Nome da autora: Daniela Matos Oliveira dos Reis, Bacharela em Direito pelo Centro Universitário AGES – UniAGES, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Faculdade Venda Nova do Imigrante – FAVENI. E-mail: danyelajesus@hotmail.com.
Resumo: O presente estudo tem como fito analisar se o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD) respeita os mandamentos constitucionais, e se sua aplicação cumpre com a função ressocializadora da sanção. Para tanto, através do método dedutivo, explora-se a teoria da pena adotada no ordenamento jurídico pátrio, bem como os fundamentos jurídicos e legais dos princípios constitucionais. Este trabalho apresenta ainda, uma breve exposição acerca dos caminhos percorridos pelo RDD, e sobre as hipóteses de incidência da sanção. O objeto do estudo (Regime Disciplinar Diferenciado) é confrontado, em particular, com os princípios da legalidade, proporcionalidade e humanidade, a fim de que se possa demonstrar sua incongruência com os valores jurídicos presentes no ordenamento doméstico. Ultrapassada a visão geral do instituto, bem como sua alocação no sistema jurídico, busca-se perquirir as consequências do regime advindas de sua aplicação, demonstrando, com isso, que tais condições de aplicabilidade não permitem a efetivação da finalidade integradora da sanção. Diante das teorias e dos princípios apresentados, este estudo conclui que o RDD afronta os mandamentos constitucionais, e não cumpre com o fim ressocializador da sanção, diante do seu caráter cruel e desumano, sendo, portanto, incompatível com os ideais do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Regime Disciplinar Diferenciado. Execução Penal. Princípios constitucionais. Ressocialização.
Abstract: This study aims to analyze whether the Differentiated Disciplinary Regime respects the constitutional commandments, and whether its application fulfills the sanction’s resocializing function. For that, through the deductive method, it explores the theory of penalty adopted in the national legal system, as well as the legal and legal foundations of the constitutional principles. This work also presents a brief exposition about the paths taken by the regime, and about the hypotheses of the sanction’s incidence. The object of the study (Differentiated Disciplinary Regime) is confronted, in particular, with the principles of legality, proportionality and humanity, in order to demonstrate its incongruity with the legal values present in the domestic system. Once the general vision of the institute has been surpassed, as well as its allocation in the legal system, we seek to investigate the consequences of the regime arising from its application, thus demonstrating that such applicability conditions do not allow the sanction’s integrative purpose to be carried out. Given the theories and principles presented, this study concludes that the RDD affronts the constitutional commandments, and does not comply with the resocializing purpose of the sanction, given its cruel and inhumane character, and is therefore incompatible with the ideals of the Democratic State of Law.
Keywords: Differentiated Disciplinary Regime. Criminal execution. Constitucional principles. Resocialization.
Sumário: Introdução. 1. Os caminhos do regime disciplinar diferenciado: por uma trajetória histórica e suas aplicações. 2. Os princípios constitucionais e o regime disciplinar diferenciado. 2.1 Princípio da legalidade. 2.2 Princípio da proporcionalidade. 2.3 Princípio da humanidade. 3. O regime disciplinar diferenciado e a ressocialização do apenado. Conclusão.
A edição da lei nº 10.792, de 2003, instituiu no Brasil o regime disciplinar diferenciado (RDD), trazendo diversas alterações na lei de execução penal (LEP). A instituição da sanção teve como objetivo impedir as ações dos organismos criminosos, que surgiram dentro das penitenciárias, sendo compostos por presos especializados no crime, cuja atuação ocorre dentro e fora do cárcere.
O RDD desde seu surgimento desencadeou inúmeras críticas, por ser considerado uma medida extremada da execução, que impõe ao apenado o isolamento prolongado, a incomunicabilidade, extirpa quase por completo o contato físico entre outras severas medidas, que demonstram uma normatividade altamente repressora, muito peculiar de regimes totalitários.
Ao lado disso, a implementação do RDD acabou por gerar a incredulidade na capacidade do Estado em lidar com a criminalidade, haja vista que sua principal resposta para o desvio de conduta – a pena privativa de liberdade – cuja finalidade é retirar o sujeito do seio social e impedir a delinquência, não cumpriu com seus propósitos, vez que sob o domínio estatal os apenados organizaram e estruturam o crime, tendo o poder de comando dentro e fora das unidades penitenciárias.
Diante desse cenário, cabe tecer os seguintes questionamentos: a) se a pena de prisão que é notoriamente menos rígida que o RDD não tem atendido a seus desígnios, especialmente, o de evitar a delinquência (reeducar), é possível que o RDD favoreça para harmônica integração do apenado? b) O RDD honra os mandamentos constitucionais? Foi buscando responder a tais indagações que surgiu o presente trabalho.
Para cumprir com o proposto, este trabalho fará uma breve exposição acerca dos caminhos percorridos pelo RDD; analise das hipóteses de cabimento da sanção; avaliará o RDD a partir da ótica dos princípios constitucionais e examinará as consequências da sua aplicação à sombra da finalidade ressocializadora da sanção.
A temática escolhida se mostra relevante para a sociedade, pois por ser a destinatária final da proteção do Estado, tem interesse em saber se o RDD cumpre com a finalidade a que se propõe e, sobretudo, se atende ao objetivo ressocializador da sanção. Há relevância também para o operador do direito, pois por ter a responsabilidade de aplicar o RDD, precisa de análises mais aprofundadas acerca do instituto, a fim de garantir uma correta aplicação do direito.
