As Vicissitudes das Condições da Ação no Processo Civil Brasileiro: História, Aplicação e Vertentes

Autor: Matheus Chebli de Abreu – Acadêmico de Direito na Universidade de São Paulo (USP)

Orientador: Prof. Dr. Heitor Vitor Mendonça Sica – graduado em Direito pela Universidade de São Paulo, mestrado em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo e doutorado em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo.

Resumo: O presente artigo trata sobre as condições da ação, apresentando uma descrição geral, uma perspectiva histórica e as discussões e implicações teóricas sobre suas definições, interpretações, alterações e aplicações no ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, analisa-se a doutrina de diferentes autores, bem como a construção que determinou a inserção e a vigência das condições da ação no Processo Civil brasileiro, baseada na tríade entre “legitimação ad causam”, “interesse de agir” e “possibilidade jurídica do pedido”. Conclui-se, então, sobre as mais recentes alterações em suas formulações, sejam elas doutrinárias, como a noção de “pressupostos de admissibilidade do provimento jurisdicional”, ou trazidas pelo Novo Código de Processo Civil, que levou à classificação da possibilidade jurídica do pedido como julgamento de mérito. Adotou-se a pesquisa referencial bibliográfica, valendo-se de livros, artigos e obras que versam a respeito do tema estudado, consultando-se também o texto legislativo brasileiro.

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Palavras-chave: Condições da Ação. Pressupostos de Admissibilidade do Provimento Jurisdicional. Possibilidade jurídica do Pedido. Novo Código de Processo Civil. Código de Processo Civil de 1973.

Abstract: The present article deals with the judicial claim conditions, presenting a general description, a historical perspective and the discussions and theoretical implications about its definitions, interpretations, changes and applications in the brazilian legal system. In this sense, there will be an analysis regarding the legal doctrine of different authors, as well as the construction which determined the insertion and the enforcement of the juridical claim conditions in the Brazilian Civil Procedure, based on the triad “legitimatio ad causam”, “interest in the claim” and “juridical possibility of the demand”. It is, then, concluded, about the most recent alterations in its formulations, be it doctrinary, as the notion of “Jurisdictional Provision Admissibility Precepts”, or brought by the New Civil Procedure Code, which led to the classification of the juridical possibility of the demand as trial of merit. The study adopts a referencial bibliographic research, making use of books, articles and works that deal with the studied topic, while also consulting the brazilian legislative text.

Keywords: Judicial Claim Conditions. Jurisdictional Provision Admissibility Precepts. Juridical Possibility of the Demand. New Code of Civil Procedure. Code of Civil Procedure of 1973.

Sumário: Introdução. 1. Introdução às condições da ação: o direito de ação. 2. O direito de ação e as condições da ação. 2.1. A noção de condições da ação. 2.1.1. As condições da ação para Liebman: noção introdutória. 2.1.2. As condições da ação para Bedaque: noção introdutória. 2.1.3. As condições da ação para Dinamarco: noção introdutória. 2.2. Teorias sobre a ação e sobre as condições da ação. 2.3. A relação entre o direito de ação e as condições da ação: uma perspectiva constitucional. 2.3.1 A instrumentalidade do processo. 3. As condições da ação, os pressupostos processuais e os pressupostos de admissibilidade do provimento jurisdicional. 4. As condições da ação e o mérito. 4.1. As condições da ação e o julgamento de mérito. 4.1.1. O julgamento antecipado de mérito. 4.2. A visão de Bedaque sobre o mérito e as condições da ação. 4.3. As condições da ação e os elementos da demanda. 4.4. O Julgamento de mérito, a sentença de carência e a repropositura da demanda. 5. A teoria adotada pelo Código Brasileiro: uma breve síntese por análise comparada. 6. Conclusão. Referências.

Introdução

O direito de ação é um dos institutos mais antigos nos ordenamentos jurídicos baseados no sistema romano-germânico. Em Roma, o ordenamento jurídico nomeava os direitos a partir de uma ação correspondente – isto é, para cada direito ou interesse (ius) havia uma ação (actio) a ele associada. Nesse contexto, os juristas e pretores não determinavam as circunstâncias de existência de um direito, mas sim os casos em que as actiones eram aplicáveis.

A elaboração das teorias das condições da ação, historicamente, nasce a partir do debate sobre a actio travado entre Windscheid e Muther, que, para Dinamarco, despertou a ciência jurídica para a importância do direito público, em um primeiro passo para a formação do direito processual científico e sistemático. Neste celeuma, Windscheid, no contexto pós-Revolução Francesa, sustentou que a actio romana era diferente da ação de sua época, devido à lógica de possuírem diretos apenas aqueles que possuíam ação. Muther, em contrapartida, alegava que a regra judiciária não preponderava sobre a jurídica no caso romano.

Hodiernamente, o ordenamento jurídico brasileiro tem o direito de ação institucionalizado constitucionalmente e processualmente. O Código de Processo Civil, em seu art. 1°, estatui a interpretação conforme a Constituição Federal e, com isso, o direito de ação é assegurado pela garantia ao acesso ao Poder Judiciário, (art. 5, XXXV, CF), pelo direito ao devido processo legal (art. 5°, LIV), e pelo direito à petição (art. 5°, XXXIV, a).

Dessa forma, sua consolidação recente, isto é, a partir do CPC/1973, está intrinsecamente ligada à noção de “Condições da Ação”, instituto que determina elementos que atuam como pressupostos para admissibilidade do provimento jurisdicional, de forma a analisar o interesse de agir, a legitimação ad causam e, nos ditames do CPC/1973, a possibilidade jurídica do pedido. Nesse espeque, inúmeras teorias acerca de sua aplicação, princípios e vigência foram elaboradas ao longo de sua evolução e maturação doutrinária como instituto autônomo.

Por isso, torna-se necessário promover uma análise crítica sobre a aplicação e elaboração das condições da ação no processo civil brasileiro, com o intuito de esclarecer e responder algumas problemáticas que permeiam ou permearam a doutrina brasileira. É essa, portanto, a proposta do presente trabalho, a partir da pesquisa referencial bibliográfica.

1. Introdução às condições da ação: o direito de ação

Com o advento do Estado democrático de direito, o direito de ação passa a ser associado com garantias constitucionais e processuais, principalmente após 1988, com a promulgação da Constituição Cidadã, e 2015, com o Novo Código de Processo Civil, que permitiram uma recriação do instituto, possibilitando uma amplíssima interpretação e aplicação dos dispositivos constitucionais e levando-se à readaptação das previsões do CPC de 1973, cujas alterações se consolidaram no Código de 2015.

Interpreta-se, hoje, o direito de ação como mais do que o direito ao simples acesso ao poder judiciário, ou a simples possibilidade de demandar em juízo. Na verdade, a noção contemporânea prevê um direito de ação fundado na possibilidade de ser ouvido em juízo, ou seja, o demandante não tem apenas o direito de apresentar sua demanda, mas também de ter sua demanda apreciada e, porventura, influenciar na decisão final do magistrado, a partir de uma tutela jurisdicional. Logo, prevê também o direito ao pronunciamento do juiz sobre a demanda apresentada.

Constitucionalmente, o direito de é ação previsto, por exemplo, na garantia de acesso ao poder judiciário (art. 5°, XXXV) e no direito ao devido processo legal (art. 5°, LIV).

Dinamarco, ao tratar da situação jurídica das partes, fala um pouco sobre a ação e sobre o direito de ação. Para ele, ação e defesa são a síntese de todas as possibilidades de atuação processual, e o direito à ampla defesa configura, para ambos autor e réu, isto é, tanto no caso de ação quanto de defesa, a possibilidade para sustentação de razões e formulação de demandas ao longo do procedimento, restringido apenas pelo limite da legalidade. Além disso, para ele, a diferença entre a ação e a defesa consiste no fato de que apenas a ação possui papel provocativo, isto é, apenas a ação poderá dar início ao processo “O conceito de ação inclui os poderes de iniciativa e participação, o de defesa, somente participação” (DINAMARCO, 2017, p.347).

