunais do Júri vem sendo inferior ao registrado anteriormente na Justiça Militar.
Da mesma maneira, desmistificou a absurda idéia em relação a qual uma pessoa ao se determinar a praticar um crime, tem o seu pensamento condicionado a praticá-lo ou não de acordo com o órgão que irá julgá-lo. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA MILITAR DO ESTADO DE SÃO PAULO – Recurso em Sentido Estrito nº 1.021/12, 15 de maio de 2012).”
Corroborando tal entendimento acerca da natureza do delito, encontramos o supedâneo de Célio Lobão e Jorge César de Assis, respectivamente:
“Ao crime doloso contra a vida acrescenta-se, à descrição típica, um plus que, na espécie, é local do crime sob administração militar ou a condição de militar em serviço do sujeito ativo. Se o fato delituoso se amolda à descrição típica e atende aos requisitos das alíneas b e c do inciso II, do art. 9º, evidentemente o crime é militar e esse crime, nos termos dos arts. 124 e 125, § 4º, da Constituição, é da competência da Justiça Militar federal e estadual, respectivamente, sendo defeso à legislação ordinária, sem atropelar a Lei Maior, transferir esse delito da competência da Justiça castrense para a comum. (LOBÃO, 2006, p.137).”(grifo nosso)
“Não de pode dizer que a Lei 9.299/96 revogou o crime militar doloso contra a vida, fosse essa a intenção do legislador, melhor teria sido simplesmente retirar o art. 205 do CPM. Por isso, ela não é exclusória da condição militar do crime de homicídio doloso. (ASSIS, 2007, p.153).” (grifo nosso)
“Nem a Lei 9.299/96, nem a EC 45/04 retiraram a natureza militar do crime de homicídio, operando apenas um deslocamento de competência de questionável técnica jurídica.” (ASSIS, 2007, p.166). (grifo nosso)
Conclusão
O dispositivo constitucional que reconhece a instituição do Júri prevista no art. 5º, XXXVIII da CF/88, com a competência que lhe é específica constante na letra d, trata dos delitos dolosos contra a vida como regra geral, coexistindo de forma fraterna com o art. 124 da mesma Carta, que trata especificamente dos delitos militares, ou seja, a exceção.
Assim, diante dessa irmandade pacífica, não se aventa hipótese de controvérsia entre tais dispositivos previstos pelo legislador constituinte originário, pois podem coexistir princípios gerais e específicos, representados no presente caso pelo princípio geral da Instituição do Júri, de um lado, e pelos princípios específicos da Justiça Militar, de outro. Neste sentido, ninguém tem dúvidas de que se manteve sob julgamento da Justiça Castrense da União o delito doloso contra a vida praticado contra militar federal, seja o agente militar, seja civil. Enfim, reconhece-se tal exceção.
Tanto é verdade que o legislador constituinte posterior, ao querer esmiuçar a competência do Júri aplicável ao militar estadual, adequou o art. 125 que trata dos Tribunais e Juízes dos Estados, moldando seu § 4º de acordo com a especificidade pretendida para estes militares.
De todo o exposto, podemos concluir que não poderia, sob qualquer pretexto, o legislador ordinário à época alterar as competências fixadas pela Constituição Federal, criando dispositivo infraconstitucional tão equivocado como é a Lei 9.299/96, que serviu unicamente, desde sua promulgação, para fazer florescerem conflitos processuais, cuja maior vítima tem sido a Justiça Militar Estadual.
Oficial do Exército Brasileiro. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, Brasil. Especialista em Aplicações Complementares às Ciências Militares. Ocupa o cargo de Adjunto da Divisão Jurídica do Comando da 3ª Região Militar
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