Sumário: 1. Observações pertinentes; 2. A medida provisória e algumas de suas razões anunciadas; 3. O princípio da impessoalidade; 4. Conclusão.
1. Observações pertinentes
Antes que qualquer visão distorcida ou limitada aos contornos de um gabinete sem qualquer luminosidade intelectual possa tentar imaginar o contrário, é preciso consignar que as reflexões que seguem não são trazidas à apreciação dos leitores visando dar contornos de legalidade, defesa ou ataque a qualquer dos envolvidos no episódio que não sai das páginas dos jornais, das revistas e dos noticiários televisivos, além de freqüentar outros meios de comunicação[1], e que está relacionado com o fechamento dos “bingos” no Brasil por “canetada”, pela via da Medida Provisória n.º 168, de 20 de fevereiro de 2004, publicada em edição extra do Diário Oficial da União na mesma data.
A observação acima é pertinente, visto que Instituições Públicas que desfrutam de razoável prestígio social e seus agentes, que em boa parte não dispõem de crédito nem mesmo junto a seus pares, não raras vezes, e na maioria delas por pura má-fé ou desconhecimento do Direito, têm dado interpretações as mais equivocadas a fatos e matérias, a desencadear injustiças que o mais leigo dos leigos não acarretaria se desprovido de qualquer ranço ditatorial e despótico.
2. A medida provisória e algumas de suas razões anunciadas
A jogatina relacionada aos “Bingos” foi objeto de regulamentação no passado recente, ao que consta bem intencionada, nas denominadas “Lei Zico” e “Lei Pelé”, e sendo esta última modificada, a atividade caiu na ilegalidade, passando a funcionar por força de liminares concedidas nas mais diversas Instâncias Judiciárias.
Programa jornalístico veiculado pela “TV Cultura” e levado ao ar na noite de sexta-feira, dia 27 de fevereiro de 2004, no período noturno, informou que na quinta-feira que antecedeu a publicação da matéria em revista de circulação nacional e que fez eclodir a discussão a respeito dos “Bingos” encontrava-se em mãos do Exmo. Sr. Presidente da República Medida Provisória regulamentando por completo a atividade dos “Bingos” no Brasil, sendo que com a publicação da matéria jornalística referida Medida Provisória foi abortada.
O fato é que a bombástica matéria publicada envolveu o nome do “homem forte” do Governo Federal, diga-se, do Presidente da República, o Sr. José Dirceu, visto que o principal envolvido no escândalo e a quem se imputa crimes os mais variados era também “homem forte” do Ministro Dirceu, com quem, aliás, dividiu apartamento por certo período, conforme também informam os noticiários.
É inegável, e nada leviano afirmar, que o Sr. Waldorimo Diniz, principal envolvido no escândalo e elo de ligação entre o episódio e a cúpula do Governo Federal, era “homem de confiança” do “homem de confiança” do Presidente da República.
Ocorre, entretanto, que somente após a publicação da matéria jornalística e a constatação de seus primeiros efeitos sísmicos em toda a sociedade, com reflexos inclusive na confiança entre os investidores nacionais e estrangeiros, é que o Presidente da República cuidou de anunciar em mais um de seus brilhantes discursos e editar em tempo recorde, não sem muitas brechas que permitem e estão permitindo a concessão de outras liminares, a Medida Provisória nº 168, de 20 de fevereiro de 2004, proibindo, em todo território nacional, a exploração de todas as modalidades de jogos de bingo, bem como os jogos em máquinas eletrônicas, denominadas “caça-níqueis”, independentemente dos nomes de fantasia.
Muito embora se tenha argumentado favoravelmente à medida editada no sentido de que a exploração de tais jogos se presta à lavagem de dinheiro, à prostituição infantil e outra atividades ilícitas, é preciso convir que a medida repentina só foi editada com a finalidade de colocar “panos quentes” sobre o escândalo, visando passar a impressão de que o Ministro José Dirceu e o Governo Federal estão isentos de qualquer responsabilidade com as noticiadas ilicitudes trazidas à baila, livrando de qualquer responsabilidade direta ou indireta, ao menos perante a opinião pública, principalmente o Ministro José Dirceu.
