RESUMO: O artigo consiste no exame de alguns pontos da Lei 13.303/2016 que têm sua constitucionalidade questionada pela Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5624 DISTRITO FEDERAL (ADI 5624 DF), ajuizada pela Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal – FENAEE e Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro – CONTRAF/CUT. Além disso, o artigo discorre sobre a atuação do Estado como agente econômico empresarial e prestador de serviços públicos, além de realizar uma breve comparação entre os regimes jurídicos das empresas estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito que atuam em regime de competição no mercado e das que prestam serviços públicos.
Palavras chave: Estado; Intervenção na Economia; Empresas Estatais.
ABSTRACT: The article is an review about some points of the new law of the State Owned Enterprises (SOE) which are being considered unconstitucional by some national associations that have the right to question the Brazilian Supreme Court about the constitutionality of the laws. Besides that, the article expatiates about the State performance like an economic agent and as a provider of public services. It is also done a brief comparison between the legal regime of the SOE that explores economic activity and the SOE that provides public services.
Keywords: State, Intervention in the Economy; State Owned Enterprises.
Sumário: Introdução. 1. Breve Descrição do Regime Jurídico das Empresas Estatais. 2. Possíveis Inconstitucionalidades da Nova Lei das Estatais. Considerações finais. Referências.
Introdução:
As empresas estatais, as empresas públicas e as sociedades de economia mista, são os instrumentos pelos quais o Estado exerce diretamente a atividade econômica, nos casos permitidos pela Constituição (relevante interesse coletivo e imperativo da segurança nacional, segundo o artigo 173 da Carta Magna). A regra no Brasil, de acordo com os dispositivos constitucionais pertinentes à Ordem Econômica e Financeira, é que a exploração de atividade econômica deve ser exercida, precipuamente, pela iniciativa privada e, subsidiariamente, pelo Estado, conforme supramencionado. O caput do aludido dispositivo constitucional materializa o princípio da subsidiariedade. Por outro lado, o comando constitucional contido no artigo 174 da Carta Política estabelece o Estado como agente normativo e regulador da atividade econômica. Já o artigo 175 diz respeito à atuação do Estado como titular da prestação de serviços públicos, diretamente ou mediante concessão ou permissão, sempre através de licitação. Relativamente ao modelo econômico brasileiro, Silva (2010) informa que, em nosso país, foi positivado na Constituição Federal o modo de produção capitalista em sua versão social democrata, sendo adotada uma ordem econômica de caráter social liberal na qual coexistem como princípios basilares a livre iniciativa e a função social da propriedade. De acordo com Silva (1994), são fundamentos da ordem econômica nacional e do Estado Federal Brasileiro os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, sendo que, na opinião deste doutrinador, os primeiros têm precedência sobre os últimos. Nossa economia é de mercado com intervenção do Estado nos aspectos normativo e regulador e, excepcionalmente e em circunstâncias expressas na Carta Política, como agente econômico empresarial. Ao contrário do que afirmam alguns doutrinadores, tais como Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1990), a atuação do Estado como agente normativo e regulador da economia não é incompatível com os princípios da livre iniciativa, livre concorrência, que a Constituição consagra.
1 – Breve Descrição do Regime Jurídico das Empresas Estatais:
Apesar de a Constituição Federal estabelecer em seu artigo 173, § 1º, II que “a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários” se aplica às empresas estatais, a doutrina considera que essa sujeição não é plena, e que o regime jurídico das mencionadas entidades é híbrido, nelas incidindo alguns preceitos de Direito Público, tais como a necessidade de realização de concurso público para admissão de empregados públicos, bem como a realização de licitação pública para aquisição de bens e serviços, o regime de precatórios para o pagamento das dívidas em substituição ao regime da penhora, a responsabilidade civil objetiva no caso das empresas públicas prestadoras de serviços públicos, entre outros aspectos.