Fala, também, que ação e defesa configuram-se como poderes (conjuntos de situações jurídicas), baseados na capacidade de produção de efeitos sobre a esfera jurídica alheia, por meio de exigências e atos processuais, visto que, no direito processual, não há direitos subjetivos e obrigações, como consequência do interesse público pelo cumprimento dos objetivos da jurisdição.

O Código de 1973 adota a teoria de Liebman, enquanto defensor da Teoria do Trinômio. Nesse sentido, três eram as categorias fundamentais relacionadas ao objeto da cognição do juiz: os pressupostos processuais, as condições da ação e o mérito da demanda – ambos os pressupostos processuais quanto às condições da ação deveriam estar presentes para que houvesse análise da pretensão do autor, mas era a presença das condições da ação que permitiam o conhecimento do mérito da demanda.

2. O direito de ação e as condições da ação

2.1. A noção de condições da ação

A noção contemporânea das condições da ação se dá a partir da interpretação do instituto como construção da técnica processual – é, assim, regido principalmente pela doutrina, que deve se ater ao esclarecimento de seu significado e de sua finalidade para que não se transformem em óbices injustificados aos escopos do processo. Contudo, o conceito de condições de ação não se afirma como consenso doutrinário: apesar de sua considerável existência, há processualistas que o negam, sob o argumento de que, na verdade, constituem requisitos necessários para a procedência do pedido.

As condições da ação passaram por diferentes momentos doutrinários e, por isso, foram definidas de diferentes maneiras ao longo de sua evolução na ciência processual até os dias de hoje. Inicialmente, foram categorizadas em três elementos distintos: a possibilidade jurídica do pedido, o interesse de agir e a legitimidade ad causam.

A possibilidade jurídica do pedido, para Liebman, foi, em seu primeiro momento doutrinário, conceituada como “admissibilidade da pretensão pleiteada pelo juiz”, e baseava-se na existência, ou não, de uma norma jurídica que tutelasse, de forma tácita ou explícita, o direito pleiteado pelo autor. Segue, então, a lógica civilista de que “o que não é proibido é permitido”, e somente se constataria impossibilidade jurídica do pedido quando houvesse vedação expressa das pretensões do autor no ordenamento jurídico. Posteriormente, defendeu que a impossibilidade jurídica integrasse hipóteses de ausência do interesse de agir.

Dinamarco também se pronunciou sobre o assunto, falando em “possibilidade jurídica da demanda”. Para o autor, a possibilidade jurídica do pedido deve ser analisada em relação aos três elementos da demanda: o pedido, a causa de pedir e as causas da demanda.

O interesse de agir consiste na “utilidade da tutela requisitada” e na “aptidão do provimento jurisdicional a melhorar a situação da vida do autor.”. Para Liebman, seria “a relação de utilidade entre a afirmada lesão de um direito e o provimento de tutela jurisdicional do pedido”, sendo representado pela “situação antijurídica denunciada e o provimento que se pede para debelá-la, mediante a aplicação do direito” (2005. p. 155-6). Portanto, para que haja interesse de agir, deve-se haver necessidade da tutela jurisdicional para o autor: o Poder Judiciário deve ser o único meio de obtenção da tutela – consolida-se, assim, a ligação entre o instituto e a exigibilidade da prestação.

Há também outras formulações acerca do interesse de agir, baseadas, por exemplo, na proposta “interesse-adequação”, que define como responsabilidade do autor selecionar a tutela mais adequada para o interesse pleiteado, a partir de uma “ofertas de tutelas pelo Estado” – são essas ofertas que possibilitarão o provimento jurisdicional adequado.

A legitimação ad causam, também denominada “legitimidade para agir”, consiste na correspondência entre as posições de autor e réu na demanda, e entre as posições de sujeito passivo e ativo na relação jurídica material. Liebman a define como “pertinência subjetiva da ação”, determinada pela “identidade entre quem propôs (a ação) e aquele que poderá pretender para si o provimento de tutela jurisdicional pedido com referência àquele que foi chamado em juízo” (2005, p.159).

Susana Henriques da Costa traz uma definição sucinta do instituto; ipsis verbis: “é legitimada a parte que detém titularidade ativa da relação jurídica de direito material afirmada na demanda em face de quem é a titular do polo oposto, ou, em casos excepcionais, aquela (parte) que a lei permite que defenda, em nome próprio, interesse alheio” (2005, p. 68). Dinamarco também acrescenta ao debate. Para o autor, a legitimidade ad causam se insere no âmbito do interesse para agir, visto que sua falta implicaria na ausência de utilidade do provimento jurisdicional.

Vale destacar que o elemento supracitado não se confunde com a legitimidade ad processum: na legitimação ad causam, a legitimidade da parte depende da situação legitimante, isto é, é definida pelo pertencimento do direito pleiteado ao autor e pela exigibilidade do direito ao sujeito passivo da relação material expostas. Já a legitimidade ad processum trata da capacidade da pessoa para agir em juízo e para contestação. Destaca-se também a divisão feita entre legitimação ordinária e legitimação extraordinária: a primeira se refere à atuação da parte em interesse próprio, possuindo titularidade do direito apresentado em juízo, e a segunda trata da litigação da parte em nome próprio e sobre direito alheio, em uma “transmigração do individual para o coletivo” – o que se difere da representação, em que a atuação é sobre interesse e direito alheios.

2.1.1. As condições da ação para Liebman: noção introdutória

Liebman foi um dos grandes expoentes e precursores da maturação das condições da ação na teoria processual civil. Suas lições foram adotadas pelo Código de Processo Civil brasileiro, e podem ser divididas em dois momentos doutrinários distintos. Primeiramente, o autor defendia a autonomia das condições da ação como instituto em relação ao julgamento de mérito, e afirmava que, no processo de cognição, apenas a sentença possui natureza plena de ato jurisdicional, enquanto as demais decisões possuem apenas caráter preparatório, permitindo, assim, a distinção entre a extinção do processo com ou sem julgamento de mérito.

A princípio, é essa a teoria acolhida pelo Código de Processo Civil de 1973, que defende que as condições da ação não fazem parte do mérito. Adota, portanto, em seu art. 267, VI, a noção da possibilidade jurídica do pedido, cuja presença, de forma autônoma, não mais consta no CPC/2015. Além disso, adota também a perspectiva de Liebman acerca da legitimação ad causam, contida no art. 6° do CPC/1973 (art. 18 do CPC/2015).

Em segundo momento, Liebman abole a possibilidade jurídica do pedido como elemento autônomo, integrando a impossibilidade jurídica da demanda às hipóteses de ausência de interesse de agir, reduzindo sua teoria apenas às duas espécies de de condições da ação: interesse de agir e legitimidade ad causam – é essa a teoria adotada pelo CPC/2015, apesar de o mesmo não fazer menção expressa ao termo “condições da ação”.

2.1.2. As condições da ação para Bedaque: noção introdutória

Em sua obra “Efetividade do Processo e Técnica Processual”, Bedaque introduz suas ponderações acerca do instituto das condições da ação. Propõe a relação entre condições da ação e a natureza das sentenças, sejam elas declaratórias ou condenatórias. Foi também um grande adepto da instrumentalidade das condições da ação, propondo, também, sua aplicação e aproximação com a noção de “processo civil de resultados”, de forma a buscar não apenas a análise das questões apresentadas ou a mera extinção da lide, mas também conciliar as condições da ação com as consequências da crise de direito na realidade fática.