Neste trabalho foi empregado o método de abordagem dedutivo, pois partiu-se da teoria para analisar o RDD. A pesquisa foi qualitativa, eis que a partir de estudos completos se chegou a uma interpretação acerca da temática. Quanto à técnica de pesquisa, valeu-se da bibliográfica, dado que se utilizou livros, leis, julgados, resoluções, relatórios, dissertações, artigos, revistas e jornais.
A primeira experiência com o RDD surgiu em resposta à megarrebelião ocorrida no Estado de São Paulo no início de 2001. O conflito envolveu 25 unidades prisionais da Secretaria da Administração Penitenciária e 04 cadeias sob a responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública do Estado, tendo por motivação não somente a denúncia das deficiências do sistema prisional, mas, sobre forte influência de organismos criminosos. Estes responderam às ações governamentais que visavam dissuadir o Primeiro Comando da Capital (PCC) ao transferir seus principais chefes para a Casa de Custódia de Taubaté, considerada uma prisão com regras extremamente severas (CARVALHO; FREIRE, 2007).
Como consequência da rebelião, a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo editou a resolução nº 26, em 04 de maio de 2001, que regulamentou a inclusão, permanência e exclusão de presos no RDD. De acordo com o art. 1º da referida resolução, o RDD se destinava aos líderes e integrantes de facções criminosas e para os presos cujo comportamento exigisse um tratamento específico.
O preso submetido ao RDD ficava isolado por 180 dias na primeira inclusão, e nas demais vezes, por 360 dias, tendo direito “a saída da cela para banho de sol, de no mínimo, uma hora por dia” e “duração de 2 horas semanais para visitas” (art. 4º e 5º, II, IV da resolução 26/01). Para inclusão do apenado era exigido que o Diretor Técnico, em petição fundamentada, solicitasse perante o Coordenador Regional das unidades prisionais, que, concordando, encaminharia o pedido ao Secretário Adjunto, para decisão final (art. 2º, da resolução nº 26/01).
O processo de normatização de restrições aos direitos do preso em São Paulo, por meio de atos administrativos estaduais, tiveram seguimento, sendo editada no mês de julho de 2002, a Resolução nº 49, cuja finalidade era limitar o direito de visita e entrevistas dos presos em RDD com seus advogados (CARVALHO; FREIRE, 2007).
Com o intuito de ampliar a área de incidência do RDD no Estado, a Secretaria de Administração penitenciária de São Paulo, editou a Resolução nº 59, instituindo a sanção no Complexo Penitenciário de Campinas – Hortolândia. A referida resolução previa a aplicação do RDD não apenas para os condenados, mas também para os presos provisórios, quando praticassem crime doloso, ou quando apresentassem alto risco para ordem e segurança do estabelecimento prisional (art. 1º e 2º).
Essa iniciativa administrativa criada pelo Estado de São Paulo para conter as rebeliões e manter a disciplina dentro das unidades penitenciárias, foi copiada pelo Estado do Rio de Janeiro, quando ocorreu uma rebelião no Presídio de Bangu I, cuja liderança fora atribuída à Fernandinho Beira-Mar. Imediatamente após o término desse movimento, os líderes foram isolados e o restante dos participantes foram colocados no Regime Especial de Segurança (RDES). Logo após esse ocorrido, a Secretaria da Administração Penitenciária do Estado reeditou o RDES, tendo universalizado a medida por todo território estadual (CARVALHO; FREIRE, 2007).
A partir dessas iniciações das secretarias de administração penitenciária do Estado de São e do Rio de Janeiro, fortemente apoiadas pela mídia, o Parlamento foi incitado a universalizar o RDD. No entanto, o elemento que falta para implantação da medida ocorreu com a morte de dois magistrados de Varas de Execuções Criminais, em 14 de março de 2003 em São Paulo, e 24 de março em Vitória (ES), cuja autoria fora atribuída a Fernandinho Beira-Mar (CARVALHO; FREIRE, 2007).
Diante desse cenário, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, enviou ao Congresso Nacional o projeto de lei nº 5073, que alterava dispositivos da LEP para, entre outras mudanças, permitir que presos de alta periculosidade fossem submetidos ao RDD. O referido projeto, em dezembro de 2003 foi transformado na lei nº 10.792, que foi devidamente aprovada e sancionada, instituindo, então, o RDD no ordenamento jurídico (COSATE, 2007).
Com as alterações promovidas pela lei nº 10.792/03 foi instituído o RDD no art. 52 da LEP, tendo o referido artigo sofrido algumas alterações com o advento do Pacote Anticrime (lei nº 13.964/19).
De acordo com a LEP, o RDD consiste em uma espécie de sanção disciplinar, cuja aplicabilidade se dá em caso de cometimento das faltas previstas taxativamente no art. 52 da referida lei, estando sujeitos à sanção os presos nacionais ou estrangeiros, que estejam cumprindo a pena em regime provisório ou definitivo.
As hipóteses de cabimento do RDD não sofreram grandes modificações com o advento do Pacote anticrime, pois só houve a inclusão dos termos “associação criminosa” e “milícia privada” para substituir as expressões “quadrilha” e “bando”.
Segundo a nova redação do art. 52, da LEP, o RDD será aplicado nas seguintes hipóteses: a) quando for praticado crime doloso, que ocasione a subversão da ordem ou disciplina interna; b) quando o preso apresentar alto risco para ordem e segurança do estabelecimento penal ou sociedade; c) quando o apenado tiver sobre si fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, independente da prática de falta grave.