O regime jurídico de Direito Público, denominado por Celso Antônio Bandeira de Melo (2009) de regime jurídico – administrativo, caracterizado pelos princípios da supremacia do interesse público sobre o privado e da indisponibilidade do interesse público, se aplica com mais intensidade às empresas estatais prestadoras de serviço público, e de modo parcial às empresas estatais exploradoras de atividade econômica, o que configura o regime jurídico híbrido. Entretanto, segundo Rosa (2007), há jurisprudência da Suprema Corte no sentido de que, em caso de haver uma dívida cujo montante não comprometa a consecução da atividade fim da empresa estatal, seria possível admitir, relativamente a esta última, o regime de penhora do Código Civil do Direito Privado. A aplicação do regime de penhora fica totalmente obstada caso assim determine a Lei de criação da entidade.
Acerca da não aplicabilidade completa do regime jurídico de Direito Privado às empresas estatais, pode-se citar a opinião de Celso Antônio Bandeira de Melo (2009), o qual afirma que “(…) o regime das sociedades de economia mista e empresas públicas, sejam elas prestadoras de serviços públicos (obras públicas e demais atividades de tipologia pública) ou exploradoras de atividade econômica, já por força destas normas categoricamente expressas na Constituição, não é o mesmo das empresas privadas em geral. É evidente que os preceptivos mencionados compõem um regime peculiar que não se aplica, nem faria qualquer sentido que se aplicasse, às pessoas de Direito Privado em geral”. Sendo assim, as duas modalidades de empresa estatal estariam submetidas a um regime jurídico híbrido, com predominância do Direito Público. No mesmo sentido, outra doutrinadora relevante do Direito Administrativo, Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2005), corrobora a opinião de Bandeira de Melo, afirmando que, no que tange às empresas estatais “O seu regime jurídico é híbrido, porque, sob muitos aspectos, elas se submetem ao direito público, tendo em vista especialmente a necessidade de fazer prevalecer a vontade do ente estatal, que as criou para atingir determinado fim de interesse público”. É relevante salientar que o Estatuto das Estatais, Lei Ordinária infraconstitucional exigida pelo dispositivo constitucional contido no artigo 173, § 1º, foi editada em 30 de junho de 2016 (Lei 13.303/16, a qual dispõe sobre o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios).
Seria possível, então, afirmar que “a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários” previsto no art. 173, § 1º, II seria aplicável exclusivamente às empresas estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito em regime de concorrência no mercado, mas não às entidades administrativas governamentais prestadoras de serviços públicos.
Conforme foi abordado acima, pode-se considerar como exemplos de normas de Direito Público que as empresas estatais têm que obrigatoriamente adotar, mesmo as exploradoras de atividade econômica em sentido estrito em regime de concorrência no mercado, os dispositivos constitucionais tais como a necessidade de realização de concurso público e de licitação, ou seja, são mandamentos constitucionais que derrogam o Direito Comum, o Direito Privado. Nesse caso, os bens dessas empresas governamentais estão sujeitos ao regime de penhora, e não ao de precatórios, típico do Direito Público. Segundo Di Pietro (2005:394) somente normas que constam da Carta Magna podem derrogar o Direito Comum, não sendo possível que esta derrogação seja promovida por Lei Ordinária.
2 – Possíveis Inconstitucionalidades da Nova Lei das Estatais:
O ponto da Lei 13.303/2016 cuja constitucionalidade provoca mais controvérsia é o fato de a nova Lei das Estatais possuir uma ampla abrangência, abarcando tanto as empresas estatais (empresas públicas e sociedades de economia mista) exploradoras de atividade econômica em sentido estrito que atuam em regime de competição no mercado quanto as prestadoras de serviço público. Tanto a doutrina (Di Pietro, Bandeira de Mello e Cretella Júnior) quanto a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) adotam de modo categórico essa distinção, considerando que o artigo 173 se refere exclusivamente às empresas estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito que atuam em regime de competição no mercado, as quais somente poderão atuar de forma supletiva relativamente à iniciativa privada nos casos expressamente mencionados na Carta Magna (imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo), e o artigo 175 trata somente das empresas governamentais prestadoras de serviço público. A aludida jurisprudência da Corte Suprema sobre este tema fica clara na Ementa da ADI 1.642/MG, Relator Ministro Eros Grau, a qual, nos itens 3 e 4, consigna que há “Distinção entre empresas estatais que prestam serviço público e empresas estatais que empreendem atividade econômica em sentido estrito. O § 1º do artigo 173 da Constituição do Brasil não se aplica às empresas públicas, sociedades de economia mista e entidades (estatais) que prestam serviço público.”
