I. O Problema disciplinar*
A Carta de transdisciplinaridade, adotada no I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, realizado em 1994 no convento de Arrábida em Portugal alertava em seu preâmbulo: a vida está fortemente ameaçada por uma tecnociência triunfante que obedece apenas a lógica assustadora da eficácia pela eficácia.[1]
O enfoque transdisciplinar (ou para além dos esquemas disciplinares auto-referenciais) está inserido na própria dinâmica do sistema nervoso central humano na interação dos hemisférios do cérebro. É neste diapasão que se firma o compromisso de um novo ideário superador dos tradicionais ancoradouros do saber nas chamadas ciências criminais, notadamente no que tange à complexa temática da criminalidade dita econômica. Tal arcaísmo notadamente apenas gera um modo de produção insuficiente, para não dizer dissimulador, no que atine às demandas atuais.
Importante insistir na demonstração da defasagem entre a nova visão do mundo que emerge do estudo dos sistemas naturais e os valores que ainda predominam na filosofia, nas ciências do homem e na vida da sociedade moderna[2] baseada, fundamentalmente, num determinismo mecanicista. Daí deflagra-se o deletério enfraquecimento da cultura em detrimento da onipotente tecnociência “que tudo pode”.
A modernidade tem como um dos seus pilares a separação entre cultura e ciência, especialização esta que o olhar para além das disciplinas procura ultrapassar, recompondo a unidade da cultura e encontrando o sentido inerente à vida. É, pois, recusando-se qualquer sistema fechado de pensamento, qualquer tentativa de reduzir o ser humano a uma mera definição ou ainda dissolvê-lo nas estruturas formais[3] que se deve buscar a troca dinâmica (complementaridade) entre ambos os enfoques, e, não, a sua estéril oposição, onde tal encontro permita pensar uma nova visão da humanidade.[4]
Abandona-se justamente o paradigma moderno do unívoco caminho de acesso à verdade e à realidade, onde a atitude discursiva deve, então, ancorar-se numa lógica dialogal entre ciência e tradição, torná-las interativas, a fim de contribuir para uma nova abordagem científica e cultural.[5] Uma necessária reinvindicação transdisciplinar passa pelo rompimento das fronteiras disciplinares – meros pontos de referência que jamais devem cegar a busca por saberes alheios virtuosos à compreensão de objeto de estudo – que compartimentalizam, atomatizam e afogam as possibilidades de integração das inúmeras áreas do saber.
O significado de confluência de vários ramos do saber no estudo de terminada problemática gera o efeito desestabilizador tanto da dicotomia sujeito-objeto quanto à disciplina e suas especialidades. O método dialógico, segundo MORIN,[6] seria o ponto de partida na construção de um saber que ultrapasse a compreensão especializada da modernidade, uma vez que dispõe sobre a relação complexa entre compreensão e explicação.
Assim, para a realização de uma análise que atenda minimamente à compreensão e debate do tema aposto, fato social de tamanha complexidade, e como tal insuscetível de explicação satisfatória por uma única disciplina, por óbvio, faz-se imperativo ultrapassar o campo específico da ciência jurídica.
Idéia esta que se aliará ao que MORIN chama de inter-poli-transdisciplinariedade[7], considerando-se o devido esclarecimento quanto à polissemia e imprecisões terminológicas extraíveis destas definições.
O primeiro termo pode, pura e simplesmente, denotar a colocação de diferentes disciplinas em volta de uma mesma mesa, ou, em sentido forte ao qual nos referimos, significar a troca e a cooperação para a elaboração de um todo orgânico disciplinar. A multidisciplinariedade, por sua vez, o significado a que nos transportamos não é aquele atinente à mera justaposição de especialidades, mas, sim, a associação de disciplinas por conta de um projeto/objeto que lhes sejam comuns. De outra parte, no que concerne à transdisciplinariedade, trata-se erroneamente, por vezes, de esquemas cognicíveis que podem atravessar as disciplinas, freqüentemente, a tal virulência que as deixam em transe; cremos, entretanto, que o desafio da transdisciplinariedade está em gerar uma civilização que, por força do diálogo intercultural, se abra para a singularidade de cada um e para a inteireza do ser.[8]
Neste caminho, pode-se adotar cada termo isoladamente desde que presente que estes complexos só desempenham um fecundo papel na história das ciências se implicados a realizar a cooperação sobre um objeto e, primordialmente, sobre um projeto comum, para além de uma categoria organizadora dentro do conhecimento científico – disciplina – automatizada e esterilizada.[9]
Vamos ao encontro, não obstante, nos dizeres de MORIN,[10] de um conhecimento em movimento, de vaivém, que progrida indo das partes ao todo e do todo às partes. Entretanto, alguma fecundidade disciplinar não pode ser descartada na medida em que possui a virtude de circunscrever determinada área do conhecimento, sem a qual o conhecimento tornar-se-ia intangível. O que se deve é atentar ao perigo da hiperespecialização do pesquisador no tocante ao risco da “coisificação” do objeto estudado, negligenciando-se, assim, as ligações e solidariedades com o universo do qual ele faz parte.[11]
PROUST dizia: uma verdadeira viagem de descobrimento não é encontrar novas terras, mas ter um olhar novo.[12] Procura-se, assim, uma profunda penetração multifocalizadora, multidimensional, em que se achem presentes as dimensões de outras ciências e onde a multiplicidade de perspectivas particulares, longe de abolir, exija a perspectiva global.