No que se refere ao prazo de duração do RDD, em comparação com a lei anterior, houve duas alterações. Em primeiro lugar, de acordo com a redação de 2003, o RDD tinha duração de 360 dias, podendo ser renovado em caso de cometimento de nova falta grave da mesma espécie, até o limite de um sexto da pena. Atualmente, a duração da sanção passou a ser de no máximo 2 anos, sem prejuízo de repetição por nova falta grave da mesma espécie (art. 52, I, da LEP), porém, não há mais o limite de aplicação até um sexto da pena.
Em segundo lugar, foi introduzido na LEP a possibilidade de prorrogar sucessivamente o prazo de duração do RDD, por períodos de 1 ano, desde que exista indícios de que o preso continua apresentando alto risco para ordem e segurança do estabelecimento penal ou da sociedade; ou quando ainda mantiver vínculos com organização criminosa, associação criminosa ou milícia privada, considerados também o perfil criminal e a função desempenhada por ele no grupo criminoso, a operação duradoura do grupo, a superveniência de novos processos criminais e os resultados do tratamento penitenciário (§ 4º, I, II, art. 52).
O pacote anticrime também promoveu diversas mudanças nas características do RDD, tornando-o ainda mais severo, tendo permanecido imutável da redação de 2003, apenas a previsão de recolhimento em cela individual. Quanto às principais transformações contidas no art. 52, destacam-se: a) a previsão de visitas quinzenais, de 2 pessoas por vez, por até 2 horas, a serem realizadas em instalações equipadas para impedir o contato físico e a passagem de objetos por pessoa da família ou, no caso de terceiro, autorizado judicialmente, a qual será gravada em sistema de áudio ou de áudio e vídeo, e quando for caso de autorização judicial, será fiscalizada por agente penitenciário; b) o direito a saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol, em grupos de até 4 presos, desde que não haja contato com presos do mesmo grupo criminoso; c) a imposição de monitoramento das entrevistas, exceto com o defensor; d) a exigência de fiscalização do conteúdo das correspondências; e) a participação em audiências judiciais preferencialmente por videoconferência, com a garantia de participação do defensor no mesmo ambiente do preso.
Cumpre pontuar, que com o novo regramento estabelecido pelo pacote anticrime, o preso que passar 6 meses no RDD sem receber visitas, poderá optar por realizar contato telefônico, que será gravado, com uma pessoa da família, 2 vezes por mês e durante 10 minutos (§ 7º, art. 52, da LEP).
A execução penal após a edição da LEP passou a ostentar natureza jurisdicional, abandonando a índole administrativa, que em muitas situações não reconhecia o preso como um sujeito de direito. Nesse sentido é o item 12 da exposição de motivos da referida lei, confira-se:
“O Projeto reconhece o caráter material de muitas de suas normas. Não sendo, porém, regulamento penitenciário ou estatuto do presidiário, avoca todo o complexo de princípios e regras que delimitam e jurisdicionalizam a execução das medidas de reação criminal”. (grifo nosso).
Com a jurisdicionalização da execução penal, todas as questões decorrentes do cumprimento da pena passaram a ser apreciadas por um juízo, cuja atuação deve ser pautada pelas regras e princípios constitucionais, dentre estes, destacam-se o da legalidade, proporcionalidade e humanidade, que serão apreciados pelas subseções seguintes.
O princípio da legalidade foi consolidado no art. 5º, XXXIX da Constituição Federal, bem como no art. 1º do Código Penal, que assim dispõe: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.
A LEP, por sua vez, também concretizou o princípio da legalidade no seu art. 2º, quando determinou que a jurisdição fosse exercida em conformidade com seus preceitos e do Código de Processo Penal. Nesse aspecto, está o item 19 da exposição de motivos da referida lei, que assim prescreve: “o princípio da legalidade domina o corpo e o espirito do Projeto, de forma a impedir que o excesso ou desvio da execução comprometam a dignidade e a humanidade do Direito Penal”.
De acordo com Mirabete (2012) o princípio da legalidade preceitua que alguém só poderá ser punido se, anteriormente a conduta praticada, houver uma lei que a considere como crime, mesmo que a conduta seja imoral, antissocial ou danosa, não poderá haver punição, sendo irrelevante a circunstância de entrar em vigor, posteriormente, uma lei que a preveja como crime. Desse postulado se extrai também, que a definição dos crimes e a cominação das sanções devem ser emanadas, exclusivamente, do poder legislativo, através de procedimento estabelecido em nível constitucional, conforme prescreve o princípio da reserva legal, desdobramento do princípio em exame.
Decorre ainda do princípio em estudo, a exigência de não se utilizar expressões vagas, ambíguas e imprecisas ao tipificar as condutas puníveis, pois de tal modo ficará compreensível para o destinatário da norma qual o comportamento é reputado ilícito. Tal exigência, revela-se como uma proteção ao cidadão contra a arbitrariedade estatal, uma vez que impõe limites na interpretação do tipo pelo magistrado. Nesse sentido, profetiza Roxin, confira-se:
“Uma lei indeterminada ou imprecisa e, por isso mesmo, pouco clara não pode proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do ius puniendi estatal, ao qual se possa recorrer. Ademais, contraria o princípio da divisão dos poderes, porque permite ao juiz realizar a interpretação que quiser, invadindo, dessa forma, a esfera do legislativo”. (ROXIN apud BITENCOURT, 2020, p.121).