Sobre esse tema Di Pietro (2005:394) explica que o “artigo 173 cuida especificamente da atividade de natureza privada, exercida excepcionalmente pelo Estado por razões de segurança nacional ou interesse coletivo relevante, há que se concluir que as normas dos §§ 1º e 2º só incidem nessa hipótese.”
Diferentemente da doutrina e da jurisprudência do STF, a Lei 13.303/2016 não estabelece tal distinção. Ao estender em demasia a abrangência, o escopo do normativo, o legislador se arriscou a vê-la declarada inconstitucional pelo Pretório Excelso, pelo fato de a Lei Fundamental claramente indicar que a Lei de que se trata deveria se circunscrever às empresas estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito que atuem em regime de concorrência no mercado. Outra não pode ser a exegese, tendo em vista, também, que o dispositivo contido no artigo 173, parágrafo 2º da Constituição estabelece que “As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado”. Evidentemente, a Carta Magna se refere apenas às referidas empresas estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito que atuem em regime de competição no mercado, e somente a elas, carecendo de sentido uma interpretação extensiva que considere tal conteúdo como aplicável às empresas estatais prestadoras de serviços públicos, reguladas pelo artigo 175 do texto constitucional.
Outra inconstitucionalidade apontada pelos autores da ADI 5624 DF é o fato de todas as exigências que foram estabelecidas pela Lei das Estatais para a composição dos órgãos estatutários da Administração das entidades (Conselho de Administração, Diretoria Executiva, Comitê de Auditoria) e para o órgão de fiscalização (Conselho Fiscal) o foram por meio de Projeto de Lei de autoria de Senador. Esse fato constitui inconstitucionalidade formal, na medida em que este tipo de assunto deve ser objeto de Projeto de Lei de iniciativa privativa do Presidente da República, segundo o art. 61, § 1º, II, “c” e “e”, e de acordo com o art. 84, VI, a da Lei Fundamental.
Os dispositivos constitucionais citados, com exceção do último, preconizam que a iniciativa de leis que tratem de servidores públicos da União e Territórios, seu regime jurídico, provimento de cargos, estabilidade e aposentadoria, bem como de criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública é de iniciativa privativa do Chefe do Executivo Federal, e não de iniciativa parlamentar, como no caso em tela, em que o Projeto de Lei foi de autoria do Senador Tasso Jereissati (PSDB-CE). Esses dispositivos integram aquilo que na doutrina é denominado de “Reserva de Administração”. No caso do art. 84, VI, a Carta Magna determina que compete privativamente ao Presidente da República dispor, mediante Decreto Autônomo, acerca de organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Esta modalidade de normativo por último mencionada é uma das exceções ao Princípio da Legalidade (a outra é a Medida Provisória, que não é Lei, mas tem força de Lei), e consiste num tipo de Decreto que tem seu fundamento originário na Constituição Federal, ao contrário do tipo de Decreto mais comum, o Regulamentar ou de Execução, o qual apenas detalha a aplicação da Lei, sem inovar no ordenamento jurídico. Este Decreto está previsto no art. 84, IV da Constituição Federal, o qual prevê que compete privativamente ao Presidente da República sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução. Nisso consiste o denominado Poder Regulamentar, o qual também alcança os Governadores de Estado e os Prefeitos Municipais.