Ademais, para Bedaque, não se pode confundir as condições da ação com o mérito ou a carência de condições da ação com a improcedência do pedido. Para o autor, a sentença de extinção do processo por carência de ação não configura análise de mérito (e, por isso, não formaria coisa julgada material), enquanto uma sentença referente à improcedência do pedido seria, na verdade, um julgamento de mérito. Todavia, o autor também defende que, na sentença de carência de ação, há um conteúdo substancial que configura eficácia exterior e, portanto, no que se refere a esse conteúdo, tal sentença adquire imutabilidade.

2.1.3. As condições da ação para Dinamarco: noção introdutória

Em sua obra “Instituições do Direito Processual Civil, vol. II”, Dinamarco alega que as condições da ação constituem-se como requisitos da própria existência do direito ao processo, e não de seu exercício, ou seja, apenas quando presentes os requisitos decorrentes do interesse de agir e da legitimação ad causam é que se pode falar em um direito de ação, caso contrário, há carência de ação por ausência de direito de ação.

Contudo, ressalta também que o processo é dado como formado desde a demanda inicial, mesmo que careça dos pré-requisitos da ação, isto é, mesmo que o direito ao processo seja inexistente. Afirma, também, que as condições da ação devem ser reais, e não dissimuladas, em uma clara oposição à teoria da asserção.

Outra característica de sua doutrina acerca do tema é a distinção entre o julgamento havendo condições da ação supervenientes e que desaparecem no curso do processo. Para Dinamarco, se, no momento de julgamento de mérito, houver condição antes faltante em processo que o autor carecia de ação, o juiz deve julgar, sim, o mérito. (art. 462, CPC/1973; art. 493, CPC/2015). Ademais, se antes existia condição da ação que tornou-se ausente ao longo do processo, o autor carece de ação e o mérito não será julgado (pedido prejudicado).

2.2. Teorias sobre a ação e sobre as condições da ação

A teoria imanentista das condições da ação é baseada na classificação da ação como um direito subjetivo em estado de defesa, consubstanciando-se no poder que um indivíduo possui contra o outro, isto é, contra o réu da relação processual.

Elaborada inicialmente por Wach, na teoria concreta da ação acredita-se que o direito de ação é um direito autônomo e correspondente ao direito à tutela jurisdicional, dirigindo-se, portanto, do juiz ao réu. Atribui-se à teoria concreta a primeira introdução às condições da ação como requisitos a serem preenchidos para exercício do direito de ação.

A maior crítica apresentada à teoria concreta se baseia no fato de não conseguir explicar a ação improcedente, não sendo possível, como bem apontado por Ada Pellegrini e Cândido Dinamarco, explicar satisfatoriamente os atos processuais praticados até a sentença.

Chiovenda é considerado seu maior expoente. O autor coloca o direito de ação como um direito potestativo a uma sentença favorável, como “um poder jurídico de dar vida à condição para a atuação da vontade da lei” (2009, p. 42). Para ele, a natureza jurídica do direito de ação seria fixada pela natureza jurídica do direito veiculado através da própria ação.

Na doutrina brasileira, tem-se como representantes da teoria concreta da ação Botelho de Mesquita e Celso Agrícola Barbi.

Inicialmente elaborada por Degenkolb e Plósz, na teoria abstrata da ação, o direito de ação existe independentemente da efetiva existência do direito material invocado. Ou seja, não depende de uma sentença favorável ou de procedência, sendo considerado preexistente à demanda. Configura-se assim, o direito de ação como direito a um pronunciamento do Estado e a ele se dirige. A teoria abstrata da ação teve diferentes vertentes, apresentadas a seguir.

Uma de suas vertentes, a dos chamados “abstratistas puros”, pregava que o direito de ação seria um direito da personalidade e incondicionado, exercido pelo indivíduo contra o Estado, para pleitear uma resposta à sua pretensão. Seus críticos alegam que a teoria abstratista pura considera o processo apenas sob a perspectiva do interesse público, cedendo, por vezes, ao autoritarismo e ao coletivismo.

Outra vertente seria aquela representada por Liebman, a chamada “teoria abstrata de Liebman”. Nela, subordina-se a existência do direito de ação ao preenchimento dos requisitos estabelecidos pelas condições da ação, e, não sendo atendidos tais requisitos, o indivíduo seria impedido de invocar do Estado a prestação jurisdicional. Por isso, as condições da ação configuram-se, para Liebman, como “condições de admissibilidade do julgamento do pedido”. Essa posição sofreu várias críticas referentes ao requisito das condições da ação para que a própria ação exista – ora, nesse caso, não haveria explicação plausível para explicar o fenômeno processual entre a propositura da demanda e o reconhecimento da carência de ação; ulteriormente Liebman justificou sua teoria a partir da distinção entre direito de ação constitucional e direito de ação processual.

É também forte, no ordenamento brasileiro, a corrente abstratista que constitui a chamada “Teoria do Binômio”. Seus integrantes defendem que a decisão sobre a existência ou não das condições da ação configura julgamento de mérito. Além disso, a impossibilidade jurídica do pedido ocorreria em casos de improcedência manifesta (se o ordenamento veda a pretensão do autor, então ele não possui o direito pleiteado, o que configura uma decisão de mérito), e, na constatação da legitimação ad causam, caso fosse constatada a ilegitimidade do autor ou do réu, haveria, de acordo com Adroaldo Furtado Fabrício, “clara prestação jurisdicional de mérito desfavorável ao autor – vale dizer, sentença de improcedência”. Quanto ao interesse de agir, entende-se que, se o direito do autor ainda não é exigível, não teria ele o direito de pleitear que o réu cumpra sua obrigação – há, portanto, julgamento de mérito.

A teoria assertiva é, na verdade, uma incorporação das críticas à teoria de Liebman, sem que se adote uma visão totalmente abstrata. Propõe que as condições da ação sejam analisadas in statu assertionis, e somente uma decisão baseada na exordial configura decisão a respeito das condições da ação. Revela, assim, o verdadeiro caráter instrumental das condições da ação, e é fortemente criticada por determinar a mudança na natureza do conteúdo processual a depender da cognição feita pelo juiz: uma cognição sumária seria referente ao julgamento das condições da ação, enquanto uma cognição exauriente por parte do magistrado não mais configuraria a sentença dessa maneira.

Nela, a possibilidade jurídica é constatada a partir da verificação do magistrado acerca da ausência de normas que vedam a pretensão do autor, e, caso fossem analisados elementos externos à exordial, parte-se para análise do mérito, e não das condições da ação. A legitimidade de agir é aferida a partir da conclusão de que o autor e o réu são de fatos os sujeitos da relação jurídica apresentada em juízo. Por fim, o interesse de agir encontra-se presente caso o juiz compreenda que a tutela jurisdicional requisitada lhe será útil, sob o princípio do “interesse-adequação”.

A teoria eclética nasce da síntese das críticas introduzidas por processualistas às condições da ação, baseadas na caracterização destas como requisitos necessários à procedência do pedido. Seu principal expoente é Liebman, e pretende determinar a distinção entre as condições da ação e as condições de mérito através do critério baseado na profundidade da cognição do magistrado ao analisar elementos do procedimento.

Na teoria eclética, indaga-se se há, de fato, uma diferença ontológica entre a cognição sumária e a exauriente, já que configuram, respectivamente, análise sobre as condições da ação e sobre o mérito da demanda.

2.3. A relação entre direito de ação e as condições da ação: uma perspectiva constitucional

A maturação da ciência processual permitiu a chegada ao “terceiro momento metodológico” do direito processual, marcado pela instrumentalidade como polo de irradiação de ideias e coordenação de institutos, princípios e soluções. Nesse contexto, a partir do momento em que o Estado assume a tutela dos direitos dos cidadãos, passa também a arcar com a responsabilidade efetiva de realização desses direitos – logo, o Estado não mais se limita a apenas disponibilizar o aparato judiciário, mas também a garantir seu acesso, eliminando óbices ao acesso à justiça e ampliando o alcance da tutela jurisdicional, assegurando o bom funcionamento dos órgãos jurisdicionais e dos mecanismos judiciários.