Ao confrontar as hipóteses de incidência do RDD frente ao princípio da legalidade, observa-se uma flagrante afronta ao referido mandamento, pois o legislador ao elaborar as hipóteses de cabimento da sanção utilizou termos vagos e imprecisos, de modo que se indaga: o que poderia ocasionar a subversão da ordem ou disciplina interna? Qual seria o apenado que apresentaria alto risco para ordem e segurança do estabelecimento penal? O que seriam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organização e associação criminosa ou milícia privada?
Nesse linha vai à análise de Bitencourt, afirmando que o RDD viola o princípio da legalidade:
“É intolerável que o legislador ordinário possa regular de forma tão vaga e imprecisa o teor das faltas disciplinares que afetam o regime de cumprimento da pena, submetendo o condenado ao regime disciplinar diferenciado. O abuso no uso de expressões como “alto risco para ordem e a segurança do estabelecimento penal” ou “recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação” (art. 52, §§ 1º e 2º), sem declinar que ”tipo de conduta” poderia criar o referido “alto risco” ou caracteriza “suspeitas” fundadas, representa, portanto, uma flagrante afronta ao princípio da legalidade, especialmente no que diz respeito à legalidade das penas […]” (BITENCOURT, 2020, p. 126).
Com base no exposto, vê-se que as imprecisões terminológicas contidas nas hipóteses de cabimento do RDD, conferem ao magistrado um ilimitado juízo de valor quanto a sua incidência, podendo acarretar intepretações dúbias e ao arbítrio, o que é inadmissível, principalmente quanto se está diante de uma sanção extremamente severa como o RDD.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, já impunha expressamente a observação a proporcionalidade entre a gravidade do crime praticado e a sanção a ser aplicada. No entanto, a consagração do princípio da proporcionalidade foi feita pelo constitucionalismo moderno, embora já fosse reclamado por Beccaria. (BITENCOURT, 2020).
A Constituição Federal brasileira tratou de forma implícita o princípio da proporcionalidade, podendo isso ser visto em diversos dispositivos, tais como, no mandamento da individualização da pena (art. 5º, XLVI) e na vedação de determinados tipos de sanções penais (art. 5º, XLVII).
No âmbito penal, o princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação presente entre o bem posto em perigo ou lesionado (gravidade do fato) e o bem que pode ser retirado de alguém (gravidade da pena). Tal exigência, é direcionada ao legislador – proporcionalidade em abstrato e ao juiz – proporcionalidade em concreto. (FRANCO apud GREGO, 2017).
De acordo com Cunha (2020) no plano abstrato deve o legislador, ao tornar típica determinada conduta, atentar-se para o liame existente entre o fato e seus resultados, a fim de estabelecer a reprimenda no patamar adequado, não somente para reparar o dano ao bem tutelado, mas também para atender as funções da pena. Nesse aspecto, a proposta de hierarquização das ofensas de bens jurídicos é indispensável para ajustar as escalas penais ao princípio em estudo, por exemplo, as penas por ofensas contra a propriedade não podem ser superiores às penas por lesões contra a vida. (ZAFFARONI apud SANTOS, 2012).
Já a proporcionalidade no plano concreto, dirigida ao julgador, estabelece a necessidade de se observar antes da aplicação da pena, as circunstâncias e as caracteríticas da prática da infração penal, para, somente depois aplicá-la ao caso concreto. (CUNHA, 2020).
Destaca-se que o princípio em exame, impõe aos seus destinatários o dever de proteger os bens jurídicos de grande valia de forma eficiente, isto é, criminalizando as ofensas significantes e aplicando a reprimenda (pena) de forma adequada, sem excesso e nem carência.
Ao examinar as hipóteses de cabimento do RDD a partir da ótica do princípio em estudo, nota-se uma evidente ofensa ao referido mandamento, pois o crime doloso, a exemplo, o homicídio, tem a mesma reprimenda de faltas menos gravosas, como quando o apenado é suspeito de participar de uma organização criminosa, ou quando apresenta risco a segurança do estabelecimento prisional ou sociedade. Salta aos olhos o desequilíbrio entre a gravidade das condutas e a sanção cominada, uma vez que na primeira hipótese se está diante de um crime doloso, enquanto na segunda hipótese a punibilidade é feita com base em suspeitas, veja, não há um fato comprovado, mas apenas desconfianças, além disso, não há uma lesão ao bem jurídico tutelado, mas apenas um possível risco ou ameaça.
A partir da ótica do princípio em estudo é possível analisar ainda, o sopesamento feito pelo legislador ao instituir o RDD, no qual valorou a tutela da segurança pública em detrimento das garantias do indivíduo. O problema, no entanto, não reside no fato de ter sido dado guarida a segurança pública, mas sim, por ter instituído uma sanção que viola diversos mandamentos constitucionais de vital importância, como o princípio da humanidade das penas, que traz o impedimento de aplicação de penas cruéis e degradantes. Assim, fica claro que a proteção ao bem jurídico (segurança pública) não foi feita de forma eficiente, ante a inadequação da reprimenda (RDD) cominada, violando, portanto, o princípio da proporcionalidade.
Zaffaroni (2011, p. 161) entende que do princípio da humanidade “deduz-se a proscrição das penas cruéis e de qualquer pena que desconsidere o homem como pessoa”.
Para Santos (2012) o princípio da humanidade das penas é deduzido da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF), e estabelece a proibição de ser cominada, aplicada e executada penas de morte, perpétuas, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis, como castrações, mutilações, esterilizações ou qualquer outra pena infamante ou degradante do ser humano (art. 5º, XLVII, CF).
