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Biopoder: poder e governamentalidade

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Resumo: Este artigo versa sobre as duas aulas dadas por Paul-Michel Foucault em 11 e 18 de janeiro de 1978, no curso Segurança, Território, População, realizado no Collège de France, nos anos de 1977 e 1978. Nessas aulas, Foucault investiga a relação entre poder e governamentalidade, buscando compreender, a partir do conceito de biopoder, de que forma o saber político pode ser utilizado como instrumento de controle da população, bem assim quais mecanismos são empregados por esse saber para alcançar esse objetivo.

Palavras-chave: Biopoder. Controle social estatal. Mecanismos jurídico-legais. Mecanismos disciplinares. Mecanismos de segurança. Tecnologia do poder. Lei. Disciplina. Dispositivos de segurança.

1. Introdução

Em 15 de outubro de 1926, nasceu em Potiers, França, Paul-Michel Foucault. Licenciou-se em psicologia em 1949, ano em que também recebeu o diploma em estudos superiores em filosofia. Faleceu em 25 de junho de 1984, em Paris, França, aos 57 anos de idade, em decorrência da síndrome da imunodeficiência adquirida.

Notabilizou-se Foucault como importante filósofo e professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France, no período de 1970 a 1984. Seu campo de investigação gravitou em torno do desenvolvimento de uma arqueologia do saber filosófico, da experiência literária, das práticas de subjetivação, da análise do discurso e também sobre a relação entre poder e governamentalidade.

Publicou várias e relevantes obras, merecendo destaque: As palavras e as coisas (1966); Vigiar e punir (1975); História da sexualidade: A vontade de saber (1976), O uso dos prazeres (1984), O Cuidado de si (1984); Nascimento da biopolítica (1978-1979); Microfísica do Poder (1979) e Segurança, território e população (1977-1978).

A partir da análise das duas aulas ministradas por Paul-Michel Foucault em 11 e 18 de janeiro de 1978, no curso Segurança, Território, População, realizado no Collège de France, pretende-se compreender de que forma o saber político instrumentaliza-se como mecanismo de controle da população.

2.Desenvolvimento

Na obra Segurança, Território, População, Focault investiga a relação entre poder e governamentalidade, buscando compreender, a partir do conceito de biopoder[1], de que forma o saber político pode ser utilizado como instrumento de controle da população, bem assim quais mecanismos são empregados por esse saber para alcançar esse desiderato.

Já no preâmbulo de sua aula do dia 11 de janeiro de 1978, Focault apresenta o conceito de biopoder, que segundo ele era

“o conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana, constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder”.[2] (FOUCAULT, 1977-1978, p.3)

O biopoder, portanto, consiste num conjunto de práticas estatais instrumentalizadas por meio de técnicas de poder que buscam exercer o controle sobre os indivíduos e sobre as populações, bem como assegurar a propriedade sobre a vida e o direito, fazendo isso a partir do dado biológico humano.

No afã de investigar e compreender os mecanismos de poder, Focault apresenta quatro indicações para guiar seu raciocínio e argumentação:

A primeira indicação consiste na sua advertência de que “a análise desses mecanismos de poder não é uma teoria geral do poder” (Focault, 2008, p. 3). Assim, em sua obra, ele não está empenhado em apresentar uma definição do poder, sua natureza, seus elementos constitutivos, mas antes analisar a trama relacional de poder a partir de sua dinâmica, de sua mecânica.

A segunda indicação consiste na sua afirmativa de que o

“(…) conjunto de procedimentos que têm como papel estabelecer, manter, transformar os mecanismos de poder, pois bem, essas relações não são autogenéticas, não são auto-subsistentes, não são fundadas em si mesmas”. (Focault, 2008, p. 4).

Segundo essa perspectiva, Focault parte da premissa de que os mecanismos de poder não são autogenéticos, ou seja, eles não dão origem a si mesmos, não estando fundados neles próprios, originando-se da rede de poder.

A terceira indicação repousa no reconhecimento de que a investigação desses mecanismos de poder pode favorecer “a análise global de uma sociedade” (Focault, 2008, p. 5), revelando “quais são os efeitos de saber que são produzidos em nossa sociedade pelas lutas, os choques, os combates que nela se desenrolam, e pelas táticas de poder que são os elementos dessa luta”. (Focault, 2008, p. 5).

A quarta indicação contém a afirmação de Focault de que é inerente a todo discurso teórico ou simplesmente analítico um discurso no imperativo, do tipo “lute contra isto e desta ou daquela maneira”. (Focault, 2008, p. 5).

Assevera veementemente que o imperativo que permeia seu discurso é um imperativo condicional, ou seja, “pontos-chave, gênero deste: se você quiser lutar, eis algumas linhas de força, eis algumas travas e bloqueios.” (Focault, 2008, p. 6). Em suma, como afirma o filósofo, tais imperativos são apenas “indicadores táticos.” (Focault, 2008, p. 6).

A quinta e última indicação é a formulação de um único imperativo, categórico e incondicional, qual seja, o de “nunca fazer política”. (Focault, 2008, p. 6).