Durante esse processo, alguns autores aderiram à ideia do “processo civil de resultados”, bem elucidada por Bedaque ao dizer que ”o processualista não pode esquecer jamais que sua técnica é simples garantia para que o resultado seja alcançado com segurança. Nada mais que isso.” (2007, p.333). E, considerando-se o instituto das condições da ação, o autor propugna que devem ser analisadas ab initio, para que depois passa se verificar se o autor tem ou não o direito pretendido – a ordem visa evitaria, assim, que o processo se desenvolva inutilmente, visto que a ausência de uma das condições revela que o direito pretendido é manifestamente inexistente.

Até mesmo durante a vigência do Código de Processo Civil de 1973 tinha-se a noção do chamado “Direito Processual Constitucional”, que adaptava e auxiliava as interpretações do CPC sob a luz da Constituição de 1988. Contudo, a aplicação dos princípios constitucionais, inicialmente, sofrera considerável resistência. Por exemplo, Liebman, ao alegar que mesmo havendo direito de ação constitucionalmente reconhecido não há relevância deste para o processo, visto que não conduziria, necessariamente, a um provimento sobre o mérito, apresenta, de certa forma, resistência à correlacionar o direito de ação constitucionalmente previstos (bem como os direitos que dele decorrem) ao Processo Civil.

Dessa forma, a relação entre direito de ação e as condições de ação deve ocorrer de forma recíproca. Primeiramente, é necessário estabelecer que as condições de ação não restringem ou impedem o direito de ação e nem o direito ao devido processo legal. Dessa forma, mesmo que o requerimento de condições da ação possam impedir o provimento de tutela jurisdicional, há, ainda, nesse caso, um direito à ação propriamente dito. Ora, a partir do momento em que se avalia a presença ou não das condições necessárias para o provimento jurisdicional da demanda e, com isso, verifica-se a possibilidade de estabelecimento de uma relação processual, há apreciação do pedido do autor e acesso ao poder judiciário. Porém, mesmo que tal acesso e tal apreciação ocorram a partir de uma técnica processual distinta, que preze pela economia processual e pela eficiência do sistema judiciário, a aplicação abusiva e irresponsável das condições da ação fere a ordem jurídica e a constitucionalidade do instituto, e, portanto, não podem ser apresentados óbices injustificados aos escopos do processo.

Quanto às condições da ação e o devido processo legal, deve-se deixar claro que não há relação dicotômica aqui estabelecida: o instituto não impede o princípio e nem o princípio impede o instituto. Contudo, para que isso ocorra, a aplicação das condições da ação deveria ser feita de forma moderada, de forma a se evitar, por exemplo, a chamada “litigiosidade contida”, fenômeno descrito por Dinamarco, em que, devido à aplicação abusiva ou irresponsável das condições da ação, a possibilidade jurídica do pedido torna-se ato limitativo de acesso à justiça, através da exclusão da jurisdicionalidade. Isso não só prejudicaria o devido processo legal, mas também a universalização da jurisdição e o amplo acesso à justiça.

Trata-se, então, de uma técnica processual que preza pela eficiência e pela economia do processo. Ao determinar requisitos a serem preenchidos pela demanda, impedem a tramitação de um processo cuja extinção é iminente e inevitável e que, por isso, obstrui o ordenamento jurídico, devido a impossibilidade de resolução da crise de direito material; impossibilidade essa inerente à própria natureza da demanda. Logo, impedem, também, o bloqueio superveniente do sistema.

Hoje em dia, contudo, as condições da ação configuram-se como normas de fundamentação majoritariamente doutrinária, sendo também infraconstitucionais, e que respeitam os princípios da Constituição, principalmente àqueles previstos no art. 5°, incs. XXXV, LIV e LV . O que as condições de ação fazem, na verdade, é, de acordo com o seu cumprimento ou não, definir a possibilidade de julgamento de mérito da demanda, solucionando, portanto, a crise de direito material, ou de extinção do processo, respectivamente. Ou também podem permitir a reformulação da demanda para correção de vícios, dando a chance de repropositura da demanda após preenchidas as condições necessárias. Como dito previamente, os resultados de sua aplicação dependerão do momento doutrinário em que se encontra – hodiernamente, não há sequer a definição ou menção expressa do termo “condições da ação” no CPC.

2.3.1. A instrumentalidade do processo

A natureza instrumental da ação está ligada ao direito de ação, considerado principalmente por sua perspectiva constitucional durante a maior fase da vigência do CPC/1973, devido à constitucionalização do acesso à justiça como garantia fundamental do indivíduo (art. 5°, XXXV, CF), garantindo, com isso, o direito de ação e a inafastabilidade do controle jurisdicional. Transforma-se, assim, o direito de ação em um direito ao acesso à ordem jurídica justa, abrangendo a efetividade da tutela jurisdicional e o provimento de instrumentos hábeis para sua obtenção e integrando o patrimônio jurídico do cidadão, consolidando-se como direito da personalidade.

Logo, o direito de ação deve ser enxergado como garantia de que as pretensões serão analisadas pelo Poder Judiciário. Deve-se considerar também que corresponde a uma garantia de desenvolvimento regular do processo, promovendo igualdade entre as partes e assegurando o direito à informação, à ampla defesa, à publicidade e ao contraditório (art. 5°, LV, CF) , zelados por um juiz participativo, porém imparcial. Por derradeiro, consolida-se, também, o direito de ação como um direito bilateral, direcionado tanto ao autor quanto ao réu.

Nesse espeque, é na perspectiva instrumental que se busca a verdadeira natureza jurídica das condições da ação. Portanto, entende-se, hoje, que as condições da ação configuram-se como técnicas processuais a partir de sua aplicação juntamente ao princípio da economia processual – e os efeitos disso são seu reconhecimento ab initio, sob forma de tutela diferenciada, sendo cognoscíveis ex officio pelo juiz. Adota-se, aqui, a definição de Dinamarco referente à técnica processual, tratada como “predisposição ordenada de meios destinados à realização dos escopos processuais” (2009, p. 226) pelo autor.

Aplicando-se a perspectiva instrumental, surge o instituto das “tutelas diferenciadas”, baseado, principalmente, na economia processual. Uma tutela diferenciada é fruto de uma cognição sumária e, apesar de ser, geralmente, um resultado de urgências, sempre busca maximizar o resultado do processo – na verdade, a grande maioria é provisória e não possui aptidão para tornar-se definitiva, salvo casos específicos previstos na legislação. Tratando-se de uma tutela diferenciada decorrente de uma sentença de carência de ação, ao constatar-se a ausência de uma das condições da ação, leva-se à antecipação do insucesso do pleito, poupando o réu e o aparato estatal dos danos marginais do processo.

Alguns processualistas modernos associam as condições da ação ao conceito de objeção, encontrado por contraposição ao conceito de exceção: enquanto a exceção configura-se como um contradireito do réu e, por isso, não produz injustiças ao não ser considerada ex officio, a objeção deve, necessariamente, ser apreciada de ofício pelo magistrado, visto que, caso não o seja, produziria injustiças. Objeções são, por isso, “questões de ordem pública”, podendo ser apresentadas e reconhecidas independentemente da manifestação das partes. Dessa forma, as condições da ação tornam-se objeções substanciais.

3. As condições da ação, os pressupostos processuais e os pressupostos de admissibilidade do provimento jurisdicional.

As condições da ação, de acordo com a teoria adotada pelo CPC/1973, diferenciam-se dos pressupostos processuais, visto que estes são necessários para a existência e validade do processo, ou seja, para a relação jurídica processual devidamente formada e desenvolvida, podendo ser interpretados a partir de uma doutrina restritiva ou ampliativa.

