Aplicabilidade do art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), às transferências feitas a pessoas jurídicas de direito público e de direito privado sem fins lucrativos: breves considerações

Resumo: Considerações quanto à aplicabilidade do art. 73, § 10, da Lei nº 9.504/1997 (Lei das Eleições), às transferências feitas a pessoas jurídicas de direito público e de direito privado sem fins lucrativos.

O presente artigo traz considerações sobre a aplicação da regra instituída no art. 73, § 10, da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997 (Lei das Eleições – LE), nos casos de transferência de bens, valores ou benefícios, por parte da Administração Pública, a pessoas jurídicas de direito público e de direito privado sem fins lucrativos.

O objetivo das normas eleitorais que impõem condutas vedadas a agentes públicos ― e à Administração Pública, por extensão ―, caso do art. 73, § 10, da LE, é assegurar a legitimidade e igualdade de oportunidade entre os candidatos do certame, interditando comportamentos caracterizadores de abuso de poder político ― ou “uso da máquina pública”, na expressão coloquial.

De fato, a função do art. 73 da LE como um todo, e de seu § 10 em particular, é tipificar modalidades e expedientes pelos quais a disputa eleitoral vem a ser desequilibrada em favor de um dos pólos, usualmente daquele que detém, na conjuntura política determinada, maior ascendência sobre a Administração e seus agentes. Em outras palavras: o artigo serve à identificação de meios, para se inibir os fins.

Desse modo, toda e qualquer interpretação que se pretenda adequada e razoável da regra inscrita no referido art. 73, § 10, da LE, deve guardar estrita obediência à finalidade da norma ― proteção aos bens jurídicos isonomia, normalidade e legitimidade das eleições ―, o que deflui, aliás, de determinação constitucional ― art. 14, §§ 9º e 10, CRFB[1].

Tendo a literalidade do dispositivo por limite exegético natural, vale reproduzir os termos do art. 73, § 10, da LE, litteratim:

Art. 73.  ….

§ 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 10 de maio de 2006[2])” – Grifos nossos.

A letra da lei estabelece expressamente o sujeito ativo da proibição imposta, a saber, a Administração Pública. Não o faz, porém, quanto à sujeição passiva, fato que levou alguns administradores públicos a propor interpretação no sentido de que a norma não se dirige a pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado sem fins lucrativos. A tese é digna de considerações.

Em favor da inaplicabilidade da regra do art. 73, § 10, da LE em relação a intercâmbio de bens, valores e benefícios entre pessoas jurídicas de direito público, durante o ano eleitoral, é possível levantar alguns argumentos.

Primeiramente, é de se observar que já há norma proibitiva, específica, dirigida a restringir a transferência de valores entre as esferas federal, estadual, distrital e municipal, da Administração, nos três meses que antecedem o pleito. É o teor do art. 73, inciso VI, alínea “a”, da LE, mencionada anteriormente.

O dado temporal aqui é relevante. Denota que o legislador infraconstitucional, arbitrando possível conflito entre os riscos de afetação da eleição pelo abuso de poder e o princípio da continuidade do serviço público, entendeu que a proibição cingida ao trimestre antecedente ao certame seria a medida correta para resguardar os interesses contrapostos.

Assim, estender a aplicação do art. 73, § 10, da LE, à transferência de bens, valores ou benefícios entre pessoas jurídicas de direito público, para além de significar possível derrogação da norma inserta no inciso VI, alínea “a”, do mesmo artigo ― já que “recursos”, de um lado, e “valores”, de outro, são termos de difícil distinção prática ―, parece romper, de modo irrazoável, com a ponderação erigida pelo legislador entre os interesses jurídicos tutelados no particular, em prejuízo desmedido à continuidade do serviço público, tolhida durante a integralidade do ano eleitoral.

Passa-se a um segundo argumento. A finalidade da norma inscrita no art. 73, § 10, da LE, que veda a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, está em impedir que tais interesses cheguem, de uma forma ou de outra, às mãos de eleitores, propiciando o desequilíbrio eleitoral em favor da candidatura por trás da conduta abusiva da Administração.

Ocorre que, consoante argumenta-se, a transferência gratuita de bens, valores ou benefícios de uma pessoa jurídica de direito público a outra ― ambas integrantes da “Administração Pública” ― não tem o condão, de per si, de repercutir sobre o equilíbrio das eleições. Para tanto, seria necessário que a pessoa administrativa receptora, agora sim em translúcida violação do art. 73, § 10, da LE, repassasse os bens a cidadãos, de modo a influenciar a formação de sua vontade eleitoral.