Preocupamo-nos, de outro modo, com a tentação, de todo e qualquer empreendimento que adote este caráter inovador, dos reducionismos e das transposições teóricas. Qualquer construção teórica desenvolvida neste universo somente deve ser encarada, como escreve FIGUEIREDO na linguagem psicanalítica, como sendo a possibilidade de fazer do estranho um convidado estratégico que nos permite escutarmo-nos de um outro lugar e de, nessa escuta, quem sabe, fazermo-nos outros para nós mesmos.[13] Recorre-se, com isto, ao que RAMALHO NETO vai chamar de vigilância epistemológica necessária à manutenção do respeito à especificidade dos campos e dos enfoques teóricos das disciplinas envolvidas, assim como das diversas correntes interiores a essas disciplinas.[14]
Trata-se de ajudar na elaboração do novo paradigma cognicitivo[15] que, atualmente, começa a conseguir estabelecer pontos comunicantes entre ciências e disciplinas. Hábil, suma, para a construção de um objeto e de um projeto ao mesmo tempo interdisciplinar, polidisciplinar e transdisciplinar que permita o intercâmbio, a cooperação e a policompetência entre os diversos ramos do saber.[16]
A premência da discussão dos limites do saber, bem como dos próprios valores contemporâneos que o envolve, impõe uma nova postura dos investigadores, distante da crença na unidade de discurso e na potência dos métodos até agora forjados. Do contrário, a postura que ofusca o olhar do pesquisador apenas pode levar a uma intolerância epistemológica.
As barreiras que se abatem sobre este viés no âmbito jurídico são evidentes, parecendo estar comungadas a uma prepotência, para não dizer um auto-encantamento doentio, atrelada(o) a um saber puro e auto-suficiente. Na medida em que proponho a me confrontar com outras áreas do conhecimento é que naturalmente se cultiva a esperança de tornar mais do que evidente nossas radicais limitações acadêmicas, reflexo insofismável da própria incompletude do humano.
II . ‘Arriscada’ Ciência do Indecidível
Desde as formas contrastadas do contrato social, sejam eles a partir da desconfiança-insegurança de Hobbes ou desde a figura da confiança (Locke, Kant e Rousseau), o risco sempre esteve no cerne dos estudos sobre a sociedade moderna. É, todavia, no início do século XX que a outrora proteção minimalista aposta pelo Estado ao todo social dá lugar aos anseios de uma garantia de certa qualidade de vida. Fala-se, então, no Estado-providência ou Estado-social.
Hodiernamente, mais, a desagregação deste modelo assistencialista evidencia claros sinais de fadiga. Segundo OST,[17] a risikogesellschaft toma o lugar do Estado-providência e volta-se a falar de segurança em vez de solidariedade. Em verdade, mais precisamente desde a catástrofe de Chernobil – a mais trivial descrição do presente, diria – toda a violência que os seres humanos aos demais infligiam estava subjulgada à categoria do “outro”. Dirá BECK, que aí reside a emergente força cultural e política de nossa era ao ponto de afirmar que ha llegado el final de los otros.[18]
Vivenciamos um ambiente regido pelo medo, claro produto do máximo desenvolvimento do modelo moderno de sociedade que, por certo, não rompe, em absoluto, com a lógica do desenvolvimento capitalista, sobretudo o eleva a um outro nível. A antiga contraposição natureza e sociedade herdada do XIX que a colocava como simples objeto externo pronta para ser dominada ou ignorada, passa hoje em dia a configura-se num fenômeno interno e produzido.