Uma interpretação restritiva acerca dos pressupostos processuais considera como seus elementos a demanda regularmente formulada, a capacidade de quem formula a demanda, e a investidura do destinatário da demanda. Já a interpretação ampliativa permite a divisão entre pressupostos subjetivos e objetivos; estes, por sua vez, podem ser negativos ou positivos – os pressupostos subjetivos consistem no juiz investido de jurisdição, na capacidade das partes e nos órgãos auxiliares, enquanto os pressupostos objetivos negativos são definidos pelos fatos impeditivos, e os pressupostos objetivos positivos, pelas circunstâncias e pela adequação procedimental e formal.

Conclui-se, então, que uma análise referente à carência ou à presença das condições da ação difere-se de uma análise acerca dos pressupostos processuais, visto que estes dizem respeito à relação processual, enquanto as condições da ação referem-se estritamente ao direito de ação.

No CPC/1973, devido ao fato de que a sentença de extinção do processo por carência de ação, no entender do legislador, não configura julgamento de mérito e, por isso, não forma uma coisa julgada material, interpreta-se que as condições da ação são elementos autônomos em relação aos pressupostos processuais. Apesar disso, entende-se que existe nessa sentença um conteúdo substancial e, por conta disso, essa eficácia exterior deve adquirir imutabilidade.

Alguns processualistas, criticando a consolidação das condições da ação no CPC/1973, propugnavam o pertencimento do instituto à categoria de requisitos necessários à procedência do pedido e, portanto, entendiam que a análise das condições da ação seria, na verdade, uma análise de mérito. Além disso, com a evolução da teoria de Liebman, foi-se perdendo a relevância do papel das condições da ação e, por isso, não se fala mais em pressupostos processuais e condições da ação, mas sim em pressupostos de admissibilidade do provimento jurisdicional.

No CPC/2015, com a eliminação da possibilidade jurídica do pedido como condição da ação, interpreta-se que há, sim, possibilidade de produção de coisa julgada material (arts 267, VI e 268, CPC/1973; arts. 485, VI e 486, CPC/2015) e, com isso, julgamento de mérito da demanda. Isso se dá principalmente pelo fato de que, agora, tais elementos compõe o juízo de admissibilidade do processo.

4. As condições da ação e o mérito

É sabido que a coisa julgada pode ser formal ou material, e a coisa julgada formal é pressuposto da coisa julgada material. Sabe-se, também, que a decisão é apenas imutável caso haja resolução da lide, isto é, quando o autor alcança um provimento jurisdicional do Estado. Dito isso, deve-se analisar a relação entre a coisa julgada e a sentença baseada na apreciação das condições da ação no processo.

Dinamarco fala, em suas obras, sobre a existência de uma tutela jurisdicional plena, relacionada ao direito ao provimento de mérito. Este, por sua vez, traduz-se no direito à sentença na fase de conhecimento. Além disso, versa também sobre o direito constitucional ao julgamento de mérito que, por isso, quando negado, constituiria denegação da justiça. Vale ressaltar, aqui, que uma tutela jurisdicional não-plena é, ainda assim, uma tutela jurisdicional.

4.1. As condições da ação e o julgamento de mérito

“Entende-se por julgamento de mérito a resposta dada ao pedido formulado pelo autor. O juiz examina os motivos deduzidos e as provas destinadas a demonstrá-los e. ao final, conclui pela existência, ou não, do direito afirmado” (BEDAQUE, 2007, p. 247). Logo, é a discussão do pedido apresentado na exordial, seguido de sua aceitação ou rejeição. No ordenamento jurídico brasileiro, a noção de “mérito” confunde-se com o conceito de lide carneluttiana, significando, então, o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida (Za lite é il conflitto di interessi tra due pemne qualificato dalla pretesa dell’una e dalla resistenza dell’altra.).

Ademais, nesse contexto, a causa de pedir não constitui-se como mérito em si, mas contém as chamadas “questões de mérito”, que são resolvidas pelo juiz na motivação da sentença, e, por isso, não integram o seu dispositivo (art. 469, CPC/1973; art. 504, CPC/2015). Dinamarco ilustra bem essa noção ao dizer que “o fato de uma questão ter pertinência à relação material trazida em juízo (…) não significa que ela própria seja de mérito”.

As hipóteses em que se há julgamento de mérito estão dispostas no art. 487 do CPC/2015. Anteriormente, as disposições referentes a esse assunto estavam presentes no art. 269, CPC/1973. Contudo, a partir de alterações, principalmente no que se refere a prescrição e decadência no julgamento de mérito, não se pode falar em equivalência total dos institutos, pois ambos distanciam-se no tratamento de questões referentes ao julgamento de mérito Então, a sentença de mérito resolveria a lide e, com isso, decidiria o pedido do autor, tornando-se imutável e, portanto, tratando-se de coisa julgada material (arts. 502 e 503, CPC/2015 e arts. 467 e 468, CPC/1973.

Há, também, autores que defendem que as condições da ação, embora não integrem o mérito stricto sensu, integram o mérito lato sensu.

Cunha é um dos defensores de que a possibilidade jurídica do pedido e a legitimidade da parte constituem questões de mérito e, por isso, a sentença de carência de ação produziria coisa julgada material. Para o autor, a impossibilidade jurídica decorre da ausência do direito do autor ao direito pleiteado, e a ilegitimidade das partes nega, também, as pretensões processuais formuladas.

4.1.1. O Julgamento antecipado de mérito

Para Liebman, a ação seria o direito ao simples julgamento do pedido, isto é, o direito de ver julgado, e não acolhido, o pedido formulado. Independe, nesse sentido, da decisão favorável ou desfavorável do magistrado. Dessa forma, o autor nega a natureza material das condições da ação, afirmando serem instituto do direito processual, o que significa que, em sua visão, o juiz deveria extinguir o processo sem julgamento de mérito por carência de ação, ou seja, pela ausência do direito de ação do autor. Destaca, ainda, o chamado “despacho saneador”, que seria o momento ideal para se verificar a presença ou a ausência das condições da ação no processo.

É sabido que a teoria de Liebman foi acolhida pelo CPC/1973, contudo, apesar das disposições de seu art. 267, VI, optou-se, sim, pela possibilidade de julgamento de mérito na fase de saneamento, em hipóteses específicas (art. 330, CPC/1973; art. 355, CPC/2015). Prevê-se, assim, as hipóteses de julgamento antecipado do mérito, que muitas vezes são de difícil distinção em relação às situações de impossibilidade jurídica do pedido.

Por fim, ressalta-se que os mecanismos de julgamento antecipado de mérito e de reconhecimento liminar da ausência de condições da ação devem ser utilizados com sobriedade e com cautela, colocando-se sempre como primazia o princípio da ampla defesa.

4.2. A visão de Bedaque sobre o mérito e as condições da ação

No que se refere à possibilidade jurídica da demanda, Bedaque ressalta que o limite entre a impossibilidade jurídica do pedido decorrente da vedação expressa no ordenamento material e a improcedência pela não subsunção do fato a uma regra é muito tênue, apesar de serem fenômenos ontologicamente idênticos. Por isso, daí decorre a importância da distinção entre a impossibilidade jurídica da demanda e a improcedência do pedido, bem explanada nos arts 267, VI e 295 do CPC/1973 e no art. 285-A, respectivamente. As ponderações de Bedaque acerca desse instituto possuem maior relevância no âmbito processual, e foram de extrema relevância para o CPC/1973; mas, com a alteração da redação dos dispositivos supracitados, novas questões devem ser acolhidas, como poderá ser visto adiante.