Deflui desse raciocínio que não implicaria ofensa ao referido § 10 a mera distribuição desses bens a pessoa jurídica de direito público, eis que, em tal situação, a responsabilidade pelo cumprimento da norma proibitiva simplesmente passaria à entidade receptora, como pessoa da Administração Pública.

Um terceiro viés de argumentação se fundamenta na mens legislatoris. A intenção do legislador infraconstitucional, ao criar o art. 73, § 10, da LE, foi a de proibir a distribuição de benesses a eleitores pelo Poder Público. Nessa linha de raciocínio, essa norma proibitiva, conquanto redigida em termos mais fluídos, encontraria paralelo na vedação contida no art. 39, § 6º, da LE, regra também incluída pela Lei nº 11.300, de 2006, e que se destina a inibir o aliciamento de eleitores por parte de comitê eleitoral e candidatos, in verbis:

Art. 39.  ….

§ 6º É vedada na campanha eleitoral a confecção, utilização, distribuição por comitê, candidato, ou com a sua autorização, de camisetas, chaveiros, bonés, canetas, brindes, cestas básicas ou quaisquer outros bens ou materiais que possam proporcionar vantagem ao eleitor.” ― Realçado.

Sem embargo, a despeito de se vislumbrar, como regra geral, a exclusão de transferências de bens, valores e benefícios entre pessoas jurídicas de direito público do âmbito normativo do art. 73, § 10, da LE, faz-se necessário ressalvar que a riqueza de manobras e expedientes de nossos agentes públicos, já fartamente demonstrada nos pleitos ao redor do País, impede que se estabeleça aquela regra geral como de caráter absoluto, devendo a análise casuística de nossos Tribunais eleitorais permanecer atenta a possíveis situações de uso abusivo da personalidade de direito público, para fins de desequilíbrio eleitoral, que mereçam a sanção legal.

Com relação à possibilidade de transferência de bens a pessoa jurídica de direito privado, a situação carece de maior prudência.

Em uma leitura do dispositivo pautada pelos fins da norma, há que se avaliar seriamente se se afigura razoável excluir, a priori, a incidência da proibição em tela sobre situações em que a “distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública” seja realizada indiretamente, isto é, por interposta pessoa jurídica de direito privado.

Isso porque não parece haver dúvida de que essa operação poderia, in concreto, resultar em grave ofensa aos bens jurídicos tutelados pela regra proibitiva. Basta imaginar, por exemplo, situação em que bens administrativamente apreendidos por órgão alfandegário, cujas características ensejem sua distribuição em larga escala à população, sejam destinados à entidade privada sem fins lucrativos notoriamente vinculada a determinado grupo político ou candidato.

De toda sorte, seja em referência a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado sem fins lucrativos, importa salientar que, em tema de interpretação do art. 73 da LE, a jurisprudência do TSE se inclina no sentido de adotar interpretação teleológica das normas ali insertas, mesmo que isso possa resultar acolhimento de teses restritivas à conduta da Administração.

A propósito, vale reproduzir, por paradigmático, excerto da Decisão Monocrática nº 1062, de 07.07.2004, da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, referendada pela Resolução TSE nº 21.878, de 12.08.2004, que rejeitou a tese, consubstanciada em Parecer da Advocacia-Geral da União (AC nº 12, de 13 de maio de 2004), aprovado pelo Presidente da República, no sentido de que se deve incluir na expressão “execução de obra ou serviço em andamento”, constante do art. 73, inciso VI, alínea “a”, da LE[3], também as obras fisicamente ainda não iniciadas, verbis:

 “30. O meu convencimento em contrário toma de empréstimo premissa metodológica do parecer mesmo do Consultor-Geral da União: “a lei eleitoral endereça-se a disciplina de situações eleitorais que, por isso – enfatiza S. Exa. – precisam ser compreendidas como fatos eleitorais, muito mais do que fatos admininstrativos“, razão por que “as categorias de direito civil ou tributário ou as regras de controle orçamentário ou de execução não são preponderantes na exegese eleitoral, devendo prevalecer a inteligência e a organicidade das determinações eleitorais na sua estrita finalidade”.