Segundo Saldarriaga (apud Bitencourt, 2020), o princípio da humanidade das penas sustenta que o poder punitivo estatal não deve aplicar penas que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico-psíquica dos apenados.
Extrai-se, pois, do princípio em estudo, que a pena não pode atentar contra a dignidade da pessoa humana, isto é, a reprimenda deve respeitar a integridade física, moral e psíquica do apenado, sob pena de ser caracterizada pena cruel e desumana, o que é vedado pela Carta Magna.
Ao analisar o RDD a partir da ótica do princípio em análise, observa-se um flagrante violação, pois o isolamento celular prolongado, sem qualquer limitação temporal para interrupção, afigura-se uma punição cruel e desumana, com potencialidade para destruir a condição físico-psíquica do apenado. Nesse sentido, é a seguinte manifestação:
“O isolamento celular prolongado previsto no RDD, em face dos efeitos destrutivos para a saúde física e mental dos condenados, assume feição de pena cruel, reeditando a velha noção de pena como puro e simples exercício de vingança social. Tem-se, assim, não apenas uma ressignificação da disciplina, mas dos próprios suplícios, em um sistema (ideológico) integrado de maxipunitividade”. (CARVALHO; FREIRE, 2007, p. 279, grifo nosso).
Destaca-se que o RDD além de representar uma reprimenda cruel, ressignifica a pena, adotando a arcaica ideia de vingança absoluta, sem consideração a função ressocializadora da sanção.
Moraes (2011, p. 239) discorrendo acerca da conceituação de penas cruéis, assevera:
“[…] dentro da noção de penas cruéis deve estar compreendido o conceito de tortura ou de tratamentos desumanos e degradantes, que são, em seu significado jurídico, noções graduadas de uma mesma escala que, em todos os seus ramos, acarretam padecimentos físicos ou psíquicos ilícitos e infligidos de modo vexatório para quem os sofre”.
Como vê-se a conceituação de pena cruel é equivalente a noção de tortura, vez que ambas possuem características semelhantes, como o ocasionamento de padecimentos físicos ou psíquicos ilícitos. É justamente tais sofrimentos que o RDD provoca no sujeito, sendo, por isso, considerado também como método de tortura mental. Por esse ângulo disserta a psiquiatra Guanaíra, confira-se:
“A tortura, qualquer que seja o método e objetivo, quem quer que seja o torturador, na essência é acompanhada por duas condições fundamentais: a incomunicabilidade e a impotência da vítima. Quando se mantém uma pessoa totalmente isolada do mundo exterior, sem contato algum com familiares, com seu advogado ou qualquer outra pessoa que não seja seu agressor ou agressores, isto leva a vítima da tortura a sentir-se totalmente à mercê de seu verdugo, sem absoluto controle dos acontecimentos, passando a depender totalmente da vontade do outro. Este contexto é característico da tortura mental e do atual Regime Disciplinar Diferenciado (RDD)”. (AMARAL, 200-).
Comentando acerca das sequelas psicológicas deixadas pela tortura mental empregada pelo RDD, assevera Amaral (200-) “que os aspectos claramente definidos são os estados de ansiedade traumática e reações emocionais alteradas. O aparecimento de quadros depressivos profundos é frequente, com ideias suicidas. Em outros casos aparecem estados de confusão mental, tristeza, angústia, apatia […]”.
Abordando também essa questão, Bitencourt (2020, p.165) afirma que o RDD provoca “a destruição moral, física e psicológica do preso, que submetido a isolamento prolongado, pode apresentar depressão, desespero, ansiedade, raiva, alucinação, claustrofobia e, a médio prazo, psicoses e distúrbios afetivos profundos e irreversíveis”.
Nessa perspectiva, o Conselho Regional de Psicologia da 6ª região emitiu parecer, no sentido de que o RDD ofende o princípio da Constituição Federal que proibi a submissão à tortura, isso porque a referida sanção provoca sofrimentos desmedidos ao preso, podendo gerar ansiedade, depressão, distúrbios psicóticos, automutilação e paranoia.
A partir de tais apontamentos, é possível observar que a tortura empregada pelo RDD causa sérios danos à mente do detento, podendo isso ser visto em um trecho do depoimento de Marcos Willians Herbas Camacho (Marcola) à CPI do Tráfico de Armas:
“Vou falar para o senhor: nesses 6 anos de RDD, eu pensei muitas vezes em suicídio, porque a gente percebia que era uma vida vã, no sentido pessoal. Talvez para os outros presos estivesse havendo uma transformação no sistema, eles achassem: pô, aquele cara… Não é? Mas, pessoalmente, era uma vida inútil, em termos pessoais. Uma vida muito sacrificada”. (Grupo Folha, 2006).
Fica evidente que o RDD destrói psicologicamente o sujeito, violando completamente sua integridade mental, e, consequentemente, avilta contra diversos preceitos constitucionais, em especial, o princípio da humanidade das penas.