Porém, no que se refere à relação entre a possibilidade jurídica da demanda e o mérito, Bedaque propõe uma análise voltada por meio do direito processual para que se possa constatar a vedação da pretensão deduzida na ação. Nesse contexto, havendo-se uma sentença que promova uma solução completa e definitiva do litígio ao apreciar-se a possibilidade jurídica do pedido, estaria-se diante, na verdade, de uma sentença de mérito – isto é, aferindo-se que a norma invocada pelo autor não tenha o alcance alegado em suas pretensões, poderá o magistrado julgar antecipadamente o processo, havendo, nesse caso, julgamento de mérito (art. 468, CPC/193; matéria tratada de maneira distinta no CPC/2015, pelo art. 503)

Tratando-se da legitimidade ad causam, é sabido que, para que a parte seja considerada legítima para propositura da ação, basta afirmar ser titular do direito material pleiteado. Por isso, configura a capacidade de conduzir-se o processo, não dependendo de prova dos fatos constitutivos do direito do autor deduzidos na exordial, assim como o restante das condições da ação, e não se confunde, pois, com a efetiva titularidade do direito. Por isso, reconhecendo-se a ilegitimidade, o juiz não resolve a lide, mas, na verdade, deixa de examiná-la detalhadamente, pois uma cognição sumária lato sensu foi suficiente para constatar que o autor não possui o direito afirmado (arts. 3, 295, II e 267, VI do CPC/1973; arts. 17, 330, II e 485, VI do CPC/2015)

A conclusão a que se chega é que a ausência de legitimidade leva à constatação de inexistência do nexo entre uma das partes do processo e a situação descrita na exordial. E, com isso, o juiz não julga o pedido ou a pretensão do autor; ou seja, não se julga o mérito da demanda ao se analisar a legitimidade das partes.

Por derradeiro, analisa-se a questão de mérito e sua relação com o interesse processual. Sabe-se que o interesse de agir é um requisito legal para a propositura da ação (arts. 3 e 267, VI do CPC/1973; arts. 17 e 485, VI, CPC/2015), e que a falta de interesse é resultado da não-correspondência entre o fato narrado e a tutela pleiteada. No que se refere à questão do mérito, para Bedaque, “A única maneira de diferenciar o interesse processual do mérito propriamente dito é a profundidade da cognição” (2007, p.307). Dessa forma, a explicação do fenômeno processual se baseia na constatação de uma análise de mérito a partir da detecção da ausência de uma condição da ação no início da relação processual. Entretanto, o autor também ressalta a importância da distinção entre ambos, que “reside na diversidade do regime processual previsto para cada uma dessas categorias”, e, por isso, “a utilidade do instituto reside no tratamento a ele conferido pelo legislador processual, que pode ser alterada” (2007, p. 336).

Logo, verificando-se a falta de interesse processual, caberá ao magistrado, mesmo que repleto de informações sobre o caso de direito material, extinguir o processo sem resolução de mérito. Isso porque a análise de interesse processual se limita a verificar se é caso de utilização da via judicial, enquanto a análise do mérito põe fim ao litígio. Contudo, ressalta-se que a verificação do interesse processual não deve ser feita com elementos da contestação, mas apenas levando-se em conta as informações da exordial. Ademais Bedaque também alega que, havendo-se decisão sobre a inexistência da crise ao verificar-se ausência de interesse processual, não significa que a lide fora resolvida e, se a lide continuar presente, o autor não é impossibilitado de mover a mesma ação, devido à presença do binômio necessidade-utilidade.

Nesse contexto, o autor sugere que a verificação do interesse de agir poderá configurar exame de mérito de acordo com a tutela oferecida. Por exemplo, nos casos de tutela condenatória, haveria exame de mérito, visto que o interesse de agir é baseado no inadimplemento. Já nos casos de ação declaratória positiva, “a dúvida objetiva refere-se exclusivamente ao interesse de agir, não se confundindo com o mérito” (BEDAQUE, 2007, p.319), e nos casos de ação declaratória negativa, haveria a possibilidade de julgamento de mérito mesmo com carência de ação (o que seria a alternativa preferida), o que, para o autor, decorre da noção de “processo civil de resultados”.

Em síntese, não há julgamento de mérito no reconhecimento da ilegitimidade e da falta de interesse. Mas, embora a ilegitimidade não configure julgamento de mérito, havia uma tendência forte no CPC/1973 de considerar sua decisão imutável, o que significava, na verdade, afirmar que a parte do processo não integra a relação substancial litigiosa – logo, mesmo não produzindo sentença de mérito, a repropositura da ação é impedida.

4.3. As condições da ação e os elementos da demanda

A ação processual é o veículo por meio do qual o autor pede ao Estado uma tutela jurisdicional para cessar lesão ou ameaça a direito. Nesse espeque, é a demanda a responsável por trazer a juízo a situação de direito material, enquadrando a situação substancial aos moldes da lei processual e trazendo, assim, concreção ao direito de ação. De acordo com a teoria tria eadem, possui três elementos identificadores (art. 301, §2°, CPC/1973; art. 337, §2°, CPC/2015): as partes (elemento subjetivo), a causa de pedir e o pedido (elementos objetivos) – tais elementos trazem consigo o mérito da demanda e as questões de mérito.

Dessa forma, no que se refere aos elementos constitutivos das condições da ação e os elementos identificadores da demanda, é necessário esclarecer suas relações e diferenças. Primeiramente, fala-se em possibilidade jurídica do pedido e possibilidade jurídica da demanda: no primeiro caso, entende-se que há improcedência manifesta da pretensão do autor, e, por isso, a norma nega seu direito, já no segundo caso, entende-se que não é o pedido que é negado, mas sim um dos dois outros elementos identificadores da demanda, falando-se, portanto, em impossibilidade jurídica da causa de pedir ou impossibilidade jurídica das partes. Contudo, ambos os casos geram a mesma consequência jurídica: julgamento de mérito no sentido de sua improcedência.

Quanto ao interesse de agir, é um instituto ligado à proibição de autotutela, inserindo-se na chamada “causa de pedir remota passiva” (isto é, relacionada aos fatos do réu que violaram o direito do autor). Destarte, será buscado na causa de pedir que, por sua vez, é composta por questões de mérito cujas soluções levarão ao julgamento de mérito stricto sensu – e constatando-se inexistência de interesse de agir, há improcedência da demanda e julgamento de mérito.

Por fim, tratando-se da legitimidade ad causam, é ela a responsável por interligar as partes e a causa de pedir, referindo-se, assim, à pertinência subjetiva da demanda. Logo, é possível definir a ilegitimidade ad causam em situações em que não há nexo entre a titularidade das partes na relação jurídica de direito material – nesse caso, há também julgamento de mérito da demanda, no sentido de sua improcedência.

4.4. O julgamento de mérito, a sentença de carência e a repropositura da demanda

A matéria referente à repropositura da demanda no âmbito do atendimento das condições da ação é tratada de formas distintas por diferentes processualistas. E, nesse contexto, é possível identificar três principais grupos associados ao assunto.

O primeiro grupo propõe a autonomia das condições da ação como institutos em relação ao julgamento de mérito. É a ideia inicial defendida por Liebman, e consiste na afirmação de que, dentro do processo de cognição, apenas a sentença possui natureza plena de ato jurisdicional, enquanto as demais decisões possuem apenas caráter preparatório, o que daria as bases para distinção entre extinção do processo com ou sem julgamento de mérito. Nesse caso, considerando-se que as condições da ação não fazem parte do mérito, considera-se, também, como inexistente a sentença de carência de ação, havendo, na verdade, somente sentenças de mérito e sentenças processuais.