Outro detalhe relevante é o de que, segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), a sanção do Presidente da República não convalida vício de iniciativa de Projeto de Lei. Sobre o assunto, tem-se a decisão da Corte Suprema nos seguintes termos:
“a sanção do projeto de lei não convalida o vício de inconstitucionalidade resultante da usurpação do poder de iniciativa. A ulterior aquiescência do chefe do Poder Executivo, mediante sanção do projeto de lei, ainda quando dele seja a prerrogativa usurpada, não tem o condão de sanar o vício radical da inconstitucionalidade”. (ADI 2.867, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 3-12-2003, Plenário, DJ de 9-2-2007 e ADI 2.305, rel. min.Cezar Peluso, julgamento em 30-6-2011, Plenário, DJE de 5-8-2011).”
Efetivamente, a jurisprudência da nossa Suprema Corte sempre reitera a distinção entre as empresas estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito e as prestadoras de serviço público. No Recurso Extraordinário 354897/RS, Relator Ministro Carlos Veloso, conforme o item I da respectiva Ementa, o Relator afirma que “As empresas públicas se distinguem das que exercem atividade econômica.” No Agravo de Instrumento, em sede de Recurso Extraordinário 363412/BA, Relator Ministro Celso de Melo, em cuja Ementa consta o trecho transcrito abaixo:
“A submissão ao regime jurídico das empresas do setor privado, inclusive quanto aos direitos e obrigações tributárias, somente se justifica, como consectário natural do postulado da livre concorrência (CF, art. 170, IV), se e quando as empresas governamentais explorarem atividade econômica em sentido estrito, não se aplicando, por isso mesmo, a disciplina prevista no art. 173, § 1º, da Constituição, às empresas públicas (caso da INFRAERO), às sociedades de economia mista e às suas subsidiárias que se qualifiquem como delegatárias de serviços públicos.”
Por decisão do STF, empresas públicas prestadoras de serviços públicos, tais como a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (EBCT) e a INFRAERO, são beneficiárias da imunidade tributária recíproca prevista nos seguintes dispositivos constitucionais:
“Art. 150, VI, a – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…)
VI – Instituir impostos sobre: a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;”
“Art. 150, § 2º A vedação do inciso VI, “a”, é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.”
Considerações Finais:
Pelos argumentos expostos no item precedente, pode-se considerar que há possibilidades concretas de que partes importantes da nova Lei das Estatais sejam declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte. Isto porque a Constituição Federal é clara ao preconizar, no art. 173, parágrafo 1º, que a Lei cuja edição é prevista neste dispositivo é concernente apenas às empresas estatais exploradoras de atividade econômica em sentido estrito em regime de concorrência no mercado, não sendo extensiva às empresas estatais prestadoras de serviços públicos. Em reforço a essa opinião, pode-se mencionar toda a jurisprudência do STF no sentido de estabelecer uma distinção clara entre as duas modalidades de empresas governamentais, cujos regimes jurídicos também se diferenciariam, no sentido de que o das exploradoras de atividade econômica tem maior incidência de normas de Direito Privado, e o das prestadoras de serviços públicos tem maior prevalência de normas de Direito Público. Além disso, há a questão do vício de iniciativa do Projeto de Lei que resultou na promulgação da Lei das Estatais, violando a denominada pela Doutrina “Reserva de Administração” contida no artigo 61, § 1º, que são as matérias de competência privativa do Presidente da República, ressaltando a jurisprudência da Corte Suprema no sentido de que a sanção do Presidente da República não convalida vício de iniciativa, mesmo em matéria de sua competência privativa, como ocorre no caso em tela.
Referências Bibliográficas:
Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5624 DISTRITO FEDERAL (ADI 5624 DF), Brasília, 2018;
BANDEIRA DE MELO, C. A. Direito Administrativo. Editora Malheiros, São Paulo, 2009;
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988;
DI PIETRO, M. S. Direito Administrativo. Editora Atlas, São Paulo, 2005;
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional, de acordo com a Constituição de 1988. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1990;
ROSA, M. Direito Administrativo – Síntese. Editora Saraiva, São Paulo, 2007;
SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. Editora Malheiros, São Paulo, 1994;
Informações Sobre o Autor:
Carlos Frederico Rubino Polari de Alverga;
Economista pela UFRJ, Especialista em Administração Pública pela FGV e Mestre em Ciência Política pela UnB.
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