Este amargo diagnóstico apenas declara a fissura dos modelos jurídicos que não mais captam os fatos. Las preguntas más evidentes cosechan encogimientos de hombros. Los tratamientos médicos fracasan. Los edificios científicos de racionalidad se vienen abajo. Los gobiernos tiemblam. Los votantes indecisos huyen. Y todo esto sin que las consecuencias que sufren los seres humanos tuvieran algo que ver con sus acciones, sus daños con sus obras, y mientras que para nuestros sentidos la realidad no cambia en absoluto (…). A la base de esto se encuentra la idea de que somos testigos (sujeto y objeto) de una fractura dentro de la modernidad, la cual se desprende de los contornos de la sociedad clásica y acuña una nueva figura, a la que aquí llamamos ‘sociedad (industrial) del riesgo’.[19]
O futuro que começa a se perfilar é dominado pela lógica da produção de riscos, onde a ganância de poder de ‘progresso’ técnico-científico vê-se esmagada por este nova dinâmica. As antigas coordenadas e fontes de significado coletivas de uma modernidade industrial projetada desde a segurança, a fé no progresso e na ciência estão inelutavelmente exaustas.
Certamente o risco sempre esteve presente, intimamente ligada a qualquer relação social. Não obstante, três fases claras OST[20] coloca como fundamentos para a compreensão prudente desta transformação. Numa primeira fase, a da sociedade liberal do XIX, o risco assumia a forma de acidente (acontecimento externo e imprevisto). A reação correlata, pois, dava-se numa perspectiva curativa-retroativa (indenização) ou prospectiva (seguro individual ou sistema de previdência).
Já a segunda etapa que despontou no início do XX era norteada pelo viés da prevenção, ou seja, desde um risco doravante objetivável e mensurável, pretendia-se reduzir a probabilidade de sua ocorrência. Aqui, ao domínio científico do riso, soma-se a esfera-se jurídica, generalizando-se, o direito à segurança. Em suma, o risco figurava como acontecimento estatístico, mensurado por probabilidades e socialmente suportável pela mutualização da responsabilidade dos danos.
Atualmente, abandonamos aquela sociedade providencial do risco dominado para adentrarmos na fase do risco enorme, catastrófico, irreversível, imprevisível, que frustra nossa capacidade de prevenção e domínio, traidor de nossas certezas, saberes e poderes.
Como sintetiza BECK, os riscos desde a segunda metade do século XX ya no se limitan a lugares y grupos, sino que contienen una tendencia a la globalización que abarca la producción y la reproducción y no respeta las fronteras de los Estados nacionales, con lo cual surgen unas amenazas globales que en este sentido son supranacionales y no específicas de una clase y poseen una dinámica social y política nueva. [21]
No limiar do que consideramos risco aceitável ou inaceitável, tal tornou-se duplamente reflexivo,[22] pois produto das nossas opções tecnológicas e também fruto de nossos modelos científicos e juízos normativos, na medida que escapam às instituições que se propuseram a controlá-los. O sistema judicial e a política são obscurecidos por debates e conflitos que se originam do dinamismo da sociedade de risco.[23]
O risco, além de ser um produto derivado e um efeito perverso de nossas decisões,[24] é marcado pela ‘glocalidade’ (reflexos globais e locais ao mesmo tempo) e pelo efeito social de bumerang[25] que faz saltar pelos ares, por exemplo, os antigos esquemas de classes. Os riscos afetam, mais cedo ou mais tarde, tanto quem os produziu quanto aqueles que eventualmente deles se aproveitaram.
Com a tendência igualizadora e globalizante, passando pela unidade entre culpado e vítima, a sociedade de risco não é uma opção que se possa escolher ou rejeitar no decorrer de escolhas políticas. A reflexão, enfim, impõe a reflexividade (autocrítica), ou seja, uma modernização reflexiva que signifique uma autoconfrontação de uma sociedade que põe ela própria em perigo com seus efeitos, não mais assimiláveis no modelo industrial. Assevera vez mais BECK que os riscos nos dizem o que não deve ser feito, mas não o que se deve evitar, acrescentando BONSS que desaparece quase que obrigatoriamente a fé na factibilidade técnica da sociedade.[26] Basta termos em conta que ainda nem sequer nasceram os seres humanos afetados por Chernobil, para surpreendermo-nos de nossa incapacidade operativa dada ás dimensões de certeza de limites com que lidamos.[27]
Tais efeitos até agora demonstrados conduzem indeclinavelmente ao reino da ambivalência e da incerteza, onde o critério de viver e agir na incerteza torna-se uma experiência básica. Daí a imperatividade de se praticar, como escreve EWALD,[28] a revisão, tendo como base a ciência como princípio de desconfiança, onde ela passa a interessar-nos mais pelas dúvidas do que pelas certezas que possa trazer.