O segundo grupo defende a fusão entre os institutos das condições da ação e o julgamento de mérito, e tem como uma das principais figuras Galeno Lacerda. Para ele, as condições da ação resumem-se na legitimidade ad causam e na possibilidade jurídica do pedido, e, na fase de saneamento, haveria julgamento de mérito ao se constatar que a pretensão do autor encontra-se rechaçada por falta das condições da ação. Portanto, as condições da ação seriam, na verdade, condições de procedência, e não de admissibilidade do pedido.

Por derradeiro, o terceiro grupo, denominado como “processualistas no meio do caminho”, teve como principais expoentes José Roberto dos Santos Bedaque e Susana Henriques da Costa. Ambos pregam que as condições da ação constituem técnica destinada a possibilitar a verificação, ab initio, da viabilidade da tutela jurisdicional.

Nesse espeque, é sabido que uma sentença de carência de ação configurada como sentença de mérito, em consequência do trânsito em julgado, impediria a repropositura da demanda. Contudo, o CPC/1973 adota, em seus arts. 267, VI e 268, a proposta de que a sentença de carência de ação extingue o processo sem julgamento de mérito e, por isso, a decisão não transitaria materialmente em julgado, logo, não se impede a repropositura da demanda. Ora, não é de interesse do ordenamento em permitir a reproposição indefinida da demanda, pois isso esvaziaria, por si só, o conteúdo instrumental das condições da ação e, por isso, o tema foi central nos celeumas processuais brasileiros antes do CPC/2015.

Outra grande crítica apresentada ao tratamento das condições da ação no CPC/1973 refere-se à ação rescisória (art. 486, CPC/1973). Esse instituto baseia-se no afastamento da coisa julgada de forma a desconstituir a sentença, sendo previsto apenas em casos excepcionais. A problemática trazida refere-se ao fato de as sentenças de carência de ação não poderem ser objeto de ação rescisória pois, de acordo com a lógica do ordenamento, extinguem o processo e não produzem julgamento de mérito. Nesse contexto, a sentença terminativa que, de acordo com a teoria de Liebman, não aprecia o mérito da demanda, torna-se mais “definitiva” que a própria sentença de mérito. Para que a questão fosse sanada, criou-se uma ficção exagerada: a caricata figura das “falsas carências”

Por derradeiro, apresenta-se uma última problemática, envolvendo, desta vez, o duplo grau de jurisdição e as condições da ação. Com a introdução do art. 515, §3° no CPC/1973 (art. 1.013, CPC/2015) em 2001, surge uma nova questão: sabe-se que, no provimento de um recurso, havendo error in procedendo, deve-se anular a decisão anterior. Sendo assim, pode o tribunal julgar o mérito, substituindo a decisão de primeiro grau, caso a demanda verse sobre questão de direito ou estiver em condições de imediato julgamento ou, em outros casos, os autos retornarão à instância inferior para novo julgamento. Nesse contexto, as disposições do art. 515, §3° do CPC/1973 determinam que, havendo error in procedendo na sentença de carência de ação, o tribunal poderá julgar a demanda ou enviá-la para instância inferior.

Para Bedaque, houve restrição do princípio do duplo grau de jurisdição, visto que, “configurada hipótese legal, o mérito será analisado apenas em sede de apelação, suprimindo-se a instância inferior” (BEDAQUE, 2003, p.11). Contudo, ressalta-se que, aqui, a questão seria facilmente resolvida caso fossem reconhecidas as condições da ação como questões de mérito: a sentença da carência de ação, agora fundamentada no error in iudicando, seria reformada pelo tribunal competente, excluindo-se, assim, a possibilidade de atentar-se contra o princípio do duplo grau de jurisdição.

Nesse sentido, apesar de o ordenamento brasileiro não considerar que a sentença de carência de ação transita em julgado, ainda assim preza pela economia processual: a solução oferecida pela doutrina exige que, na aplicação do art. 268 do CPC/1973, seja saneado o vício anterior para que haja repropositura da demanda. Então, seria, ainda assim, possível afirmar que não há efeitos extraprocessuais imutáveis? Isto é, ainda assim seria possível dizer que a sentença de carência de ação não faz coisa julgada material? A negação da natureza jurídica e dos efeitos da sentença de carência de ação são nocivos para a doutrina, devendo-se, portanto, admitir os efeitos extraprocessuais da decisão, que certamente transita materialmente em julgado, e abandonar os malabarismos jurídicos que sustentam a decadente proposta para se evitar o reconhecimento da sentença de carência de ação como sentença de mérito.

Botelho de Mesquita também analisou a questão da repropositura da ação, sendo um dos principais autores a tratar sobre ela. Defensor da teoria concreta da ação, o autor baseou suas lições no art. 268 do CPC/173 (art. 486, CPC/2015). Foi grande crítico da teoria de fusão entre condições da ação e julgamento de mérito, alegando que haveria, nesse caso, a “implosão da regra” referente à repropositura da demanda quando há sentença de carência da ação sem julgamento de mérito. Foi, assim, adepto do primeiro grupo supracitado, defendendo a autonomia das condições da ação em relação ao mérito.

No que se refere à possibilidade jurídica do pedido, defende que, havendo impossibilidade jurídica, não há julgamento de mérito pois o juiz não se pronuncia sobre a relação entre pedido e a causa de pedir, não julgando, portanto, a lide. Já ao tratar da legitimação da causa, alega que seu julgamento não passa pela resolução de mérito, por tratar-se de uma análise do juiz acerca da legitimidade do autor para reclamar o direito apresentado na demanda, ou da legitimidade do réu para ser acusado, aferindo-se, no processo, se a questão de fato o envolve. Por derradeiro, referindo-se ao interesse de agir, Botelho de Mesquita diz que não se trata da avaliação do mérito, mas sim da necessidade de se recorrer à justiça para efetivação ou tutela do direito pleiteado.

Dessa forma, sendo definidas as relações entre sentença de carência de ação e julgamento de mérito na doutrina de Mesquita, pergunta-se sobre a repropositura da demanda. Ora, como previamente dito, grande parte de sua doutrina acerca do tema levou em conta as previsões do art. 268 do CPC/1973, então seria, aprioristicamente, correto afirmar que defendia a repropositura indefinida e indeterminada da demanda, visto que a sentença de carência de ação, em sua visão, não produz julgamento de mérito. Todavia, o autor também ressalta o art. 471 do CPC/1973 (art. 505, CPC/2015) em suas argumentações, e conclui ao dizer que é sim assegurada a repropositura da demanda pelo ordenamento, contudo, os magistrados não devem declarar sentença diversa daquela proferida na primeira demanda apresentada em juízo.

Dinamarco também opina sobre o tema. Para ele, uma sentença de carência de ação faz, sim, coisa julgada material, visto que é preciso que “a decisão se projete para fora do processo, tendo eficácia que não se restringe às finalidades do processo e adquirindo imutabilidade” (2000, p.454). Ademais, o autor vai além: defende também que há possibilidade de existência de coisa material até em decisões liminares, bastando apenas uma decisão definitiva (mas não interlocutória).

Outro autor que contribui para o debate é Fredie Didier Jr. Para ele, as condições da ação deveriam ser extraditadas em definitivo do ordenamento brasileiro, configurando-se como “superada” e “obtusa”. E, no que se refere à produção de coisa julgada material na sentença de carência, ao mencionar o art. 268, CPC/1973, diz que “além da adoção de uma categoria equívoca, falha o legislador ao regrar a produção de coisa julgada material das sentenças que declaram a chamada carência de ação, pois finge não se analisar a relação jurídica de direito material quando se reconhece a carência de ação.” (DIDIER JR. 2002, p.1). Alega, também, que seria arbitrariedade dizer que não houve exercício do direito de ação quando o juiz extingue o processo, sem julgamento de mérito, na sentença de carência de ação; para ele, na verdade, pode haver um exercício abusivo do direito de ação em casos de carência, mas não a ausência do mesmo. Acrescenta, também, que não há que se falar em “êxito da ação”, como Liebman propunha, visto que a ação sempre terá êxito, visto que sempre haverá um pronunciamento jurisdicional sobre a demanda apresentada em juízo. Por fim, diz que não faz sentido condicionar o exercício do direito de ação, que seria autônomo e abstrato, a elementos que serão verificados no direito material, e direciona inúmeras críticas ao instituto da possibilidade jurídica do pedido, considerando-o “a mais esdrúxula e despropositada das condições da ação.”, sendo uma invenção desnecessária e sem fundamento para Liebman ater-se a ideia de autonomia das condições da ação.