Nessa mesma linha de pensamento contrária à imposição do RDD, alguns Tribunais externaram seus entendimentos, no sentido de que a sanção fere a Constituição Federal, em razão de seu caráter cruel, desumano e degradante. Como ilustração colaciona-se os seguintes julgados:
“PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. REGIME DISCIPLILNAR DIFERENCIADO – RDD. LEI 7.201/84, ART. 52, COM REDAÇÃO DITADA PELA LEI 10.792/2003. 1. O Regime Disciplinar Diferenciado viola o preceito constitucional que veda que o preso seja submetido à tortura ou a tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III); infringe a letra e do inciso XLVII do art. 5º, que impede a aplicação de penas cruéis; e o inciso XLIX do mesmo artigo 5º que assegura aos presos respeito à integridade física e moral (entendimento em contrário do Juiz Cândido Ribeiro). 2. O só fato de o paciente ser acusado de ter participado de organizações criminosas, quadrilha ou bando, não implica ter de ser submetido ao Regime Disciplinar Diferenciado – RDD. 3. Inocorrência de cometimento de falta grave do paciente de modo a levar o juiz incluí-lo no RDD. 4. Não pode o juiz incluir o paciente no RDD por tempo indeterminado, pois a lei fixa o prazo máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias, podendo a sanção ser renovada, se houver cometimento de nova falta grave da mesma espécie”. (TRF-1- HC: 28050 MT 2006.01.00.028050-9, Relator: DESEMBARGADORS FEDERAL TOURINHO NETO, Data de julgamento: 24/10¹2006, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: 15/12/2006 DJ p. 20, grifo nosso).
“Habeas Corpus Regime Disciplinar Diferenciado-RDD-Inconstitucionalidade. Ofensa A Princípios Fundamentais Constantes Da Constituição Federal. Ordem Concedida “Independentemente de se tratar de uma política criminológica voltada apenas para o castigo, e que abandona os conceitos de ressocialização ou correção do detento, para adotar “medidas estigmatizantes e inocuizadoras” próprias do “Direito Penal do Inimigo, o referido “regime disciplinar diferenciado” ofende inúmeros preceitos constitucionais. Trata-se de uma determinação desumana e degradante (art. 5°, III, da CF), cruel (art. 5°, XLVII, da CF), o que faz ofender a dignidade humana (art. 1º, III, da CF). Por fim, note-se que o Estado Democrático é aquele que procura um equilíbrio entre a segurança e a liberdade individual, de maneira a privilegiar, neste balanceamento de interesses, os valores fundamentais de liberdade do homem. O desequilíbrio em favor do excesso de segurança com a consequente limitação excessiva da liberdade das pessoas implica, assim, em ofensa ao Estado Democrático”. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. HC nº 893.915-3/5-00 /SP. Primeira Câmara de Direito Criminal. Relator: Marcos Antônio Rodrigues Nahum, grifo nosso).
Por compartilhar desse mesmo entendimento, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 4162, pleiteando ao Supremo Tribunal Federal (STF) que declarasse nulos os artigos referentes ao RDD, no entanto, até o presente momento não houve o julgamento, mesmo depois de transcorrido mais de uma década desde o protocolamento. Dentre os argumentos sustentados pela OAB está o seguinte:
“Os termos legalmente instituídos de aplicação do RDD, que incluem isolamento prolongado do preso, incomunicabilidade, severa restrição no recebimento de visitas, entre outras medidas, aviltam o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III), agredindo também as garantias fundamentais de vedação à tortura e ao tratamento desumano ou degradante (art. 5º, III) e de vedação de penas cruéis (Art. 5º, XLVII, “e”)”.
Em manifestação para a referida ADI, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) posicionou-se contra ao RDD, por entender que é uma sanção disciplinar de caráter cruel, confira-se um trecho:
“Em conclusão, o RDD nada tem a ver com o escopo das sanções disciplinares, de caráter pontual e limitado a uma conduta específica. Revela-se uma tentativa de criar um regime de cumprimento de pena mais severo que o permitido pela legislação, de caráter cruel e desumano, violador da Constituição Federal e do sistema internacional de direitos humanos”.
Diante do exposto, conclui-se que com inserimento do RDD no ordenamento jurídico, o Estado acabou por institucionalizar uma sanção cruel, desumana e torturadora, ferindo, portanto, sua própria constituição, em especial, os preceitos do princípio da humanidade das penas.
E as Regras Mínimas para Tratamento do preso no Brasil também encontram-se violadas, mais precisamente a disposição contida no art. 24, que preconiza “são proibidos, como sanções disciplinares, os castigos corporais, a clausura em cela escura, sanções coletivas, bem como toda punição cruel, desumana, degradante e qualquer forma de tortura” (resolução nº 14/94, do CNPCP).
Foi levando em conta os diversos efeitos negativos do isolamento celular, que a 68ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) sugeriu sua abolição. Nesse sentido, é o princípio nº 7 que prevê expressamente “devem empreender-se esforços tendente à abolição ou restrição do regime de isolamento, como medida disciplinar ou de castigo”. Assim, como os princípios enunciados na assembleia foram aceitos pelo Brasil, tinha este o dever de aplicá-los, não permitindo, então, a instituição de uma sanção cruel e desumana como o RDD.
De início, cumpre registrar, que será feita uma breve explanação acerca da teoria da pena adotada no ordenamento jurídico pátrio, dando maior enfoque à função ressocializadora, ante o objetivo almejado por essa seção.
Pois bem. As teorias das penas surgem diante da necessidade de justificar para sociedade a violência das sanções, logo se a motivação for suficiente e aceita pela maioria dos membros da sociedade, está legitimado o poder punitivo estatal. (GUIMARÃES, 2004).
O Código Penal Brasileiro em seu art. 59 assim preconiza:
“O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como o comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime”. (grifo nosso).