Também está claro e é fato de todos sabido que o Partido dos Trabalhadores, a quem pertence a cúpula do governo federal, sob a batuta do Sr. Presidente da República, tenta evitar a qualquer custo uma CPI no Congresso Nacional[2], para não se investigar o episódio sob qualquer ângulo, conforme cuidou de enfatizar a 2ª edição do “Jornal da Globo” de 01 de março de 2004.
Dizer que o jogo é ilícito e por isso proibido já traz uma primeira reflexão: se já era ilícito, qual a razão justificadora para a ausência de fiscalização efetiva pelos órgãos incumbidos até a eclosão do episódio envolvendo o alto escalão federal?
Veja-se que após a edição da medida provisória o polícia federal imediatamente cuidou de encetar diligências por todo o país visando coibir a prática da jogatina, apreendendo máquinas e documentos, lacrando estabelecimentos etc, e assim vem agindo diuturnamente.
Dizer que a jogatina favorece a lavagem de dinheiro também não convence, pois é sabido que outras tantas atividades lícitas no Brasil se prestam à lavagem de capitais, e nem por isso o governo federal cuidou de baixar até o presente momento qualquer medida provisória impedindo tais atividades que estão no ramo de hotelaria, agências de turismo, compra e venda de pedras e metais preciosos, passes de atletas etc.
Dizer, ainda, que a jogatina favorece a prostituição infantil, e daí a necessidade da proibição, chega a ser infantil, pois, seguindo tal lógica absurda seria necessário que os governos parassem de incentivar o turismo nas mais variadas regiões do País e viessem a proibi-lo, pois é sabido que dezenas de estrangeiros desembarcam no Brasil a todo instante em busca de dias calientes envoltos pela mesma prostituição.
Se há atividade ilícita reflexa a qualquer outra atividade, entendemos que o que se deve fazer é fiscalizar com rigor, e não deveria ser diferente no caso dos Bingos, onde a impressão que agora se tem é a de que até o “estouro da bomba” tudo era permitido aos mesmos.
3. O princípio da impessoalidade
Comentando o princípio da impessoalidade anota Maria Sylvia Zanella Di Pietro que o mesmo está “relacionado com a finalidade pública que deve nortear toda atividade administrativa. Significa que a Administração não pode atuar com vistas a prejudicar ou beneficiar pessoas determinadas, uma vez que é sempre o interesse público que tem que nortear o seu comportamento”(1).
Importa destacar ainda a questão da moralidade administrativa, e para tanto, mais uma vez utilizaremos os ensinamentos da jurista acima indicada, que se apoiando em Antonio José Brandão (RDA 25:454) nos apresenta a seguinte lição: “O mesmo autor demonstra ter sido Maurice Hauriou o primeiro a cuidar do assunto, tendo feito a sua colocação definitiva no 10ª edição do Précis de Droit Administratif, onde define a moralidade administrativa como o ‘conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração’; implica saber distinguir não só o bem e o mal, o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, mas também entre o honesto e o desonesto; há uma moral institucional, contida na lei, imposta pelo Poder Legislativo, e há a moral administrativa, que ‘é imposta de dentro e vigora no próprio ambiente institucional e condiciona a utilização de qualquer poder jurídico, mesmo o discricionário”(2).
De tudo, as questões logicamente decorrentes são as seguintes:
1). Diante do quadro apresentado, envolvendo agentes do alto escalão do Governo Federal, a edição da Medida Provisória n. 168, de 20 de fevereiro de 2004, visou ou não beneficiar “certas pessoas”?
2). O “poder jurídico” utilizado pela administração quando da edição da referida medida provisória está ou não alicerçado na moralidade administrativa?
3). Houve ou não ofensa aos princípios da impessoalidade e da moralidade?
4. Conclusão
A mera suspeita de ligações de certa atividade empresarial com ramos de ilicitude não pode autorizar, de plano e do dia para a noite, a mudança radical adotada pelo Governo Federal e terminar em proibição de exercício da atividade-base indiscriminadamente.
Permitir ou não a jogatina; legalizá-la ou não, é matéria que deve ser analisada com critérios claros, objetivos e justos, com prudência e responsabilidade, observando-se as diretrizes do Estado Democrático de Direito, assim como as regras e princípios que informam a Constituição Federal.
Bibliografia:
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 12ª ed., São Paulo, Atlas, 2000, p. 71.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Ob., citt., p. 78.
Notas:
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).
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