Conclui, assim, Didier Jr., que a impossibilidade jurídica do pedido deveria ser incluída no rol das causas de improcedência prima facie, assim como é feito nos casos da prescrição e da decadência.

Por derradeiro, Leonardo Cunha também se pronunciou. Para o autor, a interpretação da doutrina de que não seria possível apresentar novamente a demanda a juízo sem a correção do vício significa, na verdade, a proposição de uma nova demanda. O jurista define apenas três institutos autônomos na teoria geral do processo, sendo eles a ação, o processo e a jurisdição.

5. A teoria adotada pelo Código Brasileiro: uma breve síntese por análise comparada

As alterações mais relevantes trazidas pelo Código de Processo Civil de 2015 referentes à matéria de condições da ação referem-se à forma como seus elementos se expressam no texto legal e às consequências que a sentença de carência pode acarretar. Nesse sentido, analisa-se, primeiramente, a hipótese de resolução de mérito na sentença de carência de ação, prevista, principalmente, nos arts. 267 e 268 do CPC/1973, e nos arts. 485 e 486 do CPC/2015.

CPC/1973

Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:

(…)

Vl – quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;

Art. 268. Salvo o disposto no art. 267, V, a extinção do processo não obsta a que o autor intente de novo a ação. A petição inicial, todavia, não será despachada sem a prova do pagamento ou do depósito das custas e dos honorários de advogado.

CPC/2015

Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:

(…)

VI – verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual;

Art. 486. O pronunciamento judicial que não resolve o mérito não obsta a que a parte proponha de novo a ação

Como pode ser visto, não houve significativas alterações na matéria. O CPC/2015 ainda estatui que não haverá resolução de mérito quando se verifica a ausência de legitimidade ou de interesse processual, e a repropositura da ação é, teoricamente, ainda possível. Porém, mantém-se também a noção de produção de efeitos substanciais extraprocessuais da sentença de carência de ação, visto que, conforme previsto nos arts. 468 e 467 do CPC/1973 e 502 e 503, caput, do CPC/2015, o que vai de encontro com a instrumentalidade do processo e com o princípio da economia processual.

CPC/1973

Art. 467. Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.

CPC/2015

Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.

Art. 503. A decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida.

Nota-se, também, nos dispositivos, a retirada do termo “condição da ação”, inferindo-se que, no momento doutrinário atual, constituem os chamados pressupostos de admissibilidade do provimento jurisdicional. O mesmo ocorre nos arts. 267, VI e 295.

CPC/1973

Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito:

(…)

Vl – quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;

Art. 295. A petição inicial será indeferida:

I – quando for inepta;

II – quando a parte for manifestamente ilegítima;

III – quando o autor carecer de interesse processual;

(…)

Parágrafo único. Considera-se inepta a petição inicial quando:

(…)

III – o pedido for juridicamente impossível;

CPC/2015

Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando:

(…)

VI – verificar ausência de legitimidade ou de interesse processual;

Art. 330. A petição inicial será indeferida quando:

I – for inepta;

II – a parte for manifestamente ilegítima;

III – o autor carecer de interesse processual;

(…)

§ 1º Considera-se inepta a petição inicial quando:

(…)

II – o pedido for indeterminado, ressalvadas as hipóteses legais em que se permite o pedido genérico;

Ademais, é possível de se notar, nos artigos supracitados, outro aspecto pertinente: a retirada do termo “possibilidade jurídica do pedido”. Como dito previamente, o instituto deixou de ser elemento autônomo das condições da ação, falando-se, então, apenas em legitimidade ad causam e interesse de agir. Dessa forma, a hipótese de indeferimento da petição por ineptidão é configurada quando o pedido for indeterminado, salvo hipóteses em que há previsão legal, em vez de quando o pedido for juridicamente impossível.

Conclusão

Apesar da relevância passada do instituto das condições da ação, nota-se um desgaste em sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. Em 1973, com a emergência da teoria de Liebman, foi, certamente, uma opção viável estatui-lo expressamente no texto legal como elemento autônomo, visto que tratava-se de um instituto cuja maturação não havia ainda se dado por completa. Contudo, hodiernamente, com a maturação não só dos estudos sobre as condições da ação, mas também a partir do maior desenvolvimento da ciência processual, reafirmando-se como disciplina autônoma, bem como com a chegada de seu “terceiro momento metodológico”, seria imprudente e desleixado não repensá-lo, de forma a garantir sua aplicação harmônica com os demais princípios e institutos processuais civis, sejam eles doutrinários, jurisprudenciais ou normativos.

Dessa forma, questões como a produção de julgamento de mérito hão de ser analisadas sob o espeque do novo paradigma do processo civil brasileiro, e sob a ótica das garantias e direitos constitucionais acerca do devido processo legal. Dito isso, não basta apenas remover as condições da ação do ordenamento jurídico, sugerindo, de forma tácita, que não se trata mais de um instituto autônomo dos pressupostos de admissibilidade do provimento jurisdicional, e também não basta retirar a possibilidade jurídica do pedido como elemento autônomo das condições da ação.

Para que as máculas que permeiam o ordenamento jurídico e a doutrina brasileira relacionadas aos celeumas das condições da ação sejam resolvidas, é necessário, primeiramente, desapegar-se ao passado e admitir o erro de Liebman ao considerá-la elemento autônomo que não produz julgamento de mérito ou coisa julgada material. Apesar de sua classificação como questão de mérito ser, sim, controversa, seus efeitos extraprocessuais imutáveis devem ser reconhecidos de forma mais contundente, pois a criação de ficções exageradas e verdadeiros malabarismos jurídicos para que se justifique uma noção do passado não só vai contra o princípio da economia processual, mas também nega a própria natureza jurídica do instituto, que, por isso, constitui-se como fonte de insegurança jurídica.

E, por isso, tendo-se em mente a economia processual, o devido processo legal, a ampla defesa e, enfim, todas as garantias processuais constitucionais, conclui-se que, apesar das controvérsias e prejuízos decorrentes da aplicação e dos debates acerca da natureza jurídica e da aplicação do instituto das condições da ação, o benefício para o ordenamento de sua existência acaba sobressaindo o prejuízo. Reforça-se, porém, o dever de utilizar as condições da ação de maneira sóbria e moderada, prezando por uma parcimônia em sua aplicação, para não provocar atritos ou violações de normas e princípios do ordenamento.

Nesse sentido, dentro da proposta apresentada e a partir da análise dos elementos do presente trabalho, parece ser extremamente tangível a elaboração de uma teoria que seja capaz de sanar as problemáticas trazidas pelo instituto. A doutrina brasileira demonstrou-se, apesar da decadência contemporânea do debate acerca do assunto, determinada a elaborar uma proposta consolidada para o CPC/2015, e, com as reformas incorporadas ao código, certamente um progresso foi feito. Contudo, as controvérsias, apesar de finitas, são miríades, e, por isso, ainda há um caminho a ser percorrido, pela teoria processual civil brasileira, no que se refere ao saneamento dos conflitos gerados pela aplicação dos elementos constitutivos do instituto das condições da ação.

REFERÊNCIAS

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