Diante disto, indo adiante, o império da ciência moderna, segura da infalibilidade de seu método, calcada sempre num futuro novo, melhor e produzido pela vontade humana, como dissemos, é posto em xeque. É o próprio projeto de partilha feita pelos modernos (ciência-natureza; sujeito-objeto; espaço-matéria) que é colocado em duvida frente a si mesmo, daí a já referida reflexividade.
Os postulados científicos, como edifica POPPER,[29] apenas poderão dar-se à título de ensaio, terão validade enquanto não falsificadas por ilustrações de alguma teoria rival. Não é à toa que o autor falará então de um mundo de propensões. A partir de uma “interpretação objetiva da teoria das probabilidades”, determina a fuga assim daquilo que denominou de ideologia do determinismo nos assuntos humanos. Situações passadas, quer físicas, quer psicológicas, quer mistas, não determinam uma situação futura. Mais propriamente, determinam propensões inconstantes que influenciam situações futuras sem as determinar num só sentido.[30]
É a própria instalação de uma epistemologia da incerteza, menos afeita à verdades universais imutáveis e mais pretensa à hipóteses, interpretações e conjecturas. Extrapolamos a racionalidade do universo, oriunda da ciência clássica, que trabalhava a partir de sistemas simples e organizados. Generalizamos as exceções![31]
A ciência contemporânea desde o início do XX, inclina-se a um modo aleatório, incerto e indeterminado. Três momentos talvez possam dar uma noção desse novo modo de se compreendê-la. De um lado EINSTEIN inserindo a dúvida no universo “disciplinado” – tridimiensional vindo da geometria euclidiana, sempre em absoluto repouso e imutável – de NEWTON, tendo de outra parte a teoria quântica de HEINSENBERG que descortinou completamente o ideal clássico da objetividade científica. Já hoje PRIGOGINE envolve a física no estudo das estruturas dissipativas e da desordem criadora.
CAPRA,[32] em seus estudos sobre filosofia da ciência, mais especificamente quando trata da aproximação da visão do mundo da física moderna do XX com as cosmovisões das civilizações do oriente, põe que com o advento da física moderna, as três primeiras décadas do nosso século transformaram radicalmente toda o panorama da física. Em dois artigos em 1905, EINSTEIN deu início a duas tendências revolucionárias do pensamento: de um lado a teoria especial (restrita) da relatividade, doutro ponto o que viria a dar novos contornos à teoria quântica.
A preocupação do professor alemão sempre foi o de encontrar um fundamento unificado para a física, ou seja, uma estrutura comum entre eletrodinâmica e mecânica. Esta construção, pois, demandava transformações drásticas nos conceitos de tempo e espaço. De acordo com a teoria especial da relatividade, o espaço não é tridimensional e o tempo não constitui entidade isolada. Ambos acham-se intimamente vinculados, formando um continuum quadridimensional, o “espaço-tempo”.[33] Assim, tanto o espaço quanto o tempo tornaram-se meramente elementos de linguagem utilizadas pelo observador particular para descrever os fenômenos verificados.
A conseqüência mais importante disso foi a compreensão de que a massa nada mais é que um forma de energia, daí a famosa fórmula E=Mc². Em 1915, proposta estava a teoria geral da relatividade, na qual a estrutura da teoria especial é levada adiante de modo a abranger a gravidade que, segundo EINSTEIN, possui o efeito de “curvar” espaço e tempo. Solapada estava a geometria euclidiana, permanecendo válida somente na “zona de dimensões médias”, isto é, o corpo de nossa experiência cotidiana. Assim, a verdade absoluta, se é que pode ser alcançada, apenas poderia ser determinada pela soma de todas as observações relativas.[34]
Na década de 20, outro impulso fantástico dado aos ditames da física foi dado por um grupo internacional de físicos, entre os quais Niels BOHR, Louis de BROGLIE, Erwin SCHRÖDINGER e Wolfgang PAULI, Paul DIRAC e Werner HEISENBERG. Seus estudos puseram fim à contradição aparente entre as imagens de onda e de partícula dada à matéria e à luz que veio pôr em questão o próprio fundamento mecanicista do mundo, isto é, o conceito de relatividade da matéria. No nível subatômico, não se pode dizer que a matéria exista com certeza em lugares definidos; diz-se, antes, que ala apresenta “tendência a existir”, e que os eventos atômicos não ocorrem com certeza em instantes definidos e numa direção definida, mas, sim, que apresentam “tendências a acorrer”.