Apresentadas as cinco indicações foucaunianas acima, que segundo o próprio autor são mais “indicações de opção” (Focault, 2008, p. 3) do que princípios, regras ou teoremas, esclarece ele três questões fundamentais relativas ao seu Curso Segurança, Território, População.

A primeira questão refere-se à delimitação do que se entende por segurança. Para tanto, vale-se Focault de um exemplo modulado em três tempos. O exemplo, segundo o filósofo, é simples, porém, expressivo. A primeira modulação versa sobre a formulação de uma norma penal simplíssima, concebida sob a forma binária “não matarás, não roubarás”, acompanhada de sua punição.

A segunda modulação gira em torno da mesma lei penal que é cercada por uma “série de vigilâncias, controles, olhares, esquadrinhamentos diversos que permitem descobrir, antes mesmos do ladrão roubar, se ele vai roubar, etc.” (Focault, 2008, p. 7). Ou seja, é feito um enquadramento da lei dentro de um complexo de controle e correção da conduta do infrator. Esta modulação não exclui as punições decorrentes da primeira.

A terceira modulação também está vinculada à lei penal, segundo a qual a “organização da prevenção, da punição corretiva, tudo isso vai ser comandado por uma série de questões” (Focault, 2008, p. 7), a quais, em última instância, terão por objetivo mapear o grau de aceitabilidade e tolerabilidade de determinadas condutas delitivas, averiguando-se até que ponto elas não são lesivas ao funcionamento social, tudo isso para instrumentalizar e organizar os mecanismos estatais de controle sobre os indivíduos e sobre a população.

Apresentadas esses pontos fundamentais do Curso Segurança, Território, População, passa Foucault a analisar detidamente os três mecanismos consubstanciados nas três questões acima referidas – lei penal e punição; lei penal e seus mecanismos de vigilância e correção, bem como o mecanismo disciplinar; dispositivos de segurança – para que possa bem definir o sentido e alcance de segurança.

No que se refere ao dispositivo de segurança, Focault concebe-os como um conjunto de fenômenos que inseri a criminalidade (e seus tipos penais específicos) dentro de uma “série de acontecimento prováveis” (Focault, 2008, p. 9), cuja reação do Poder Público a tal fato social importa no cálculo do seu custo social, para, finalmente, analisar-se qual a ocorrência considerada ótima dos delitos e fixar quais “os limites do aceitável, além dos quais a coisa não dever ir.” (Focault, 2008, p. 9).

Focault pontua que atualmente[3] existe um conjunto enorme de medidas legislativas que visam implementar os mecanismos de segurança, havendo, portanto, “verdadeira inflação legal, inflação do código jurídico-legal para fazer esse sistema de segurança funcionar.” (Focault, 2008, p. 11).

Importante destacar que, segundo ele, os mecanismos que visam manter o controle sobre os indivíduos e a população, mecanismos jurídico-legais, mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança, não são excludentes entre si, de modo que em um determinado contexto social o que muda são as técnicas dos mecanismos de controle, o que faz com que haja a predominância de uns sobre os outros, uma nova configuração da inter-relação entre elas, mas não a exclusão de um ou uns pela presença do outro.

A esse respeito são elucidativas as palavras de Focault:

“Vocês não têm (sic) mecanismos de segurança que tomam o lugar dos mecanismos disciplinares, os quais teriam tomado o lugar dos mecanismos jurídico-legais. Na verdade, vocês têm (sic) uma série de edifícios complexos nos quais o que vai mudar, claro, são as próprias técnicas que vão se aperfeiçoar ou, em todo caso, se complicar, mas o que vai mudar, principalmente, é a dominante ou, mais exatamente, o sistema de correlação entre os mecanismos jurídico-legais, os mecanismos disciplinares e os mecanismos de segurança.” (Focault, 2008, p. 11).

Focault propõe ainda uma indagação investigativa que ele reputa central: em decorrência de sua constatação de que há uma verdadeira emergência e proliferação de tecnologias de segurança na sociedade ocidental – mecanismos que visam o controle social – e que exercem a função de “modificar em algo o destino biológico da espécie” (Focault, 2008, p. 15), poder-se-ia considerar que a “economia geral de poder está se tornando da ordem de segurança?” (Focault, 2008, p. 15). Noutras palavras, a tecnologia de segurança dominou a economia de poder?

Para responder a essa pergunta, Focault faz uma análise histórica das tecnologias de segurança e das características gerais dos dispositivos de segurança, características que são, segundo ele: os espaços de segurança, o problema do tratamento do aleatório, a forma de normalização específica da segurança e, finalmente, a correlação entre a técnica de segurança e a população.

Numa apertada síntese, pode-se afirmar que em relação às questões de espaço, Focault obtemperou que “(…) as soberania se exerce nos limites de um território, a disciplina se exerce sobre o corpo dos indivíduos e, por fim, a segurança se exerce sobre o conjunto de uma população.” (Focault, 2008, ps. 15-16).