31. Essa, precisamente essa – a interpretação da legislação eleitoral à vista da significação dos fatos no seu campo normativo específico – tem sido a linha mestra da orientação da vetusta jurisprudência deste Tribunal: exemplo marcante dela, entre outros tantos, é a consideração – muito antes da institucionalização legal e contratual da sociedade de fato como “entidade familiar” – das relações dela resultantes como causas de inelegibilidade similares àquelas surgidas do casamento.

32. Essa compreensão teleológica, tanto mais se impõe, na hipótese da consulta, quanto é certo que, no caput, o art. 73 da Lei das Eleições é expresso no caracterizar as diversas vedações, como aos agentes públicos, que, em seguida enumera, como “tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre os candidatos nos pleitos eleitorais”.

33. Por conseguinte, não se pode abstrair, na inteligência da vedação legal a interpretar, de um dado da experiência comum: os momentos culminantes de impacto eleitoral da realização de uma obra pública é, antes de sua inauguração – também objeto de preocupação da lei (Art. 77) – o do começo da percepção física da execução da obra.

34. Para o eleitor comum, não são os trâmites burocráticos que necessariamente a precedem, mas o início da construção que faz visível a concretização do empreendimento governamental e aguça a expectativa dos benefícios que a sua conclusão possa trazer ao público: e é a partir daí que se tem uma, como é da linguagem cotidiana uma “obra em andamento”.

35. Esse valor simbólico do começo efetivo da construção da obra que dá a medida do seu impacto eleitoral – é que a lei veda seja propiciado, na antevéspera dos pleitos, locais, por transferências voluntárias de verbas públicas das entidades maiores da Federação.

36. O parecer comentado, ao fixar as suas premissas, também pondera que “a proteção da soberania popular não pode se transformar em empecilho ou elemento de desarticulação ou de frustração dos atos da Administração, mesmo durante o chamado período eleitoral”.

37. A preocupação não é desarrazoada; mas é preciso convir em que a interpretação que restringe às obras cuja execução física esteja “em andamento” a possibilidade de transferências voluntárias de verbas federais ou estaduais ao municípios, no período eleitoral, não constitui demasia capaz de desarticular ou frustar o desenvolvimento de toda a administração pública.”

38. Cuida-se, afinal, de apenas um trimestre de vigência da proibição, da qual, por outro lado, se ressalva a transferência de recursos “destinados a atender situações de emergências e de calamidade pública”. ― Realcei

Repita-se: o texto legal do § 10 do art. 73 da LE não delimitou, explicitamente, os destinatários da distribuição gratuita. Assim, não se afigura recomendável, sem amparo em jurisprudência do TSE, que a Administração Pública firme entendimento restritivo da norma, erijindo discrímen ― onde a lei não o fez ― que exclua pessoas jurídicas de direito público ou de direito privado sem fins lucrativos do alvo da regra.

Por outro lado, vale ressaltar que a legislação eleitoral prevê a possibilidade de se formular consulta ao Tribunal Superior Eleitoral – TSE como mecanismo de assegurar maior certeza e segurança jurídica à aplicação das normas eleitorais. A Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965 ― Código Eleitoral[4], traz o instituto da consulta ao TSE, consoante o seu art. 23, inciso XII, verbis:

Art. 23 – Compete, ainda, privativamente, ao Tribunal Superior: …

XII – responder, sobre matéria eleitoral, às consultas que lhe forem feitas em tese por autoridade com jurisdição federal ou órgão nacional de partido político;”

Sendo assim, identificada situação de dúvida quanto à aplicação do art. 73, § 10, da LE, parece adequado que a Administração Pública submeta ao TSE, por meio de consulta, o caso enfrentado, com vistas a conferir a sua atuação a segurança jurídica e lisura exigidos pelo devido processo eleitoral.

 

Notas:
[1] “Art. 14.  ….
§ 9º  Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
§ 10.  O mandato eletivo poderá ser impugnado ante a Justiça Eleitoral no prazo de quinze dias contados da diplomação, instruída a ação com provas de abuso do poder econômico, corrupção ou fraude.”
[2] “Dispõe sobre propaganda, financiamento e prestação de contas das despesas com campanhas eleitorais, alterando a Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997.”
[3] “Art. 73.  ………………………
VI – nos três meses que antecedem o pleito:
a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública;”
[4] “Institui o Código Eleitoral.”

 


 

Informações Sobre o Autor

 

João Felipe Villa do Miu

 

Procurador da Fazenda Nacional

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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