Neste ponto, uma das mais importantes leis da teoria quântica é sem dúvida alguma, o princípio da incerteza de HEINSENBERG que afirma que as duas quantidades – posição da partícula e seu momentum (massa multiplicada pela velocidade) – jamais poderão ser medidas com precisão. Podemos obter um conhecimento preciso acerca da posição da partícula e permanecer completamente ignorantes no tocante a seu momentum (e, portanto, sua velocidade) ou vice-versa; ou então, podemos obter um conhecimento tosco e impreciso a respeito de ambas as quantidades. O ponto que importa assinalar é que essa limitação nada tem a ver com a imperfeição de nossas técnicas de medida. Trata-se de uma limitação inerente à realidade atômica.
A teoria quântica revela uma unidade básica no universo. Mostra-nos que não podemos decompor o mundo em unidades menores dotadas de existência independente. À medida que penetramos na matéria, a natureza não nos mostra quaisquer “blocos básicos de construção” isolados. Ao contrário, há uma complexa teia de relações da parte com o todo, de maneira essencial, sempre incluindo o observador.[35]
O observador humano constitui o elo final na cadeia de processos de observação, e as propriedades de qualquer objeto atômico só pode ser compreendidas em termos de interação do objeto com o observador. Em outras palavras, o ideal clássico de uma descrição objetiva da natureza perde sua validade. A partição cartesiana entre o ‘eu’ e o ‘mundo’, entre observador e observado, não pode ser efetuada quando lidamos com matéria atômica.[36]
Nada mais evidente, então, a afirmação de PROGOGINE ao declarar o fim das certezas.[37] Suas pesquisas em curso dispõem sobre um campo de análise inerente a física dos processos de não-equilíbrio (dissipativos), que trazem consigo conceitos novos como o de auto-organização, bem como a caracterização de um tempo unidirecional que confere nova significação à irreversibilidade. Demonstra, mais, que os sistemas dinâmicos instáveis levam a uma extensão da dinâmica clássica e da física quântica e, a partir daí, uma formulação nova das leis fundamentais da disciplina, intimamente ligadas à questão do tempo e do determinismo, centro do pensamento ocidental desde a origem do que chamamos racionalidade.
Indubitavelmente, dá-se uma nova concepção do trabalho científico, afetado profundamente pela acepção do tempo do mundo totalmente incerto. O universo tem uma história e o tempo uma flecha: é irreversível como o nosso saber e vulnerável como os nossos destinos.[38]
Tudo passa pela necessidade de contentarmo-nos humildemente com as revisões, ajustamentos permanentes de soluções, ou seja, num interminável processo de aprendizagem, como escreve POPPER,[39] donde a pretensa objetividade do científico dê lugar à varias verdades.
Umbricada a toda esta conjuntura está, por certo, um aspecto contingencial do futuro, na medida em que se rompe com a experiência vulgar do tempo como simples recondução do passado. É a chamada incerteza ao quadrado para OST,[40] em que o amanhã seria de tal forma novo que perderia toda a pertinência nossos projetos e promessas. Forma-se, assim, uma mentalidade raivosa do presente e uma cultura do no future na medida em que salta aos olhos a dificuldade de imaginar um futuro aceitável.
É o presenteísmo no mais elevado expoente verificado por MAFFESOLI[41] ao analisar os fenômenos de neotribalização em nossas sociedades. Ou ainda, sob um viés mais cético, poderíamos aludir o que COMTE-SPONVILLE[42] chama de nadificação – ou o fato de somente o presente existir – ao debruçar-se sobre o tempo da consciência.
Coloca o professor francês fundamentalmente o caráter aporético do tempo. A fuga é seu modo de ser, da mesma forma confirma e nega o ser (ser no tempo é ser presente ou não ser, mas ser presente já é cessar de ser): negação que já o suprime; confirmação que o supõe.[43]
Latente estarmos numa sociedade em busca de valores[44], uma verdadeira era do vazio, como quer LIPOVETSKY. Uma nova fase do individualismo ocidental, simbolizado pelo narcisismo – hipertrofia do ego –, conseqüência do processo de personalização, representador da passagem de um individualismo “limitado” a um individualismo “total” (uma segunda revolução individualista). Murió el optimismo tecnológico y científico (…), ya ninguna ideología política es capaz de entusiasmar a las masas, la sociedad posmoderna no tiene ni ídolo ni tabú, ni sólo imagen gloriosa de sí misma, ningún proyecto histórico movilizador, estamos ya regidos por el vacío, un vacío que no comporta, sin embargo, ni tragedia ni apocalipsis.[45] Ainda mesmo no campo moral, conflui a mais profunda incerteza plasmada na pluralidade de “standarts” morais, numa era do após-dever.