Para explicar como a disciplina e a segurança implicam numa repartição espacial, Focault utilizou-se do exemplo do planejamento da cidade (desde o século XVIII), o qual estabelecia as condições de circulação (de pessoas, mercadorias, ar) em seu interior por meio dos controles reguladores, visando promover a higiene, o arejamento e eliminar todas as espécies de bolsões em que se acumulavam miasmas mórbidos, tudo isso em suposto benefício da vida e saúde das populações.

Na aula do dia 18 de janeiro de 1978, Focault empreende uma análise da relação dos dispositivos de segurança não mais com o espaço, mas a relação do governo com o acontecimento. Para dar cabo a essa verificação e imprimir uma linha de raciocínio, ele analisa a questão da escassez alimentar, teorizando sobre a complexa e engenhosa dinâmica da circulação dos cereais.

Em tal empreendimento, identificou Focault em seus estudos a concepção de economia elaborada pelos fisiocratas no século XVIII e concluiu que foi a doutrina fisiocrática que determinou os critérios e mecanismos de circulação alimentar, e isso, por sua vez, motivou alterações nas tecnologias de poder. Portanto, foi a doutrina dos fisiocratas que forneceu o substrato teórico para a concepção das técnicas de poder que servissem aos seus ideais e metas.

Assim, a ilação não pode ser outra: a de que assim como “não se pode negar que a liberdade de circulação dos cereais é efetivamente uma das consequências teóricas do sistema fisiocrático” (Focault, 2008, p. 45), os dispositivos de segurança, enquanto instrumentos de controle, consubstanciam a concepção econômica, social e filosófica prevalente num determinado contexto histórico específico, estando tais dispositivos a serviço da concepção prevalente.

O dispositivo de segurança é estrategicamente concebido e instalado, portanto, nessa ambiência teórico-ideológica e não mais numa perspectiva meramente jurídico disciplinar. A escassez alimentar que justificaria a intervenção estatal no território passa a ser uma quimera e a morte dos indivíduos tolerada, ou seja, essa situação estaria dentro do limite tolerável do ponto de vista social. Por isso, a população passa ser alvo de dispositivos de segurança, enquanto o indivíduo passa a ser visto como mero instrumento.

Importante destacar a abordagem de Focault acerca da força centrípeta dos dispositivos disciplinares e sobre a força centrífuga dos dispositivos de segurança, quando da análise do exemplo da escassez alimentar. Nesse sentido, informa o filósofo que:

“A disciplina concentra, centra, encerra. O primeiro gesto da disciplina é, de fato, circunscrever um espaço no qual seu poder e os mecanismos do seu poder funcionarão plenamente e sem limites. (…) a polícia disciplinar dos cereais é efetivamente centrípeta. Ela isola, concentra, encerra, é protecionista e centra essencialmente sua ação no mercado ou nesse espaço do mercado e no que o rodeia. Em vez disso, vocês vêem (sic) que os dispositivos de segurança, tais como procurei reconstruí-los, são o contrário, tendem perpetuamente a ampliar, são centrífugos.” (Focault, 2008, p. 59).

Afirma ainda Focault que a disciplina regula tudo, não deixando nada de fora, não autorizando o laisser-faire, tendo por função impedir tudo, inclusive os detalhes. Já o dispositivo de segurança autoriza o laisser-faire, não de forma absoluta, mas dentro de uma margem. Importante ressaltar que para ele, a lei proíbe, a disciplina prescreve e o dispositivo de segurança, sem proibir ou prescrever, anula, limita ou regula uma realidade através de alguns instrumentos de proibição e de prescrição.

3.Considerações finais

A relação entre poder e governamentalidade é incontestável na obra foucaultiana. A concepção de biopoder formulada por Paul-Michel Foucault revela sua compreensão crítica de que a função do governo não é governar, mas assegurar a prosperidade, o crescimento do mercado, o crescimento econômico. A função do governo, portanto, é a governamentalidade, isto é, controlar e direcionar as potencialidades humanas da população, por meio de tecnologias do poder, colocando-as a serviço dos interesses das estruturas prevalentes em determinado contexto social e econômico.

Para Focault, portanto, o estilo de governar que disciplina todos os aspectos da vida humana por meio do biopoder (biopolítica) coloca o direito (tecnologia da subjetivação) e o Estado (poder de polícia) a serviço do mercado, de modo que nesse cenário estratégico os indivíduos passam a ser percebidos do ponto de vista de sua utilidade ou inutilidade ao sistema, numa razão puramente instrumental.

 

Referência bibliográfica
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977-1978). Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Notas:
[1] A palavra biopoder, criada por Focault, foi empregada por ele pela primeira vez na obra História da Sexualidade: A vontade de Saber. (1976).
[2] Segurança, território, população: curso dado no Collège de France, aula do dia 11 de janeiro de 1978.
[3] Segunda metade do século XX (1977 e 1978), quando foi ministrado por Foucault o Curso no Collège de France.

Informações Sobre o Autor

Alexandre Oliveira Soares

Mestrando em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Especialista em Direito Civil e Direito Processual Civil pela UNIPAC. Professor do curso de graduação em Direito da Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira (FUNCESI).


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Equipe Âmbito Jurídico

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