A partir da análise do referido artigo, é possível observar que o código penal adotou duas teorias das pena, as quais, unificadas, levam o nome de teoria mista.
Segundo Capez (2011, p. 385), para a teoria mista ” a pena tem dupla função de punir o criminoso e prevenir a prática do crime, pela reeducação e pela intimidação coletiva (punitur quia peccatum est et ne perccetur).”
Cunha entende que modernamente a pena tem tríplice finalidade, qual seja: retributiva, preventiva e reeducativa, podendo cada função ser identificada em momentos específicos, confira-se.
Quando o legislador cria o crime, cominando-lhe a sanção penal (pena em abstrato), revela-se o seu caráter preventivo geral. Ao estabelecer os parâmetros mínimo e máximo da pena, afirma-se a validade da norma desafiada pela prática criminosa (prevenção geral positiva), buscando inibir o cidadão de delinquir (prevenção geral negativa). Praticado o crime, no momento da sentença (aplicação da pena), o Magistrado deve observar outras duas finalidades: a retributiva e a preventiva especial (…). Por fim, na etapa da execução penal concretiza-se a retribuição e prevenção especial (disposições da sentença), ganhando relevo a prevenção especial positiva (ressocialização). (CUNHA, 2020, p. 483-484. Grifo do autor).
Destaca-se que na execução penal é concretizada a retribuição e a prevenção especial, tendo a LEP conferido relevância ao caráter ressocializador, conforme visualiza-se no seu art. 1º, que dispõe ” a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.
Para cumprir com a função ressocializadora da sanção é preciso empreender esforços voltados à recuperação do apenado, seja pela disponibilidade de serviços, de um ambiente sadio, dentro do possível, e pela oportunização da assistência necessária, seja de ordem religiosa, educacional, laboral e outras.
O RDD, por sua vez, segue por uma rota inversa à ressocialização, eis que priva o condenado da assistência laboral, religiosa e educacional; promove isolamento prolongado; impõe a incomunicabilidade e extirpa quase por completo o contato físico com outras pessoas. Tais condições, além de não possibilitar a recuperação do preso, acaba por danificá-lo enquanto sujeito.
Nessa perspectiva, discorre Bitencourt (2020, p. 165):
“Com efeito, o regime disciplinar diferenciado – instituído pela Lei n. 10.792/2003 – viola o objetivo ressocializador do sentenciado, vigente na sociedade contemporânea desde o iluminismo. A lei de Execução Penal (LEP), já em seu art. 1º, destaca como objetivo do cumprimento da pena a reintegração social do condenado, que é indissociável da execução da sanção penal. Portanto, qualquer modalidade de cumprimento depena em que não haja concomitância dos dois objetivos, quais sejam, o castigo e a reintegração social, com observância apenas do primeiro, mostra-se ilegal e contraria à Constituição Federal”.
Assim sendo, a implementação do RDD demonstra uma faceta puramente punitivista, na qual o Estado soberano afirma seu poder de punir, deixando o apenado imóvel, incomunicável e isolado. Essa medida deixa claro a ausência de interesse na recuperação do sentenciado, mas por outro lado, visa transmitir para a sociedade uma falsa ideia de controle, camuflando, então, o fracasso do Estado em tutelar a segurança pública.
Abordando também essa questão, Queiroz (2011) afirma que colocar o condenado em isolamento do mundo, inclusive do intramuros, em uma solitária, por um longo período, é uma medida que avilta contra todos os princípios básicos da dignidade da pessoa humana e conduz o apenado para uma rota inversa à ressocialização.
E acrescenta que, com o fim do prazo de isolamento, o ser humano estará destruído, enquanto o delinquente sairá fortalecido pelo ódio que alimentou durante todo o período que permaneceu no RDD.
Afastando qualquer possibilidade de reabilitação, o RDD “surge como técnica penitenciária eficaz que visa ao mesmo tempo conter e eliminar os sujeitos indesejáveis. Para além da privação de liberdade, se agrega um castigo que remonta aos suplícios medievais.” (FREIRE, 2007, p. 280).
Nesse sentido, o RDD representa um modelo bárbaro de punição, no qual é imposto um sofrimento desmedido, visando unicamente neutralizar e aniquilar os sujeitos não desejados/apenados, desprezando completamente o objetivo cristalizado na LEP de reinserção social.
Uma sanção que impõe isolamento de 2 (dois) anos, no qual o apenado fica diariamente 22 horas completamente sozinho, sem direito à escola, trabalho, ou a qualquer tipo de entretenimento, como acesso à jornais, televisores e rádios, prioriza de algum modo aproximar o sujeito da sociedade para qual um dia ele retornará? Ou melhor, há algum efeito positivo nesse isolamento?
Freud (apud Ifanger; Filho; Massaro, 2020, p.24) “enaltece o indivíduo como um ser indissociável do social, tendo alertado, já no início do século passado, as máculas da intensa solidão e do prolongado isolamento do homem”.
Nessa esteira, Oliveira (2015, p. 41) assevera que “o isolamento total é talvez a pior das penas aplicadas ao ser humano, uma vez que o mesmo precisa de convívio social, sua construção interna de valores é formada a partir de fatores externos que só são incorporados através da vida social”.
É de se observar, que o enclausuramento pode causar intensa solidão, vez que o homem é um ser naturalmente social, cuja existência demanda o convívio com o outro. E, sob essa perspectiva, o RDD em nada contribui no processo de ressocialização, uma vez que a socialização entre os presos é indispensável para preservação da saúde mental do apenado, sobretudo quando há o tolhimento de todas as assistências.