Depois de termos vivenciado uma primeira fase da história moral ocidental – momento teológico da moral – intimamente religiosa, onde sem a revelação e as sanções “post mortem” ela se tornaria impossível, passamos ao advento de uma segunda, após o século XVIII, laico-moralista, onde o processo de secularização tirou dela uma das figuras essenciais: o dever absoluto e a ética do sacrifício. Adentramos hoje numa etapa “pós-moralista”, estimulante dos desejos, do ego, da felicidade, mais afeita ao bem-estar individual do que ao ideal de abnegação.[46]
Mesmo que não estejamos num grau zero de valores, o que satisfaria um cinismo generalizado, o que deixou de ser socialmente legítima é uma moral categórica e regular. O fetichismo do dever de sacrifício está caduco. Reconhecemos valores negativos: não matar, não roubar, não causar sofrimento; mas já não deveres positivos, regulares e sistemáticos: dedicação a causas exteriores a nós próprios. Correlativamente, desejamos normas morais indolores, minimais e ‘à la carte’.[47] Tudo isto sob o reinado da caridade midiática que cada vez mais fixa as prioridades, que conseguem estimular e orientar a generosidade, ou seja, a moral como produto a ser consumido.
III. Palavras (In)Conclusivas
Despidos de sentido – trazendo especificamente ao campo de análise que nos propomos examinar – para dizer o menos, revelam-se retrógradas as concepções tão úteis à dogmática processual penal como “verdade real”[48] ou ainda juízos de certeza e segurança. Como conseqüência desse cenário de risco total, buscamos no direito penal a segurança perdida. Queremos segurança em relação a algo que sempre existiu e sempre existirá: violência[49] e segurança.[50]
A metamorfose normativa dá-se nas teorias da norma penal e do delito, ensejando lesões aos princípios da legalidade sem sentido amplo (leis penais em branco), legalidade em sentido estrito (tipos penais em aberto), lesividade (criminalizações de auto-lesões e de delitos sem vítima) e culpabilidade (normas de perigo abstrato), sobrepondo gradualmente à responsabilidade objetiva. Como se não bastasse, no quadro processual, relegitimam-se sistema inquisitoriais com supressão dos direitos de ampla defesa através da diminuição das garantias de presunção de inocência e contraditório (inversão do ônus da prova e juízos de periculosidade), individualização (elevação das penas), imparcialidade do juiz (juiz investigador) e idoneidade da prova (aceitação de provas ilícitas).[51]
O sonho narcísico da penalística enamorado por sua auto-imagem retratado numa necrose retórica é denotado desde a desconstrução da ofensa eficientista-intimidatória – distribuição de etiquetas com desigual incidência dos aparatos punitivos e potencialização dos conflitos em detrimento do discurso resolutivo – tão bem exibida pelas ciências sociais no campo criminológico (criminologia crítica, etnometodologia e o interacionismo simbólico), quanto no que se refere à ofensa tutelar-agregadora inerente aos ideários de ‘direito penal do risco’ que nada mais refletem a inconsciência de que os riscos da sociedade pós-industrial estão para além da capacidade do controle penal.
Adotando-se, pois, uma ética transdisciplinar, nesta esteira, procuramos de forma concomitante denunciar a arrogância e ostentação da retórica penal para, enfim, demonstrar que a pretensão e a soberba gerada pela crença romântica de que o direito penal pode salvaguardar a humanidade de sua destruição impede o angustiante e doloroso, porém altamente saudável, processo de reconhecimento dos seus limites.[52]
É neste quadro, enfim, onde o caos é a regra e a ordem o excepcional, que teimosamente ou quiçá doentiamente ambicionamos com a ciência jurídica reconduzir um passado perdido, e (mais!) ordenar o futuro.
Advogado, Professor de Direito Penal e Criminologia da Universidade de Passo Fundo – RS; Mestre em Ciências Criminais pela PUCRS; Especialista em Ciências Penais pela PUCRS, Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra
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