Dentro dessa linha de pensamento, Ifanger, Filho e Massaro (2020, p. 25) discorrendo sobre os malefícios do isolamento, suscita uma interessante comparação entre o tolhimento do convívio imposto pelo RDD e pela atual pandemia do coronavírus:
“A recente pandemia do coronavírus, que obrigou as pessoas a se isolarem em suas casas com seus familiares para sua proteção, mostrou que o isolamento pode implicar em um grande sofrimento, mesmo quando realizado em condições altamente favoráveis. O que dizer, então, de um isolamento forçado, prolongado, incapaz de cumprir qualquer objetivo positivo, em um lugar inospitaleiro como o cárcere?”
Desprende-se do exposto, que o isolamento imposto pelo RDD não produz qualquer efeito positivo, contribuindo, apenas, para o efeito nefasto do cárcere, eis que a privação do convívio do apenado com os demais detentos e com a comunidade em geral, por um longo período, só colabora para formação de um sujeito antissocial, arruinando, então, qualquer possibilidade do sentenciado formar boas relações, sobretudo quando retornar ao seio social.
Nesse sentido, a adoção do RDD não foi e não é o caminho correto, pois além de não contribuir para a ressocialização, a medida não atende a seus desígnios, de promover a segurança social e desarticular os organismos criminosos. Para ilustrar o exposto é interessante trazer à baila um trecho de jornal:
“No maior ataque já realizado contra as forças de segurança de São Paulo, a facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) provocou a morte de 32 pessoas, feriu gravemente outras 32, bombardeou delegacias, metralhou carros e bases da Polícia Militar e de Guardas Municipais, e ainda promoveu 22 rebeliões em presídios da Grande São Paulo e do interior do Estado. Os atentados e motins começaram sexta-feira, logo após o governo de São Paulo finalizar a transferência de 765 detentos, subordinados aos líderes do PCC, para a Penitenciária 2 de Presidente Venceslau (620 km de SP), transformada em uma prisão especial para os membros da facção criminosa Entre os transferidos está Marcos Willians Herbas Camacho, 38, o Marcola, apontado como líder do grupo”. (FOLHA DE SÃO PAULO, 2006, grifo nosso).
Nota-se que essa megarrebelião ocorreu mesmo com o RDD estando em vigor no Estado de São Paulo a quase 05 anos, o que demonstra a ineficiência da medida para impedir às ações das facções criminosas. Nessa direção, está o depoimento de Marcola à CPI do tráfico de armas:
“[…] intimidação nunca funcionou em São Paulo. Se funcionasse… O exemplo maior de intimidação é esse aqui. O cara vem para cá e fica 1 ano sem ter relações sexuais com sua esposa, fica 1 ano sem ver uma televisão, no mínimo. Fiquei 2 anos na última vez. A gente fica… quer dizer, não só eu, como todos. A maioria que passa aqui volta, não fica com medo de voltar para cá, nem para a Federal nem para lugar nenhum. Esse tipo de forma de resolver o problema é mentira, paliativa. Não vai resolver”. (Grupo Folha, 2006).
Diante do exposto, vê-se que o RDD não obteve e nem obterá resultados positivos na desarticulação das facções criminosas, pois mesmo a medida sendo extremamente severa, os detentos não a temem, tanto é, que retornam várias para o RDD, conforme afirma Marcola. Assim, se o RDD não cumpre com os fins a que se destina, nem se coaduna com ideal ressocializador, não há logica em sua manutenção no ordenamento jurídico.
O RDD, desde seu nascimento em 2003, provocou diversas críticas, por ser considerado uma medida extremamente rigorosa, violadora de inúmeros direitos do recluso. Não bastasse, em 2019 foi promulgado o pacote anticrime, que recrudesceu ainda mais a sanção, aumentando o prazo de duração para 2 anos, sem qualquer limitação temporal para interrupção, extirpando o contato físico do preso com familiares e diminuindo o número de visitas.
Essa situação, demonstra que não há limites no exercício do poder de punir, vez que visando amparar à segurança pública o Estado criou uma sanção que desconsidera completamente os mandamentos constitucionais, a LEP e as regras mínimas para tratamento do preso, da ONU, às quais o Brasil é signatário.
Nesse sentido, as hipóteses de cabimento do RDD apresentam um flagrante descompasso com os preceitos do princípio da legalidade, vez que as hipóteses são dotadas de expressões vagas e imprecisas, que deixam a cargo do magistrado um amplo escopo de interpretação, favorecendo para ocorrência de arbitrariedades e excessos.
O princípio da proporcionalidade também não foi privilegiado pelo legislador ao implementar o RDD, primeiro porque a reprimenda não guarda harmonia com a gravidade das condutas que ensejam sua aplicabilidade; segundo, porque o sopesamento feito para instituição da sanção não foi razoável, vez que houve valoração da tutela da segurança pública em detrimento das garantias do apenado, a exemplo, a proibição de submissão à tortura e tratamentos degradantes e cruéis.
E, os preceitos do princípio da humanidade das penas também encontram-se violados, pois as condições impostas pelo RDD, especialmente, o isolamento prolongado, destrói psicologicamente o sujeito, deixando sequelas que são irreversíveis. Essa medida, na verdade, assume feição de pena cruel e desumana, que reedita a arcaica ideia de pena como puro exercício da vingança social, desconsiderando completamente o objetivo cristalizado na LEP de reinserção social.
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